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Print version ISSN 0101-3106
Ide (São Paulo) vol.43 no.72 São Paulo July/Dec. 2021
OUTRAS VIAGENS
Viagem e exílio no filme A vida secreta das palavras: uma leitura inspirada na traumatogênese de Sándor Ferenczi
Journey and exile in the movie The secret life of words: a reading inspired by the traumatogenesis of Sándor Ferenczi
Daniel KupermannI; Renato TardivoII
IPsicanalista, professor livre-docente do Departamento de Psicologia Clínica do IPUSP, bolsista do CNPQ. Autor de Por que Ferenczi? (Zagodoni) - São Paulo / danielkupermann@gmail.com
IIPsicanalista, escritor, Professor Colaborador do Departamento de Psicologia Clínica do IPUSP. Autor de Cenas em jogo - literatura, cinema, psicanálise (Ateliê/Fapesp) - São Paulo / rctardivo@uol.com.br
RESUMO
A vida secreta das palavras, filme de Isabel Coixet, explora as potencialidades do encontro entre uma enfermeira, Hanna, e um trabalhador acidentado em uma plataforma de petróleo, Joseph. Hanna leva uma vida monótona e anestesiada; Joseph demanda cuidados, como auxílio para fazer as necessidades básicas. Ambos viveram experiências intensamente traumáticas. O filme, que versa sobre as dificuldades de viver, mostra-se uma obra sobre as dificuldades de falar. Pela perspectiva da traumatogênese de Sándor Ferenczi, A vida secreta das palavras é uma história de dedicação ao outro e da potência transformadora de um encontro sensível. Seu argumento nos confronta com os limites do testemunho e da perlaboração das experiências radicalmente traumáticas, perturbando nossa inabalável esperança nos poderes curativos da palavra.
Palavras-chave: trauma psíquico, Sándor Ferenczi, 1873-1933, desmentido, clivagem
ABSTRACT
The secret life of words, a movie directed by Isabel Coixet, explores the potential of the encounter between a nurse, Hanna, and an injured worker on an oil rig, Joseph. Hanna leads a dull and numb life; Joseph demands care, as an aid to basic needs. Both had intensely traumatic experiences. The movie, which deals with the difficulties of living, is shown to be about the difficulties of speaking. From the perspective of Sándor Ferenczi's traumatogenesis, The secret life of words is a story of dedication to the other and the transformative power of a sensitive encounter. His argument confronts us with the limits of testimony and the perlaboration of radically traumatic experiences, disturbing our unwavering hope in the healing powers of the word.
Keywords: psychic trauma, Sándor Ferenczi, 1873-1933, denied, cleavage
O filme
A vida secreta das palavras (2005), filme dirigido pela espanhola Isabel Coixet, explora o que pode emergir do encontro entre uma jovem enfermeira, Hanna (Sarah Polley), e um homem acidentado em uma plataforma de petróleo, Josef (Tim Robbins). "Como alguém vive com o que aconteceu? Com as consequências? Como alguém vive com os mortos?". Essas perguntas, que Josef faz a Hanna, sintetizam a temática da trama, uma história sobre as dificuldades de viver após experiências intensamente traumáticas.
Hanna trabalha como operária em uma fábrica de Copenhague. Ela vive sozinha, não tem amigos ou parentes, e, quando não está desempenhando sua função na linha de produção da fábrica, arruma algo com o que se ocupar - como os bordados que faz para jogar fora em seguida. Obcecada por limpeza, todo contato com resíduos do mundo é vivenciado como sujeira. O uso que ela faz do aparelho auditivo também aponta nessa direção. Portadora de um problema no ouvido, Hanna só ouve quando o aparelho está ligado. E, quando quer se fechar, o que faz com frequência, ela o desliga. Outro elemento importante é a presença da voz over - no cinema, voz enunciada por alguém que não está em cena (Tardivo, 2018; Xavier, 2005) - de uma criança, que apenas Hanna parece ouvir.
