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Tempo psicanalitico

Print version ISSN 0101-4838On-line version ISSN 2316-6576

Tempo psicanal. vol.50 no.2 Rio de Janeiro July/Dec. 2018

 

DOSSIÊ

 

Quando a resiliência pode ser uma aposta para a psicanálise: ampliações clínicas do trauma e do luto

 

When resilience may be a bet for psychoanalysis: clinical amplifications of trauma and mourning

 

Quand la résilience peut être un pari pour la psychanalyse: amplifications cliniques du traumatisme et du deuil

 

 

Maria Virginia Filomena Cremasco*

Universidade Federal do Paraná - UFPR - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O conceito de resiliência está em desenvolvimento na comunidade científica internacional desde algumas décadas. A resiliência aparece como um processo complexo e multifatorial no qual as referências teóricas se constroem efetivamente sobre abordagens pluridisciplinares que fazem a especificidade da resiliência. Essa transversalidade tanto contribui para a riqueza do modelo, quanto explica uma certa fragilidade conceitual à qual não nos subtraímos. Apesar de considerar que a resiliência não faz parte do corpo teórico da psicanálise por não se integrar na lógica de sua prática e conduzir a intervenções terapêuticas de uma natureza diferente, alguns autores consideram que ela estabelece relações com várias noções psicanalíticas elaboradas por Freud, como: traumatismo, mecanismos de defesa, sublimação e trabalho de luto, que são exploradas neste artigo.

Palavras-chave: luto, trauma, resiliência, clínica psicanalítica.


ABSTRACT

The concept of resilience has been developing in the international scientific community for some decades. Resilience appears as a complex and multifactorial process which its theoretical references are effectively built on pluridisciplinary approaches that make the specificity of resilience. This transversality, in one hand, contributes to the richness of the model and, the other hand, explains a certain conceptual fragility that we do not subtract for this discussion. Despite considering that resilience is not part of the theoretical body of psychoanalysis because it does not integrate into the logic of its practice and leads to therapeutic interventions of a different nature, some authors consider that resilience establishes relations with several psychoanalytic notions elaborated by Freud, such as: traumatism, defense mechanisms, sublimation and mourning work that are explored in this article.

Keywords: mourning, trauma, resilience, psychoanalytic clinic.


RÉSUMÉ

Le concept de résilience se développe dans la communauté scientifique internationale depuis plusieurs décennies. La résilience apparaît comme un processus complexe et multifactoriel dans lequel ses références théoriques reposent efficacement sur des approches pluridisciplinaires qui font la spécificité de la résilience. Cette transversalité contribue à la richesse du modèle et explique une certaine fragilité conceptuelle que nous ne soustrayons pas . En dépit du fait que la résilience ne fait pas partie du corps théorique de la psychanalyse parce qu'elle n'intègre pas la logique de sa pratique et conduit à des interventions thérapeutiques de nature différente, certains auteurs considèrent qu'elle établit des relations avec plusieurs notions psychanalytiques élaborées par Freud, telles que: le traumatisme, les mécanismes de défense, le travail de sublimation et de deuil explorés dans cet article.

Mots-clés deuil, traumatisme, résilience, clinique psychanalytique.


 

 

Na resenha do livro Falar de amor à beira do abismo, de Boris Cyrulnik (2006), para a Revista Brasileira de Psicanálise, Josette Czerny (2007) esclarece que o autor coloca o foco naqueles que superam um traumatismo e experimentam muitas vezes uma impressão de sursis, que multiplica o gosto de viver o que ainda é possível. Czerny (2007) diz que o título do livro traz uma figura de retórica que Cyrulnik (2006) transforma em conceito para caracterizar os chamados "resilientes". Trata-se do oximoro, que consiste em associar dois termos antinômicos: falar de amor/beira do abismo. Aqueles que vencem um traumatismo, segundo ela, conseguem fazer coabitar doravante o horror e a poesia, o desespero e a esperança, a tortura gelada e o calor humano.

Boris Cyrulnik é neuropsiquiatra, psicanalista, etólogo e um dos maiores expoentes mundiais em teoria e prática da resiliência. É chefe de ensino da Clínica do Apego na Universidade de Toulon e presidente do Observatoire International de la Resilience. Em parceria com Philippe Durval, organizou, em 2006, o livro Psychanalyse et Résilience, ainda sem tradução para o português. Nesse livro, vários psicanalistas se posicionam sobre o tema da resiliência e nos oferecem subsídios teóricos para refletir criticamente sobre possibilidades ampliadas para a clínica dos traumatizados, bem como para os sujeitos em estados complicados de luto, que se posicionam melancolicamente diante da vida. Esse levantamento teórico e reflexão não será sem refutação, que sustentaremos principalmente pelo posicionamento contrário de Serge Tisseron (2006, 2007) à resiliência para a psicanálise, e ao qual tentaremos responder ao fim deste texto.

A palavra "resiliência" tem significações diferentes segundo seu campo de aplicação. Para Mijolla-Mellor (2006, p. 168) e Bertrand (2006, p. 206) ela passa da física dos sólidos que se refere à dinâmica dos materiais, como a propriedade dos corpos de retomar sua forma após ter suportado um choque, às ciências sociais, designando nos dois casos uma aptidão a resistir aos choques. Na dinâmica dos materiais ela focaliza essencialmente a natureza da substância dos corpos (sua natureza permitiria sua resistência) e nas ciências sociais, ao inverso, trata-se de um complexo de fatores ligados tanto ao sujeito quanto às condições do evento traumático e do meio social de convivência do sujeito atingido.

