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Tempo psicanalitico

Print version ISSN 0101-4838

Tempo psicanal. vol.42 no.1 Rio de Janeiro June 2010

 

SEÇÃO TEMÁTICA

 

A perversão e a teoria queer

 

Perversion and queer theory

 

 

Vera Maria Pollo Flores

AME da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano; Professora do Mestrado em Psicanálise, Saúde e Sociedade da Universidade Veiga de Almeida (UVA)

 

 


RESUMO

O presente texto parte da constatação do contraste entre a alta incidência do termo perversão na doutrina psicanalítica e sua baixa frequência nos relatos clínicos. Objetiva discutir a hipótese de que a política feminista denominada "teoria queer" é uma forma contemporânea de laço social que se sustenta no mecanismo perverso da Verleugnung e almeja construir um novo saber sobre o sexo. A primeira parte do texto desenvolve a teoria psicanalítica da perversão, percorrendo textos de Freud e de Lacan. A segunda parte esclarece alguns dos principais argumentos da teoria queer, em particular a hegemonia epistemológica da heterossexualidade compulsória e a multiplicidade sexual primária. Os parágrafos finais do texto elaboram uma crítica psicanalítica da teoria queer.

Palavras-chave: perversão; Verleugnung; fetichismo; teoria queer; heterossexualidade compulsória.


ABSTRACT

This text verifies initially the contrast between the great incidence of the word "perversion" in psychoanalytical theory and its small frequency in clinical reports. It intends to discuss the hypothesis that the feminist politic named "queer theory" is a contemporary form of social bond based on the perverse mechanism of the Verleugnung and that its objective is the construction of a new sexual knowledge. The first section of the text develops the psychoanalytical theory of perversion, consulting Freud and Lacan's texts. The second section explains some of the most important arguments of queer theory, particularly the theoretical dominance of a compulsory heterosexuality and a primary sexual multiplicity. The final paragraphs are a psychoanalytical review of queer theory.

Keywords: perversion; Verleugnung; fetishism; queer theory; compulsory heterosexuality.


 

 

Assim, realidade e corpo viraram para mim objetos de uma espécie de fetichismo [...] e este tipo de fetichismo correspondia exatamente ao meu fetichismo pelas palavras.
(Mishima, 1985: 10)

INTRODUÇÃO

Há algum tempo chama a nossa atenção o contraste entre a alta incidência do termo perversão na doutrina psicanalítica e o comentário bastante frequente no meio psicanalítico de que os perversos raramente ou nunca procuram a psicanálise. A título de observação preliminar, é preciso assinalar que, embora localizado no cerne da teoria freudiana, o significante "perversão" recebe nela uma ampla gama de sentidos não necessariamente equivalentes. O mesmo acontecerá na releitura lacaniana. Contudo, não sendo nosso objetivo realizar a exegese do termo, destacaremos apenas alguns de seus sentidos.

O presente texto visa discutir a hipótese de que a política feminista denominada teoria queer é uma forma contemporânea de laço social que se sustenta privilegiadamente, se não exclusivamente, no mecanismo perverso da Verleugnung. Impõe-se-nos uma primeira tradução do vocábulo alemão, assim como a tradução e a definição do termo inglês queer. O vocábulo Verleugnung já recebeu as traduções de recusa, renegação e rejeição, mas atualmente é preferencialmente traduzido por "desmentido", conforme a orientação de Lacan. Ao desmentir a castração materna, a Verleugnung desmente simultaneamente a diferença sexual. Já para os adeptos da teoria feminista, manter-se queer significa fundamentalmente ocupar o lugar de estranho, raro, esquisito, sujeito da sexualidade desviante, mas que não deseja ser integrado, menos ainda tolerado. Segundo Lopes Louro (2004), queer é antes de tudo uma forma de pensar que não almeja o centro como referência, que desafia as normas regulatórias da sociedade e assume o desconforto do "entre-lugares".