No início do filme, Hanna é chamada pelo chefe. Ele a impele a tirar férias, algo que ela não faz há quatro anos. Mas, em vez de aproveitar o período para descansar ou passear, ela arranja um emprego temporário como enfermeira em uma plataforma de petróleo. Na plataforma, Hanna cuidará de Josef, trabalhador que, após um incêndio, sofreu fraturas, queimaduras e lesões nas córneas - o que o torna temporariamente cego. Além de deixar Josef ferido, o acidente vitimou fatalmente seu amigo. Hanna aplicará analgésicos em Joseph e cuidará dos ferimentos e da higiene dele.
No primeiro encontro entre eles, chama a atenção a cena em que Hanna o ajuda a urinar na comadre, pois contrasta com a assepsia que marca seu contato com os objetos. Joseph, por sua vez, busca se aproximar da enfermeira, por vezes de forma lúdica, brincando com a condição em que se encontra. Ocorre que, com base na complementaridade entre a postura ativa de Josef (embora acamado e ferido) e a reserva de Hanna (embora manipule o corpo dele), se estabelece uma intimidade que, aos poucos, se revela como cumplicidade.
Hanna não diz seu nome a Josef. Então, inspirado no conto "Senhorita Cora", de Julio Cortázar (1966/2004), ele passa a chamá-la de Cora. No conto, um jovem de 15 anos, internado com quadro de apendicite, tem complicações e morre. Cora é a enfermeira - no início reservada e distante - por quem o paciente se apaixona. Não é aleatória, portanto, a referência trazida por Josef. Ele também vai se apaixonar pela enfermeira aparentemente inacessível.
As fraturas visíveis de Josef preparam o terreno para a revelação de traumas invisíveis, secretos. Ele se recorda de uma cena da infância, quando o pai, que também não sabia nadar, o jogou no mar com o objetivo de que ele perdesse o medo. Além disso, Josef conta que havia se apaixonado pela mulher do seu melhor amigo (o companheiro de trabalho que morreu no incêndio). Hanna, que já sabe que a morte do companheiro de Josef não foi acidental, junta as peças e compreende que se trata das circunstâncias do incêndio. Ao descobrir o envolvimento da mulher com Josef, seu amigo se jogou nas labaredas. Portanto, as fraturas de Josef vão além das sequelas físicas.
Ainda mais surpreendentes são as revelações sobre o passado de Hanna. Ela é sobrevivente da guerra da Bósnia, tendo vivenciado situações de horror. Aprisionada pelo exército do próprio país, é submetida tempos depois, por parte de soldados de forças internacionais, a estupros, tem o corpo talhado a faca e assiste à cena em que uma mãe foi obrigada a matar a filha. Então, se Hanna busca o trabalho temporário de enfermeira a fim de se manter em atividade e, nessa medida, protegida do que lhe traz tanto sofrimento, as relações que ela estabelece na plataforma a encorajam a falar. No começo do filme, vemos que ela mantém uma correspondência silenciosa com uma mulher mais velha do que ela. A mulher envia cartas, que Hanna não lê; e Hanna telefona para ela, mas fica em silêncio. A história sobre as dificuldades de viver após experiências intensamente traumáticas é, assim, a história sobre as dificuldades de falar.
Meses depois, fora da plataforma e quando já está fisicamente restabelecido, Josef procura Hanna. Após se encontrar com a mulher para quem Hanna faz as ligações (descobrimos que se trata de uma ex-orientadora dela), ele vai até a fábrica onde ela trabalha, em Copenhague. Josef a vê pela primeira vez. O filme empreende um salto temporal de alguns anos. Josef e Hanna agora vivem juntos e têm dois filhos. A voz over do início retorna, dando a entender que se trata da criança morta pela mãe na situação de guerra relatada por Hanna, mas vai embora, e "talvez nunca mais volte".
