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Tempo psicanalitico
Print version ISSN 0101-4838
Tempo psicanal. vol.44 no.2 Rio de Janeiro Dec. 2012
ARTIGOS
O amor Sidonie: quando a amada precisa se manter inacessível
Sidonie love: when the beloved must remain unattainable
Alexandre Rambo de MouraI; Marta Regina de Leão D'AgordII
IPsicólogo; Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
IIPsicóloga; Mestre em Filosofia; Doutora em Psicologia; Professora do Departamento de Psicanálise e Psicopatologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
RESUMO
Este artigo foi escrito a partir da biografia Desejos secretos, a história de Sidonie C., a paciente homossexual de Freud (Rieder & Voigt, 2008) e do arranjo colocado em cena pelo Amor Cortês (Capelão, 2000) e pelo movimento As Preciosas. Nossa discussão está norteada por uma particular posição do sujeito em relação ao amor: quando o amor se sustenta somente mediante a segurança de um impedimento, de uma distância que prive e preserve, ao menos em parte, o sujeito do contato com seu amado. A necessidade de um amor inacessível, que visa precisamente à não realização, parece revelar que há algo insuportável em se deixar tomar em um enlace que consiga acolher alguma coisa de real, que implique transitar pelo desejo do Outro e que requeira alguma mudança de posição.
Palavras-chave: psicanálise, Sidonie, Amor Cortês, As Preciosas.
ABSTRACT
This article has been written from the biography Desejos secretos, a história de Sidonie C., a paciente homossexual de Freud (Rieder & Voigt, 2008) and from the arran gement brought to light by Courtly Love (Capelão, 2000) and by The Precious movement. Our discussion is guided by a particular subject's position in relation to love, when love is sustained only by the security of a constraint, a distance that deprives and preserves, at least in parts, the subject, from contacting the loved one. The need for an unattainable love, which specifically aims its non-achievement, seems to reveal that there is something unbearable in letting oneself engage into a bond which shelters something real, involves transiting through the desire of the Other and which requires some change of position.
Keywords: psychoanalysis, Sidonie, Courtly Love, The Precious.
O presente artigo visa abordar uma particular posição em relação ao amor: quando o sujeito não demanda, mais ainda/um corpo ("encore"), não demanda a presença do outro, a construção de um enlace junto ao objeto de amor, mas parece, ao contrário, evitar que esse laço se estabeleça. O que está em jogo nesse amor que se sustenta somente mediante a segurança de um impedimento, de uma distância que prive e preserve, ao menos em parte, o sujeito, do contato com seu amado? Aqui não estamos diante da lógica do rodeio como forma de se aproximar e chegar ao amado: nossa interrogação recai sobre esse rodeio como fim em si mesmo.
Essa questão partiu inicialmente da biografia Desejos secretos, a história de Sidonie C., a paciente homossexual de Freud (Rieder & Voigt, 2008) e ganhou desdobramento ao dialogar com o arranjo colocado em cena pelo Amor Cortês (Capelão, 2000) e pelo movimento As Preciosas. É na costura tecida entre esses campos que a questão deste artigo se recorta, na aposta que faz a psicanálise de que as produções culturais, ainda que entendidas como ficção, não deformam a realidade, pois guardam, antes, a possibilidade de que algo relativo à verdade do sujeito se revele. A psicanálise, metodologicamente, permite tomar a ficção, a criação, como um efeito do trabalho da cadeia significante através do qual se pode tocar na dimensão da verdade concernente ao falasser.
SIDONIE E SUA PARTICULAR POSIÇÃO EM RELAÇÃO AO AMOR
Iniciemos por um mergulho no universo de Sidonie. Wjera foi o grande amor de Sidonie - Sidi, como a apelidaram suas biógrafas. Sidi já a amava e a cortejava, mesmo sendo Wjera casada com um homem, muito antes da eclosão da Segunda Guerra Mundial, durante a qual teve de se exilar em Cuba. Quando Sidi retornou à Europa, o marido de Wjera havia morrido na guerra, e elas decidiram se reencontrar. Wjera se tornou "dócil, cheia de amor e capaz de abrir seu coração" (Rieder & Voigt, 2008: 356). Sidi, diante da disponibilidade e do investimento afetivo por parte de Wjera, é tomada de angústia.