Para não cairmos na armadilha sedutora, porém demasiado redutora da questão, de tomar a teoria queer como apenas uma nova roupagem do sintoma histérico, no sentido de uma satisfação sexual substituta, enfatizamos, desde o início, que a consideramos um discurso no sentido lacaniano do termo1; ou seja, aquilo que, na teoria de Lacan, substitui a noção mais antiga de ideologia não serve apenas à segregação de alguns sujeitos, mas também à reunião de outros. Fonte, portanto, de acúmulo e compartilhamento de saber e gozo, eventualmente ignorados por aqueles que o experimentam.

Nosso trajeto começará por recolher as principais passagens em que Freud e Lacan debruçam-se sobre o tema da perversão. No segundo momento, procuraremos esclarecer os principais aspectos da teoria queer, visando realizar, se assim pudermos nos expressar, o teste formal de nossa hipótese de trabalho: a política queer almeja construir um novo saber sobre o sexo, usando como arma principal o desmentido e a desconstrução de tudo, ou quase tudo, que já se escreveu sobre esse tema.

 

COMO A PSICANÁLISE ENTENDE A PERVERSÃO

Em trabalho anterior de nossa autoria (Pollo, 2003), tivemos a oportunidade de salientar que uma das primeiras emergências do vocábulo perversão no texto psicanalítico encontra-se na carta que Freud ([1892-1899] 1976) endereçou a Fliess em dois de novembro de 1896. Deixando-se enganar - por pouco tempo, é verdade - pela fantasia histérica do pai abusador, Freud estabelece a seguinte ordenação: 1ª geração: Perversão; 2ª geração: Histeria. Podemos então dizer que, nos primórdios da teoria analítica, perversão e histeria funcionavam como um binômio de oposição: se à primeira correspondia a "liberação do excesso de prazer sem nenhuma mistura de desprazer", à segunda correspondia justamente o contrário, ou seja, inibição do prazer e "liberação do excesso de desprazer". Nessa ocasião, Freud chega mesmo a definir a histeria como "perversão repudiada", sugerindo que, do mesmo modo que a neurose histérica estaria associada às noções de "defesa" e de "feminino puro", a perversão associar-se-ia às noções de "sexualidade" e de "masculino puro". Embora mais tarde reconheça ter-se deixado enganar pela fantasia histérica, porque ela é sempre plena de desejo inconsciente, pouco tempo depois, ao redigir "Fragmento da análise de um caso de histeria" (Freud, [1901] 1976) - isto é, o famoso caso Dora -, Freud lança a fórmula que funciona até hoje como máxima e mote: "As psiconeuroses são, por assim dizer, o negativo das perversões" (Freud, [1901] 1976: 48).

Em paralelo à emergência do conceito de "bissexualidade" no seio da teoria freudiana, emerge também, em 1905, a noção de "disposição perversa polimorfa" (Freud, [1905] 1976). Os dois conceitos são, a nosso ver, intimamente relacionados, já que o segundo é consequência lógica e necessária do primeiro. Pois, se a "bissexualidade" significa a possibilidade de escolha, dada a todo ser falante, entre um devir masculino ou um devir feminino, a "disposição perversa polimorfa" diz respeito ao tempo pré-escolha, o tempo das irregularidades ou desvios que caracterizam o gozo sexual da primeira infância.

Parece-lhe instrutivo "o fato de que, sob a influência da sedução, as crianças podem tornar-se perversas polimorfas, e podem ser levadas a todas as espécies possíveis de irregularidades sexuais" (Freud, [1905] 1976: 196).

Nesta etapa da elaboração freudiana, a perversão corresponde à ausência dos obstáculos morais e, consequentemente, dos sentimentos de vergonha e de repugnância. Por essa razão, e por considerar o "imenso número de mulheres que são prostitutas ou que se supõe tenham a aptidão para a prostituição" (Freud, [1905] 1976: 196), Freud é levado a concluir que a "disposição para as perversões de toda espécie é uma característica humana geral e fundamental" (Freud, [1905] 1976: 196). Cabe também mencionar, aqui, o subcapítulo As perversões em geral do texto dos "Três ensaios sobre a teoria da sexualidade". Neste, Freud ([1905] 1976) sugere uma quase identidade entre a vida sexual e a perversão. Sim, porque emprega o seguinte silogismo: se uma sexualidade anormal pode existir independentemente de qualquer patologia diferente, nenhuma patologia subsiste independentemente de uma sexualidade anormal.

