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Tempo psicanalitico

Print version ISSN 0101-4838On-line version ISSN 2316-6576

Tempo psicanal. vol.50 no.2 Rio de Janeiro July/Dec. 2018

 

ARTIGOS

 

Morrer a conta-gotas: a estratégia de um neurótico obsessivo ao não aderir ao tratamento

 

Die in dribs and drabs: the strategy of an obsessive neurotic by not adhering to treatment

 

Morir a cuentagotas: la estrategia de un neurótico obsesivo al no adherirse al tratamiento

 

 

Gizele Aparecida de Almeida*; Fábio Santos BispoI**

IUniversidade Federal do Espírito Santo - UFES - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo é oriundo de um caso clínico construído a partir de um atendimento ofertado a um paciente diabético que apresenta uma trajetória longa e dramática de relação com seu tratamento. Diante de todo um histórico de complicações, e após mais um episódio em que esteve à beira da morte, abriu-se esse espaço para um trabalho a ser realizado sob orientação psicanalítica. Para além de todas as questões que poderiam ser levantadas acerca da atuação do psicanalista no hospital, o recorte estabelecido para nossa análise deverá centrar-se na dinâmica subjetiva passível de ser apreendida no curto tempo desse tratamento. O enfoque principal ao discutir esse caso é, pois, uma problematização quanto à contribuição que as abordagens de Freud e de Lacan acerca do diagnóstico na neurose obsessiva podem oferecer para a compreensão clínica do sofrimento subjetivo. O objetivo é discutir a condição subjetiva que se apresenta na neurose obsessiva, bem como suas estratégias frente ao desejo e ao gozo, a partir de alguns conceitos-chave destacados por Freud e por Lacan, tais como a relação subjetiva de confronto com a morte, a dívida paterna, as especificidades em relação ao gozo e sua dimensão fálica, bem como a participação de cada um desses pontos na dinâmica subjetiva do paciente.

Palavras-chave: neurose obsessiva, psicanálise, hospital, sintoma.


ABSTRACT

The present article comes from a clinical case constructed from a care offered to a diabetic patient that presents a long and dramatic trajectory of relation with its treatment. Faced with a history of complications, and after another episode in which he was near death, this space was opened for a work to be carried out under psychoanalytic guidance. In addition to all the questions that could be raised about the performance of the psychoanalyst in the hospital, the cut established for our analysis should focus on the subjective dynamics that can be apprehended in the short time of this treatment. The main focus in discussing this case is therefore a problematization as to the contribution that the Freud and Lacan approaches to diagnosis in obsessional neurosis can offer for the clinical understanding of subjective suffering. The objective is to discuss the subjective condition that presents itself in obsessional neurosis, as well as its strategies against desire and enjoyment, from some key concepts highlighted by Freud and Lacan, such as the subjective relation of confrontation with death, paternal debt, specificities in relation to jouissance and its phallic dimension, as well as the participation of each of these points in the subjective dynamics of the patient.

Keywords: obsessional neurosis, psychoanalysis, hospital, symptom.


RESUMEN

El presente artículo es oriundo de un caso clínico construido a partir de una atención ofrecida a un paciente diabético que presenta una trayectoria larga y dramática de relación con su tratamiento. Ante todo un historial de complicaciones, y tras otro episodio en que estuvo al borde de la muerte, se abrió ese espacio para un trabajo a ser realizado bajo orientación psicoanalítica. Además de todas las cuestiones que podrían plantearse acerca de la actuación del psicoanalista en el hospital, el recorte establecido para nuestro análisis deberá centrarse en la dinámica subjetiva pasible de ser aprehendida en el corto tiempo de ese tratamiento. El enfoque principal al discutir este caso es, pues, una problematización en cuanto a la contribución que los enfoques de Freud y de Lacan acerca del diagnóstico en la neurosis obsesiva pueden ofrecer para la comprensión clínica del sufrimiento subjetivo. El objetivo es discutir la condición subjetiva que se presenta en la neurosis obsesiva, así como sus estrategias frente al deseo y al goce, a partir de algunos conceptos clave destacados por Freud y Lacan, tales como la relación subjetiva de confrontación con la muerte, la deuda paterna, las especificidades en relación al goce y su dimensión fálica, así como la participación de cada uno de esos puntos en la dinámica subjetiva del paciente.

Palabras clave: neurosis obsesiva, psicoanálisis, hospital, síntoma.


 

 

Introdução

O presente artigo é oriundo de um caso clínico construído a partir de um atendimento ofertado a um paciente diabético que apresenta uma trajetória longa e dramática de relação com seu tratamento. Diante de todo um histórico de complicações, e após mais um episódio em que esteve à beira da morte, abriu-se esse espaço para um trabalho a ser realizado sob orientação psicanalítica.

Para além de todas as questões que poderiam ser levantadas acerca da atuação do psicanalista no hospital, o recorte estabelecido para nossa análise deverá centrar-se na dinâmica subjetiva passível de ser apreendida no curto tempo desse tratamento. Extraímos dessa experiência algumas elaborações que nos ajudarão a esclarecer a dinâmica subjetiva em jogo na neurose obsessiva. Nosso enfoque principal ao discutir esse caso é, pois, uma problematização quanto à contribuição que as abordagens de Freud e de Lacan acerca do diagnóstico na neurose obsessiva podem oferecer para a compreensão clínica do sofrimento subjetivo.

Apesar de elaborarmos ao final algumas considerações acerca da direção do tratamento, nosso objetivo é discutir a condição subjetiva que se apresenta na neurose obsessiva, bem como suas estratégias frente ao desejo e ao gozo, a partir de um caso clínico que nos auxiliará na elucidação acerca do modo singular com que essas condições e estratégias se apresentam na vida do sujeito.

Elaboramos, inicialmente, um breve relato do caso, para expor alguns pormenores dos atendimentos importantes para a compreensão da construção realizada. Em seguida, destacamos, com a discussão sobre a apresentação do sintoma na análise, as perspectivas de transformação em um sintoma analítico a partir da introdução da dimensão do desejo.

Sempre com foco na neurose obsessiva, discutimos sua relação com o desejo e com o gozo a partir de alguns conceitos-chave destacados por Freud e por Lacan, tais como a relação subjetiva de confronto com a morte, a dívida paterna, as especificidades em relação ao gozo e sua dimensão fálica. Os relatos extraídos do caso nos ajudarão a elucidar a participação de cada um desses pontos na dinâmica subjetiva do paciente.

 

Breve relato do caso

O Sr. José1 foi encaminhado para atendimento psicológico hospitalar, em dezembro de 2010, pela equipe médica que o acompanhava durante o período de 43 dias no qual permanecera internado no hospital de uma cidade do interior de Minas Gerais. A queixa que justificava tal encaminhamento veio explícita e em letras garrafais: paciente com risco de morrer, não adere ao tratamento.