Clivagem e anestesia de si
Frango grelhado, arroz branco e uma maçã. A dieta insípida repetida cotidianamente por Hanna ilustra o tempero de sua existência. Uma vida monótona, protegida dos estímulos externos e desprovida de modulações afetivas interiores. Uma vida funcional, tão alienada quanto a tarefa que desempenha na linha de montagem da indústria têxtil na qual trabalha, escudada dos ruídos das máquinas e das vozes humanas. Uma vida anestesiada?
Em sua descrição dos efeitos da experiência traumática sobre a vítima, Sándor Ferenczi (1931/1992a; 1933/1992c) indica uma modalidade de defesa até então inédita no pensamento psicanalítico: a identificação com o agressor. O sujeito traumatizado, em sua tentativa de sobreviver às experiências disruptivas, mimetizaria os movimentos subjetivos de seus agressores, bem como a versão dos fatos por eles narrada - explícita ou implicitamente. Para o psiquismo subjugado, vale o contrário do dito popular: antes mal acompanhado do que só, abandonado diante das angústias traumáticas. O sujeito violado promoveria, assim, uma autoclivagem narcísica por meio da qual geraria, por incorporação, uma parte que sabe tudo, mas nada sente, que teria como função proteger a parte sensível - agora destruída - da subjetividade. Sua inspiração é a autotomia, da qual se servem alguns animais para sobreviver às custas da perda de uma parte prescindível do corpo - o rabo da lagartixa, o braço do alpinista.
Essa descrição da clivagem nos permite ainda compreender o sintoma cultural prevalente no Ocidente, a partilha entre o sensível e o inteligível que inspirou parte da história da filosofia e que norteia parcela ainda maior de nossas vidas civilizadas. Hipertrofia da consciência moral, atrofia do gesto corporal. Para alguns, a invenção médica da anestesia é perfilada entre as maiores realizações modernas. No entanto, ao lado das grandes descobertas da ciência, encontramos as vidas anestesiadas pelos traumas das guerras que marcaram a experiência europeia do século XX, e das migrações e da violência urbana características de todo e qualquer continente em nosso século XXI.
A criança traumatizada é aquela que assiste à inversão da dissimetria existente com o universo dos adultos e nas relações de cuidado: ela se vê obrigada a cuidar precocemente de si mesma e, muitas vezes, a cuidar daqueles que deveriam se ocupar dela. Tendem a ser, de acordo com Ferenczi (1933/1992c), os psiquiatras da família, muitas vezes filhos de pais gravemente deprimidos ou mesmo psicóticos. Na vida social, tendem também a transformar sua dor em vocação, atuando nas diversas práticas de cuidado institucionalizado: hospitais, escolas, proteção e defesa dos direitos humanos. Ferenczi recorre à metáfora da fruta bichada para descrever esse processo de progressão traumática por meio do qual a criança traumatizada aparenta um pseudoamadurecimento: madura por fora, deteriorada por dentro (Ferenczi, 1933/1992c).
Uma outra referência importante de Ferenczi (1923/1993) é a do bebê sábio, presente em sonhos de muitos pacientes. O bebê sábio aparece muitas vezes falando, proferindo palavras de lucidez. A surpresa causada por esses sonhos é correlata da surpresa característica de toda experiência traumática, como encontramos no pensamento psicanalítico desde que Freud se dedicou ao tema do traumatismo psíquico.
Obrigada a tirar férias, sem apetite e sem qualquer desejo de se expandir pelo mundo, Hanna se "salva" quando encontra um anúncio buscando uma enfermeira, uma cuidadora. Parte para uma plataforma de petróleo no meio do oceano ao encontro de Josef.