Nenhuma pessoa sadia, ao que parece, pode deixar de adicionar alguma coisa capaz de ser chamada de perversa ao objetivo sexual normal [...] Por outro lado, pode-se invariavelmente mostrar que a anormalidade manifesta em outras relações da vida tem um fundo de conduta sexual anormal [...] se, em suma, uma perversão tem as características de exclusividade e fixação - então estaremos, via de regra, justificados em considerá-la um sintoma patológico (Freud, [1905] 1976: 163).

Talvez seja necessário insistir nos motivos pelos quais Freud não faz da perversão necessariamente um sintoma patológico. Em primeiro lugar, há que se levar em conta a existência dos "traços perversos"2 de sujeitos neuróticos: as fantasias sadomasoquistas de espancamento e similares. Em segundo lugar, é preciso observar que, ao caracterizar como "perversas"3 as satisfações extragenitais, a civilização apenas contribui para a irresistível atração das pulsões parciais e das coisas proibidas (Freud, [1929] 1976).

Se levarmos em consideração todo o progresso da ciência médica no campo da assim chamada "fertilização e/ou reprodução assistida", impossível não nos espantarmos com a atualidade e a exatidão dos comentários de Freud, em 1929, acerca da intolerância da civilização no que se refere aos relacionamentos sexuais simplesmente diferentes do vínculo único e indissolúvel entre um só homem e uma só mulher. O resultado é a enorme frequência dos relacionamentos catalogados como "transgressores". Mas isso ainda não é tudo! Era-lhe igualmente claro, desde então, que "algo da natureza da própria função sexual nos nega satisfação completa e nos incita a outros caminhos" (Freud, [1929] 1976: 126). Deste modo, as palavras de Freud preconizam um elemento invariavelmente insatisfatório4 e desviante na vida sexual dos seres falantes em geral.

O texto sobre o "Fetichismo", de 1927, é frequentemente considerado sua contribuição derradeira ao tema da "perversão". Neste, Freud ([1927] 1976) declara que o fetichismo é resultado de uma escolha de objeto, vale dizer, não é sintoma. Portanto, via de regra, não causa sofrimento algum e sua descoberta na análise é apenas subsidiária. Chama-lhe, todavia, a atenção a regularidade com que os homens se deixam dominar em suas vidas eróticas por esse objeto que, em seus próprios termos, desmente a ideia de que "as mulheres possuem um falo". O fetiche é um compromisso entre "o peso da percepção desagradável e a força do contradesejo" (Freud, [1927] 1976: 181)5. De acordo com a maior ou menor predominância de um ou outro, isto é, da percepção ou do desejo, o fetiche será privilegiadamente aviltado ou reverenciado.

Surpreende-nos o fato de que, nesse momento, o vocábulo "pervertido" apareça somente em nota de rodapé ao texto sobre o fetichismo. Na nota, ele se refere ao prazer que o coupeur de nattes extrai do corte de cabelos femininos, sendo esta a sua forma de passar ao ato as ideias contraditórias de que as mulheres são e não são castradas. Ou, como escreve Freud: as "asserções mutuamente incompatíveis: 'a mulher ainda tem um pênis' e 'meu pai castrou a mulher'" (Freud, [1927] 1976: 184).

Como escrevem Roudinesco e Plon (1998), primeiramente Freud identifica a dimensão fetichista de todas as formas de perversão (exibicionismo, voyeurismo e coprofilia), depois, em 1914 (1976), conclui pela ausência do fetichismo feminino. Mas isso não o impede de verificar que o fetichismo da roupa é "normal" nas mulheres, "uma vez que é a totalidade do corpo que é transformada num fetiche, e não um objeto" (Freud, [1927] 1976: 237).

