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Ide

Print version ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.44 no.73 São Paulo Jan./June 2022

 

ODE AO DIVINO EM TI: A TRAVESSIA DO HERÓI ENTRE CRENÇA E FÉ

 

Uma jornada para tecer a trama

 

A journey to weave the plot

 

 

Elena Molinari

Membro efetivo da Sociedade Italiana de Psicanálise, especialista em terapia de crianças e adolescentes. Pavia / eleni.molinari@gmail.com

 

 


RESUMO

A autora tece um artigo tentando aproximar seu trabalho de terapia de casal fazendo uma analogia com as peripécias do herói Ulisses, ao longo da sua odisseia. Para tanto, revisita a Odisseia, confrontando alguns episódios das experiências terapêuticas em que se narra a relação entre o convívio de homem e mulher e as várias etapas da viagem homérica, suas experiências e seus personagens.

Palavras-chave: relação homem-mulher, transformação, arquétipo


ABSTRACT

The author weaves an article trying to approach her work with couples therapy by making an analogy with the adventures of the hero Ulysses, throughout his odyssey. To this end, she revisits the Odyssey, confronting some episodes of the therapeutic experiences in which the relationship between the coexistence of man and woman and the various stages of the Homeric journey, its experiences and its characters is narrated.

Keywords: man-woman relationship, transformation, archetype


 

 

Reelaboração do mito com base nas histórias vividas numa vida

O protagonista da Odisseia é um homem inquieto, sua esposa, uma mulher reflexiva.

Ulisses/Odisseu é o tipo de homem movido pelo inesgotável desejo de explorar aquilo que está para além de si mesmo.

Penélope, a mulher impelida a explorar os meandros de sua solidão.

Ulisses vive muitas aventuras amorosas.

Penélope permite que outros homens a cortejem, provavelmente alternando dentro de si um sentimento ambivalente, entre lisonja e recusa. Ulisses adota a postura de pai de seus homens; Penélope cria um filho sem pai.

A descrição que emerge da Odisseia faz deles dois personagens complementares, um homem e uma mulher que enfrentam uma longa separação antes que possam novamente voltar a ser um casal.

Se nos permitirmos ler de uma maneira livre as experiências narradas na Odisseia como se fossem uma série de sonhos que se contam, não será obrigatoriamente necessário que se respeite o plano narrativo que faz de um ou de outro o protagonista (Dodds, 2009). Particularmente, serão consideradas as personagens de Calipso, Circe, as Sereias, Nausícaa como aspectos parciais do feminino, diferentes momentos do devir de um casal. O reencontro de Ulisses e Penélope, como narrado na última parte, pode não apenas ser considerado como epílogo de uma viagem que manteve separados por vinte anos um homem e uma mulher, mas também como um ambiente propício a uma intimidade física e mental diversa que um casal pode alcançar após atravessar os inevitáveis problemas que uma relação traz. A história de cada casal é uma vivência rica de perspectivas com base em paixão (páthos) e adversidades, mas, numa linguagem comum, uma Odisseia de fato; foi, todavia, a oportunidade de ouvir as histórias contadas pelos casais em terapia que me estimulou à releitura do conto épico escrito por Homero, deste ponto de vista. E foi o que aconteceu com os opostos, como costuma acontecer quando é o conto mítico que ilumina a vida.

Calvino escreve: "Ulisses é uma figura modernamente ambígua, instável, 'multiforme', engenhosa, móvel como é a realidade". Nesse caso é a realidade mutável e multiforme que vem a tornar a vivência de Ulisses e Penélope um protótipo da vida de um casal.

Usarei, portanto, as muitas histórias vivas ouvidas em terapia, não para relatar um caso clínico, mas para uma espécie de reescrita literária de algumas questões universais, úteis para evidenciar como alguns episódios da Odisseia podem ser reinterpretados de um ponto de vista das vivências de um casal, das inquietações que atravessam a vida de um casal (Placanica, 1993, Malerba, 1997).