O conceito de resiliência está em desenvolvimento na comunidade científica internacional desde algumas décadas. Inicialmente foi desenvolvido nos países anglo-saxões (EUA, Inglaterra e Canadá) como uma "capacidade" e passou a ser conhecido na França a partir dos anos 90. A definição transversal elaborada e proposta em comum por Manciaux, Vanistendael, Lecomte e Cyrulnik (2001, p. 13-20), na Fundação Francesa da Infância, é de que a resiliência é a capacidade de uma pessoa ou de um grupo de se desenvolver bem, de continuar a se projetar no futuro, apesar dos acontecimentos desestabilizantes, das condições difíceis da vida, dos traumatismos severos.

Para Tisseron (2006, p. 288), a compreensão dos efeitos dos traumatismos tem uma longa história, que se inicia para os psicanalistas com Sandór Ferenczi e não com Anna Freud (segundo Cyrulnik (2001)), que já observava o desenvolvimento normal de crianças muito afetadas recolhidas no infantário de Hampstead. Com a resiliência, a visão de superação de traumas, para Tisseron, tem hoje uma mitologia, que pretende dispor uns e outros sobre uma mesma linha. E isso pode ser muito perigoso e, ao mesmo tempo sedutor, fazendo de conta que existe uma nova aliança para os terapeutas sem afiliação.

A resiliência aparece, portanto, como um processo complexo e multifatorial no qual as referências teóricas se constroem efetivamente sobre abordagens pluridisciplinares (Anaut, 2006; Bailly, 2006) que fazem a especificidade da resiliência. Contudo, essa transversalidade tanto contribui para a riqueza do modelo, quanto explica uma certa fragilidade conceitual à qual não queremos nos subtrair, mas questionar ao modo mesmo do oximoro.

Segundo Tisseron (2007, p. 3-5) a resiliência humana tem suas próprias definições, diferentes dos sistemas físicos. Para ele, podemos falar em pelo menos duas correntes de pensamento: a primeira considera a resiliência humana uma característica pessoal ligada aos recursos próprios de cada um; a segunda considera, ao contrário, que a resiliência de cada um depende sobretudo da qualidade dos vínculos e das interações que existem em uma comunidade, em um momento.

Para Chiland (2006, p. 273) a noção de resiliência coloca acento sobre o fato de que a causalidade psíquica não é linear, pois o desenvolvimento é epigenético - com as interações entre genoma e ambiente - e não existe fatalidade genética.

Golse (2006) afirma que muitos modelos de pensamento têm sido elaborados sobre a resiliência: o modelo compensatório ou mediador, no qual o fator compensatório é uma variável que neutraliza a presença do risco sem interagir com ele; o modelo do final de campeonato (challenge), no qual um certo nível de stress ("estruturante") e de fatores de risco são percebidos como representando um potencial de estimulação das competências do sujeito, favorecendo uma boa adaptação; o modelo dos fatores de proteção, no qual interagem com os fatores de risco para reduzir a probabilidade dos efeitos negativos do stress.

Para Bertrand (2006, p. 207), a noção de resiliência é utilizada de forma diferente segundo seu funcionamento no contexto da psicologia do desenvolvimento, numa aproximação ambiental ou numa aproximação psicanalítica. A aproximação cognitivo-comportamental utiliza mais a noção de stress do que de traumatismo. Ela privilegia o estudo dos processos mentais conscientes nos modos de enfrentamento (coping) e de resolução de dificuldades. Os questionários de autoavaliação propostos por Richard Lazarus e Suzan Folkman ou por Isabelle Paulhan permitem classificar as atitudes face às adversidades. A psicologia ambiental se interessa, sobretudo, pelas interações entre os sujeitos e seu meio social, familar, assim como às respostas institucionais.

Transposta metaforicamente para a psicologia e nos aproximando da abordagem em psicanálise, a resiliência, para Bertrand (2006, p. 206), indicaria a capacidade das pessoas, tendo vivido experiências traumatizantes, de resistir à desorganização psíquica e superar as dificuldades, recuperando-se (rebondir, em francês). Nesse sentido, é como se o evento perturbador tivesse a capacidade de desenvolver ou revelar nessas pessoas recursos ainda não desenvolvidos ou mesmo não conhecidos. Para a autora, parece que o termo foi primeiramente utilizado por John Bowlby, em 1992, para designar a ressort (mola, capacidade, competência) moral, qualidade de uma pessoa de não se desesperar, não se deixar abater.

Os trabalhos de Bowlby, a partir da teoria do apego (attachement), explicam essa resiliência ou resistência psíquica pela qualidade das vínculações precoces mãe-bebê e suas características mais ou menos tranqüilizadoras. Cyrulnik (2006, p. 9-10) assim se refere: " o caminho que cada indivíduo segue em seu desenvolvimento e o grau de resiliência ante os acontecimentos estressantes da vida são fortemente determinados pelo esquema de apego que desenvolveu nos seus primeiros anos de vida".

Também para Hanus (2006, p. 203), se a resiliência é a capacidade de sobreviver aos traumatismos e às perdas e disso tirar algum proveito ou mesmo benefício, essa capacidade se adquire nos primeiros anos da infância, quer dizer, nas trocas afetivas positivas com os pais, nos seus investimentos narcísicos na criança; portanto, nas qualidades dessas vinculações.

Para Anaut (2006), o funcionamento psíquico da resiliência é complexo de apreender porque se situa no cruzamento de várias dimensões. Ela pode ser considerada o processo de modificação psíquica e resultante do trabalho dos processos defensivos, mas também da adaptabilidade com o meio social e psicoafetivo.

Entretanto, nós podemos tentar analisar o funcionamento psíquico do processo de resiliência seguindo dois eixos principais: de um lado do ponto de vista do traumatismo e da resposta do sujeito e, de outro lado, do ponto de vista dos mecanismos de defesa mobilizados pelo suposto resiliente (Cremasco, 2008).