A plataforma, a ilha
Incrustada em alto-mar, a plataforma de petróleo para onde Hanna viaja a fim de cuidar de Josef é uma espécie de ilha, e, enquanto tal, alude ao isolamento, ao exílio. Nesse "lugar nenhum", as pessoas que ali trabalham estão apartadas de seus vínculos familiares e sociais e, em certa medida, distanciadas dos conflitos que deles decorrem. Os silêncios e a fotografia de penumbra do filme são emblemas disso.
Instauram-se nos demais trabalhadores da plataforma, então, experiências atravessadas por essa atmosfera. Vejamos algumas: o jovem oceanógrafo joga basquete sozinho; o cozinheiro procura trazer elementos das culturas de diversos países nos alimentos que prepara e nas músicas que põe para tocar; dois homens, distantes de suas famílias, relacionam-se amorosamente entre si. E aquela que talvez seja a figura mais solitária da plataforma: uma gansa, que pertencia ao homem morto no incêndio, a caminhar sem rumo. Com efeito, mesmo nas situações em que os personagens estão reunidos, durante uma refeição ou interagindo em uma brincadeira, o que parece emergir é a presença de uma ausência. Na ilha, predomina a cultura do exílio: o domínio do inacessível e do incomunicável.
O triângulo amoroso entre Josef, o amigo morto no incêndio e a mulher do amigo, no entanto, acaba por trazer os conflitos para o cerne da plataforma. O acidente e a morte do amigo representam, até então, o grau máximo de conflito. O incêndio é o disparador da trama, porque é em virtude dele que Hanna é convocada a entrar na cena que virá a protagonizar. E, a esse propósito, há um detalhe sutil e da maior importância: antes de se oferecer para a vaga de enfermeira, Hanna senta-se em um banco à beira-mar, na cidade onde passaria as férias que é forçada a tirar, e observa, no horizonte, uma fumaça escura subindo de uma plataforma. Ou seja, do continente, ela testemunha o incêndio no momento mesmo em que ele ocorre.
Nesse sentido, se a motivação de Hanna em se manter ocupada nas férias relaciona-se com sua tentativa de se manter apartada da dor - e a atmosfera de inacessibilidade da ilha reforçaria isso -, por outro lado, ao se deslocar até a plataforma, ela vai ao encontro do trauma. É assim que, ao cuidar de Josef, Hanna estará também cuidando de si, podendo testemunhar o indizível que viveu.
Quando Hanna começa a contar a Josef sobre suas experiências traumáticas, ela o faz como se, em algumas situações, estivesse se referindo a outras mulheres. Hanna - Cora, para Josef - fala de si na terceira pessoa. Uma mulher foi obrigada a atirar na filha, e morreu de sofrimento um pouco depois. Outra mulher teve o corpo todo cortado a faca e agonizou até a morte. Após esse relato, ela abre os botões da camisa e coloca a mão de Josef, ainda cego, sobre as suas cicatrizes. Hanna se recosta junto ao corpo dele, e, estando ambos aos prantos, eles se beijam.
Com efeito, devido à anestesia da angústia traumática, Hanna refugia-se na posição de observadora daquilo que viveu para se apartar do próprio sofrimento. Nessa direção, o sujeito traumatizado muitas vezes não tolera narrar um fato vivido, mas apenas observar o outro, ainda que este outro se assemelhe a si mesmo. De acordo com Julio Verztman (2002), pessoas que passaram por essas experiências são capazes de raro altruísmo, pois tudo o que elas não podem sentir em relação a si mesmas é deslocado ao outro que está em sofrimento. Talvez decorra daí a disposição de Hanna para o cuidado a Josef. Quando, porém, Josef pergunta - e é mais uma evidência de que, ao cuidar do outro, ela cuida de si - pelo nome da amiga dela, sua resposta é "Hanna".