O que iria aproximar e manter Sidi e sua amante juntas a partir daí senão uma inequívoca declaração de amor das duas partes? Wjera parece disposta a isso e promete a Sidi passar uma boa parte do verão com ela e a mãe nas montanhas de Salzburgo ou do Tirol. Sidi se dilacera entre um profundo sentimento de felicidade e o medo de ser esmagada pelas obrigações reais em relação à mãe e pelas fantasiadas em relação à amante. [...] Sidonie refugia-se de todo seu medo de proximidade e de seu pânico de falhar com Wjera e perdê-la numa ternura exagerada pelo cão. Cada vez com mais frequência se esquiva de ocasiões de maior intimidade com a amante e se utiliza de qualquer desculpa que lhe ocorra mal se insinuam manifestações de carinho físico e sexualidade (Rieder & Voigt, 2008: 356).
O resto das férias é um dramático e doloroso vaivém entre desejos amorosos e infinita angústia, dos dois lados. Sidi fica desesperada, pensa sem parar em Wjera, num momento gostaria de se jogar no lago; em outro, de cumular Wjera de presentes, tê-la apertada em seus braços e esquecer tudo. Em pânico, vê tornar-se realidade o que desde o início temia e ajudou a acontecer: Wjera iria abandoná-la. [...] Mesmo depois do retorno para Viena, o drama prossegue. Wjera viaja de volta para Munique com a mesma firme exigência de antes, de uma relação verdadeira e estável. Sidi continua sem se decidir. [...] Então sobrevém o grande e definitivo golpe. Wjera manda uma breve carta a Sidonie na qual lhe comunica que não quer mais vê-la. Tinha esperado tempo demais, amado demais, chorado demais. Agora, Sidi deveria, por favor, se manter distante, não lhe enviar nenhum poema ou mesmo flores e deixá-la em paz (Rieder & Voigt, 2008: 358).
Ao longo da história de Sidonie, certo arranjo cortês é repetidamente colocado em cena: o endereçamento se produz em relação às Damas inacessíveis, com as quais o contato precisa estar necessariamente interditado. Assim, ela ama sem ser amada - Sidonie se mantém fixa à sua posição de "amante", como reconheceu Freud (1920/1996: 166), no caso que publicou sobre a jovem homossexual: ela não demanda a presença da amada, é um amor que não busca ganhar corpo. Se o enlace com a Dama se anuncia possível, Sidonie não o suporta. Como vimos através do fragmento de sua biografia, a possibilidade de enlace traz para ela a insuportável questão acerca do desejo do Outro, que a faz, angustiada, colaborar para a ruptura do laço.
A jovem homossexual que teve seu caso publicado com o título "A psicogênese de um caso de homossexualismo numa mulher" (Freud, 1920/1996) foi levada até Freud por seu pai após uma grave tentativa de suicídio. Ela se atirou em uma linha ferroviária depois de ser flagrada, pelo pai, passeando com a mal-falada Dama da sociedade com a qual andava e que cortejava. Lacan (1956-1957/1995), resgatando esse caso, aborda o que constituía o arranjo amoroso dessa jovem: dirá ele que esse amor é resultado de uma regressão ao narcisismo, ou seja, calcado essencialmente na relação imaginária "eu - pequeno outro". Também nos dirá, a propósito dessa jovem, que:
este é um amor que não demanda qualquer outra satisfação além do serviço à dama. É verdadeiramente o amor sagrado, se posso dizê-lo, ou o amor cortês no que tem de mais devotado. [...] Não é simplesmente uma atração sentida ou uma necessidade, é um amor que, em si, não apenas dispensa a satisfação, mas visa, muito precisamente, à não-satisfação (Lacan, 1956-1957/1995: 109).