Para Bertrand (2006, p. 206) a questão da resiliência está cada vez mais ligada à clínica dos traumas psíquicos. Para Bailly (2006, p. 231) o conceito de resiliência tem a vantagem de forçar os clínicos a se defenderem de um pessimismo patologizante que eles praticam voluntariamente, em particular no campo dos traumatismos psíquicos. Segundo Tisseron (2006, p. 288) resta saber se é oportuno para os psicanalistas se engajarem em uma palavra que cobre tudo e que não apenas não é necessária à psicanálise, segundo ele, mas que visa fazer de conta que há uma unidade de conceitos que são heterogênios.

Apesar de considerar que a resiliência não faz parte do corpo teórico da psicanálise por não se integrar na lógica de sua prática e conduzir a intervenções terapêuticas de uma natureza diferente da psicanálise (Hanus, 2006; Bailly, 2006), alguns autores como Hanus (2006, p. 187) consideram que ela estabelece relações com várias noções psicanalíticas elaboradas por Freud, como: traumatismo, mecanismos de defesa e sublimação, que exploraremos a seguir.

 

Traumatismo

Para Houzel (2006, p. 250) o ato de nascimento da psicanálise se situa no dia em que Freud, em 1987, renuncia à sua teoria traumática: "eu não acredito mais em minha neurotica" (Freud, 1986, p. 265). Ele argumenta de duas formas sua renúncia à neurotica: a primeira é fundada sobre a frequência que lhe parece pouco verdadeira de pais incestuosos para explicar o número de pacientes histéricas: argumento frágil aos olhos da prevalência de abusos sexuais de crianças, que os dados epidemiológicos modernos nos permitem avaliar. A segunda argumentação é muito mais forte: não existe índice de realidade no inconsciente, quer dizer que nada permite fazer a diferenciação entre uma lembrança de um fato real e uma construção puramente fantasística de uma pseudorrealidade. Esse argumento é muito mais consistente e conduz Freud a descobrir a realidade psíquica e a diferenciá-la da realidade externa, que obedece ao princípio de causalidade. A realidade psíquica, diferente da exterior, é regida por deslocamentos de investimentos que não se chocam com nenhum dos obstáculos das categorias kantianas de tempo, espaço e causalidade.

A renúncia da teoria traumática das neuroses e a descoberta da realidade psíquica complicam, segundo Houzel (2006, p. 253), as relações entre os acontecimentos potencialmente traumáticos e suas eventuais consequências patológicas. Freud levará mais de 20 anos para começar a colocar as bases desse novo domínio de exploração e serão as gerações posteriores de psicanalistas que darão toda a amplitude a essas novas bases teóricas.

Será necessário esperar os anos 20 para vermos aparecer uma nova teoria das pulsões - de vida e de morte (Freud, 1920/1969) - e uma nova tópica - id, ego e superego (Freud, 1923/1981) -, que explicarão melhor a realidade psíquica e suas relações com a realidade exterior. Essa nova via corresponde melhor com as descobertas empíricas e epidemiológicas das teorias de resiliência.

Segundo Houzel (2006, p. 254), na segunda tópica freudiana a fonte do trauma psíquico é sobretudo interna, intrapsíquica, é a destrutividade mesma da psique em desenvolvimento, a pulsão de morte. A realidade externa não pode mais ser diretamente traumática como podia no primeiro modelo. Seu papel é mais o de desmentir ou de confirmar a violência da destrutividade interna. Essa é a base do modelo kleiniano. É necessário dizer que a realidade externa de que se trata nesse novo modelo não é mais aquela à qual Freud chamava de sua neurotica e em que se tratava de fatos, de acontecimentos localizáveis no tempo e no espaço, incritos num desenrolar histórico. Agora, trata-se de relações. É a relação da criança com o seu meio que constitui, a partir de agora, para ela, a realidade.

A realidade psíquica é a soma de traços deixados por nossas experiências relacionais enquanto que a realidade exterior é isso que nossa percepção nos dá a conhecer do mundo ao redor. É a realidade psíquica de cada um que nos dirá se um acontecimento foi ou não traumático para ele.

Para Bertrand (2006, p. 210-213), desde suas origens a psicanálise centralizou suas pesquisas na questão dos traumas psiquicos. A psicanálise tem uma concepção diferente de trauma psíquico. Um trauma é um afluxo de excitações não-ligadas às quais a simbolização permite a tomada de vantagem sobre as tendências desligantes e seus efeitos desorganizadores. Existem traumas mais ou menos graves. A descoberta da sexualidade pela criança é um, por exemplo. As mudanças corporais da adolescência podem igualmente ser traumatizantes para alguns. Há também as palavras que ferem, que humilham ou ainda o sentimento de impotência diante de algumas situações. Tudo isso pode ser trauma e o que o define não é o evento externo com mais ou menos violência, mas o eco psíquico deste acontecimento. O eco psíquico não tem a mesma amplitude em todas as pessoas e mesmo uma pessoa tem momentos diferentes de sua vida em que é mais ou menos vulnerável. É necessário, portanto, ultrapassar o dualismo entre exógeno (evento externo) e endógeno (recursos internos): o trauma é o eco psíquico que tem um acontecimento para um sujeito em determinado momento. O vivido mais ou menos catastrófico desse acontecimento, segundo o estado psíquico desta pessoa em um momento determinado, é que vai determinar a intensidade do trauma (Cremasco, 2012).

O que torna um evento traumatizante é o não preparo do psiquismo, ou seja, ele não dispõe dos recursos, das defesas que lhe permitiriam viver o acontecimento como não catastrófico (Freud, 1920/1969). É por isso que os mesmos acontecimentos podem ser traumáticos para uns e não para outros. A psicanálise postula que todo nosso desenvolvimento psíquico é estruturalmente traumático. Isso significa que nosso psiquismo se desenvolve a partir de traumas vividos e superados.

Para Golse (2002, p. 25-39), o bebê percebe muito cedo que apenas uma parte da linguagem de sua mãe lhe é destinada, a outra se dirige a outro que não é ele, nem ela (triangulação linguística pré-edipiana). É nessas condições que lhe parece existir um desespero anterior à triangulação edipiana, bem precoce.

