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Tempo psicanalitico
Print version ISSN 0101-4838On-line version ISSN 2316-6576
Tempo psicanal. vol.47 no.1 Rio de Janeiro June 2015
ARTIGOS
O desregramento do gozo e a legitimação do gozo sexual: novos modos de funcionamento das mulheres e mães
The disruption of the jouissance and the legitimation of the sexual jouissance: new ways of functioning of women and mothers
Ilka Franco FerrariI, II, III *; Cristina Moreira MarcosI **
IPontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas) - Brasil
IIEscola Brasileira de Psicanálise - Brasil
IIIAssociação Mundial de Psicanálise - França
RESUMO
O artigo se constrói a partir de abordagem de certos de modos de funcionamento de mães e mulheres, nessa realidade social marcada pela crescente influência do discurso do capitalista no discurso da ciência. Nessa civilização que prima pelo mais-de-gozar, o sistema favorece certas formas típicas de vivenciar a posição feminina e materna, novas formas de laços sociais, de parcerias sexuadas e, como se tem dito, novas manifestações sintomáticas. O percurso escolhido circunscreve, portanto, pontos cruciais desse sistema discursivo que conta com suas formas singulares de repartição sistematizada de meios e maneiras de gozar. Ele passa por demarcações próprias da condição do feminino, chegando a um fragmento de caso, paradigmático da posição mulher-mãe como sujeito suposto saber do ser pai, juízas do pai para seus filhos.
Palavras-chave: atualidade, gozo, mães, mulheres.
ABSTRACT
This paper examines some ways of functioning of mothers and women in a society marked by the growing influence of the capitalist discourse in the discourse of science. In a civilization marked by the plus de jouir, some typical ways of living the position of women and mothers are primed, just as new forms of social ties and sexual partnerships - as it is usually said, new symptomatic manifestations. Some crucial points in this discourse are highlighted, with its particular partitions of ways of the jouissance, and we examine a paradigmatic case of the position of mother-woman.
Keywords: today, jouissance, mothers, women.
A civilização se constrói sobre renúncia das pulsões. É essa a verdade que Freud (1930/1969) ensina em seu texto "O mal-estar na civilização" . Em sua consideração, "O homem civilizado trocou um quinhão das suas possibilidades de felicidade por um quinhão de segurança" (Freud, 1930/1969, p. 105). A "renúncia forçada", a "regulação", a "supressão", em suas palavras, são assim necessidades em nome da ordem, da beleza e da limpeza da civilização que caracterizava a modernidade de sua época.
Nos tempos atuais, tais renúncias perdem seu caráter de necessidade para serem transformadas em um atentado contra a liberdade individual. Bauman (1997) afirma que se a modernidade pode ser descrita, como fez Freud (1930/1969) em "Mal-estar da civilização", como renúncia às pulsões em nome da civilização, a pós-modernidade se constrói em torno da liberdade individual, edificada como valor maior a partir do qual todos os outros valores são avaliados. Segundo esse autor há uma torção: o mal-estar não vem mais de uma segurança que tolerava uma liberdade pequena demais na busca da felicidade individual, mas de uma liberdade na procura do prazer que tolera uma segurança individual pequena demais. Abordar o tema proposto supõe considerar este horizonte da época.
A atualidade do desregramento do gozo
Os estudiosos da psicanálise aprenderam a pensar a civilização como algo que se constitui a partir de formas de repartição sistematizada de meios e maneiras de gozar, em distribuição de gozo a partir de semblantes. E Lacan, em mais de um momento de sua obra, entre preocupado e nada nostálgico, lhes ofereceu repertório para pensar que o homem organiza a civilização, por mais estranha, simples ou complexa que ela possa parecer, por meio da ciência. Sendo assim, não há como negar que, obviamente, ela é variável.
Ao se assemelhar ao discurso da histeria, que não se confunde com a estrutura histérica, mas diz de uma forma de laço social que leva o outro a certa produção de saber, a ciência busca produção de saber sobre o real. Aliás, decididamente o que se espera da ciência é a produção desse saber, o que não acontece sem mal-estar. Enquanto discurso que pretende colonizar o real pelo simbólico, e dado que qualquer laço social, cada forma discursiva, supõe enquadramento pulsional e perda real de gozo, ela também é fonte de mal-estar.