Assim, ele passou a ser acompanhado pelo serviço de Psicologia, sendo realizadas nove sessões, até a sua alta hospitalar. Durante esses atendimentos, o Sr. José pôde trazer elementos que compunham a sua história, sempre marcada por intenso sofrimento, que será aqui brevemente relatada, em ordem cronológica.

O Sr. José nasceu em 1946, sob o que considera uma condição muito traumática. Ele inicia o relato de sua história com a seguinte frase: "É muito duro um filho crescer sem pai! Eu comecei sem pai!". Quando tinha apenas sete dias de vida, seu pai sofre um Acidente Vascular Cerebral (AVC) e falece. Com o choque, sua mãe entra num quadro de depressão, recusa-se a amamentá-lo e ele passa a ser nutrido no seio de uma cabrita recém-parida, estratégica única pensada por sua irmã mais velha como alternativa para salvá-lo.

Essa recusa lhe parece não se limitar à alimentação, mas teria perdurado pelos 30 anos seguintes, de modo que o Sr. José relata alguns episódios em que fora excluído da família: a herança da fazenda fora dividida entre os irmãos e ele ficou fora da partilha, por ser ainda bebê; além disso, sua criação e educação ficaram a cargo dos irmãos mais velhos, tendo ele que morar a cada época em uma casa diferente, com preceitos e rotinas distintos.

Aos 30 anos, o Sr. José conhece uma mulher, com a qual decide se casar. Tal intenção fora duramente rechaçada por sua mãe, que ele afirma ser racista e que, por isso, não aceitara que ele se casasse com uma negra. Ao fazer valer a sua escolha, casando-se com essa mulher, a família do Sr. José passa a excluí-lo, esquivando-se de comparecer ao casamento e de visitá-lo posteriormente em seu lar.

No que concerne à sua vida escolar e profissional, o Sr. José estudou somente até a quarta série do Ensino Fundamental e trabalhou durante toda a vida numa única atividade, a descarga de carvão que abastecia os fornos de fundição de ferro gusa na indústria metalúrgica.

O trabalho, segundo ele, era pesado, com escala de horários alternados e pouco tempo disponibilizado para a alimentação, o que ele pontua como sendo a condição desencadeadora de "sua doença", Diabetes Mellitus Tipo II.

Aos 42 anos, trabalhando oito horas diárias na descarga de carvão e tendo apenas 15 minutos para o almoço, ele relata que comia uma marmita cheia de arroz com feijão, seguida de rapadura, "para dar sustância". A esse hábito ele atribui o aparecimento do quadro.

Em 2010, ano em que ocorrera a intervenção, com 65 anos, o Sr. José travava uma luta contra essa doença e, a partir dela, parecia confrontar-se com a morte amiúde e paulatinamente. Já se passaram 23 anos desde o desencadeamento do diabetes. O Sr. José enfatiza que esse trajeto se deu de forma bastante conflituosa, na medida em que ele se recusava a aderir ao tratamento, tendo este que ser cada vez mais ampliado e, por conseguinte, mais penoso para seu corpo.

O Sr. José conta que, no início do tratamento, aderiu à dieta alimentar somente nos seis primeiros meses, pois chegou a ficar cego em decorrência do diabetes e queria recuperar a visão. Após voltar a enxergar, ele conta que foi "relaxando" com a alimentação: "comia muito arroz, pois sentia fome demais, e bebia cerveja".

No início, fazia uso de apenas uma medicação via oral. Após cinco anos de tratamento, já havia perdido o peso considerável de 12 quilos e necessitava de mais medicamentos. Após dez anos, já havia perdido mais 20 quilos e precisava tomar cerca de 16 comprimidos por dia. Aos 56 anos, já havia perdido 50 quilos dos 105 anteriores à doença, de forma que seu corpo, agora com 55 quilos, não mais resistia às infecções, o que o levava a recorrentes internações hospitalares.

Com a evolução do quadro clínico, em 2010 os rins apresentavam dificuldade para filtrar o sangue e surgiram também comprometimentos cardíacos, com um quadro de hipertensão arterial, o que ocasionou a prescrição de mais medicamentos e uma tentativa malograda de supressão do consumo de proteínas, principalmente a carne.

Nesse período, contrariando a dieta, Sr. José passara a comer carne compulsivamente e, por conseguinte, desenvolveu uma nefropatia diabética, doença renal progressiva comum em casos não tratados de diabetes. Precisou, então, realizar tratamento hemodialítico, em sessões de quatro horas, três vezes por semana. Com a hemodiálise, o caso se revertera: agora Sr. José precisava comer carne para evitar anemia e, na contramão da prescrição, ele passa a se esquivar desse alimento, voltando-se para a compulsão de sal, o que o colocava em risco por reter líquido no corpo, que não conseguia extirpar tal quantidade nem mesmo com a hemodiálise. Enfim, era o desejo pela privação.

A causa atribuída pelos médicos a essa piora gradativa do quadro clínico era a resistência ao tratamento: não aderia à dieta prescrita (comia compulsivamente), não tomava as medicações no horário indicado e não praticava atividades físicas.

Esses impasses e conflitos em relação ao tratamento são de bastante interesse para a compreensão da dinâmica subjetiva desvelada pela análise. Chama-nos a atenção a repetição de certa compulsão em direção aos alimentos proibidos e a recusa à medicação: no início, ele se alimenta compulsivamente e não adere à medicação; depois, já com complicações renais graves, come carne compulsivamente e também não adere à medicação; por fim, desrespeita a proibição da hemodiálise e bebe água compulsivamente, ainda não aderindo à medicação.

Com isso, sucessivamente o Sr. José vai ao encontro da morte, sendo registrados, até o ano de 2010, dezenove episódios de coma, seja devido a surtos de hiperglicemia, em decorrência da alimentação exagerada, ou por sua glicose estar baixa demais, em decorrência de medicação exagerada, ou, ainda, por ele ter se "afogado" pelo excesso de água no pulmão, em decorrência de consumo de líquido exagerado. Enfim, seu dilema não é apenas desviar-se ligeiramente do caminho: o Sr. José conta que exagera, e exagera repetidamente.

 

Condições obsessivas: do sintoma ao desejo

O que leva o Sr. José a repetir reiteradamente essas atitudes de não aderir ao tratamento, que o deixam tão cara a cara com a morte? O que ele ganha ao expor-se tanto assim a esse risco fatal? O que nutre essa compulsão por se alimentar exageradamente, e com isso entrar tantas vezes em coma? Ou, por outro lado, a que ele se apega para permanecer vivo?

Muitas dessas questões já surgiam antes, não só para o paciente, mas também para a família e para a equipe médica. Formulá-las em análise, entretanto, tem o efeito de se preservar um espaço vazio de resposta, onde algo do sujeito pode emergir. Para este artigo, nossa proposta é abordar tais questões a partir da demarcação de uma posição básica que estrutura o encontro subjetivo com os sintomas e os acontecimentos que acometem o corpo.