No entanto, para Bailly (2006) a visada de transformar o traumatismo em motor, em pulsão de vida, concede ao trauma um estranho estatuto. De uma perspectiva psicanalitica lacaniana, o traumatismo pode ser compreendido como o efeito da desestruturação passageira do campo simbólico produzida pela irrupção do real por ocasião de um acontecimento acidental exterior ao sujeito. O protótipo do acontecimento traumatogênico é um encontro do sujeito com sua própria morte.

Para Ferenczi (1932/2006, p. 149) o trauma é uma comoção, uma reação a uma excitação exterior ou interior de um modo autoplástico (que modifica o eu) mais que aloplástico (que modifica a excitação). Essa "neoformação" (néoformation) do eu é impossível sem uma destruição anterior (precedente) parcial ou total ou sem dissolução do eu anterior. Um novo eu não pode ser formado diretamente a partir do eu precedente mas a partir de fragmentos, produtos mais ou menos elementares do decomposição daquele. A força relativa da excitação insuportável decide o grau e a profundidade da decomposição do eu (modificação do estado de consciência - transe, estado de sonho - perda do estado de consciência, síncope, morte).

Para Bailly (2006), existem acontecimentos que colocam em perigo o campo simbólico por um ataque direto. Quando o real não é mais mantido à distância, ele faz uma irrupção (invasão) na cadeia significante, quebra a articulação dos significantes. Ele não é nem um significante nem uma imagem, mas um elemento heterogêneo à estrutura, furando-a.

O trauma é, portanto, a consequência de um evento muito particular sobre o psiquismo. Trata-se de um furo, da desestruturação do psiquismo e, desse ponto de vista, o trauma não pode ser nem se tornar um motor ou o que quer que seja de estruturante. Ao contrário, o que o sujeito faz para se proteger dos efeitos do evento traumático e evitar o trauma ou para se defender do traumatismo verdadeiro, ou seja, o que ele faz face ao acontecimento e não ao trauma, pode conduzi-lo a um funcionamento mais livre e mais verdadeiro. O trauma de morte ao qual Bailly (2006) se refere não dá senso a nada porque ele é sem senso, ele não se articula em nada a nossos desejos (princípio de prazer) porque não pode evocar (relembrar) nenhum gozo infantil. Em revanche, a psique sob tensão, o narcisismo ameaçado de aniquilamento tenta mascarar isso que se projeta sob a produção de fantasmas cuja irrupção revela e descobre o sujeito e que poderá ser, posteriormente, objeto de um frutuoso trabalho de elaboração em análise.

Podemos dizer que pelo traumatismo o sujeito entra em resiliência, pois ela supõe a retomada de um tipo de desenvolvimento após uma agonia psíquica (Cyrulnik, 2004). Para Hanus (2006, p. 188) não apenas o traumatismo é suportado, integrado, ultrapassado, mas ele faz advirem os efeitos positivos que não existiam antes dele. Qual traumatismo estaria em jogo e por quais vias ele provocaria a resiliência? A compreensão psicanalítica do traumatismo lança luz sobre o fato de que ele não é constituído unicamente do choque provocado pelo agente exterior. mas também pelas possibilidades de reação da pessoa que o suporta. Esse é o fundamento do tratamento psicoterápico do traumatismo.

É certo que o agente traumatogênico não pode ser modificado après-coup, mas o impacto psicológico do choque pode ser reelaborado à distância. Se o traumatismo não exceder as forças de quem lhe é vítima, sua integração se realiza por duas vias diferentes mas complementares: a ligação psíquica (se instaura um inicio de compreensão, de sentido para o que foi vivido como indesejável) e a descarga motora no exterior (possibilidade de não vivenciar o traumatismo passivamente).

A resiliência se desenvolve na repetição dos traumatismos. O primeiro é fundador, o segundo, revelador. É na chegada deste último que a resiliência se exprime (après-coup). Os traumatismos fundadores têm lugar na infância e os outros mais tarde, às vezes muito mais tarde. O traumatismo inaugural, desde que vivido na família, é habitualmente da ordem dos maus-tratos ou da carência e, às vezes, dos dois.

Para Bertrand (2006, p. 213) a resolução do traumatismo está ligada às capacidades de mentalização e de simbolização que ampliam o sujeito e que lhe permitem superar com o tempo as experiências traumáticas. Os traumas vividos e superados podem ter por efeito o reforço das defesas psíquicas, os meios de autoproteção que cada um utiliza (de forma inconsciente) para afrontar o sofrimento. Contudo, a resolução de um traumatismo não faz senão revelar uma resiliência. Ou, se se preferir, como se refere Bertrand (2006), a resiliência se paga psiquicamente. Mesmo que o psiquismo estenda (amplie) os meios de proteção e de autoproteção para se preservar dos traumas psiquicos, sua reorganização, como defesa, tem um custo psiquico. O custo psiquico é uma psicopatologia, com sintomas por vezes incapacitantes, como na neurose traumática, ou uma perda de confiança em si ou ainda uma rigidez de caráter (para proteger a parte frágil em si), comportamentos adictivos ou violentos.

 

Mecanismos de defesa

A resiliência poderá se apoiar sobre as características próprias do sujeito (mecanismos de defesa, elementos da personalidade, aspectos cognitivos, etc) e igualmente sobre aquelas de seu meio relacional (apoio familiar, social, da comunidade, dos pares, etc). Como vimos, o impacto de um evento aversivo e seus efeitos patogênicos podem ser agravados ou atenuados segundo o contexto interno e externo do sujeito que o experiencia (Zugueib Neto, & Cremasco, 2013).

A intensidade emocional de um contexto traumático depende da percepção do sujeito e de suas capacidades defensivas. É, portanto, a subjetividade e não os aspectos fatuais e objetivos que tornam traumática uma situação dada (Hanus, 2006, p. 188; Anaut, 2006, p. 87-88).