É possível dizer que coube a Lacan chamar novamente a atenção para a modalidade de defesa perversa frente à castração da mãe, a Verleugnung, lembrando-nos a um só tempo de sua diferença em relação à Verdrängung - defesa neurótica - e em relação à Verwerfung - defesa psicótica. A negação é o elemento comum aos três mecanismos, que, no entanto, variam quanto à forma e ao grau. Neste caso, a Verleugnung corresponde ao desmentido que opera por meio da cisão, a Verdrängung corresponde ao recalcamento que resulta em "esquecimento" e a Verwerfung corresponde à foraclusão da castração materna ou sua não inscrição no registro do simbólico. Somente esta última, a modalidade mais radical da negação, o "não" absoluto, se assim preferirmos, implicará no retorno alucinatório da Mãe onipotente, fálica e persecutória, impossível de ser castrada.

Freud e Lacan verificaram que a perversão é bem mais próxima das neuroses e nada tem a ver com as psicoses. No texto sobre o "Fetichismo", Freud ([1927] 1976) estabeleceu uma conexão entre as defesas neurótica e perversa, empregando o termo Verdrängung para referir-se exclusivamente ao destino do afeto e reservando o termo Verleugnung para o destino da ideia.

Ao reler o caso Hans, em O seminário, livro 4: a relação de objeto, Lacan ([1956-1957] 1995) nos dá a entender que a escolha subjetiva da estrutura clínica pode não se dar num único golpe, escandindose em dois tempos. Há uma primeira escolha que exclui somente a psicose, pois ainda não se sabe se a estrutura eleita terá sido a perversão ou a neurose. Ambas são condicionadas pela Urverdrängung, o recalque originário. Além disso, a clínica ensina que a perversão, como a neurose, atravessa crises, fusões e defusões. E Lacan discorda da concepção segundo a qual a perversão seria apenas a permanência de um elemento puro, isto é, a fixação de uma pulsão parcial ocasionada por um acidente na evolução das pulsões.

Em O seminário, livro 3: as psicoses (Lacan, [1955-1956] 1981), portanto no ano anterior, já se podia ler, em seu texto, a conclusão de que ou há uma Bejahung primordial, uma admissão no sentido do simbólico, ou há Verwerfung, quer dizer, o sujeito não aceitou a inscrição em seu mundo de algo que ele, no entanto, experimentou. Experiência que, nesse caso, "em nada difere da ameaça de castração" (Lacan, [1955-1956] 1981: 21).

Em diferentes ocasiões, Lacan deixou clara sua percepção de que o molde da perversão é a valorização da imagem, a prevalência da dimensão imaginária. Neste caso, a perversão está situada no âmago da relação mãe-filho e indica que o desejo de pênis é de tal modo prevalente que "a criança atesta à mãe que pode satisfazê-la, não somente como criança, mas também quanto ao desejo e, para dizer tudo, quanto àquilo que lhe falta" (Lacan, [1956-1957] 1995: 230).

Alguns anos mais tarde, em O seminário, livro 16: de um Outro ao outro (Lacan, [1968-1969] 2008), o tema da fobia de animal da infância retorna como ponto de união, enlace da perversão com a neurose. Lacan nos adverte que "a fobia não deve ser vista, de modo algum, como uma entidade clínica, mas como uma placa giratória [pois] ela gira mais do que comumente para as duas grandes ordens da neurose, a histeria e a neurose obsessiva, e também realiza a junção com a estrutura da perversão" (Lacan, [1968-1969] 2008: 298)6.

Há uma permanente tensão erótico-agressiva na relação perversa, como em toda relação imaginária, cuja principal característica é justamente a reciprocidade. Por um lado, o amor fetichista é uma solução satisfatória, pois "amar um chinelo é, realmente, ter o objeto de seus desejos ao alcance" (Lacan, [1956-1957] 1995: 85). Contudo, se a perversão se localiza na relação mãe-filho, como vimos acima, instaura-se uma relação em espelho, na qual o sujeito-criança nunca sabe bem de que lado está. Eventualmente, ele pode até mesmo construir a fantasia de que destruiu a mãe, o que significa que está demasiadamente identificado ao objeto-falo.