Então vou começar a viagem, uma versão moderna da Odisseia.

Horme e Hécate aportam em meu consultório para evitar a separação movida pelo senso de responsabilidade para com os filhos. O que tornou intolerável a dor e a tensão na relação entre ambos, implícitas em suas divergências, foi pôr em ato a solução que Horme encontrou para tornar tolerável a sua dor: imediatamente após uma discussão, prepara uma mala às pressas e parte. Por duas ou três noites não atende ao telefone ou responde às mensagens, deixando Hécate entregue à angústia por não saber se ele estava vivo ou morto e onde poderia estar. As questões concretas que deflagram as divergências entre eles são bastante banais, em sua maioria focadas nas diferenças de estilo na condução da educação de seu filho caçula. No entanto, as reações são desproporcionais, como se inesperadamente um vento impetuoso inflasse as velas da embarcação de Horme e em poucos segundos o tornasse inalcançável. Um destino adverso decidido por deuses invejosos, ou, em uma linguagem mais atual, Horme torna-se o portador de um sintoma; um mandato inconsciente transgeracional (Kaës, 1993).

Horme sempre retornou para sua casa após alguns dias prometendo a sua esposa não repetir aquela atitude, que, ao contrário, não só se repete, mas também se intensifica.

"Será sempre uma Odisseia" é o título de um artigo em que Italo Calvino (1981) apresentou ao público o primeiro volume da edição Valla/Mondadori.

Utilizarei o nome Horme, que indica em grego o espírito do impulso por fazer, dos esforços, do início da ação e da impaciência, para indicar o "Ele" do casal e Hécate para o "Ela". Hécate é o nome de uma deusa representada como mulher que se apresenta de forma tríplice, numa espécie de alusão às muitas faces do feminino.

Hécate pretende responder a esse gesto pedindo a separação, procurando assim também uma distância que a proteja do desespero do abandono. Ela igualmente se pergunta o que acontece naqueles dias em que Horme desaparece. Ele conta que dormia em seu escritório, trabalhava durante o dia e passava as noites sozinho, esperando que a raiva e a decepção que ela lhe impingia se aquietassem. Hécate, imaginando que Horme poderia realmente ter se refugiado ali, numa noite de desespero vai a seu encontro no escritório, mas ninguém abriu a porta. Isso obviamente desencadeou em Hécate uma série de fantasias sobre possíveis aventuras eróticas, como também quanto à não veracidade da versão de Horme sobre suas ausências. Durante outra noite de solidão, movida pela hipótese de que algum acidente fatal pudesse ter acometido Horme; Hécate entrou em contato telefônico com todos os prontos-socorros da região. A busca infrutífera resultou em sentimentos ambivalentes, entre o alívio e certo desapontamento diante do não desfecho da morte de Horme, em parte, inconscientemente desejado por ela.

Após alguns encontros onde ambos conversaram amplamente sobre o presente, suas narrativas começam a se entrelaçar com flashbacks em que são reconstituídas as suas próprias histórias de vida com a vida do casal.

Foi justamente esse elemento da estrutura narrativa que culminou numa primeira associação com a Odisseia, um texto originário cuja narração não segue a cronologia dos acontecimentos; essa entra viva apenas no v Livro, quando Ulisses, após ter deixado Calipso, consegue abandonar a ilha dos Feácios, onde encontra Nausícaa. Aqui Ulisses, admitido na corte do rei Antínoo, começa a contar os acontecimentos que antecederam sua chegada; um longo flashback através do qual o leitor aprende sobre as muitas aventuras e desventuras pelas quais Ulisses passou nos últimos vinte anos, em que está longe de Ítaca. Além do conteúdo aventureiro, também é a estratégia narrativa de Homero, composta de analessi e prolessi, a tornar a obra uma história envolvente. Como escreveu Calvino no prefácio do livro de Privitera, o poema de "retorno" de Ulisses constitui o arquétipo do romance de aventuras moderno e a matriz de cada uma das teorias do conto. Inicialmente é a própria forma de contar as estórias de Horme e Hécate entrelaçadas e sua possibilidade de se mover entre as lembranças e desejos de futuro que produzem mudanças.