O AMOR CORTÊS EM ANAMORFOSE
O amor cortês foi uma construção social que ocorreu entre os séculos XI e XIII na Europa, principalmente na França, e que consistia em um exercício poético pautado, invariavelmente, por uma mesma estrutura mínima: um poeta, na posição de vassalo que abre mão das suas prerrogativas viris e canta seu amor a uma Dama arbitrária suserana e, principalmente, inacessível - seja porque é casada, seja porque é de outro patamar social (Capelão, 2000). Sustentando no âmbito da retórica, trata-se de um amor carnal que não se consome e, "ao excluir a posse física e ao alimentar indefinidamente o desejo, ele engendra um aperfeiçoamento que nunca tem fim" (Buridant, citado por Capelão, 2000: XLVI).
Esse arranjo é criado e sustentado pela operação da sublimação, que eleva o objeto à dignidade de Coisa, criando assim um "parceiro desumano". Dessa forma, ele esvazia o objeto feminino de toda substância real, não demanda corpo, "não pede nada para ninguém" (Lacan, 1959-1960/2008: 140) e funciona no regime da privação engendrado pela demanda "de ser privado de alguma coisa de real" (Lacan, 1959-1960/2008: 182). Por meio da lógica da privação, encontramos o sujeito privado da Dama à qual endereça seu amor. É importante situarmos que a privação de alguma coisa de real, de acordo com a concepção de privação, leva-nos a ler essa assertiva como a falta real do objeto simbólico Dama. Já se a interpretarmos desde o conceito de real, privilegiaremos o entendimento de que se trata de uma demanda de ser privado (de alguma coisa) da dimensão do real, do campo vazio constituído pela Coisa (lugar que a Dama ocupa).
No Seminário 20 - Mais, ainda..., Lacan (1972-1973/1985: 94) retoma a questão do amor cortês, dizendo que este "é uma maneira inteiramente refinada de suprir a ausência de relação sexual, fingindo que somos nós que lhe pomos obstáculo. É verdadeiramente a coisa mais formidável que jamais se tentou. Mas como denunciar seu fingimento". Aqui - importante - aparece a tomada de outra perspectiva em relação ao amor cortês, evidenciando que o amor cortês também é uma forma de se esquivar do confronto com a inexistência da complementaridade de gozo (proporção sexual) e com os efeitos da castração que essa constatação evocaria.
Como o homem e a mulher não podem se relacionar sexualmente, diretamente, sem o intermédio do(a) muro que constitui o falo, dirá Lacan (1972/2003) que a relação sexual não existe. Mas os amantes se articulam em torno dela, são interpelados por ela. A suposta proporção sexual, na qual os amantes se encontrariam e se equalizariam de tal forma que não restaria qualquer falta ou dissonância, é o que os move em busca um do outro. Entretanto essa aposta não pode senão sucumbir diante da desarmonia que há no encontro amoroso. Ou seja, a tentativa de fazer existir a relação sexual é um empreendimento necessariamente falho na qual os amantes que nele se embrenham, com os avatares e as parcializações da pulsão sexual, com as montagens e desmoronamentos do falo, deparam-se inevitavelmente com uma das faces da rocha da castração: é impossível emparelhar os sexos.
O amor cortês evidenciará a inexistência da relação sexual, mas no plano do significante, sem chegar a essa constatação pela experiência no corpo, da inexistente relação sexual, sem se sujar nas tentativas de satisfação da pulsão sexual, nem se deixar tocar por algo do real (do qual se priva). Se a poética cortês evidencia a ausência do objeto, através da privação que está de saída em sua jogada, também comparece como uma tentativa de esquivar-se da constatação dessa dimensão da falta que os desmoronamentos do falo e as parcializações da pulsão colocariam em cena. Parece tomar algo que é da ordem da impossibilidade como inacessibilidade. Para se esquivar da inexistência da relação sexual, aponta que, com A Dama, a proporção sexual seria possível, resguardando-se de pôr à prova essa dedução. Do Outro se tem somente um sinal e nada mais, um reconhecimento distante (Lacan, 1959-1960/2008).