Lacan extrai algumas consequências do texto freudiano "Uma criança é espancada" (Freud, [1919] 1976), entre elas a de que o imaginário na perversão pode ser definido pelo uso de imagens que não necessariamente veiculam culpa, o que acontece se - e somente se - as imagens forem traduzidas em significantes. Tampouco acarretam culpa as práticas masturbatórias associadas à fantasia. Isto lhe permite afirmar que a fantasia perversa é uma redução simbólica, à qual se aplica a expressão: "significantes em estado puro [...] esvaziados de seu sujeito" (Freud, [1919] 1976: 120). Ora, Freud ([1919] 1976) também observara que seus pacientes costumavam testemunhar que não era exatamente a cena sadomasoquista que lhes provocava um sentimento de culpa, mas o relato da cena, a passagem das imagens às palavras.

Um dos elementos mais importantes que Lacan assinala é, a nosso ver, a separação radical, do ponto de vista diagnóstico, entre a perversão e a homossexualidade. Enquanto a primeira é uma estrutura clínica, a segunda é uma escolha de objeto rigorosamente transestrutural, isto é, independente da estrutura. Desde o início, referindo-se, por exemplo, à Jovem homossexual que cortejava a dama (Freud, [1920] 1976), Lacan a denomina jocosamente "relação perversa entre aspas" (Lacan, [1956-1957] 1995: 135). Não que ele não conteste a pretensa inexistência do fetichismo feminino e, em termos mais gerais, da perversão feminina, contudo circunscreve esta última à relação mãe-filho. Seja porque a criança é destinada a servir de objeto-fetiche que tampona a falta em que se especifica o desejo da mãe perversa7, seja porque "a mulher pode tornar-se seu próprio fetiche, numa relação erotomaníaca com o filho" (Roudinesco & Plon, 1998: 237). Afinal, Lacan fora aluno de Gaëtan Gatian de Clérambault, que produziu e colecionou inúmeras fotografias de mulheres envoltas em véus.

 

A TEORIA QUEER E SEU DESMENTIDO

A queer theory, bem como a gender theory, assinala-o Vicentini (2008), são produtos da migração dos movimentos gay e feminista para o interior das universidades, em particular nos Estados Unidos, no decorrer dos últimos trinta anos. Em 1985-1986, Judith Butler, uma de suas mais conhecidas representantes, dirigia o seminário "Gênero, identidade e desejo" simultaneamente na Wesleyan University e em Yale. No ano seguinte, ela ganha bolsa de dois importantes institutos norte-americanos de fomento à pesquisa e, em 1990, publica o livro intitulado Gender Trouble: feminism and the subversion of identity (Butler, [1990] 2008), atualmente traduzido em várias línguas, inclusive em português.

Disposta a observar "o modo como as fábulas de gênero estabelecem e fazem circular sua denominação errônea dos fatos naturais" (Butler, [1990] 2008: 12), Butler parte da questão que ela própria nomeia de especulativa: descobrir se a política feminista poderia funcionar sem um "sujeito" na categoria de mulheres, isto é, sem a suposição de que o termo "mulheres" denote uma identidade comum. Sustentando um discurso fortemente crítico, seu primeiro alvo seria, então, o "pretenso mistério do feminino", que lhe parece imediatamente decorrente das instituições definidoras de categorias de identidade: o falocentrismo e a heterossexualidade compulsória.

Os psicanalistas Macary-Garipuy e Lapeyre (2006) já haviam observado que a psicanálise pode concordar parcialmente com a lógica de desnaturalização do corpo humano que Butler preconiza, porque mostra que a sexuação - isto é, a modalidade de gozo a partir da qual um sujeito se diz homem ou mulher - não acompanha sempre, nem inteiramente, o trilhamento biológico, mas não pode subscrever a sobreposição falocentrismo/falocracia.

Após Simone de Beauvoir ([1949] 1980), ou melhor, após O segundo sexo - espécie de marco zero da teoria queer -, Michel Foucault e Jacques Derrida são as principais referências filosóficas destas pesquisadoras. De Foucault, elas procuram extrair a concepção de um novo dispositivo de sexualidade, o qual, bem diferente da lei de interdição do incesto, estaria assegurando "a proliferação de prazeres específicos e a multiplicidade de sexualidades disparatadas" (Foucault, citado por Lopes Louro, 2004: 41-42). Em Derrida, interessa-lhes a ideia de que não existe o fora do texto, o horstexte.