Na atualidade, a humanidade conta com uma civilização científica. E a ciência, que não deixa de se inserir em meio a outros discursos, convive com os avatares do discurso capitalista, discurso que, em "Televisão" (Lacan, 1974/2003), não escapa a Lacan. Nesse texto ele já via o mal-estar da época como produto do discurso capitalista, nova modalidade do discurso do Mestre. Nova modalidade porque antes, em O Avesso da psicanálise (Lacan, 1969-1970/1991), o discurso da universidade era mencionado como o predominante na sociedade.
Em O avesso da psicanálise (Lacan, 1969-1970/1991, p. 61), baseando-se na dialética do senhor e do escravo, tal como apresentada por Hegel na elucidação da consciência de si, Lacan dizia que essencialmente o discurso do mestre se constitui por seu ordenamento e intervenção no sistema de saber. E isso faz laço social entre aquele que manda e aquele que trabalha, permitindo governar. Nesse caso havia articulação entre o desejo de um com o desejo do outro, entre a vida e a morte, entre o objeto e o gozo. O saber com poder de transformar, localizado representativamente pelo trabalho, se situa com o escravo ainda que este não saiba, já que é o mestre quem dita o que é a realidade, afirmando-a como verdade. Em "Televisão" (Lacan, 1974 / 2003) o discurso do Mestre se apresenta degradado no discurso capitalista característico da civilização científica, civilização que se ocupa de angustiar metodicamente o assalariado e não o escravo, tal como acontecia antes, conforme esclarece Miller (2005a).
E um dos pontos centrais do discurso do capitalista, fonte de preocupação e cuidados na formalização lacaniana, é que ele não promove laço social. Há seu favorecimento ao apego na relação com os gadgets e a ilusão de completude não mais na utopia da constituição de um par. Agora, o que está em jogo é que os parceiros sejam facilmente descartáveis, desconectáveis. Nesse sistema em que se observa nova economia libidinal, lucrar sobre o outro, usá-lo em benefício próprio é moeda corrente. Eficiência e rapidez, nessa globalização que caminha no sentido da universalização e da homogeneização, em meio a múltiplos produtos, são uma exigência.
O sujeito, ao se confrontar com os novos objetos de consumo lançados no mercado, deverá responder ao imperativo de deles gozar, de consumi-los (Miller, 2005b). A importância da subjetividade se reduz e os avanços científicos dão bons exemplos disso. A genética, com a possível geração artificial de vida, nos revela que nem sempre a presença do outro/parceiro é fundamental para se procriar. As máquinas, cada vez mais sofisticadas, testemunham a redução da presença corporal do ser humano. Nesse esvanecimento do Outro enquanto representante do simbólico, em decorrência do declínio da função paterna, ocorre desordem nos registros simbólico, imaginário e real. O desfalecimento do simbólico engendra a manifestação do real e a impregnação do imaginário, pelo fato de que a falta falta. No lugar do Outro deixado vazio surge o gozo.
A busca de harmonia já não se adéqua a um Ideal, mas a um objeto. O predomínio do mais de gozar sobre o Ideal implica uma supremacia do imperativo superegoico: goze! Você ainda não goza o suficiente! Goze! Há gozo disponível! Utilize! Daí é que se diz que a civilização atual é perfeitamente compatível com o caos, com a ausência de limites (cf. Laurent, 2007). O declínio do Ideal é acompanhado por uma exigência de gozo. Assim sendo, o poder ilimitado do supereu revela a face mortal da pulsão.
É nessa direção que Naparstek (2005) afirma que, hoje, o encontro entre os sexos se vê alterado. Cada vez mais a prática da sedução desaparece, vai-se direto ao ponto que interessa e de modo impessoal. A sedução supõe o oculto, o que se esconde, o que não se vê. Hoje, tudo pode ser visto, mostrado, revelado. Não há tempo para rodeios. O direito ao gozo deu lugar ao empuxo ao gozo. Sendo assim, o sujeito da atualidade fica entre um empuxo ao gozo e a depressão. Para esse autor, aquele que consome supostamente teria acesso a um gozo sem limite, enquanto aquele que não o tem se deprime.
Nesse contexto, interessa-nos perguntar acerca dos modos de funcionamento das mães e mulheres. Uma nova economia libidinal parece evidenciar não só o caráter descartável do parceiro, como também a disjunção entre procriação e amor. As novas configurações familiares - educar uma criança sozinha ou com outra mulher, as mulheres encarregadas da família, o lugar e a função da criança na economia subjetiva das mulheres -, as novas imagens e símbolos da mulher, o discurso em relação ao gozo sexual, definido não apenas como legítimo mas sobretudo como um bem ao qual todos tem direito, independente do amor ou da reprodução, todos os campos abertos às mulheres no mundo do trabalho e da vida profissional são evidências da abertura de novas possibilidades e novos destinos.