Segundo Braconnier (1998), a noção de mecanismo de defesa, como tendo um papel homeostático, engloba todos os meios utilizados pelo eu para controlar e canalisar os perigos internos e externos. Entretanto, eles podem ser mais ou menos adaptados, em função do contexto de sua utilização e da rigidez de sua expressão.

A análise do funcionamento psíquico do processo de resiliência de um sujeito pode se decompor em duas fases: confrontação do trauma e resistência à desorganização psíquica que se caracteriza pelo recurso aos mecanismos de defesa de "urgência" para se proteger da efração psíquica: defesas primárias como negação, repressão dos afetos, projeção, passagem ao ato, comportamento passivo-agressivo, deslocamento, fantasia. A segunda fase é a integração do traumatismo e da reparação e supõe o abandono de certas defesas de urgência para privilegiar defesas mais maduras, secundárias, mais flexíveis e mais adaptadas a longo termo: criatividade, humor, intelectualização, altruísmo, sublimação (Anaut, 2006, p. 90-92). O funcionamento psíquico da resiliência passa por um processo de "mentalização" que faz apelo aos representantes psíquicos e à simbolização dos afetos. Trata-se de se conferir um sentido à ferida, um trabalho de subjetivação.

Não se pode dizer realmente que existam defesas resilientes no sentido de defesas específicas dos sujeitos resilientes porque todo o registro defensivo de que dispõem os indivíduos em geral pode contribuir no processo de resiliência. Para Tychey e Lighezzolo (2006, p. 146-147), mesmo que os psicanalistas admitam que as defesas ditas secundárias possam ter um maior potencial adaptativo que os processos primários, nenhuma defesa utilizada por um indivíduo em particular tem natureza adaptativa ou patológica. É de fato o uso flexível ou rígido das defesas que vai lhes conferir seu caráter adaptativo ou patológico.

Para Tisseron (2006, p. 284) um dos perigos de se utilizar a palavra resilência é de nos fazer esquecer que tanto as vítimas quanto os agressores se protegem pelos mesmos processos psíquicos: a clivagem, descrita há mais de meio século por Freud. Ambos têm em comum querer que o acontecimento não seja jamais revivido. Assim, a clivagem não é boa ou má em si, nem bela nem feia. É uma ferramenta psíquica que pode ser colocada a serviço tanto de esquecer as torturas suportadas quanto os crimes cometidos. Claro, ela se constitui como uma forma de sobreviver ao traumatismo mais do que uma maneira de se reconstruir após ele.

As observações clínicas mostram que a resiliência não é sempre constante e definitiva e que um sujeito pode ser resiliente em certos domínios e não em outros (Anaut, 2006, p. 101). A obra de Primo Levi é reveladora quanto a isso no sentido de que o trabalho psíquico nas situações de luto e trauma nunca cessa. Para Tisseron (2006, p. 285) o que nos mostra o trabalho de luto é que a reconstrução psíquica nunca é terminada e a clivagem jamais totalmente suprimida.

Para Bertrand (2006, p. 208-212) após um traumatismo, qual seja, o psiquismo se reorganiza para administrar o trauma, tentar superá-lo. Ele desenvolve defesas, meios para abaixar a tensão interna que suscitou o trauma. Essas defesas se reforçam ou se modificam com a chegada de novos traumas. Assim, nós podemos dizer que nosso psiquismo é feito de experiências traumáticas vividas e superadas. São esses modos de defesa, essas reorganizações psíquicas que certos psicanalistas identificaram à noção de resiliência que vinha de outras fontes teóricas. Assim, Peter Fonagy, na linha de Wilfred Bion, insiste sobre a importância da mentalização na resiliência.

Também para Tychey e Lighezzolo (2006, p. 127-154) os mecanismos de defesa têm um papel central e particularmente adaptativo no primeiro tempo do processo resiliente: a capacidade de se defender contra as excitações. Num segundo momento, as para-excitações (processos psíquicos que protegem o aparelho psíquico contra um excesso de excitações) são ligadas a uma possibilidade de tratamento, de elaboração da tensão ligada ao trauma pelo canal de uma função complexa chamada de mentalização, como já vimos.

Para Bertrand (2006), a psicanálise tem a especificidade de trabalhar sobre os processos inconscientes, mas toda a psicoterapia passa pela palavra e, portanto, pela mentalização e simbolização, que são processos conscientes. Para Fonagy, Steele, Steele e Target (1994) a mentalização é a atitude de tomar em consideração os estados mentais do outro na compreensão e determinismo de seu próprio comportamento.

Sabemos a importância do que Bion (1994) nomeia como função alpha. As impressões sensoriais e emocionais (que ele nomeia de betas) que sobrevêm à criança são para ela uma fonte de excitação tóxica, porque ela não sabe como qualificá-las. Ela não sabe o que lhe ocorre e isso é perturbante. A função alpha é a mentalização que permite qualificar essas impressões, saber isso que ela sente. Mas, para o bebê, é a mãe que lhe diz, colocando em palavras (simbolização) a qualificação e a significação disso que ele sente. É nesse sentido que a função é chamada de "continente", ela contém a excitação e a liga às palavras lhes dando sentido e as tornando capaz de serem pensadas (pensável).

Assim que sobrevém um evento traumático o ego se encontra bruscamente confrontado a um real que ele não pode qualificar e ao qual ele não pode dar um sentido. Como vimos, a mentalização dos afetos após um episódio traumático passa pela necessidade de compartilhar suas emoções com um terceiro significante, quem quer que seja que tenha o estatuto de terceiro (amigo(a), parceiro(a), terapeuta, membro da família, etc). Essa é a condição necessária para a reconstrução da pessoa após o traumatismo, dar uma resposta face às condições desfavoráveis ao sujeito, como ocorre na sublimação.