A primeira mudança foi me incluírem em sua experiência, estimulando em mim um desejo de compreensão concomitantemente àquele de me distanciar quando a discussão entre eles recaía num mero diálogo berrado por surdos.

O aparecimento dos flashbacks através dos quais narraram para mim seu encontro e as etapas principais de sua história como um casal, evocaram uma compreensão profunda relativa à maneira em que texto e tecelagem compartilham raízes etimológicas comuns; introduzimos na sessão a analogia entre a trama de Penélope e a história de Ulisses. Uma vez em campo esses dois personagens, por meio de uma associação minha, não comunicada, muitos traços em comum com eles foram aparecendo: o ambivalente desejo de Hécate de reconstruir o relacionamento ou terminá-lo com o divórcio, as fugas de Horme em nada detidas pela responsabilidade relativa aos filhos, as fantasias de ambos de aportarem calmamente em ilhas de felicidade paradisíaca.

Enfim, o frequente pranto que acompanhou Hécate em seu esforço para pôr tudo em palavras trouxe à tona como a narração de histórias acarreta um doloroso retorno ao lar de memórias de felicidade e harmonia dos quais se sente irremediável e reiteradamente distanciada por estarem no passado. Seu desejo pelo divórcio, no fundo, continha também o desejo de aportar na ilha dos Lotófagos, em que tudo o que foi vivido é transformado em esquecimento. Conversar na sessão foi para Horme e Hécate, ao menos no início, o único ponto de contato entre dois veteranos que, como na Odisseia, conseguiam ao final da jornada, uma proximidade tolerável.

 

Calipso: a prova de amor

Como havia antecipado, tentarei contar a experiência de um tipo de modelo adotado pelo casal aproximando-a daquela relatada na Odisseia ou revisitando a Odisseia do ponto de vista das experiências vividas pelo casal e escolhendo alguns episódios em que se narra a relação entre homem e mulher.

Horme: Antes de Hécate (minha esposa), tive uma longa e verdadeira história com uma colega de colégio. De início, foi Hécate que se apaixonou por mim. Eu não procurava um encontro com uma garota, me deixei levar pelo seu amor, e por um tempo foi bonito. Sentia-me especial no grupo, porque os meus amigos me perguntavam como era estar com uma garota, o que fazíamos quando estávamos juntos e obviamente estavam muito curiosos em saber como era estar com ela quando nua, porque ela era realmente muito bela. Depois, com o tempo, ela foi ficando enciumada, solicitava que nos víssemos todos os dias e, quando saía com meus amigos sem convidá-la, ficava aborrecida durante dias. No início da Universidade eu era tomado por uma sensação de sufocamento, e nesse período tivemos brigas continuamente, assim, Hécate também acabou se convencendo de que cada um de nós devia seguir seu próprio caminho. No entanto, após os primeiros meses eu não tinha ideia de como me comportar, eu a amei muitíssimo e creio que jamais viverei novamente algo similar.

Horme, como Ulisses, nos conta de um tempo em que esteve em uma ilha, feliz por ter desembarcado ali por acaso, após um naufrágio. Na ilha de Ogígia, Ulisses depara com a ninfa Calipso, uma jovem mulher que se apaixona perdidamente por Horme e por ele é correspondida. O nome Calipso na etimologia grega alude ao esconder, e é justamente nesse isolamento e exclusão que Ulisses encontra acolhimento e cuidado; uma sensação de satisfação que, no entanto, é progressivamente minada por uma espécie de sufocamento ao qual se junta a saudade de casa.

Há, portanto, quase sempre para ambos os sexos um tempo para os "relacionamentos-teste".