O rodeio, na lógica do amor cortês, não comparece como um momento de aproximação que prepara o contato com o objeto de amor e, sim, como uma posição que se mantém fixa, regulando a distância desse objeto, preservando um intervalo que suspende o contato do sujeito com essa dimensão da Coisa. Por intermédio do rodeio o sujeito se esquiva de alguma coisa de real que adviria com a presença do outro, esse "parceiro desumano" que a Dama constitui no lugar da Coisa. É importante, portanto, ficarmos atentos à ideia de que a posição do amor cortês, embora evidencie a falta de objeto - a falta da Dama -, pode, paradoxalmente, estar revelando uma insuportabilidade de se deixar atravessar pela falta e mudar de posição, de compor um enlace que acolha alguma coisa de real e que suporte a questão relativa ao desejo (do Outro).
AS PRECIOSAS E O SIGNIFICANTE FÁLICO
"As Preciosas" foi um movimento feminino do século XVII no qual as mulheres rejeitavam o casamento tal como instituído, rejeitavam o sexo e valorizavam o amor como galanteio. Nessa via, Lacan (1959-1960/2008) associará As Preciosas ao Amor Cortês e, na lição do Seminário 19 ... ou pior (Lacan, 1971-1972/n.d.), dirá que As Preciosas não se arriscam a tomar o falo por um significante, bem como a jovem homossexual, que também não toma a distinção sexual como efeito do significante. Se o falo não opera enquanto significante ele impõe ao sujeito uma relação na qual a falta não pode advir, visto que não há como simbolizá-la. Sendo assim, ele não pode ser recebido e também ser dado, ser erigido e também desmoronar, reaparecer e desaparecer sem que isso seja insuportável para o sujeito. Lacan, ao aprofundar a questão do dom, diz que:
O desejo visa ao falo na medida em que este deve ser recebido como um dom. Para este fim, é necessário que o falo, ausente ou presente noutra parte, seja elevado ao nível do dom. E é na medida em que ele é elevado à dignidade de objeto de dom, que faz o sujeito entrar na dialética da troca, aquela que irá normalizar todas as suas posições, até inclusive as interdições essenciais que fundam o movimento geral da troca (Lacan, 1956-1957/1995: 144; grifo nosso).
Lacan trabalha a questão do "dom" inspirado pela obra de Marcel Mauss (1925/2008), Ensaio sobre a dádiva, na qual esse sociólogo aborda o ritual do potlatch. Nesse ritual estão todos submetidos à regra da troca e circulação dos bens, o que os faz intercambiar de posição a partir da sustentação de uma falta. Nesse enlace, ao faltar o objeto, abre-se a possibilidade de metáfora, de mediação, de circulação, de intercâmbio de posição.
Há uma singular inscrição da falta de objeto que eleva o falo ao nível do dom e possibilita que o sujeito entre na dialética da troca, circule e venha a ocupar diferentes posições. A isso articulamos a proposta que Lacan (1972-1973/1985: 27) faz em seu vigésimo seminário, de que "o amor é signo de que trocamos de discurso". Aproximamos, dessa forma, esses dois momentos do ensino de Lacan, ao entendermos que o dom de amor requer justamente a possibilidade de circulação simbólica, mudança de uma posição à outra, de troca de discurso, tal como o entende Lacan. Ainda, semelhante perspectiva é desenvolvida em seu oitavo seminário, A transferência (Lacan, 1960-1961/1992), no qual o amor também aparece como ligado à mudança de posição: de amado para amante. Parece-nos haver um mesmo fio condutor que situa como uma possibilidade simbólica relativa ao amor essa operação de metáfora na qual, mediante uma inscrição, não qualquer, da falta do objeto, o sujeito pode mudar de posição e amar.