Esse caso parece ilustrar um funcionamento compatível com o da neurose obsessiva, de modo que levantamos essa hipótese diagnóstica no decorrer do tratamento. Para sustentá-la, exporemos alguns pontos que caracterizam a neurose obsessiva, de acordo com Freud e Lacan, para, a partir daí, verificar a forma singular como o Sr. José põe em jogo a sua estrutura, o seu modo de gozo.

Alguns fragmentos dos relatos do Sr. José serão úteis para balizar a construção de nossa análise. Tomemos, então, primeiramente, a forma como ele descreve o motivo pelo qual supõe que lhe foi indicado que buscasse atendimento no serviço de Psicologia: "Deve ser porque eu morri ontem". Ao ser questionado sobre o que aconteceu, ele explica melhor: "Eu tive uma crise de glicose ontem, ela foi a 282, e eu entrei em coma. Depois meu coração parou, e se não fosse o 'anjo da guarda' da enfermeira, eu teria morrido. Fiquei dois minutos morto, mas São Pedro não quis ficar comigo e me mandou de volta! E eu voltei!".

Solicitado a falar mais sobre essa experiência de ter ficado frente a frente com a morte, ele ainda acrescenta: "Eu já estou acostumado. Já morri e voltei tantas vezes... tô igual ao Chicó3: tô vivo, tô morto... tô morto, tô vivo!".

Indagado sobre essas "tantas mortes", ele afirma que, por várias vezes, já esteve em risco de morte, inclusive além das dezenove situações de coma em decorrência do diabetes. Relata, nesse momento, um acidente aos 33 anos, em que teve a perna decepada por uma peça de madeira que cortava com uma serra elétrica e ficou em iminência de morte por quinze horas, até que um médico se habilitasse a lhe reimplantar o membro. O Sr. José pontua que, naquele dia, só "não desistiu de querer viver" porque ele tinha duas filhas, uma com dois anos e a outra com dois meses de idade, e pensou na vida difícil que elas levariam sem um pai. Daí ele completa: "É muito difícil ser filho sem pai. Eu fui, eu sei! Eu não queria que as minhas filhas passassem pelo que passei".

Pois bem, nesses dois relatos já temos presentes três elementos cruciais que Lacan (1960/1998; 1957-1958/1999) destaca na dinâmica subjetiva do obsessivo: a morte, como elemento central de confronto subjetivo; o pai (morto), evocado como ausente já em suas primeiras falas dirigidas à analista; e a dívida (herdada desse pai morto), entrevista na atitude de saldar, em relação a suas próprias filhas, a falta que o pai lhe fez.

Importa-nos aqui verificar como esses elementos se articulam. Para delinear essa construção teórica, evocaremos brevemente como a neurose obsessiva foi apresentada por Freud, mas nos ateremos a uma parte específica do ensino de Lacan, com as formulações do texto "Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano", de 1960; e do Seminário 5, de 1957-1958, nas quais ele trata acerca do obsessivo e seu desejo, dos circuitos do desejo (em que aborda o sintoma e o grafo do desejo no circuito do obsessivo), trata de uma saída pelo sintoma e aborda a relação do obsessivo com a morte. Bordejaremos alguns dos operadores da neurose obsessiva percebidos no caso em análise, a saber: o sintoma, o gozo, a morte, a dívida paterna, o significante fálico e o desejo. É em torno desses pontos que cogitamos terem sido organizadas as estratégias do Sr. José que lhe permitiram seu posicionamento subjetivo.

Pois bem, a neurose obsessiva foi inicialmente tratada por Freud nos anos de 1894-1895 (Laplanche, & Pontalis, 1982/2001, p. 314). Foi, porém, a partir do caso do Homem dos Ratos que Freud aprofundou sua compreensão acerca da formação dos sintomas e de sua relação com o inconsciente. Ele aborda a neurose obsessiva como um dialeto do qual a histeria seria a língua mãe. ao delimitar as peculiaridades do discurso do neurótico obsessivo, "que se refere com mais proximidade às formas de expressão adotadas pelo nosso pensamento consciente do que a linguagem da histeria" (Freud, 1909/1996, p. 160).

Freud (1909/1996) também sublinhou, na neurose obsessiva, as fantasias de onipotência, a compulsão à repetição e os mecanismos de defesa, ressaltando que o sintoma, nessa neurose, adota a forma de raciocínios, mesmo que sejam supersticiosos ou mágicos, diferentemente da histeria, em que o sintoma assume uma forma muitas vezes corporal. É pela via do raciocínio e das ruminações que Lacan (1957-1958/1999, p. 424) propõe que se farão presentes as exigências do supereu.

Pensemos, então, na lógica do sintoma obsessivo. Lacan (1957-1958/1999) chama a atenção para o fato de a neurose não ser idêntica a um objeto, um parasita estranho à personalidade do sujeito, é uma estrutura analítica que está em seus atos e suas condutas. Sendo assim, ela não é feita apenas de sintomas decomponíveis em seus elementos significantes e nos efeitos de significado desses significantes. O conjunto do comportamento obsessivo é estruturado como uma linguagem e o seu sintoma é, desse modo, o aprisionamento do desejo numa funcionalidade.

Lacan (1957-1958/1999) lança então a seguinte interrogação: o que o sintoma quer dizer? Ao que responde?

O sintoma é uma significação, é um significado. Está longe de concernir unicamente ao sujeito, mas sua história, toda a sua anamnese está implicada nele. É por essa razão que podemos legitimamente simbolizá-lo nesse lugar por um pequeno s(A)4, significado do Outro, vindo do lugar da fala. Mas o que Freud também nos ensinou é que o sintoma nunca é simples, é sempre sobredeterminado. Não há sintoma cujo significante não seja trazido de uma experiência anterior. Essa experiência está sempre situada no nível onde se trata do que foi reprimido. [...] A partir do momento em que Freud começa a articular o que é o sintoma, o pano de fundo do significante em relação ao significado é implicado por ele na formação de qualquer sintoma (Lacan, 1957-1958/1999, p. 477).

Figura 1 - Grafo 2
Fonte: Lacan, 1960/1998, p. 822

O que Lacan nos mostra é que o sintoma nos é apresentado em seu estado bruto como uma soma de significados que lhe advém do Outro no decorrer de sua história. Assim, ao encontrarmos um sintoma obsessivo bruto, encontramos algo que nos fala, acima de tudo, de toda sorte de empecilhos, inibições, bloqueios, medos, dúvidas e proibições (Lacan, 1957-1958/1999, p. 423).

No caso do Sr. José, esse sintoma se apresentou não lapidado, querendo se referir a algo como: "Eu não consigo aderir ao tratamento!". Na verdade, nesse primeiro contato, não houve a formulação explícita do Sr. José quanto ao desejo de se livrar desse sintoma, posto que este só foi suscitado a partir de uma demanda do Outro (saber médico).