Relações escondidas dos olhares indiscretos dos pais, protegidas pela sombra de uma densa floresta e isoladas do grupo de amigos.

Um breve tempo habitado pela ilusão da imortalidade daquele sentimento, da beleza fulgurante dos corpos jovens e vigorosos, das fantasias que colorem cada primeiro gesto.

Horme, como Ulisses, havia chegado à costa da ilha um tanto exausto pela guerra extenuante. Aquela com seus pais. Até mesmo as aventuras com colegas e os primeiros desafios por surgir o haviam exaurido psiquicamente de modo muito intenso.

Inicialmente, a descoberta do amor lembra a Horme o desembarque em uma espécie de novo útero, a instauração de uma nova simbiose que substitui aquela com sua mãe, que há pouco fora resolvida. O isolamento de um casal oferece uma sensação de realização e preenchimento, até que a intensidade do sentimento diminua e o isolamento do grupo gere uma sensação de sufocamento. O desejo de retornar para a casa às vezes coincide com o de ser si mesmo, deslizando para fora de uma dependência excessiva.

Calipso: Filho de Laertes, de origem divina, Ulisses engenhoso, é então verdade que queres voltar para a pátria querida, sem mais delongas? Pois parte feliz, apesar do que sinto.
Mas se pudesses saber o que o Fado te tem reservado de sofrimentos, primeiro que alcances a terra nativa, escolherias comigo ficar e guardar esta casa.
Como tornar-te imortal, apesar das saudades que sente longe da esposa, por causa de quem de contínuo suspiras.
Mas me envaideço de em nada inferior ser à tua consorte, nem nas feições nem no porte, que aos seres mortais não compete vir a disputar com os eternos na forma perfeita e na altura.

Ulisses: Lusa potente, não queira com isso agastar-te; conheço perfeitamente que a minha querida e prudente Penélope é de aparência e feições menos belas que as tuas.
Ela é uma simples mortal; tu, eterna, a velhice não temes.
Mas, apesar de tudo isso, consumo-me todos os dias para que à pátria retorne e reveja o meu dia da volta.
(Homero, 2015, Canto v, pp. 104 e 105)

O relacionamento maduro é uma meta que cada casal pode alcançar após muitas penas e desventuras, continua sendo o que tende a fazer: um sentir-se em casa mantendo um equilíbrio entre fusão e separação.

 

Circe: o encontro com Eros

Circe habita na ilha de Eea, num palácio protegido por bestas ferozes. Após adoecer aos marujos de Ulisses com um canto e poções venenosas, os transforma em porcos. Ainda que em confronto com Ulisses, Circe é movida acima de tudo pelo desejo de um encontro sexual.

És porventura Ulisses, o solerte, de quem me disse Hermes, o guia de áureo bastão, muitas vezes, que aqui chegaria, quando de volta de Troia, em navio veloz de cor negra?
Ora repõe na bainha essa espada, e ambos nós, depois disso, para o meu leito subamos, por que ambos, no amor enlaçado dessa maneira, no leito tenhamos confiança recíproca.
Isso disse ela; em resposta lhe torno as seguintes palavras:
Ó Circe, como me pedes que seja bondoso contigo, se os companheiros em porcos mudaste em teu próprio palácio?
Ora me tens aqui preso com plano insidioso, e me mandas que à tua câmara suba e partilhe contigo o leito,
Para que possas fazer-me a vileza ao me veres sem armas.
Não, jamais hei de mostrar-me disposto a subir ao teu leito, a menos que te disponhas, ó deusa, a fazer uma jura de que nenhuma outra insídia planeja, de fato, em meu dano.
Isso lhe disse; ela, logo, jurou como eu tinha pedido.
Tendo ela, pois, completado as palavras da fórmula sacra, fui para o leito de Circe, de fino e belíssimo entalhe.
(Homero, 2015, Canto x, 330, 338, p. 178)

Ulisses é também movido pelo mesmo desejo, tanto que define como belíssimo o leito e [ocorre] uma relação ainda não experimentada.