A legitimação do gozo sexual: disjunção entre sexualidade e procriação
Nesse contexto de desregramento dos gozos, Laurent (2000) nos recorda que a psicanálise é um discurso organizador, uma disciplina que, através de sua lógica, se aplicada a esses contextos em que as identificações já não funcionam ou ao mal-estar da civilização, se instaura por meio de identificações contraditórias. E por aí estão os psicanalistas, em diferentes locais de inserção, discutindo as novas configurações familiares e o posicionamento das mulheres e mães, nesse novo ordenamento da civilização contemporânea que conta com os ideais de justiça distributiva e o discurso dos direitos humanos.
É inegável que as transformações sociais, políticas e econômicas se traduzam em produções discursivas diferentes a cada momento simbólico e que essas determinem posições subjetivas diferentes.
Exatamente por se constituir como discurso do Outro, como sede dos valores e comandos de uma determinada cultura, o inconsciente se revela como um laço social diferente em cada momento da civilização. [...] Tratar das questões do sujeito significa, também, a possibilidade de ler os efeitos e as características do controle social concretamente presente (Pinto, 2008, p. 70).
A psicanálise é um laço social que propõe tratar os impasses de cada sujeito como efeitos de certo momento da civilização. Sendo assim, não há antinomia entre a psicologia individual e a psicologia social, como observa Freud (1921/1969) em "Psicologia de grupo e a análise do ego". Não se trata de verificar unicamente as incidências das modificações sociais na subjetividade, mas de pensar que os efeitos dessas mudanças englobam o indivíduo e a vida coletiva.
É preciso afirmar assim uma relação existente entre o inconsciente e a cultura. Há que se estabelecer uma analogia entre a psicanálise e o nosso mundo atual para pensar as mudanças clínicas e as novas estratégias de intervenção nesse contexto. Sendo o Outro essencial à constituição do inconsciente, pode-se afirmar que as manifestações inconscientes evidenciam-se na cultura.
Para Miller (2005a, p. 215), não resta dúvida de que "a tecnologia tocou de maneira inquietante o real da vida", mas parece que o que vivemos não é uma busca ansiosa de igualdade de direitos e sim de gozo entre os sexos. Para ele, se a clonagem mostra a exclusão do Outro e se instala naquilo que se pode chamar de produção do mesmo, com ela fica evidente a disjunção entre sexualidade e a reprodução (Miller, 2005a, p. 243).
Nessa mesma direção, Soler (2005, p. 130) afirma que lhe agrada dizer que somos contemporâneos do que ela chama de "legitimação do gozo sexual", algo bem distinto da época freudiana. O direito ao gozo sexual soma-se, na atualidade, "à lista dos direitos do homem" e "é passível do discurso da justiça distributiva". Dessa forma, ele entra na lista das reivindicações e, vale lembrar, a reivindicação, como Soler afirma, "é irmã da doença da comparação" (Soler, 2005, p. 133). Essa autora enfatiza que em nossa realidade social "a satisfação sexual aparece como uma exigência tão justificada, uma dimensão tão natural, um fim em si tão independente das finalidades da procriação e dos pactos de amor", consequentemente, bem diferente do que pensava Freud. Nessa atualidade, "cada um ou cada uma pode reivindicar seu orgasmo, às vezes até nos tribunais" (Soler, 2005, p. 133).
No que diz respeito às mulheres, já não se trata, portanto, de uma mulher prisioneira por uma situação social em que a boa saída seria o casamento, mulher condenada, com algumas exceções, a só realizar seu falicismo como mãe, de acordo com as ofertas de discurso da época de Freud. A mãe, a maternidade, como nos recorda Classerman (s/d), boa leitora de Freud e Lacan, é um dos modos de suplência do significante de "A Mulher". As fórmulas da sexuação (Lacan, 1972-1973/1975) nos introduzem não somente na dissimetria entre homem e mulher, mas, também, naquela que diz respeito à mulher e à mãe, enfatiza Classerman. Elas questionam a afirmação freudiana de que a feminilidade só pode ser alcançada quando coincidem a mulher e a maternidade, não só do filho ou filha, mas, também de seu marido... Isso porque, ao considerar o marido como uma duplicação do filho, Freud apaga o falicismo do ser que está presente no jogo amoroso em detrimento do ter, mesmo se ele enfatiza a exigência de amor, própria do feminino.