É importante salientar, ainda, que o próprio tratamento é uma significação médica que lhe é ofertada para o seu sofrimento. Será que esse "eu não consigo aderir ao tratamento" não poderia significar um perigoso "eu não quero aderir ao tratamento"? A demanda do Outro encarnado no saber médico era a de que ele se adaptasse a um sintoma ao qual resistia.

Há uma expectativa médica de transformar em um sintoma esse gozo que o arrasta para a morte. No sintoma, o gozo ganha um significado que o contém. Como propõe Gazzola (2005, p. 31) "O sistema significante vai assim limitar esse gozo muito invasor e desmesurado... sem entretanto conseguir recobri-lo completamente".

Lacan (1960/1998, p. 834) afirma que a única justificativa para se propor uma análise é quando a pessoa demanda livrar-se de um sintoma, e isso não ocorreu no início dos atendimentos ao Sr. José. Não obstante, logo na primeira sessão, ele apresentou uma série de empecilhos para não aderir ao atendimento analítico no hospital, tais como a possibilidade de alta e, assim, a impossibilidade de comparecer ao serviço para o tratamento.

Ao longo dessa primeira sessão, também teceu uma série de empecilhos, inibições, bloqueios, medos, dúvidas e proibições que permearam sua história, o que vinha compor o conjunto de significados relativos ao seu sintoma. Falou dos empecilhos que teve para começar a aderir ao uso de insulina, já que trabalhava na usina siderúrgica, sob intenso calor, onde não era possível acondicionar o medicamento resfriado. Falou do medo que tinha de morrer e deixar suas filhas abandonadas, sem pai. Falou das dificuldades que sentia em ser proibido de consumir carne, doce, água, etc. Falava com grande comoção sobre a que considerava a pior de suas privações: "Eu não consigo me controlar. Imagina só, eu só posso beber um copo de água por dia, mas ninguém percebe que eu sou um ser humano normal, como qualquer outro, eu sinto sede, eu não sou cachorro, eu sinto falta de água".

Por se tratar de um ambiente hospitalar, em que o atendimento não visa, em princípio, desmontar a matriz fundamental da fantasia que sustenta o sintoma - pelo simples motivo de que o paciente em breve receberá alta e não poderá dar continuidade ao tratamento -, podemos dizer que seria possível apenas lançar algumas interrogações capazes de introduzir um primeiro questionamento da posição do sujeito em relação a essa falta que o subjuga a uma condição sub-humana.

Lacan (1960/1998, p. 829-831) nos mostra que a demanda de análise é correlata à transformação do sintoma bruto em um sintoma analítico. Na condição inicial, o sujeito se apresenta ao analista para queixar-se de seu sintoma como uma condição dada e perfeitamente consolidada em sua história, mas isso por si só não basta. É preciso que o analista propicie que essa queixa inicial, endereçada a ele, passe do estatuto de resposta ao estatuto de questão para o sujeito, para que este seja instigado a decifrá-lo. "Che vuoi? Que queres?", nos ensina Lacan (1960/1998, p. 829), é a questão que introduz a dimensão do desejo. É com essa interrogativa que o analista levará o sujeito a questionar o sintoma, a fim de saber a que ele responde, ou que gozo vem delimitar.

No caso de um paciente obsessivo, que se apresenta ao analista com um sintoma que o faz sofrer, é preciso que esse sintoma, que é um significado para o sujeito, readquira sua dimensão de significante, implicando o sujeito e o desejo.

Assim, o sintoma é elevado ao estatuto de enigma, provocando o que Lacan (1969-1970/1992, p. 31) chama de "histerização do discurso", já que o que será posto em evidência é a divisão do sujeito ($). Antes dessa retificação subjetiva, o sujeito não se responsabiliza por seu sintoma e seu discurso vem truncado, sem muita possibilidade de ressignificação. Quando o sintoma faz enigma, ele responsabiliza o sujeito pela sua condição ou, pelo menos, pelo modo como se posiciona frente às intempéries de sua história. O paciente passa a se permitir fazer este questionamento: "Afinal, o que quero?".

Mesmo diante de situações tão dramáticas, como as advindas das complicações do quadro diabético, é possível abrir um espaço para que o paciente se pergunte o que quer dizer com suas reações, com suas recusas ao tratamento, com seus conflitos, para além de forçá-lo a que aceite calado o seu destino e as prescrições e proibições inexpugnáveis oriundas de sua enfermidade.

Transformar o sintoma em um sintoma analítico é, pois, correlativo à emergência do desejo. Então, qual é essa relação do sujeito com o desejo?

Lacan (1957-1958/1999, p. 417), ao tratar desse problema, afirma que um discurso obsessivo pode constituir-se diante do caráter evanescente do desejo, que é sempre o desejo do Outro, na medida em que este é o lugar de onde o significante lhe apresenta os limites interpostos ao gozo.

Para Lacan, desejo é sempre falta, e insatisfação reiterada pelos desencontros com os objetos, sempre inadequados para preencher essa falta. Nesse sentido, qualquer forma de satisfação comporta sempre uma limitação. É isso que significa o gozo fálico em Lacan: um gozo sempre marcado pelas limitações advindas de sua regulação simbólica.

Para defender-se, pois, da impossibilidade de realização do desejo, o obsessivo, segundo Lacan (1957-1958/1999, p. 427), faz dele um desejo proibido. Faz com que ele seja sustentado pelo Outro, precisamente pela proibição do Outro, constituída como obstáculo. Não obstante, essa maneira de fazer o desejo ser sustentado pelo Outro é ambígua, porque um desejo proibido nem por isso significa um desejo sufocado. Pelo contrário, a proibição está ali para alimentar o desejo.

 

Estratégias obsessivas: posições diante do desejo e do gozo

A partir de uma leitura criteriosa da obra freudiana, Lacan (1957-1958/1999) nos adverte de que o que caracteriza o obsessivo é a capacidade de pensar, mas com a particularidade de que ele pensa para si mesmo e para anular o desejo do Outro. O obsessivo, nos diz Lacan (1957-1958/1999, p. 427), "tal qual a histérica, necessita de um desejo insatisfeito, isto é, de um desejo para além de uma demanda". Mais adiante, ele complementa: "Toda a estrutura do obsessivo é determinada, como tal, pelo fato de a primeira abordagem de seu desejo haver passado, como em qualquer sujeito, pelo desejo do Outro, e de esse desejo do Outro ter sido inicialmente destruído, anulado" (Lacan, 1957-1958/1999, p. 479). Essa anulação do desejo, entretanto, não esconde a fragilidade das barreiras erigidas contra o gozo, que pode tornar-se invasivo.