Circe pode ser, portanto, vista não apenas como uma personagem, mas também como um emblema da magia erótica que é suscitada e acompanha cada experiência de enamoramento. Verdadeiramente um esquecimento da razão, da prudência, de qualquer consideração de consequencia: um veneno excitante e potencialmente mortal.

Ulisses desembarca nessa ilha, cujo nome deriva de Eos, a aurora, e rapidamente torna-se amante de Circe, obtém a liberdade de seus companheiros e transcorre com Hécate por sete anos removendo de seu coração o desejo de retornar a Ítaca.

Na sala de análise um discurso com muitas ressonâncias.

Hécate: Certo que no início era muito diferente de agora: me procurava constantemente como se se sentisse impelido a explorar como eu era feita. Era para Horme como um território selvagem e misterioso que o atraía muitíssimo. Nossa obsessão era por encontrar um lugar para fazermos amor.

Horme: Eu a via como se fosse a única mulher no mundo. Tinha pouco mais que 20 anos, e o fato de poder conquistar uma garota assim bela me fazia acreditar que o caminho estivesse livre para qualquer objetivo que eu tivesse: o diploma, um trabalho de prestígio, uma vida permeada de satisfações, de viagens e sucesso.

Homero conta que Ulisses, ao escalar uma rocha, avistou, numa faixa de terra, inequivocamente, uma ilha, já que o mar disposto em torno a ela formava uma guirlanda. Uma vez desembarcado, encontra ao centro da ilha uma planície. Ao redor, acrescenta, Ulisses podia avistar largas estradas.

Se a paisagem pode ser considerada como a transformação em uma imagem onírica de uma experiência, então se pode dizer que a singularidade e a centralidade da pessoa amada são verdadeiramente uma característica do apaixonar-se. Uma área plana no centro de uma ilha feliz, da qual, na imaginação, se ramificam largas estradas.

No entanto, as primeiras decepções vêm rapidamente; a transformação dos companheiros em porcos introduz algo cru e repulsivo na história.

Algo que a intuição havia previsto, mas que pontualmente o instinto primordial a que se refere, até a animalidade dos porcos, anula.

"Fomos, depois, aportar à ilha de Eeia, onde tinha morada Circe, de tranças bem-feitas, canora e terrível deidade" (Homero, 2015, Canto x, 136, 137, p. 173).

O cabelo crespo parece contrapor-se à doçura da canção. Um detalhe estético que alude à falta de docilidade e compostura acompanhando a doçura das palavras e mensagens que acompanham o enamoramento.

Hécate: No início escrevia-me frases belíssimas e obviamente me dizia que nossa relação duraria para sempre. Sabe, quando penso naquele primeiro ano, lembro que às vezes ficava decepcionada com algumas de suas atitudes, era difícil renunciar a algo que eu teria gostado. Às vezes o achava um tanto rígido, mas eram pensamentos fugazes, que logo desapareciam quando fazíamos amor apaixonadamente.

Talvez as bestas ferozes que defendem a ilha do enamoramento, da aurora do amor, mordam e afastem pensamentos racionais, intuições a respeito da verdadeira natureza do outro. Afastem qualquer pensamento intrusivo que possa resolver a descoberta inebriante de Eros.

No entanto, o impacto da desilusão logo chega ao casal: a alteridade se faz sentir nos gestos cotidianos, antes não compartilhados. A dor da diversidade do outro é contida deixando o outro ir embora, sem muita hesitação. Isso também acontece na história de Ulisses: Circe, de amante, se transforma em conselheira na jornada que Ulisses está prestes a retomar, alertando-o dos perigos que terá de enfrentar.

 

As sereias

A ilha em que viviam era árida e rochosa, em muitas rochas jaziam os restos mortais das vítimas, e o aspecto esquálido e macabro do lugar contrastava com o canto maravilhoso das estranhas criaturas que ali viviam.