O falo, elevado ao nível do dom, permite ao sujeito intercambiar de posição, por exemplo de amante a amado - lembremos da limitação da jovem homossexual de fazer essa mudança, que se apresentava fixa em sua posição de amante cortês. O falo, tomado na dialética do dom, possibilita ao sujeito trocar de discurso, como, por exemplo, o ato psicanalítico que promove a entrada em análise e possibilita uma primeira mudança de posição do analisando. Ele opera no sentido de que o sujeito mude do Discurso do Mestre (da posição sustentada e alienada em S1) para o Discurso da Histérica, no qual ele passa a se enunciar como cindido, atravessado pela falta (), produzindo sua demanda endereçada ao analista. Lembremos novamente da fixidez da posição da jovem homossexual, aferrada ao seu lugar de mestria diante de Freud sem ter produzido essa mudança de posição (ou qualquer outra mudança de posição) no discurso que institui a entrada em análise, levantando a questão sobre ter ou não se instituído um enlace transferencial.
"CHE VUOI?"
Lacan (1958/1998: 692; grifo nosso), no texto "A significação do falo", dirá que "o complexo de castração tem uma função de nó que permite a instalação, no sujeito, de uma posição inconsciente sem a qual ele não poderia identificar-se com o tipo ideal de seu sexo, nem tampouco responder, sem graves incidentes, às necessidades de seu parceiro na relação sexual". No Seminário sobre Os quatro concei tos fundamentais da psicanálise, Lacan (1963-1964/1998) ainda dirá que:
O amor, cujo rebaixamento pareceu aos olhos de alguns que nós havíamos procedido, só se pode colocar nesse mais-além, onde, primeiro, ele renuncia a seu objeto. Também está aí o que nos permite compreender que qualquer abrigo onde pudesse instituir-se uma relação vivível, tempe rada, de um sexo ao outro, necessita a intervenção - é o que ensina a psica nálise - desse medium que é a metáfora paterna (Lacan, 1963-1964/1998: 260; grifo nosso).
A possibilidade de se ver tomado em um laço levanta a questão acerca das necessidades do parceiro, faz retornar a questão Che Vuoi?, relativa ao desejo do Outro, e diante disso parece não haver ferramenta (se não se produziu a castração simbólica, que instaura outra possibilidade de relação com o falo) que ampare o sujeito nessa circulação. A troca de discurso, que requer que o sujeito passe de uma posição à outra, coloca-se como uma passagem insuportável, angustiante, perigosa. Para não correr o risco de sucumbir aos possíveis incidentes, ama-se a Dama idealizada à distância, apostando que ela não queira vir para a cama. Se ela chega a endereçar o olhar, precipita-se para fora do enlace. Não se está demandando seu olhar, sua presença. Está se demandando, nesse amor, ser privado de alguma coisa de real que advém com ela, na tentativa de se defender do encontro insuportável com a questão que essa presença suscitaria.
O falo, enquanto significante, possibilita um trânsito junto ao campo do Outro, porquanto permite mediar e articular, numa função, a questão Che Vuoi?. A necessidade do amor cortês, portanto, pode, de alguma forma, estar falando de certa fragilidade na operação da Metáfora Paterna, vindo, como efeito, delimitar um espaço seguro para o exercício do desejo e do amor, que de outro modo seria insuportável, pois não há ferramenta que permita fazer da falta a função fálica. Se o recalque é o que separa o sujeito do gozo do Outro, e estamos supondo justamente uma falha relativa à castração simbólica, o amor cortês viria, em suplência, assegurar a distância da questão Che Vuoi? e a angústia que ela implicaria nessa configuração.