 

Sublimação

Para Mijolla-Mellor (2006, p. 170-185) os termos sublimação e resiliência têm em comum não terem nascido da análise do psíquico. Se Boris Cyrulnik conserva o termo resiliência das ciências físicas e sociais, Freud também recuperou a noção de sublimação de uma longa linha filosófico-alquimista, passando pela literatura romântica, e distinguiu a sublimação própria dessa tradição da Sublimierung, que ele inventa como uma noção metapsicológica.

A sublimação é um trabalho do fluxo pulsional que, encontrando um obstáculo, uma barragem, não deixa entretanto de encontrar um escoamento, ou seja, o fluxo libidinal consegue não se deixar prender na rede do recalcamento. Para Mijolla-Mellor (2006, p. 185), a resiliência descrita por Boris Cyrulnik pode constituir um prolongamento descritivo comportamental dessa noção metapsicológica complexa e rica que representa a sublimação.

Para Tisseron (2006, p. 282-283) a evocação da sublimação após um trauma é ambigua. A palavra convém às representações sexuais inaceitáveis que um trauma faz frequentemente surgir, mas bem menos à raiva, que não tem nada a ver com a agressividade edipiana, e é importante que as vítimas de uma agressão possam criar. Enfim, é esquecer que o problema principal do trauma não é a representação recalcada, mas a ausência de representação e os comportamentos da ordem do agir.

Para Hanus (2006, p. 194-196), ao contrário, a resiliência se aproxima da sublimação enquanto criatividade. A sublimação é um processo ou mesmo um conjunto de processos de transformação de energias íntimas, libidinais ou mesmo sexuais, e uma criação acessível aos outros. Mas ela designa igualmente o resultado desse processo. A psicanálise considera como sublimados os comportamentos sem relação aparente com a sexualidade, mas encontrando entretanto sua origem na pulsão sexual e se manifestando na esfera cultural, intelectual, artística (Freud, 1908).

A sublimação comporta três tempos (Hanus, 2006, p. 194-196): o desinvestimento das pulsões parciais, o reinvestimento e a expressão criativa. As forças primitivas, selvagens, são assim a origem da resiliência, verdadeiramente o ódio violento contra os maltratantes. Mas, tanto na resiliência quanto na sublimação, existem recalcamentos e fracassos do recalcamento. A resiliência e a sublimação testemunham de uma grande força criativa, isso que incita a aproximá-las. No entanto, grandes diferenças as separam. O ponto de partida já é muito distante: o portador da sublimação, para exprimir e colocar forma em uma parte de seus conteúdos inconscientes e pré-conscientes, submete si mesmo a um conjunto de pressões (coações) internas. Isso parte dele mesmo, o domínio da situação que ele pode modificar. A situação do resiliente é totalmente diferente: ele não tem a escolha da situação difícil e perigosa que se lhe impõe. É coagido externa e urgentemente e não tem a possibilidade de se subtrair disso. Assim, o ponto de partida é pessoal e ativo na criação da sublimação e ele é exterior e passivo na resiliência. Os resultados de uma e de outra não são da mesma ordem.

A sublimação demanda uma certa objetivação de seus aportes (partes) pessoais: é a obra criada que se separa de seu autor para levar sua própria vida. O resultado da resiliência não é exterior a seu autor, ele lhe resta fixado, é eminentemente pessoal mesmo se estabelece efeitos constatáveis ao seu redor.

 

A resiliência pode ser uma aposta para a psicanálise?

Como vimos no início deste texto e é reafirmado por Ionescu (2006, p. 29), podemos notar na evolução da pesquisa sobre a resiliência que o interesse pelo funcionamento intrapsíquico - aspecto que interessa aos psicanalistas - manifestou-se apenas mais tarde.

Os estudos dos anos 70-80 colocaram acento sobre o comportamento socialmente adaptado, seus modos de adaptação, sobre a competência comportamental ou sobre o coping como estratégia desenvolvida pelo indivíduo para enfrentar o stress (Ionescu, 2006; Anaut, 2006).

Para Hanus (2006, p. 200-203), querer dar à resiliência um status no corpo teórico da psicanálise implica confrontá-la à metapsicologia freudiana em sua tripla perspectiva tópica, dinâmica e econômica.

Para Tisseron (2006), a lógica da palavra resiliência parece reter, dos conceitos psicanalíticos que ela empresta apenas seus aspectos positivos e estruturantes e, justamente, o que caracteriza a psicanálise é ser construída em torno da tensão dos papéis jogados por nossa vida psíquica, pelos casais de forças opostas: vida e morte. Para o autor, o essencial da lição freudiana é que o ser humano não trabalha apenas pra se construir, mas também para se alienar - e que a linguagem joga um papel essencial nos processos psíquicos. Para esse autor, nada sobre isso aparece na resiliência, nem sobre os obscuros desejos que nos habitam, nem sobre a compulsão à repetição e a fascinação pelo mal e pela morte - e isso pode ser um problema para situá-la psicanaliticamente. No entanto, veremos a seguir com Hanus (2006) como a descrição da resiliência na tripla perspectiva da metapsicologia freudiana situa-a psicanaliticamente em torno da tensão dos papéis jogados por nossa vida psíquica, contrariando o posicionamento de Tisseron (2006, 2007).

Na primeira, a tópica, o processo criativo da resiliência é inconsciente. O processo criativo faz advir ao consciente uma parte que estava até então, antes do trauma, inconsciente. O sujeito não sabe por si mesmo de onde tira suas forças. O resultado da resiliência que seu entorno constata se exprime conscientemente na vida psíquica do sujeito. O processo criativo associado ou não à resiliência faz advir ao consciente uma parte disso que estava no inconsciente. Mas o pré-consciente tem também um grande lugar na elaboração da resiliência, daí a freqüência dos sonhos diurnos e noturnos nos quais a pessoa traumatizada sonha viver num mundo melhor.