Vem para perto, famoso Ulisses, dos Aquivos orgulho, traz para cá teu navio,
que possas o canto escutar-nos.
Em nenhum tempo ninguém por aqui navegou em nau negra,
sem nossa voz inefável ouvir, qual dos lábios nos soa.
Bem mais instruído prossegue, depois de se haver deleitado.
Todas as coisas sabemos, que em Troia de vastas campinas,
pela vontade dos deuses, Troianos e Argivos sofreram,
como, também, quanto passa no dorso da terra fecunda.
(Homero, 2015, Canto xii, 184, 192, p. 208)

Há algo na vida de um casal que é árido e rochoso sobreposto a um desejo irrefreável de ouvir palavras que possam cantar e celebrar seu próprio valor no outro.

Horme: Não estou bem, me sinto deprimido. Queria te contar há tempos, mas tenho tido interesse em observar outras mulheres. Evito passar o tempo com colegas com as quais poderia viver uma aventura. Você é a melhor mulher que eu poderia desejar, porém, estou mal.

Hécate: (quando reemerge do choro) Acredito que a perda do trabalho de prestígio que você teve o mudou profundamente, e agora você tem procurado apenas por momentos excitantes que de algum modo restituam a antiga sensação de ser um deus.

A interpretação da esposa é fulgurante e muito pertinente, como se soubesse que não seriam apenas os corpos de outras mulheres a atrair o marido.

Horme parece ter sido visivelmente afetado; nega, mas ao mesmo tempo compreende o quanto as palavras de Hécate contêm uma inegável verdade emocional.

A tremenda força das Sereias, protótipo de muitas tentações, está propriamente nisto: falar a cada homem em um modo diverso, desvelar os desejos mais secretos e poderosos, e usá-los para tentá-los nesse plano.

Para Ulisses as Sereias prometem a celebração de seu passado heroico e o conhecimento de todas as coisas do mundo.

Com uma nova companheira, o Horme do casal em análise, como um moderno Ulisses, poderia contar desde o início toda sua história, obtendo uma nova e apaixonada admiração. O risco da autorreflexão na própria história seria então apenas uma forma de se prender no eterno retorno do conhecido, interrompendo o caminho para o futuro.

Somente com o reconhecimento dessas fraquezas em sua alma, Ulisses pode ser salvo; da mesma forma que para esse casal, sendo capaz de expressar sinceramente em palavras o que eles sentem, aumentando a consciência das necessidades narcísicas e dependência na relação de um ao outro, poderia ser possível evitar o naufrágio.

Após ter superado a ilha das Sereias Ulisses deverá, todavia, atravessar o estreito de Messina, habitado por dois monstros, Cila e Caribde.

Transposto esse evento para o plano dos acontecimentos de um casal, pode-se dizer que o surgimento de uma crise não garante uma navegação segura.

Se é verdade que as adversidades, quando superadas, devolvem uma sensação de capacidade, também é verdade que determinam uma sensação de perda em relação à integridade anterior.

Após sobreviver à sedução das Sereias, Homero conta que Ulisses conseguiu se salvar do redemoinho gerado por Cila agarrando-se a uma raiz de uma figueira, mas no naufrágio perdeu seis de seus melhores remadores. Ele os perdeu porque parecia desonroso que seus homens pudessem portar suas armas sem usá-las e, portanto, deveriam confiar sua segurança às orações a Crateide, a divindade marinha mãe do monstro.

Usar armas apenas para defesa, desistir dos procedimentos do ataque, é uma prática difícil, mesmo nas relações de casal, principalmente na travessia de águas turbulentas.

 

Nausícaa: o alcance da integração

Após a declaração de seu desejo sexual por outras mulheres e a revelação da necessidade narcísica subjacente, o casal em terapia vivencia outro momento de crise. Horme em particular se sente magoado e é forçado a repensar o que o levou a desistir de uma atividade profissional em uma área de menor prestígio social.