Há uma profunda dissimetria entre a posição masculina e a posição feminina, tal é a verdade enunciada por Freud acerca da diferença sexual. A repartição sexual parte da existência de dois sexos (Miller, 2003) cuja representação é baseada, em Freud, em uma evidência imaginária. O órgão masculino é evidente, enquanto o órgão feminino não se vê. Se, em um primeiro momento, o menino denega a ausência afirmando que ali onde não há nada há um órgão pequeno que crescerá, posteriormente a representação da falta ganha a seguinte forma: se há seres humanos desprovidos do pênis, posso perder o meu. Temos assim a angústia de castração. Como isso se coloca para a menina? Sua relação com a castração não se faz pela ameaça de castração, como Freud (1925/1969) afirmará nos anos vinte (tampouco para o menino que precisa constatar a ausência do órgão no corpo feminino, especialmente na mãe). Ela viu e conclui: não tenho e quero tê-lo!
Essa oposição constrói uma assimetria na vida amorosa: de um lado, a ameaça de castração com a constatação da falta e, de outro, o medo da perda do amor. Para a menina, com esse menos que a marca, o amor do Outro é necessário. A ameaça que a caracteriza é a da perda de amor. O amor está situado na vida feminina em uma posição dissimétrica em relação à posição masculina (Laurent, 2010).
Temos em Freud, então, a diferença sexual representada a partir de uma evidência imaginária: ter ou não o órgão sexual masculino. Em "A significação do falo", Lacan (1958/1988) passa do órgão ao significante. Entretanto, Miller (2003) lembra que esse pertencimento ao corpo continua válido quando Lacan afirma que a mulher encontra o significante do seu desejo no corpo do homem.
Em "Diretrizes para um congresso sobre a sexualidade feminina", Lacan (1960/1966) destaca que para o homem o parceiro toma a forma de fetiche e situa a forma fetichista de amar do lado masculino. Nela encontramos a exigência de certo número de condições típicas. Há a exigência da condição e há os múltiplos suportes que podem satisfazê-la. Do lado feminino, a exigência se coloca no nível do amor. É o desejo do Outro que interessa à mulher. Ela quer ser amada, mais do que amar. Enquanto no homem o desejo passa pelo mais-de-gozar, na mulher o desejo passa pelo amor. Essas duas formas de amar indicam o que um sexo busca no Outro: a forma imposta ao objeto, o objeto fetiche e o objeto erotomaníaco.
Em "A significação do falo", Lacan (1958/1988) assinala uma convergência aparente, do lado feminino, entre o objeto de desejo e o objeto de amor. A mulher pode buscar, no mesmo homem, o desejo e o amor. É o que afirma Lacan (1958/1988, p. 272), ao dizer: "Mas o resultado para a mulher continua sendo que convergem sobre o mesmo objeto uma experiência de amor, que como tal a priva idealmente do que ele dá, e um desejo que encontra aí seu significante". Nas fórmulas da sexuação, a mulher se desdobra entre o gozo ligado ao falo e o gozo suplementar ligado a S( % ).
Se na contemporaneidade de Freud parecia bem demarcado o que cabia ou competia ao plano da mulher (lar, filho, cuidados, preocupação com o amor) e do homem (mundo, atos heroicos, carreira, prazer), na atualidade já não é mais assim. Miller (2005a) afirma que, em nosso mundo, o objeto a foi promovido à condição de bússola da civilização. Se antes a moral civilizada funcionava como orientação promovendo a inibição do gozo como modo de fazer existir a relação sexual, hoje a orientação pelo objeto produz sujeitos desinibidos. Nas palavras de Miller (2005b), no mundo atual há uma ditadura do mais-de-gozar que devasta a natureza, rompe casamentos, dispersa a família e remaneja o corpo, não apenas nos aspectos da cirurgia estética, ou da dieta.
Lacan, no texto "Televisão" (1974/2003), já afirmava que esse modo de funcionamento na vida produz fantasias e sintomas inéditos. Soler (2005) assegura que esses sintomas estão para além da simples oposição de ser mãe e ser mulher, própria do falicismo do ter ou ser. Descreve, dessa forma, três sintomas por ela considerados inéditos: a degradação da vida amorosa, a inibição e as mulheres encarregadas do pai.