Como essa situação se apresenta no caso do Sr. José? Sempre ressoa em seu discurso algo que se refere à compulsão pelos alimentos, mediante a privação. E isso ele faz questão de deixar claro:

Eu só quero o que é proibido. Quando eu não podia comer carne, sonhava com carne a noite inteira. Até que teve um dia em que pus seis pedaços de carne no prato e meu rim parou de vez. É sempre assim, se eu posso, eu não quero, se eu não posso, eu quero. Eu sei disso, mas não adianta saber. Antes não tomava café, enjoei mesmo; agora, que não posso beber líquido de espécie nenhuma, fico doido se não bebo café de manhã, e tem que ser com açúcar, pois não aguento mais adoçante. Daí eu afogo na água do pulmão, a glicose sobe, e entro em coma. [...]. Não sei o que acontece, eu sei que eu não posso, mas é mais forte do que eu...

Por um lado, não tem nada de extraordinário nesse desencontro entre o desejo e suas possibilidades neuróticas de satisfação. O apóstolo Paulo, nos primórdios da era cristã, já dava um testemunho parecido, quando dizia, no capítulo 7 da epístola aos Romanos: "o que quero isso não faço, mas o que aborreço isso faço", a exemplo também do que apontava Lacan (1958-1959/2013) quando dizia que "o obsessivo é alguém que nunca está verdadeiramente ali no lugar onde está em jogo algo que poderia ser qualificado de seu desejo" (p. 505-506, tradução nossa5.

Por outro lado, parece bem peculiar o modo como a lei se apresenta para interditar o gozo ao paciente, como uma lei sempre excessiva, que vai além dos limites interpostos para todos. Pode-se conjecturar, então, que talvez não seja tanto pela vertente do desejo do Outro que se possa elucidar sua posição, mas do gozo do Outro. O desejo se inscreve a partir da incidência da lei simbólica que adquire certo caráter genérico de universalidade. Nesse caso, entretanto, um gozo invasivo parece retornar de forma avassaladora, como se o efeito da incidência da lei fosse inverso: em vez do recalque do desejo, o surgimento de uma compulsão impassível de inibição, para usar os termos de Freud (1896/1996) na "Carta 52".

O problema é que esse Outro não o castra apenas simbolicamente, mas o priva no real. Ou, em outros termos, essa privação não chega a assumir um caráter simbólico. A privação real de um objeto simbólico é, segundo Lacan (1956-1957/1995), empreendida por um agente imaginário (a morte). É o fantasma da morte, como senhor absoluto, que assombra o tempo todo a relação que o Sr. José estabelece com o gozo. Essa morte que já aparece no início do relato como sendo o que lhe tirou o seio da mãe, obrigando-o a mamar nas tetas de uma cabrita. Independentemente da veracidade dessa condição, dado que se considera a realidade subjetiva na escuta analítica, a falta para o Sr. José não aparece como uma proibição simbólica, mas como uma privação real, e isso é muito significativo.

No caso do Homem dos Ratos, o capitão cruel parece encarnar esse fantasma do Outro ao perpetrar um suplício que desperta o horror do paciente. De acordo com Gazzola (2005), isso resulta, para o paciente, na intrusão de um gozo insuportável. Ele destaca, nesse sentido, que "o gozo desempenha um papel especial na economia do sujeito obsessivo: gozo experimentado como excessivo e estrangeiro ou, então, gozo que lhe é subtraído" (Gazzola, 2005, p. 41). Ao apresentar-se frequentemente como uma ameaça concreta à sua vida, as interdições resistem a uma simbolização, deixando transparecer a angústia do confronto com a morte como esse Outro absoluto, não dialetizável.

Uma outra fala do paciente demarca o caráter dramático dessa condição de privação que sua doença lhe impõe e que lhe subtrai o gozo:

Minha filha pôs uma lista na parede do meu quarto sobre tudo o que eu não posso comer. É um suplício acordar todo dia cedo e ver aquele testamento na parede, mas eu tenho que obedecer, pois ela sabe o que eu posso comer. E depois, pego meus 23 comprimidos da manhã. Vou tomar com o quê? Outro dia o médico disse que eu não podia tomar água, e eu perguntei pra ele: "Com o que eu vou tomar os 40 comprimidos do dia? Com farinha?" Mas tá certo... ele é quem sabe das coisas, ele é médico.

Pelo final de sua fala, o médico parece encarnar em alguns momentos esse capitão cruel que vem lhe infligir um tratamento supliciante. O significante utilizado pelo Sr. José não deixa de nos remeter ao próprio suplício do Homem dos Ratos que, na análise de Freud, também vinha se colocar como essa versão imaginária de um pai mortífero, que goza com o sofrimento do sujeito.

É possível, pois, dizer que Sr. José responde obsessivamente, mas é também nesse ponto que sua obsessividade difere de qualquer outra. Se, por um lado, ele tenta resolver a questão do esvaecimento de seu desejo fazendo dele um desejo proibido, utilizando a proibição do Outro como desculpa para anular-se em seu desejo, por outro lado esse artifício não impede que um gozo intrusivo e mortífero retorne como resultado dessa operação.

Ainda que Sr. José seja capaz de admitir esse gozo intrusivo que se apresenta nas compulsões, como obsessivo, ele não mantém uma relação com seu desejo senão à distância. Lacan (1957-1958/1999, p. 479) salienta que "o que tem que ser mantido pelo obsessivo é a distância de seu desejo, e não a distância do objeto". Nesse sentido, ele pode perfeitamente admitir a compulsão em relação a alguns objetos proibidos, pois, na compulsão, ele é antes assujeitado do que sujeito: "é mais forte que eu", é mais forte que je como o sujeito que, para Lacan (1958/1998), deveria advir frente aos impulsos do isso.

É na "praça forte do seu eu que o obsessivo se situa para tentar encontrar o lugar de seu desejo" (Lacan, 1957-1958/1999, p. 499), o que significa um reforço da própria imagem para suprimir a distância em relação ao que o Outro supostamente lhe demanda. E é no espaço virtual, nos diz Lacan, entre o apelo da satisfação e essa demanda do Outro que o desejo ocupa seu lugar e se organiza. Nos Escritos, Lacan (1958/1998) trata novamente de correlacionar a demanda com o desejo, ao afirmar que

[O desejo] se produz para-além da demanda, na medida em que, ao articular a vida do sujeito com suas condições, ela desbasta ali a necessidade, mas também ele se cava em seu para-aquém, visto que, como demanda incondicional da presença e da ausência, ela evoca a falta-a-ser sob as três figuras do nada que constitui a base da demanda de amor, do ódio que vem a negar o ser do outro e do indizível daquilo que é ignorado em seu pleito (Lacan, 1958/1998, p. 635).

Ao queixar-se de ser tratado como um cachorro, o Sr. José parece justamente evocar uma dessas figuras do nada a que ele se sente reduzido, não somente na condição atual de privação, mas já desde sua origem. A figura do cachorro aqui não parece uma replicação de sua imagem ao mamar nas tetas da cabrita, que marca a exclusão de sua existência como humano? O não reconhecimento de sua humanidade não implica justamente já estar morto no nível simbólico?