O mal-estar que o teria impulsionado em busca de novas aventuras torna-se um sentimento mais intenso no sentido depressivo, mas também um prenúncio de possíveis transformações. Volta à tona a antiga relação com o pai, que designava o irmão como o filho capaz de sucesso social. Renunciar a um trabalho de prestígio pode, portanto, ser uma tentativa de escapar da competição sempre perdida, não no nível da realidade, mas no plano emocional. A tempestade, mesmo no coração de Horme, é poderosa, a fome de afeto é sentida, mas não encontra destino.

A imersão nessas águas geladas dura algumas semanas até que Horme, como Ulisses, aporta em um trecho de terra aonde foi atirado pelas ondas. Despido de suas vestes que o protegeram, recoberto de crostas de sal que queimam suas feridas abertas.

O desembarque de Ulisses na ilha dos Feácios marca o fim da ira de Netuno, que por tantas vezes o fez naufragar para vingar-se da cegueira causada por ele em seu filho Polifemo.

Algo semelhante também acontece com Horme, que consegue processar pelo menos em parte a antiga raiva em relação ao pai por sua própria desvalorização em comparação ao outro filho, desvalorização que acarretou a frustração de suas expectativas.

Ulisses, terminada a última etapa de sua jornada de vinte anos, poderá retornar a Ítaca. Horme reemerge do naufrágio com um desejo antigo, porém, renovado: aquele de estar em casa.

Horme: Quero deixar de sair de casa como tenho feito tantas vezes. Quero estar com você e com as crianças. Nestes dias tenho me lembrado da primeira vez que a vi. Como eu era mais jovem, tinha a impressão de que lhe causasse certo desprezo e um pouco de medo, mas também que estivesse seduzida por mim.

Hécate: E assim foi. Você era muito sedutor, também com as palavras. No entanto, será inútil você tentar trilhar a mesma estrada rememorando o início, esperando que assim eu volte a ser a página branca em que poderá escrever a sua história.

Como no iv Canto da Odisseia, quando Ulisses encontra Náusicaa, ele é um herói ferido, ela é a jovem mulher à espera de um encontro sedutor, mas não por isso disposta a se deixar violentar por um desconhecido. É corajosa e prudente, como são ambos os protagonistas da terapia de casal (Homero, 2015).

Na história deles, para além da inevitável idealização do outro, emerge uma capacidade, em poucas palavras, de compreender a dificuldade do encontro não apenas físico, mas também com a mente do outro.

Tanto a atração física quanto a consonância estabelecida por meio da fala são citados como aspectos sedutores e, nesse relato das primeiras vivências desse encontro, ambas falam do risco potencial inerente de se perderem na tentativa de serem aceitos. "Um veterano pode perder a chance de retornar não só se for morto, mas também se for seduzido pela hospitalidade de quem o acolhe" (Privitera). Como Ulisses, Hécate também entende claramente que relembrar os momentos vividos no início de seu relacionamento não a transformará em uma página em branco: parar nesse lugar do passado interromperia o ciclo da viagem, o retorno a Ítaca, o retorno ao presente difícil de um encontro após a longa ausência.

 

Penélope, a antiga e nova companheira

Penélope reencontra Ulisses sem reconhecê-lo, desiludida e frustrada por tantas vezes ter nutrido dentro de si a esperança de seu retorno.