Na segunda tópica e na dinâmica da metapsicologia, a resiliência é o ponto extremo da função do eu. Hanus (2006) chamou de "aptidão ao luto", a capacidade de se despreender, capacidade de perda, de suportar a ausência e a falta e conservar uma confiança suficiente em si de tal forma que o funcionamento psíquico de base não se altere profundamente. As forças que estão na origem da resiliência assim como as representações e os fantasmas que vão se exprimir por seu intermédio estão em grande parte inconscientes, como parte do id.

Quanto ao superego, uma distinção se faz necessária quando o traumatismo se origina na família ou no exterior da família. Nestes últimos casos, o superego do resiliente parece não estar em questão. Quando as violências são na família, o superego tem uma outra face, ele é, de qualquer forma, clivado: a criança deve se situar entre o superego dos pais, comum, pouco diferenciado e rígido - dos quais as exigências parentais são frequentemente a expressão -, e os comportamentos traumatizantes destes mesmos pais aos quais a criança não pode se identificar para constituir seu próprio superego. Nesse contexto, o superego é mais social que interiorizado. A interiorização, assunção pessoal do superego, se faz por identificação aos exemplos parentais. Nisso há uma falta, mas tanto mais o superego vacila, tanto mais o ideal de eu brilha. Na segunda tópica e na perspectiva dinâmica da resiliência se situa essencialmente o processo criativo que traz à consciência certos conteúdos do inconsciente por intermédio de uma maturação pré-consciente.

Mas a dinâmica da resiliência se encontra também no movimento que religa o superego deficiente ao ideal de eu aparentemente triunfante, daí o aspecto econômico. Ao pai faltante e maltratante da realidade a criança maltratada associa, em sua vida psíquica, a imago de um pai idealizado. Essa figura idealizada vai perdurar imóvel, contrariando a evolução habitual na qual o pai idealizado dos primeiros anos da infância vai ser progressivamente desidealizado para assegurar a independência (autonomia) da criança. Esse ideal de eu que ajuda a sobreviver é uma força que leva (empurra, força) a realizá-lo, a fazer advir por si mesmo o 'bom pai' que a criança, mesmo se tornando adulta, guarda a nostalgia de não ter podido conhecer. Mas parece que mais frequentemente o eu fracassa em fazer advir esse ideal e evolui progressivamente para a depressão e para os riscos suicidas. Existe igualmente uma terceira via: a criança carente, maltratada inicialmente, consegue na sua vida adulta uma grande parte das exigências desse ideal elevado: ela tem sucesso na profissão, funda uma família feliz, estabelece boas relações interpessoais. Mas, por vezes, chegado o auge de seu sucesso, expressão de sua resiliência, ela começa a se sabotar (destruir-se). Progressivamente ela destrói isso que tinha construído e termina na miséria ou no suicídio. A identificação negativa ao pai destruidor (identificação ao agressor) foi mais forte.

Para Pedinielli (2006, p. 302) a tensão entre o ego e seus ideais é típica de certas patologias ligadas ao suicidio (depressão) ou a certas fases (adolescência), mas a morte de si mesmo ou a destruição de uma parte de si (ou do outro em si) são estreitamente dependentes da relação ao ideal e à agressividade que ele engendra.

Segundo Mijolla-Mellor (2006), a ambição de Boris Cyrulnik não é da ordem da metapsicologia e, portanto, ela não tem o objetivo de comparar termo a termo noções, mas de interrogar sobre o que os aproxima e o que os afasta, justificando, por exemplo, que o processo criativo ou a sublimação, como processo geral que concerne à vida pulsional, não é suficientemente pertinente para explicar o que Boris Cyrulnik designa por resiliência. Ele o cita como um mecanismo de defesa que para a autora é um contrassenso à noção de sublimação que pode ser vista como uma invenção de uma terceira via que não é nem a realização pulsional direta nem uma defesa, mas aquilo que pode ignorar o interdito não tendo mais que a ele se confrontar.

Ao contrário da resiliência, que caracteriza um comportamento que sucede a um traumatismo suportado, a sublimação é um destino pulsional que concerne ao objeto e ao objetivo da pulsão sexual (Freud, 1908, p. 33). Entretanto, elas compartilham um traço comum fundamental: são respostas bem-sucedidas face às condições desfavoráveis para um sujeito, como se apresentam nos processos traumáticos e nas situações de luto que nos propusemos focalizar. E talvez esta seja a aposta para a psicanálise.

 

Resiliência na clínica do luto

Para Hanus (2006, p. 196-200) o trabalho de luto que leva à superação do traumatismo da perda pode nos parecer uma forma costumeira de resiliência e nos levar a pensar que luto e resiliência têm relações mais ou menos próximas.

Freud (1915) se interessou pelo luto mas essencialmente na ótica da depressão melancólica, assunto muito trabalhado com Karl Abraham (Esquisse d'une histoire du développement de la libido basée sur la psychanalyse des troubles mentaux, 1924) antes de escrever "Luto e melancolia".

Nós não podemos esquecer que ele definiu o luto não apenas como a reação habitual à perda de um ente querido mas sobretudo a um valor ideal. A dor tão forte do luto, uma das preocupações para se compreender o luto, que comporta uma parte de inaceitável, parece sobretudo associada à falta: perda narcísica, a desintricação pulsional com o retorno libidinal para o eu e a comparação com a ferida física (Freud, 1926).

Como sabemos, o mais importante no desenvolvimento do luto como em suas saídas é a natureza da relação anterior à perda e desenvolvemos, anteriormente, a hipótese de que a resiliência se funda igualmente sobre a natureza das relações anteriores e do meio atual de vinculação social. Se os traumatismos fundadores e reveladores da resiliência são manifestamente relacionais, somos levados a pensar que existe no resiliente, desde a criança resiliente, outras relações e, sem dúvida, precoces e suficientemente boas para dar os fundamentos da confiança em si que é a base da resiliência.