Lacan (1957-1958/1999, p. 497) salienta que o que está no horizonte do obsessivo é uma demanda de morte. Assim como o sujeito histérico tem como questão central sua posição no universo da sexuação - "sou homem ou sou mulher?" -, para o sujeito obsessivo, a questão é existencial: "Estou vivo ou estou morto?" (Quinet, 1991/2002, p. 25). Pois o Sr. José parece estar sempre às voltas com essa questão, como ele mesmo indica ao comparar-se ao personagem Chicó. Parece dar mostras quanto a tal dúvida pelo seu jeito de funcionar no mundo.

Para Lacan (1957-1958/1999), algo de certa demanda de morte parece sempre tornar-se presente para o obsessivo. Ele esclarece, porém, que:

Demanda de morte não é, pura e simplesmente, tendência mortífera. Trata-se de uma demanda articulada e, pelo simples fato de ser articulada, ela não se produz no nível da relação imaginária com o outro, não é uma relação dual, mas visa, além do outro imaginário, seu ser simbolizado, e é também por isso que ela é pressentida e vivida pelo sujeito em seu retorno. É que o sujeito, por ser um sujeito falante, e unicamente por essa razão, não pode atingir o Outro sem atingir a si mesmo, de modo que a demanda de morte é a morte da demanda (Lacan, 1957-1958/1999, p. 513).

Podemos destacar, nesse ponto, mais uma especificidade do caso em análise. Não parece existir aqui algo de problemático na simbolização dessa demanda de morte? Para o Sr. José, essa demanda não se resolve no campo simbólico, por onde ela se transformaria numa morte da demanda, mas deixa sobreviver certa tendência mortífera. Não quer dizer, no entanto, que esse ponto destacado por Lacan não se aplique ao presente caso. A questão é que, além da demanda obsessiva característica, nesse caso parece haver uma invasão de gozo, que poderia fazer com que esse conflito, essa relação imaginária despontasse com maior força.

De toda forma, para além das compulsões destacadas diante da situação de privação, os dezenove episódios de coma mostram ainda um outro aspecto desse laço obsessivo com a morte. A exemplo do que se mostra nesse caso, Lacan considera que o que está no horizonte do gozo do obsessivo é a morte. "Mas a morte", indica Lacan, (1960/1998, p. 824), "justamente por estar impressa na função do desafio, [...] mostra, ao mesmo tempo, o que é elidido tanto de uma regra prévia quanto do regulamento conclusivo. Pois é preciso, afinal de contas, que o vencido não pereça, para que se produza um escravo".

Essa pista pode nos ajudar a elucidar certa posição de gozo desse sujeito, fixado por sua fantasia, e que sustenta o seu sintoma, esse sintoma que sempre o coloca diante da morte. Alguns significantes permeiam com muita frequência a fala do Sr. José, tais como "eu não posso", "dependo do remédio", "o médico é quem sabe", "eu tenho que controlar", mas, o mais pungente, sem dúvida, é o significante "morte". É possível entrever em seu relato certo orgulho por ter enfrentado a morte tantas vezes, como se essa fosse sua forma de certificar-se de que está vivo.

A analista, nesse caso, é por ele colocada nesse lugar descrito por Lacan (1957-1958/1999, p. 431) do espectador "que contabiliza os golpes e que dirá sobre o sujeito: Decididamente [...], ele é um durão!". Se, por um lado, o paciente se coloca diante da morte nessa posição de desafio, essa sensação subjetiva de vencer a morte não é de modo algum incompatível com a posição de submissão que é própria ao escravo.

Lacan (1957-1958/1999, p. 507) afirma que a agressividade parece ser um elemento fundamental no horizonte de toda demanda do sujeito obsessivo, criando obstáculos "à articulação de sua demanda por ele". Essa agressividade, porém, mascara uma outra, menos agradável: a agressividade do escravo, que responde à frustração de seu trabalho com um desejo de morte (Lacan, 1953/1998, p. 251). No caso do Sr. José, quão agressivos podem ser considerados os seus atos! Beber água, amiúde, até se afogar no líquido do pulmão, comer compulsivamente, até entrar em coma devido à glicose atingir a medida de >999 mg/l de sangue (o máximo mensurável), tais ações ilustram bem a expressão dessa agressividade, que se resolve em um pungente anseio de morte.

Embora essa agressividade acabe voltando-se contra o próprio sujeito, Lacan sugere que essa demanda de morte, no obsessivo, estaria ligada a certa relação especular destrutiva com o Outro e, em primeiro plano, com o desejo do Outro como um ponto que permite ao próprio sujeito se articular (Lacan, 1957-1958/1999, p. 497). A referência aqui é a dialética hegeliana do Senhor e do Escravo que, no seminário sobre o mito individual do neurótico, é articulada por Lacan (1952/2008) à mediação da morte como o Senhor absoluto.

O paradoxo destacado é o mesmo que podemos vislumbrar no presente caso clínico: ao mesmo tempo que o confronto com a morte destaca a dimensão da agressividade que coloca o sujeito em risco, também é um meio para a obtenção de reconhecimento. Mas, para que a dialética desse confronto mortal, que Lacan (1952/2008, p. 43) qualifica como uma "luta por puro prestígio", possa desenvolver-se, "é preciso que a morte não se realize, pois o movimento dialético cessaria por falta de combatentes, é preciso que ela seja imaginada. Com efeito, é da morte, imaginada, imaginária, que se trata na relação narcísica".

É preciso, entretanto, não confundir essa atribuição imaginária com uma desvalorização da experiência. As reiteradas situações de coma e outros riscos de morte vêm justamente suplementar a consistência imaginária desse fantasma da morte que assola todos nós, de modo que se torna difícil para o sujeito escapar de ser apreendido por esse confronto.

Lacan (1957-1958/1999, p. 428) também acentua que o obsessivo está sempre pedindo alguma permissão. E pedir permissão é, justamente, ter como sujeito uma certa relação com a própria demanda, é colocar-se na mais extrema dependência do Outro, que funciona como espectador. Recusa e permissão implicam-se mutuamente. Embora o confronto subjetivo remeta ao imaginário, ele não é sem essa relação com aqueles que ocupam o lugar de Outro para o sujeito. São, aliás, os próprios confrontos com essas figuras que reeditam os termos da luta. Nesse sentido, o Sr. José parece proceder exatamente assim: ele pede permissão a todos que o cercam quanto ao que deve ou não ingerir, ao mesmo tempo que escamoteia essa autorização, recusando qualquer forma de intervenção que vise a ajudá-lo a cumprir as regras ou demandas apresentadas.