Para Butler ([1990] 2008), faz-se necessária uma política feminista que tome a construção variável da identidade como um prerrequisito metodológico e normativo, senão como um objetivo político. Ela acredita que o sistema binário dos gêneros encerra implicitamente a crença numa relação mimética entre gênero e sexo: dois sexos, logo, dois gêneros. Mais adiante conclui que, se o caráter imutável do sexo é contestável, "talvez o próprio construto chamado 'sexo' seja tão culturalmente construído quanto o gênero" (Butler, [1990] 2008: 25).

Cabe-nos, então, observar que, em suas palavras, percebe-se claramente o eco das linhas finais do primeiro volume da História da sexualidade de Michel Foucault ([1976] 1984). E, também, que delas se depreende a crença em anatomias em si mesmas "neutras". Dissemos "neutras", porque a teoria queer não é uma réplica do mito aristofânico da unidade original dos gêneros, ela é, antes, a crença em um real que se submete plasticamente à linguagem e na "unidade dos seres falantes em um Ser anterior ao ser sexuado" (Wittig, citada por Butler, [1990] 2008: 170). Nas palavras de Foucault:

é o dispositivo de sexualidade que, em suas diferentes estratégias, instaura essa ideia "do sexo". [...] O sexo, essa instância que parece dominar-nos, esse segredo que nos parece subjacente a tudo o que somos, esse ponto que nos fascina pelo poder que manifesta e pelo sentido que oculta, ao qual pedimos revelar o que somos e liberar-nos o que nos define, o sexo nada mais é do que um ponto ideal tornado necessário pelo dispositivo de sexualidade e por seu funcionamento. [...] O sexo é, ao contrário, o elemento mais especulativo, mais ideal e igualmente mais interior, num dispositivo de sexualidade que o poder organiza em suas captações dos corpos, de sua materialidade, de suas forças, suas energias, suas sensações, seus prazeres (Foucault, [1976] 1984: 144-145).

As autoras queer não pensam diferentemente de Foucault, ao declararem que o sexo é tão construto quanto o gênero ou a identidade, uma "ficção fundacionista". Parece-nos, portanto, muito pertinente afirmar que Butler ([1990] 2008) localiza o sexo apenas nos registros do imaginário e do simbólico, foracluindo a dimensão de real (Vicentini, 2008).

Curiosamente, a concepção butleriana de uma "multiplicidade sexual primária" - está calcada no modelo foucaultiano - à espera da "derrubada do 'sexo'", para que se torne livre (Butler, [1990] 2008: 143), não lhe parece uma noção muito distante do postulado psicanalítico de uma perversão polimorfa originária, nem mesmo do Eros bissexual original e criativo de Marcuse, posteriormente reprimido por uma cultura instrumentalista. Que não se pense, todavia, que Butler assina embaixo de tudo que leu em Foucault. Ela considera que alguns trabalhos do seu mestre revelam uma indiferença problemática em relação à diferença sexual.

Considera, por exemplo, que, na "Introdução" aos escritos autobiográficos do hermafrodita Herculine Babin, Foucault acabou cedendo à tentação de romancear a sexualidade do sujeito e de operar a "reificação metafísica da sexualidade múltipla". Segundo Butler, "inadvertidamente, Foucault sugere que o 'limbo feliz de uma não identidade' de Herculine tornou-se possível mediante uma formação historicamente específica de sua sexualidade, a saber, 'sua existência sequestrada na companhia quase exclusiva de mulheres'" (Butler, [1990] 2008: 147).

Quanto à crítica queer ao estruturalismo de Lévi-Strauss, parecenos possível dizer que ela ganha, em muitos momentos, matizes de ironia. Ao referir-se particularmente à concepção de que o surgimento do "pensamento simbólico" exigiu a troca de palavras e de mulheres, Butler argumenta que, uma vez que Lévi-Strauss não poderia jamais ter testemunhado o surgimento do simbólico, "o relato torna-se assim injunção" (Butler, [1990] 2008: 71). Então, concomitantemente, o antropólogo mundialmente reconhecido torna-se apenas mais um na lista daqueles que, segundo Butler e Wittig presumem, mas não provam nem explicam a hegemonia epistemológica da heterossexualidade compulsória.