A degradação da vida amorosa é destacada por Freud em "Um tipo de especial de escolha de objeto feita pelos homens" (Freud, 1910/1969) e "Sobre a tendência universal à depreciação na esfera do amor" (Freud, 1912/1969), e situada do lado masculino. Nesses dois textos que compõem as Contribuições à psicologia do amor, Freud coloca a questão de como se relacionam homens e mulheres. Na primeira contribuição, Freud fala do tipo particular de escolha de objeto, para o homem. Na segunda contribuição é onde trata da tendência à degradação, que caracteriza a vida amorosa do homem. Nela há uma disjunção entre os termos "mãe/puta", "santa/profana", "amor/desejo". No mundo de hoje, a tendência à degradação na vida amorosa não parece ser privilégio do homem.
A degradação da vida amorosa não poupa as mulheres, diferentemente do que escreveu Freud. Não é incomum que elas também amem um homem e desejem ou gozem com outro. Lacan já havia escrito sobre essa possibilidade feminina em "A significação do falo" (1958/1988). Embora ele afirme que há, na mulher, uma convergência do amor e do desejo no mesmo objeto, essa convergência é aparente na medida em que o primeiro encontra-se dissimulado pelo segundo.
A inibição também já não é mais recuo do ato que se constata mais especificamente do lado dos homens, especialmente nos obsessivos, como claramente demonstrado no cotidiano da clínica, conforme assegura Soler (2005). Como bem se sabe, a inibição só pode acontecer onde há uma escolha possível ou imperativa, onde o desejo é solicitado. Se só há coerção ela não aparece. Atualmente as mulheres podem escolher e viver sua condição de desejantes sem tantas coerções. Dai postergam, hesitam frente a compromissos definitivos, a escolhas fundamentais, principalmente no campo amoroso, a exemplo da escolha do filho e do marido, ainda que desejados.
A mulher encarregada do pai é o terceiro sintoma inédito mencionado por Soler (2005). A disjunção entre procriação e amor tem resultado no que essa autora chamou, de modo feliz, mulher-mãe na posição de sujeito suposto saber do ser pai, juízas do pai. Isso porque, em nossa época, são encontradas mulheres, e não poucas, que no gozo da livre disposição de sua intimidade em determinado momento arcam com a responsabilidade da escolha do pai para o filho que deseja. Ao perceberem o tempo passando e precisando apressar o nascimento de um filho, ou por outras circunstâncias, são levadas a assumir a escolha do pai, ainda que saibamos da pouca liberdade que o inconsciente dá para as escolhas do sujeito, como nos alerta Soler (2005). E sem que precisemos de mais juízes que o exercício da clínica. Quando as mulheres de hoje, entretanto, separam o amor da reprodução, isso não deixa de causar embaraços.
Juíza do pai: Marta, exemplo paradigmático
O caso Marta1 é paradigmático dessa posição sintomática de juíza do pai. Mulher com carreira profissional "invejável", em suas palavras, busca análise dizendo que "queria parar de fazer besteiras e precisava tomar decisão importante": havia descoberto, cerca de cinco anos atrás, que tem endometriose. Não respondia bem aos tratamentos e sabia que uma gravidez poderia ajudar. Depois, já estava "passando da hora de ter um filho, pois chegava perto dos 40 anos". Precisava decidir se recorria ao banco de sêmen ou aguardava um pouco mais.
Seu funcionamento nas parcerias sexuais era o de "levar a vida usando os homens em seu benefício", tanto na carreira profissional quanto no desfrute do corpo, deixando-os depois. Mas ao "fazer isto para gerar um filho se enrascou". Na ocasião do diagnóstico de endometriose, com a ideia de uma gravidez decidiu romper com o namorado, "legal como homem, mas safado demais para ser pai de um filho seu". Buscou outro parceiro com "porte de pai" que durou pouco porque não suportava sua "frouxidão na cama" e, "se é verdade essa história de herança genética, não podia correr o risco de ter um filho frouxo". Encontrou um empresário "bonitão, inteligente, viril e gentil", tal como tinha traçado o "perfil físico" do homem destinado a ser pai de sua criança. Ela e sua "boa presa", no entanto, se enamoraram. Depois de cinco meses conta a "P" o caso da endometriose e a importância de uma gravidez em curto prazo: ajudar no tratamento e evitar correr o risco de não poder mais ter um filho. O namorado se assustou e lhe disse que "não se sentia em condições de ser pai".