O objetivo essencial é, com certeza, a manutenção do Outro (Lacan, 1957-1958/1999, p. 432), a quem o sujeito se submete na posição de escravo. Assim, a ideia da relação com o outro é sempre solicitada por um deslizamento que tende a reduzir o desejo à demanda (Lacan, 1957-1958/1999, p. 428). "O que o obsessivo quer manter, acima de tudo, sem dar a impressão disso, com um jeito de quem almeja outra coisa, é esse Outro onde as coisas se articulam em termos de significante" (Lacan, 1957-1958/1999, p. 431-432). Da lista de restrições exibida na parede às prescrições dos 40 comprimidos, tudo isso pode ser tomado como razões para sua omissão quanto ao desejo.

Para manter então o Outro nesse lugar, instituindo-o como um Grande Outro inteiro, o obsessivo recorre a uma outra estratégia, que é destacada por Gazzola (2005, p. 65) nesses termos: "O obsessivo tem necessidade de uma garantia do lado do saber, postulando o Outro como aquele que sabe". Para o Sr. José, o Outro sabe tudo sobre seu corpo; os médicos, enfermeiros, nutricionistas, todos sempre detinham um saber completo e irrefutável sobre o que o acometia: "Com o que eu vou tomar os 40 comprimidos do dia? Com farinha? Mas tá certo... ele sabe das coisas, ele é médico". Por mais que diante da analista se permita imputar, com um pouco de ironia, certa incoerência ao Outro, a conclusão ainda assim destaca sua impotência diante desse Outro do saber.

Lacan também nos alerta que o encontro do desejo do sujeito como desejo do Outro está sujeito a acidentes, e é nisso, segundo ele, que se vê funcionar o significante falo no sujeito colocado em condições atípicas (Lacan, 1957-1958/1999, p. 496). A relação do obsessivo com a imagem do outro consiste, precisamente, no falo significante, na medida em que ele está sempre ameaçado de destruição por estar preso numa denegação de encontrá-lo na relação com o Outro. Lacan (1957-1958/1999, p. 500) afirma:

Em todo obsessivo, homem ou mulher, vocês sempre verão surgir, num momento de sua história, o seu papel essencial na sua identificação com um outro, um semelhante, um colega, um irmão pouco mais velho, um companheiro contemporâneo que, na totalidade dos casos, tem em seu favor o prestígio de ser mais viril, de ter o poder. O falo aparece aqui não sob sua forma simbólica, mas imaginária. Digamos que o sujeito se complementa com uma imagem mais forte do que ele, uma imagem de potência.

De fato, não há nenhum prestígio no confronto com o outro, se ele não se mostra à altura. No caso do Sr. José, essa imagem potente se presentifica a todo instante, seja no médico que o atende - tudo o que este diz para ele é lei, ainda que uma lei a ser burlada -, seja nos relatos, por exemplo, em que ele se refere ao irmão mais velho, a quem ele considera como o "pai" que o criou. Sempre esse irmão, já falecido, vem à tona quando o Sr. José precisa se valer de uma posição fálica. Como em sua resposta a um questionamento em relação ao tabagismo:

Parei de fumar quando decepei a perna, e o médico me mandou parar, senão o buraco não cicatrizaria. Ainda bem que parei, senão já estaria morto numa hora dessas. Fumei desde os 17 anos, e comecei escondido do meu irmão. Um dia, ele me viu com um cigarro na boca e me mandou apagar. Disse que eu não tinha pai, era criado por ele, e só ia fumar quando tivesse dinheiro pra sustentar meu vício. Eu quase engoli o cigarro, de tanta vergonha. Meu irmão era um bitelo de homem alto, forte, bravo, e o que ele falava era lei. Quando fiz 18 anos e arrumei um emprego na carvoeira, a primeira coisa que fiz com o primeiro salário foi comprar oito pacotes fechados de cigarro. Fumei um maço inteirinho de uma só vez, pois agora tinha como sustentar meu vício. Fumava três maços de cigarro por dia, mas nunca mais fumei com meu irmão. Fumava do lado dele, mas não aceitava cigarro que ele me oferecia. O que ele me falou naquele dia virou lei, obedeci pro resto da vida.

Esse relato nos remete a toda a questão levantada por Freud em relação à dívida simbólica. Um imperativo, um dever que é associado à lei, mas como um dever subjetivo. Sua permissão para gozar é, então, condicionada ao pagamento de uma dívida simbólica, como no imbricado caso dos óculos do Homem dos ratos. Gazzola (2005, p. 64) destaca que essa dívida ele herda do pai, "tentando pagá-la em seu lugar, expiar sua falta. O pai, desembaraçado de seu pecado, poderia então ter acesso ao lugar de pai simbólico".

Se o pai lhe faltou desde muito cedo, o Sr. José assume essa dívida impondo-se o dever de não faltar em relação às próprias filhas. Mas essa imposição de não deixar aparecer a falha paterna se reedita a partir da fala do irmão, que se coloca para ele como o substituto do pai e cuja fala presentifica o fantasma do pai que o proíbe de gozar. A proibição não é suspensa senão mediante a assunção de um símbolo fálico que o coloque à altura desse irmão: o salário como signo de certa independência que nunca se consolida. A simples aceitação de um cigarro vindo desse irmão já seria suficiente para colocá-lo novamente na posição de devedor, de alguém que perdeu sua potência fálica.

Segundo Lacan (1957-1958/1999, p. 418), o falo significa, para o sujeito, seu auge, seu ponto de equilíbrio. É o significante por excelência da relação do homem com o significado e, em vista disso, acha-se numa posição privilegiada. Gazzola (2005, p. 28) afirma que a representação do sujeito pelo viés do falo, ou identificação fálica, repousa inteiramente sobre uma falta. Em matéria de falo, afirma ele, "não há totalidade possível". Mesmo assim, o obsessivo "imprime, sobre cada objeto de seu mundo, um significante carregado de valor fálico" (Gazzola, 2005, p. 38), talvez como forma de saldar essa dívida impagável.

Ao se valer da função fálica, o obsessivo funcionaria, na ilustração de Gazzola (2005, p. 29), como um contrabandista, pois ele deixaria no campo do Outro o gozo que não pode importar para si, dada a alfândega da castração, e, em contrapartida, experimentaria esse gozo de forma intrusa, estrangeira (e em excesso), no seu corpo.

O relato descrito acima vem corroborar esse raciocínio, em que o Sr. José se vale da função fálica para permitir-se acessar o gozo, por contrabando, ao afirmar que só fuma porque agora ele pode sustentar o vício. O Sr. José, face ao mistério do gozo, tenta torná-lo mais manejável pela via do falo, mas este, por sua própria condição de fragilidade, por estar constantemente ameaçado, não é suficiente para evitar seu caráter intrusivo e compulsivo. Vemos esse gozo por contrabando tornar-se excessivo não apenas nessa situação do excesso de cigarros, mas também no excesso de água e de carne quando estão proibidos.