A comunidade de destino
Para Ferenczi, a violação não é em si mesma traumática. Ela caracteriza o primeiro tempo do trauma, que denominamos tempo do indizível (2019). Com base na experiência disruptiva, o sujeito violentado buscaria encontrar um outro, um terceiro em quem confia, de modo que pudesse representar o irrepresentável e dizer o indizível. Nomeamos esse segundo momento da traumatogênese tempo do testemunho (2019). O trauma propriamente dito se configuraria apenas a partir do momento em que o testemunho fracassa, ou seja, quando o outro qualificado para prestar o testemunho da violação ausenta-se, tornando o encontro inacessível. O pior, segundo Ferenczi (1931/1992a), não é, portanto, a violência sofrida, mas o desmentido (Verleugnung): dizerem que nada aconteceu ou mesmo castigarem e punirem a vítima por isso. O circuito do trauma completa-se no tempo do desmentido, e, em condições muito favoráveis de amparo e confiança, o sujeito vitimado repete o tempo do testemunho, ainda que correndo o risco do retraumatismo em função de novo desmentido (2019). Temos, assim, duas agressões: a violação (física ou psíquica) e o desmentido. E dois agressores: o violador e a testemunha que se omite.
A história de Hanna é uma história de desmentidos. Escravizada com outras mulheres e repetidamente violentada por soldados que repetiam em seu ouvido I'm sorry... I'm sorry, Hanna e suas companheiras de cativeiro enfrentaram a maior experiência de abandono que se pode conhecer: o abandono por aqueles que deveriam protegê-las. Com base nessa situação característica da fratura da confiança no outro, não é difícil compreender o movimento de isolamento e de retraimento diante da realidade. Para sobreviver ao horror, é preciso preservar seu núcleo sensível ilhando-se e rodeando-se pela imensidão de um mar de lágrimas.
Josef, por outro lado, também passou por uma experiência de vulnerabilidade radical. Mortifica-se por sua paixão transgressora, que destruiu os vínculos de lealdade para com o amigo e que o levou ao suicídio. Ao tentar salvá-lo, Josef arrisca a própria vida e termina temporariamente cego, reeditando a seu modo a tragédia de Édipo. Joga-se ao fogo assim como seu pai o atirou ao mar para curar a sua própria angústia (do pai) por não saber nadar. O desmentido, no caso de Josef, se dá pela radicalidade do ato do amigo, que encerra o sentido do ocorrido provocando a morte - a sua e a de Josef, que escapou por muito pouco -, potência do indizível que detém a última palavra.
Curioso pensar nos motivos daquele que viola e daquele que desmente. O termo escolhido por Ferenczi (1931/1992a) para referir-se ao terceiro tempo do trauma é Verleugnung, o mesmo utilizado por Freud para referir-se ao mecanismo psíquico da perversão. No entanto, Ferenczi transpõe o termo para o âmbito relacional - a Verleugnung é, primeiramente, cometida pelo outro a quem endereçamos nossa dor. Em um segundo momento, o desmentido acarreta uma outra Verleugnung, agora intrapsíquica, na vítima, que promove uma clivagem em sua própria esfera mental para conseguir sobreviver ao abandono traumático. Mas nem todo agressor é perverso. Muitas vezes o violador expressa por meio da agressão o estado psíquico de dessubjetivação no qual se encontra - talvez fosse o caso dos jovens soldados expostos às atrocidades da guerra. E, na maior parte das vezes, o segundo agressor - que pode ser qualquer um de nós - desmente, por meio da indiferença, os testemunhos de horror pelo mesmo fato de que esses são insuportáveis de se ver e escutar (2019). Por isso, os sujeitos traumatizados, quando não sucumbem à repetição da violência que sofreram, tendem a ter a vocação do cuidado com o outro.
A vida secreta das palavras é, assim, uma história de dedicação ao outro. Ao cuidar dos ferimentos de Josef, Hanna termina por realizar uma bandagem na sua alma despedaçada. Junto da recuperação da visão, Josef recupera a autoestima, o humor e o desejo de viver. Imagina a cor dos cabelos de Hanna, sonha sua beleza. As práticas de cuidado lhe devolvem o amor-próprio e restabelecem seu narcisismo perdido, condição sine qua non para amar o outro.