As queers trabalham também com os comentários de Lacan sobre a mascarada feminina. Butler ([1990] 2008) considera que a razão pela qual Lacan situa a discussão sobre a mascarada em conjunto com a explicação da homossexualidade feminina é a suposição de que esta advém apenas de uma heterossexualidade desapontada. Ora, tamanha tentativa de simplificar a teoria lacaniana não poderia, a nosso ver, conduzi-la a nenhuma pergunta diferente da que ela formula de forma quase ingênua: "A heterossexualidade não poderia advir de uma homossexualidade desapontada? O desapontamento não poderia ser o do observador rejeitado e projetado?" (Butler, [1990] 2008: 80).

Um conceito psicanalítico que a teoria queer parece não ter levado em conta é a noção do complexo de Édipo completo com suas quatro tendências8. Ou Butler ([1990] 2008) não teria afirmado que, para Freud:

a bissexualidade é apenas a coincidência de dois desejos heterossexuais, acrescentando que a predisposição masculina nunca se orienta para o pai como objeto de amor sexual e que a predisposição feminina pode até orientar-se para a mãe, mas somente enquanto ainda não renunciou "ao lado "masculino" de sua natureza disposicional (Butler, [1990] 2008: 95).

Por que a filósofa não quer tomar conhecimento do chamado Édipo invertido do menino? Não temos uma resposta segura quanto a isso, mas, como quer que seja, sua crítica ao conceito de identificação aparece em forma de pergunta: "Será que as dissonâncias do gênero se explicam pelas dissonâncias das identificações?" (Butler, [1990] 2008: 102).

Quando analisa alguns trabalhos de Monique Wittig, Butler ([1990] 2008) salienta que esta, como ela própria, começa apoiando-se em Simone Beauvoir, mas depois dela se afasta. É que Wittig vai afirmar que a lésbica não é uma mulher, argumentando que mulher

só existe como termo que estabiliza e consolida a relação binária e de oposição ao homem [ao passo que] a lésbica transcende a oposição binária entre homens e mulheres [...] parece ser um terceiro gênero ou uma categoria que problematiza radicalmente tanto o sexo quanto o gênero como categorias descritivas políticas estáveis (Wittig, citada por Butler, [1990] 2008: 164).

Nesse ponto devemos indagar de que modo as teóricas queer acreditam que irão realizar a proposta de uma nova política feminista. Aqui, Butler ([1990] 2008) admite uma certa tensão entre os seus textos e alguns textos de Wittig. Isto porque, em uma aliança temporária com Deleuze e Guattari, particularmente com a leitura de O Anti-Édipo, Wittig não se dá conta de que "a proliferação ilimitada dos sexos acarreta logicamente a negação do sexo como tal, [pois] se o número de sexos corresponde ao número de indivíduos existentes [...] o sexo seria uma propriedade radicalmente singular e não poderia mais operar como generalização útil ou descritiva" (Butler, [1990] 2008: 172).

Butler percebe também que "a distinção radical de Wittig entre hetero e gay reproduz o tipo de binarismo disjuntivo que ela mesma caracteriza como o gesto filosófico divisório da mentalidade hetero" (Butler, [1990] 2008: 176-177). Mas, a nosso ver, mostra-se bastante favorável às experiências literárias da colega, que, em Les Guérillères [As guerrilheiras], publicado originalmente em francês, em 1969, propõe eliminar todos os pronomes masculinos ele-eles (il-ils)e colocar o feminino elas (elles) na posição do universal. Trata-se de pensar a literatura como "máquina de guerra" e o real, já o dissemos, como categoria que se submete plasticamente à linguagem.