A função fálica se introduz assim, na teoria lacaniana, no coração da identificação, e a partir do gozo. Em outras palavras, ela traduz a tomada em consideração da incidência do significante sobre o gozo. O falo faz, quanto ao gozo, ponto de estofo entre o simbólico e o imaginário (Gazzola, 2005, p. 20-21). Mas, como já destacamos, na economia subjetiva do obsessivo, o gozo é experimentado como excessivo ou estrangeiro. Nesse sentido, Gazzola (2005, p. 31) nos lembra, ainda, que:

Desde Freud, a neurose obsessiva foi entendida como a neurose na qual o gozo consegue suplantar a defesa. Os bem conhecidos "mecanismos de defesa" do obsessivo nada mais são do que tentativas de conjurar esta ameaça, mas o resultado é apenas parcial. Isso obriga o obsessivo a reforçar sua estratégia e procurar outros meios de barrar o excesso. Esses outros meios guardam igualmente uma relação com o falo.

Confrontado com a escolha, "o obsessivo escolhe a dúvida, ele não se mexe" (Gazzola, 2005, p. 66). Faz o papel de morto, para não ter que engajar o seu desejo e, ao mesmo tempo, tentar recuperar-se de uma escolha que não foi sua. Ele acredita poder burlar a morte, como faz constantemente o Sr. José, como forma de obter um crédito de reconhecimento perante o Outro.

 

Considerações finais

Como já exposto, o caso aqui analisado se refere a um atendimento psicológico no âmbito hospitalar, com duração de nove sessões, com previsão de interrupção do tratamento condicionada a alta ou falecimento do paciente. Dessa forma, não havia uma pretensão de possibilitar ao sujeito a conclusão de sua análise, mas apenas oferecer-lhe condições para que pudesse se posicionar frente ao seu sintoma, a partir do bordejamento dos significantes a ele atrelados. Abrir essa dimensão do desejo na fala para o paciente seria uma forma de aplacar a necessidade de repetição.

Como propõe Bispo (2012, p. 158), é para permitir ao sujeito afrouxar um pouco essa relação com o gozo, ou, dito de outro modo, "atarem um pouco o nó do gozo com a fala, que a prática da psicanálise valoriza tanto a enunciação da fala, em detrimento dos enunciados que se fixam pelo saber", aos quais o sujeito já se encontra historicamente subjugado. Esse processo de análise poderia ser pensado, então, como a possibilidade encontrada pelo sujeito para percorrer seus processos identificatórios de maneira a livrar-se um pouco do peso do Outro, que o obsessivo faz questão de sustentar.

Dito de outra forma, a análise serviria no sentido de possibilitar ao sujeito lidar melhor com as questões que lhe concernem e o consternam, e a cura analítica poderia operar no sentido de permitir a significação retroativa ao que permaneceu opaco para o sujeito em uma dada experiência. A razão de isso ser opaco, nos diz Lacan (1957-1958/1999, p. 488), "é que nele há alguma coisa que não conhecemos, e que nos separa de sua resposta à nossa demanda. Isso não é outra coisa senão o que se chama seu desejo".

No caso específico da análise do sujeito obsessivo, afirma Gazzola (2005, p.58), "uma elaboração que merece verdadeiramente o título de central consiste em retraçar a via pela qual o gozo foi perdido pelo sujeito", ou seja, "conduzir o sujeito a situar o vazio do objeto a" (Gazzola, 2005, p. 62). Só se pode avançar ao final da análise se "for possível a estruturação do sujeito do desejo" (Gazzola, 2005, p. 26).

Lacan (1958/1998, p. 640) aborda a importância de preservar o lugar do desejo na direção do tratamento, o que requer que esse lugar seja orientado em relação aos efeitos da demanda, os únicos concebidos como princípio do poder da análise. Se, pela análise, o sujeito for conduzido na contracorrente de sua estratégia neurótica obsessiva, de modo que possa se dar conta de que não é mais obrigado a se esvaziar, a portar o semblante fálico, então ele poderá chegar a uma certa pacificação (Gazzola, 2005, p. 39).

Talvez para a maioria das pessoas, falar em desejo diante de situações mórbidas tão graves como a que enfrenta o Sr. José durante esses longos anos seria impensável. A urgência da situação de saúde parece induzir todos a ratificar as estratégias de anulação subjetiva, como se, diante da iminência de morte, não se pudesse levantar nenhum questionamento sobre o que precisa ser feito. Mas 23 anos não seria tempo de vida suficiente para que o Sr. José pudesse se dar ao luxo de viver? Morrer a conta-gotas seria sua única possibilidade?

Enfim, pode parecer, às vezes, pelo modo como Lacan fala das estratégias obsessivas, que estaríamos minimizando a gravidade da situação, como se os empecilhos enfrentados pelo Sr. José fossem puramente imaginários ou neuróticos. Obviamente que não. Trata-se, aqui, justamente do movimento contrário: diante de situações de saúde tão graves, em que parece justificável para todos a necessidade de renúncia subjetiva para evitar a morte, é que se faz urgente e preciso lançar interrogações que dialetizem essa necessidade de viver como um morto vivo. Se isso não se faz pela via do simbólico, pela possibilidade de expressão subjetiva, o sujeito será compelido a revoltar-se em seus atos, de forma compulsiva e repetitiva, no que será lido sempre como uma resistência ao tratamento. Nesse sentido, a escuta psicanalítica nesse espaço de urgências e emergências é fundamental para se resgatar a dignidade própria da vida subjetiva.

 

 

Referências

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Artigo recebido em: 14/11/2017
Aprovado para publicação em: 07/05/2018

Endereço para correspondência
Gizele Aparecida de Almeida
E-mail: gizelealmeida@gmail.com
Fábio Santos Bispo
E-mail: fabio.siloe@gmail.com

 

 

*Psicóloga (UFMG). Atua como neuropsicóloga, psicóloga clínica e escolar em São Gonçalo do Rio Abaixo/MG.
**Doutor em Psicologia (UFMG), Professor Adjunto do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), líder do Grupo de Pesquisa Psicanálise: Clínica e Laço Social (UFES).
1Nome fictício, em preservação ao sigilo.
2Os valores de referência para a glicose no sangue (glicemia de jejum) devem oscilar entre 70 e 100 mg/l.
3Em referência ao personagem Chicó do filme brasileiro O auto da compadecida, de Guel Arraes (2000), baseado na peça teatral homônima de Ariano Suassuna (1955). Chicó é um rapaz que ora aparece morto, ora aparece vivo e, por isso, seu amigo João Grilo comenta: "Tá vivo, tá morto... tá morto, tá vivo!".
4Refere-se ao grafo do desejo, exposto na Fig. 1 em sua forma incompleta, e trabalhado por Lacan, por exemplo, no texto "Subversão do sujeito e dialética do desejo", publicado nos Escritos (Lacan, 1960/1998, p. 822), e também no anexo A do Seminário 5 (Lacan, 1957-58/1999, p. 525).
5"L'obsessionel est quelqu'um qui n'est jamais veritablement là où quelque chose est en jeu qui pourrait être appelé son desir" (Lacan, 1958-59/2013, p. 505-506).

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