A estratégia da trama do manto, tecido durante o dia e desfeito durante a noite, pode ser compreendida também como o cansativo trabalho interno de construir a esperança em alternância ao colapso. Algo semelhante também pode ser visto pelo fio vermelho do desejo de Ítaca e pelas muitas aventuras que temporariamente o anulam. Ulisses retorna à vida de Penélope quando Hécate é provavelmente uma mulher madura, uma mulher cujo desejo sexual diminuiu devido à idade e à incapacidade de usar seu corpo para criar uma experiência de intimidade. Penélope não reconhece Ulisses porque também está lutando para se reconhecer nesse novo antigo papel de esposa. No entanto, não é por acaso que se reconectam por meio do que compartilharam mais intimamente, a construção secreta de sua cama. Temporariamente, esse reconhecimento mútuo ocorre após o massacre, executado por Ulisses, dos pretendentes ao trono; massacre que tem a cooperação involuntária de Penélope. Do ponto de vista psíquico e dentro dessa releitura arbitrária da história homérica, os pretendentes, príncipes que reivindicam o trono, podem ser considerados um símbolo de todas as experiências que minaram a vida do casal. Para regenerá-lo, é necessário saber eliminar de si o que já foi: as tentações, os ressentimentos, as muitas desilusões que extinguiram o desejo. Operação difícil e sangrenta, na medida em que envolve também uma espécie de amputação parcial de si mesmo. No entanto, para permanecer no aqui e agora, para redescobrir a intimidade de um relacionamento sexual, a mente precisa fazer uma varredura naquilo que foi, para conter o ataque de memórias dolorosas, não para tentar apagá-las, mas para abrir espaço para novos registros. Adquiriu habilidades para mantê-las em segundo plano. Penélope consegue reconhecer Ulisses depois que sua verdadeira identidade é descoberta por sua antiga ama que guardou segredo por exigência de Ulisses. Não há um auxílio dado pela palavra, mas sim a necessidade de desenvolver uma habilidade para extrair a informação dessa mulher de modo indireto.

Hécate: Senti que algo dentro de mim mudou. Quando ele voltou para casa em determinado momento, eu disse a mim mesma que seria mais uma decepção, por outro lado, me lembrei do diálogo com um amigo muito mais velho que eu, que se separou há muitos anos. Confidenciou que lamentava a separação e que lamentava também não ter persistido na tentativa de seguirem juntos em relativa separação, sob o mesmo teto. Acho que essa solução de fachada não seria viável para mim. Ou somos um casal, ou cada um vive ao seu modo. Mas também pensei que uma separação relativa poderia ser uma estratégia no sentido de não me perder na expectativa excessiva do que eu teria desejado.

Penélope opta por não esperar mais e decide fazer uma competição entre seus pretendentes que terá como finalidade voltar a ter um homem; por isso deixa-se levar pelo ódio, contido e adormecido há anos, devido ao abandono de Ulisses. Uma espécie de vingança.

Ulisses retorna a Ítaca e, antes de se revelar à sua esposa, perpetra um massacre contra seus rivais, pretendentes de Penélope. Um epílogo então, em que depois de narrados os feitos heroicos e as muitas provações sofridas, toda a raiva que os acompanhou tanto a Ulisses quanto a Penélope é encenada. Ulisses é constantemente descrito no poema homérico como um guerreiro habilidoso e robusto, valente na batalha, que se destaca em sua sagacidade e astúcia. Em grego seu nome deriva do verbo que aponta para "aquele que é odiado", mas também colérico. Ao longo da obra é difícil apreender esse aspecto oculto no nome, raízes que surgem no epílogo, em que é dada representação a uma raiva que se torna um gesto de vingança para ambos os protagonistas.

 

Referências

Calvino, I. (1981). Será sempre uma Odisseia. L'Espresso, 28 jun.         [ Links ]

Dodds, E. R. (2009). Os gregos e o irracional. Einaudi.         [ Links ]

Homero (2015). Odisseia (C. A. Nunes, Trad.). Nova Fronteira.         [ Links ]

Kaës, R. (1993). Les groupes et le sujet de group. In R. Kaës, Éléments pour une théorie psychanalytique. Dunod.         [ Links ]

Malerba, L. (1997). Itaca para sempre. Mondadori.         [ Links ]

Placanica A. (1993). Storia dell'inquietudine: metafore del destino dall'Odissea alla guerra del Golfo. Donzelli.         [ Links ]

Privitera G. A. (2005). Il ritorno del guerriero. Lettura dell'Odissea. Einaudi.         [ Links ]

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