Já Hanna encontra em Josef uma testemunha para seu grito emudecido. Talvez possamos dizer que o apassivamento de Josef o tornara, em um primeiro momento, um confidente efetivamente confiável, dando a Hanna a certeza de que Josef, apesar de ser um homem, não repetiria as violações que outros homens lhe impingiram. Impossível não sublinhar o quanto a situação estabelecida entre os dois tem semelhanças com o setting psicanalítico. A dupla Hanna-Josef detém privacidade, exercita a intimidade e a atenção mútua, e conta com o tempo suficiente para a cicatrização das feridas traumáticas de ambos. Há, no entanto, uma inversão: Josef, que escuta pacientemente Hanna, encontra-se acamado. Não seria justamente a vulnerabilidade inicial de Josef que teria permitido a Hanna imaginar que ele, ao experimentar a radicalidade do sofrimento e da dor, poderia compreender, e, mais do que isso, acolher, seu testemunho?
Sándor Ferenczi (1928/1992b) postulou em um importante ensaio para os caminhos adotados pela terapêutica psicanalítica a imprescindibilidade da empatia na experiência clínica. A empatia, Einfühlung no alemão, muitas vezes por ele utilizado, é um termo importado do campo da estética e significa literalmente "sentir dentro". A ideia de Ferenczi é que, para tratar pessoas que sofreram traumatismo grave e que permanecem emudecidas pela atração do indizível, é preciso alcançar, por meio de uma sensibilidade aguçada, seus núcleos inacessíveis, auxiliando-os na árdua tarefa de testemunhar e, na medida do possível, perlaborar o horror traumático (Osmo e Kupermann, 2017). Empatizar seria, portanto, contar com a disponibilidade para sentir o outro dentro de si, o que implica a aventura momentânea da mistura afetiva por meio do esmaecimento das fronteiras, usualmente bastante bem estabelecidas, entre o eu e o outro. A empatia, de acordo com Ferenczi, indica tanto a arte da escuta quanto uma modalidade eminentemente estética de comunicação que muitas vezes antecede a enunciação de qualquer palavra. Ela evoca ainda uma experiência que é em si curativa, pelo fato de que é sinônimo de uma qualidade de acolhimento que só tem parentesco com a relação primária entre uma mãe e seu bebê (Pimentel e Coelho Jr., 2009).
A experiência clínica seria, assim, marcada pela neocatarse por meio da qual os sujeitos, ao recuperar a ilusão de onipotência, ensaiam uma palavra capaz de expressar o sentido de existir (Kupermann, 2017). No encontro com subjetividades traumatizadas, Ferenczi se refere a momentos nos quais tudo se passa como se ambos, analista e analisando, fossem crianças igualmente desamparadas que estabelecem entre si uma comunidade de destino capaz de lhes proporcionar o suporte necessário para restituir aos dois a vontade de viver (Ferenczi, 1932/1992). Hanna diz a Josef que, se começasse a falar sobre o que sofreu, choraria sem parar, e ele se afogaria. Josef então se dispôs, pela primeira vez na vida, a aprender a nadar, apenas para poder acolher as lágrimas de Hanna.
A criança secreta no adulto
No início do filme, assim que Hanna chega em casa, após ser obrigada pelo chefe a tirar férias, há a inserção de uma voz over. A voz é de uma menina, mas o discurso não é infantil. O vocabulário, o raciocínio e a sintaxe remetem a uma pessoa mais madura. "Ela nunca vê meu rosto, embora eu seja sua única companhia" - é a primeira frase dita. Como se contasse a uma terceira pessoa sobre sua relação com Hanna, ele descreve suas roupas, seu cabelo - que nunca é o mesmo; às vezes está longo, às vezes, curto - e diz que gosta de leite quente. Quando Hanna vai se deitar, a voz da menina retorna. Agora, diz que Hanna lhe contou histórias assustadoras, mas ficou ao seu lado, acariciando seus cabelos, até que ela dormisse.