Uma indicação indireta e retrospectiva pode ser encontrada no fato de que a resiliência necessita, para se manifestar, da presença de um tutor de resiliência, isso que Boris Cyrulnik chama de "reencontro" (Hanus, 2006, p. 197). Quando se trata de traumatismos graves uma ajuda terapêutica é necessária. É uma ilusão acreditar que alguém poderá sair sozinho. É uma ilusão também querer evitar a todo preço as experiências traumáticas aos nossos próximos porque não se pode saber por antecedência o que pode sobrevir. Ao contrário, é mais importante acompanhar as pessoas que viveram uma experiência traumática, sustentá-las, orientá-las em direção de uma ajuda terapêutica específica.

No início da resiliência, como do luto, existe a perda. Freud definiu o luto em relação à perda e não em relação à morte. A perda do luto não é senão a de ser amado e da relação mantida com o ser amado; ela é, sobretudo, narcísica. Mas e a perda da resiliência? Existem as situações de luto repetidas, de abandono, de carências graves que se encontram no início de certas manifestações de resiliência, mas qual é a perda em outras situações: por exemplo das crianças maltratadas e resilientes? Do investimento no outro que traumatiza, o aumento da ambivalência supera a predominância do ódio (que não exclui a relação de amor), que deve ser gerenciado (administrado) para evitar o agravamento do traumatismo e para proteger o perseguidor amado na sua imago, apesar da realidade, como já vimos. Uma das maneiras de administrar essa raiva é evidentemente de retorná-la contra si em um acirrado sentimento de culpa ou em uma autodepreciação depressiva, ou ainda em tendências suicidas tão frequentemente encontradas nesses sujeitos, como já descrevemos anteriormente. Mas então por que algumas dessas crianças, que vamos chamar de resilientes, "parecem" capazes de tudo suportar?

Michael Rutter (1985, p. 598-611) tentou fornecer uma resposta, ao menos no que concerne às crianças filhas de doentes mentais. A criança suporta os comportamentos agressivos, sejam cruéis, de seu pai doente se justamente ela sabe que se trata de um comportamento doentio, que seu pai é doente e que ela encontra apoio afetivo seja no outro pai, seja em uma família suportativa.

O que aproxima luto e resiliência (Hanus, 2006, p. 198-200) é o fato de um e outro serem impostos e que não é possível deles se subtrair. Esses dois processos, cada um a sua maneira, permitem retornar (recomeçar, retomar) atividade no plano psíquico. O que se trata nos processos de luto importantes é sobretudo a sobrevivência psíquica, mas em que estado? Se o trabalho de luto é um processo que opera ativa e inconscientemente para a maior parte após a perda de uma pessoa fortemente investida e/ou de um valor ideal, como disse Freud (1915), ele não vem senão reativar uma função do eu que é capacidade de perda, o que o Hanus (1976) chama de "aptidão ao luto", já citada.

Essa capacidade de integrar psiquicamente a perda se institui na primeira infância em função do vivido e da integração das separações com a mãe ou interferência e presença do terceiro, o pai, da confrontação das faltas e das ausências dessa mãe inicial que comporta, no início, a totalidade dos cuidados maternais, ou seja, em função da aquisição de uma confiança suficiente e de seu funcionamento psíquico pré-consciente para suportar a ausência e a falta. Coloca-se em evidência a capacidade para suportar as perdas tanto da mãe quanto do pai, o que nos remete às suas próprias infâncias, mas também à história familiar de perdas, lutos e separações de sua família e das gerações. É o nascimento do apego seguro, a fundação da base de confiança em si (Cremasco, 2015).

Para Tisseron (2006, p. 278-280), os psicanalistas que desejam contribuir com a resiliência podem fazê-lo de diversas maneiras: desenvolver as noções já conhecidas insistindo sobre suas relações com a resiliência (por exemplo, a capacidade de jogar de Winnicott, os envelopes psíquicos de Didier Anzieu ou, ainda, as castrações simbolicogênicas (symboligènes) de Françoise Dolto); tentar introduzir uma articulação psicodinâmica nas noções de psicologia descritiva tais como "manter as emoções à distância" ou "deixar solto"; ou ainda tentar melhor desenvolver a parte entre as defesas voltadas ao mundo interno e aquelas que são voltadas contra o mundo externo.

Segundo Golse (2006, p. 62-63) existem muito mais coisas que ignoramos do que conhecemos em matéria de resiliência. Após ter-se muito falado sobre a vulnerabilidade, fala-se agora em resiliência como processo que vem relativizar e temperar a vulnerabilidade, como uma faceta positiva da vulnerabilidade.

Para Anaut (2006, p. 103) os trabalhos sobre a resiliência respondem à evolução das práticas de cuidado na atualidade, inscrevendo-se na complementariedade do modelo clássico da vulnerabilidade.

Entendemos com isso que a importância desse conceito é ampliar a visão de vulnerabilidade apenas centrada nos fatores de risco, como são os eventos traumáticos, para uma articulação psicodinâmica que desenvolva aspectos psíquicos protetivos e defensivos do sujeito inserido no social, pois o que permite reatar o vínculo social tem potencialidade de representação do golpe e, com isso, de desenvolver a resiliência.

 

 

Referências

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Artigo recebido em: 20/05/2018
Aprovado para publicação em: 04/09/2018

Endereço para correspondência
Maria Virginia Filomena Cremasco
E-mail: mavicremasco@gmail.com

 

 

*Psicóloga, psicanalista, Doutora em Saúde Mental (Unicamp-2002), pós doutorado em Psicopatologia e Psicanálise (Paris VII-2010), Professora Associada do Departamento e do Mestrado em Psicologia da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Diretora do Laboratório de Psicopatologia Fundamental (grupo de pesquisa -CNPq), Coordenadora de Extensão da Pró Reitoria de Extensão e Cultura da UFPR.

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