A partir do que ouviu, Marta tomou a decisão de retirar óvulos para congelar e aguardar, quem sabe, que ele mude de decisão. Caso não mude, o banco de doadores de sêmen é a solução encontrada. O companheiro sabe de tudo, foi avisado sobre o dia da retirada dos óvulos, pois o médico considerava que o ideal era a fecundação acontecer logo após a retirada. Congelar os óvulos seria mais complexo, ainda mais com Marta, que só conseguiu três óvulos. Ele, todavia, permaneceu "como se nada tivesse a ver com tudo aquilo".
"Desorientada", na ocasião Marta pensava fazer duas exigências para o banco de sêmen: um bom espermatozoide e que a paternidade nunca seja revelada. Afinal, "não precisa de ninguém para ajudar a criar um filho, seus pais até se dispuseram a ajudá-la". Mas dizia-se "angustiada", "ansiosa", porque, além de não saber o que aconteceria com o relacionamento caso ficasse grávida, soube que assegurar o anonimato do doador é complicado, pois na legislação brasileira a doação de sêmen não estava devidamente regulamentada2. Nessa direção ela parece revelar que a reprodução, em seu caso, surge menos como possibilidade de encontro com o Outro e mais voltada para o recurso de um objeto de consumo. Mas esbarrou no amor. Condição que, apesar do utilitarismo próprio da época, ainda não abandonou as mulheres, por mais avançadas que se digam.
Se Marta ensina a peculiaridade de escolhas inicialmente supondo disjunção entre procriação e amor, mais evidente ainda é o ensinamento de que o inconsciente dá pouca liberdade para as escolhas dos sujeitos. Ao deslizar de um homem a outro, na posição de "A mulher", aquela que sabe encontrar o homem, esbarrou no amor, incompatível com o utilitarismo que marcava suas relações. Daí vale recordar Miller (2005a), ao afirmar que se nossa civilização produz o um-sozinho comandado pelo seu mais-de-gozar, o amor é o que pode fazer a mediação entre os um-sozinho.
Deparou-se com o fato de que mais que querer um filho útil para sua doença também o desejava e lhe buscava um pai que pudesse dar-lhe traços identificatórios. Um sêmen não faz isso. Na dialética do ter ou não ter, da falta (até de tempo para a gravidez), retornam as crises de asmas. Foram essas crises que um dia trouxeram o pai de volta para levá-la daquela casa onde havia uma mãe devastadora e para que "ambos pudessem viver e respirar melhor".
Em uma das sessões iniciais, angustiada Marta traz a seguinte série de questões: "Como posso ter me enganado tanto"? "Onde foi parar meu senso crítico"? "Na verdade o primeiro que despachei era bom na cama e no fundo achei que não dava para ser pai até porque era muito safado!". "O atual é também bom de cama com algumas safadezinhas que a gentileza recobre (sorri). Um muito safado, outro frouxo, o atual um safadinho legal... O que eu quero mesmo da vida? Ele quer ficar comigo? Tudo bem! Mas eu preciso de um pai, urgente!". "Estou sufocada nesta situação!"
E nesse percurso iluminado pelo apelo ao pai o banco de sêmen ainda aguarda.
Referências
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Artigo recebido em: 24/04/2014
Aprovado para publicação em: 15/05/2014
Endereço para correspondência
Ilka Franco Ferrari
E-mail: francoferrari@terra.com.br
Cristina Moreira Marcos
E-mail: cristinammarcos@gmail.com
*Professora na graduação e pós-graduação em Psicologia da PUC Minas (Minas Gerais, Brasil), Bolsista de Produtividade em Pesquisa, CNPQ, nível PQ - 2, Membro da Escola Brasileira de Psicanálise (Brasil) e da Associação Mundial de Psicanálise (Paris, França).
**Psicanalista, Docente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da PUC Minas, Doutora em Psicopatologia Fundamental e Psicanálise pela Universidade de Paris 7.
1Nome fictício. As aspas presentes em algumas falas dizem da literalidade das mesmas.
2Em 16 de abril de 2013 saiu a nova resolução do Conselho Federal de Medicina, Nº 2013/13, adotando as normas éticas para utilização de técnicas de reprodução assistida no Brasil.