Inicialmente, não há muitos elementos para compreender essa narração. Sabe-se que a menina que a enuncia não está em cena e, embora ela se refira a Hanna em terceira pessoa, fica sugerido que se trata de uma voz interna da personagem. Chama a atenção, também, certa inversão com relação à posição de cuidadora. Em um primeiro momento, é enfatizada a companhia que a menina faz a Hanna, preenchendo seus silêncios, pensando por ela, cuidando dela. Mas, em seguida, é Hanna quem, após contar histórias assustadoras, põe a menina para dormir e assume o lugar de cuidadora.
À medida que tomamos contato com as situações traumáticas de Hanna, ampliam-se as possibilidades de compreensão da voz over. Vimos que Hanna precisou preservar seu núcleo sensível. É nesse sentido que o sujeito abandonado pelo desmentido do outro, segundo Ferenczi, tem a necessidade de criar pela clivagem uma instância auto perceptiva a fim de substituir os cuidadores ausentes (Glicenstein, 1992). Ora, a inquietude que decorre da incongruência entre a sonoridade infantil da voz e a sofisticação do discurso que ela enuncia aponta para a referência de Ferenczi (1923/1993) ao bebê sábio, indicando a necessidade de um amadurecimento precoce, uma progressão traumática, como condição para a sobrevivência. Acrescenta-se a isso o fato de ela se referir a Hanna em terceira pessoa, como a própria o fará diante de Josef, corroborando a ideia de que Hanna se refugia na condição de observadora de si.
Na última sequência do filme, Hanna aparece, anos depois, em uma casa iluminada e colorida, o oposto do apartamento onde vivia antes. É mais uma - e radicalmente outra - viagem. Ela pega um copo d'água e senta-se sozinha à mesa, com semblante pensativo. Então, a voz over, que não aparecia desde o início, retorna. E diz:
Fui embora há muito tempo. Só às vezes, nessas manhãs de domingo, quando ele já está comprando o jornal e o pão, e ela ouve os filhos gritando na casa do vizinho aonde foram brincar... sim, agora ela tem dois filhos, meus irmãos. Nessas manhãs frias e ensolaradas, quando ela tem a casa só para ela, ela se sente estranha, frágil e vazia, e, por um momento, não sabe se tudo foi um sonho. Então eu volto para ela, e ela me embala e afaga o meu cabelo, e nada, absolutamente nada do que aconteceu poderá nos separar. Mas eu ouço as crianças voltando. Eu vou embora, estou longe agora. Talvez eu nunca mais volte.
O término do depoimento em voz over marca, também, o fim do filme.
Agora Hanna e Josef vivem juntos e têm dois filhos. A voz over aparece explicitamente na condição de filha de Hanna, o que se articula à cena do depoimento na plataforma a Josef, no qual Hanna fala de si em terceira pessoa, em que uma mãe é obrigada a matar a filha. Vale destacar o aspecto onisciente da voz over no cinema, também conhecida como voz de Deus. Enquanto uma estratégia não diegética, isto é, não sendo possível localizar o lugar de onde ela é enunciada, a voz over é aquela que habita toda a imagem e, portanto, é a voz que, no limite, parte de um núcleo anônimo e incomunicável.
Talvez, com seu final banhado no mistério, a cineasta Isabel Coixet tenha pretendido ilustrar a dimensão permanentemente anônima de nós mesmos que insistimos em recobrir com palavras e gestos na direção de um outro que, no limite, será também sempre desconhecido. Para nós, psicanalistas, Coixet relança a interminável questão dos limites do testemunho e da elaboração das experiências radicalmente traumáticas, perturbando nossa inabalável esperança nos poderes curativos da palavra.
Referências
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