Não existe o impossível9 nos textos das duas autoras, o que não quer dizer que não existam algumas discordâncias teóricas entre elas, mas, sobretudo, existem estratégias diferentes para alcançar a mesma meta: "destruir a categoria das mulheres e estabelecer a possibilidade de um novo humanismo" (Butler, [1990] 2008: 173). Diríamos tratar-se da queixa histérica em que - acrescentando a fenomenologia de Hegel ao texto freudiano - Lacan ([1951] 1998) reconheceu o discurso da "bela alma".

Porém, como vimos acima, há também nesta forma contemporânea de laço social o ensejo, à primeira vista inteiramente paradoxal, de negar ao corpo sua dimensão real de gozo. Para Wittig (citada por Butler, [1990] 2008), aquilo que acreditamos ser uma percepção física e direta é só uma construção mítica e sofisticada, uma "formação imaginária" que reinterpreta as características físicas:

se as identidades deixassem de ser fixas como premissas de um silogismo político, e se a política não fosse mais compreendida como um conjunto de práticas derivadas dos supostos interesses de um conjunto de sujeitos prontos, uma nova configuração política surgiria certamente das ruínas da antiga (Butler, [1990] 2008: 213).

Apoiando-nos em A subjectividade por vir, de Slavoj Zizek (2006), lembramos que, se a perversão só pode ser entendida como uma forma de defesa contra o motivo "morte e sexualidade", há também algo de perverso nas propostas políticas da teoria queer. Como bem ilustra Zizek, somente em um universo semelhante ao dos desenhos animados não precisamos escolher entre dois sexos, porque tampouco nele precisamos morrer. Por isso, já se tornou lugar-comum falar do laço íntimo que une a perversão e o ciberespaço. Como universo da mais pura ordem simbólica, do jogo dos significantes entregue a si mesmo, o ciberespaço ou espaço internáutico está desembaraçado da inércia do Real e da finitude humana. Não corresponde à realidade em que vivemos, mas à projeção espacial da fantasia narcísica de imortalidade.

 

REFERÊNCIAS

Beauvoir, S. de. (1949/1980). O segundo sexo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.         [ Links ]

Butler, J. (1990/2008). Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.         [ Links ]

Foucault, M. (1976/1984). História da sexualidade, v. I - a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal.         [ Links ]

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NOTAS

1 Ver a teoria dos quatro discursos que Lacan ([1969-1970] 1992) estabelece em O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise. Cada discurso - o do mestre, o da histérica, o universitário e o do analista - é composto de quatro lugares: do agente, da verdade, do Outro e do produto; e quatro elementos: o sujeito (), o significante-mestre (S1), o saber (S2) e o mais-de-gozar (a).

2 A expressão "traços perversos" corresponde à frase fantasmática que é título do texto de 1919, "Uma criança é espancada", o qual, não por acaso, recebeu o segundo título de "Uma contribuição ao estudo da origem das perversões sexuais" (Freud, [1919] 1976).

3 Em "O mal-estar na civilização", o sintagma criado por Freud é "a irresistibilidade das pulsões perversas" (Freud, [1929] 1976: 98).

4 Este reaparecerá na teoria de Lacan como um "impossível lógico".

5 Será esta a única ocasião em que Freud emprega o curioso termo "contradesejo"?

6 Ver a lição de 7 de maio de 1969, em que Lacan retoma o capítulo do livro de Helene Deutsch sobre as neuroses, no qual ela narra um caso de fobia de galinhas.

7 A respeito da relação entre a estrutura subjetiva da mãe e o corpo da criança, ler o texto de Lacan de 1969 (2003) "Nota sobre a criança".

8 Em O ego e o id, Freud escreve: "na dissolução do complexo de Édipo, as quatro tendências em que ele consiste agrupar-se-ão de maneira a produzir uma identificação paterna e uma identificação materna [...] a intensidade relativa das duas identificações em qualquer indivíduo refletirá a preponderância de uma ou outra das duas disposições sexuais" (Freud, [1923] 1976: 48-49).

9 Como categoria lógica que indica um ponto de parada ou suspensão, um corte no interior do registro do simbólico.

 

 

Recebido em 13 de setembro de 2009
Aceito para publicação em 19 de abril de 2010

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