Obviamente as relações amorosas não são isentas de angústia, afinal a questão "o que o Outro quer de mim?" atravessa o enlace; há uma reedição do Che Vuoi? que fundou o sujeito. Lacan (19611962/2003), ao falar da essencial relação da angústia com o desejo do Outro, ensinará que a angústia pode ser entendida como aquilo que invade o sujeito ao ele ser tomado de forma devastadora, sem anteparo, pelo desejo do Outro. A passagem pela questão acerca do que quer o Outro, o deixar-se tocar por alguma coisa de real, só é suportável se há uma mediação que permita operar com essa questão, fazer algo com ela. Caso contrário, o sujeito fica desamparado diante de sua divisão subjetiva, frente ao desejo do Outro.
A POSIÇÃO CORTÊS DESESTABILIZADA
Como Lacan (1967/2003) nos ensina, não há intersubjetividade. A propósito disso, Calligaris (1991) desenha a imagem de que a relação amorosa é como jogar tênis. Do lado de cá, estamos nós, da rede para lá não há o outro, mas o que projetamos como outro lado da quadra. Nosso lugar nesse jogo é um tanto fixo, resguardado pelo imaginário, que nos possibilita um laço fantasmático com o objeto de nosso desejo. O fantasma, entretanto, é constantemente colocado em cheque por alguma coisa de real que advém da relação: real que invade a quadra e interroga nossa posição no jogo. Diante desse real, pode o sujeito mudar de posição; pode buscar retornar rapidamente a uma significação que o garanta em um mesmo lugar; pode ainda sucumbir à emergência desse real, precipitando-se jogo afora.
Enquanto a angústia parece ser gerada quando o desejo do Outro é colocado em pauta - quando a Dama se torna possível -, diferentemente, a passagem ao ato já é uma precipitação decorrente de uma desmontagem: quando o sujeito é desestabilizado em sua posição cortês pela retirada por parte do outro do ponto de apoio dessa montagem. Sidonie teve três tentativas de suicídio em momentos em que sua posição cortês foi colocada em cheque. Quando a montagem cortês, que garantia o sujeito em uma posição, desaba, o sujeito é interrogado em sua divisão e convocado a um ato de passagem, de mudança de posição. Para essa mudança o sujeito não encontra suporte, acabando por passar ao ato. Importante lembrar, a esse propósito, que o trabalho psicanalítico aposta que é possível mudarmos de uma à outra posição suportados pela cadeia significante que nos dá outras possibilidades de nos relacionarmos com nossa falta fundamental.
Por fim, nos interrogamos que associações são possíveis estabelecer entre as questões trabalhadas neste artigo e o que encontramos no mal-estar contemporâneo relativo ao amor. Lacan (19591960/2008: 180) indica que há um eco que amor cortês tem em nós, na "organização sentimental do homem contemporâneo". Quantos não se veem, atualmente, em conflitos semelhantes ao de Sidonie, divididos entre a demanda de estabelecer uma "relação amorosa vivível e temperada" e a demanda de serem privados de alguma coisa de real? Suportam então com dificuldade o trânsito pelo desejo do Outro e as mudanças de posição requeridas por um enlace atravessado pela dimensão da falta que, inevitavelmente, tem a função de fraturar a relação amorosa e mostrar que a (proporção) relação sexual não existe?
Os desabamentos do falo parecem ser intoleráveis. Se restou um mais além insatisfeito, é porque se adquiriu o objeto errado para satisfazer o desejo e não porque essa dimensão de resto é fundamental enquanto o lugar da falta de objeto que cumpre a função de causar o desejo. O que se parece ter esquecido é que o recalque não é algo que frustra o desejo, pois, ao contrário, o que permite sustentá-lo, visto que aparta o sujeito do gozo do Outro. A palavra, o mal-entendido e o desencontro não são o fracasso do amor, mas o intervalo no qual ele se desenvolve.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Recebido em 09 de outubro de 2012
Aceito para publicação em 14 de dezembro de 2012