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Tempo psicanalitico

Print version ISSN 0101-4838On-line version ISSN 2316-6576

Tempo psicanal. vol.53 no.1 Rio de Janeiro Jan./June 2021

 

ARTIGOS

 

Notas sobre o mal-estar na cibercultura em tempos de hiperaceleração digital

 

Notas sobre o mal-estar na cibercultura em tempos de hiperaceleração digital

 

Notes sur malaise dans la cyberculture aux temps del'hyperaceleration numérique

 

 

Samuel AlcântaraI*; José Clerton de Oliveira MartinsI**; Francisco Welligton de Sousa Barbosa JuniorII***; Maria Celina Peixoto LimaI****

IUniversidade de Fortaleza - UNIFOR - Brasil
IIUniversidade de Aveiro - Portugal

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Toda transformação tecnológica nos convida a refletir sobre nossas formas de compreensão dos fenômenos sociais e seus impactos nos sujeitos. Hoje, temos à nossa disposição inúmeras máquinas que respondem a necessidades humanas e, mesmo assim, com as aparentes facilidades proporcionadas pela cibercultura, parece que continuamos em estado de alerta, esperando pela próxima informação e notícia, esperando sempre pela próxima urgência que surgirá em nossa tela. Nossa experiência existencial do mal-estar frente ao processo cibercultural ganha novos contornos. A hiperconexão imersiva no digital parece produzir um sentimento de instantaneidade que nos impede a reflexão e a experiência de ócio. Questões sobre a compreensão acerca dos efeitos subjetivos que tal forma de vida acarreta à humanidade começam a despertar o interesse de vários campos do conhecimento. Portanto, tomando a noção psicanalítica de mal-estar, este estudo, de natureza teórico-bibliográfica, objetiva proporcionar compreensões sobre o fenômeno da hiperaceleração digital, promovendo um diálogo entre a psicanálise e os estudos sobre a contemporaneidade e o ócio. Nesse contexto, a psicanálise, ao se colocar como um espaço de experiência que produz efeitos de significação, permitiria ao sujeito ocupar uma posição para além do lugar que lhe cabe em uma sociedade hiperacelerada, parecendo, dessa maneira, fornecer algumas pistas para se pensar sobre a experiência de ócio na cibercultura e sua respectiva importância.

Palavras-chave: Psicanálise, cibercultura, digital, ócio.


ABSTRACT

All technological transformation invites us to reflect on our ways of understanding social phenomena and their impacts on the subjects. Today we have at our disposal countless machines that respond to human needs and yet with the apparent facilities provided by cyberculture, it seems that we remain on the alert, waiting for the next information and news, always waiting for the next urgency that will arise in our screen. Our existential experience of malaise in the cyberculture process is gaining new contours. The immersive hyperconnection in the digital seems to produce a feeling of instantaneity that prevents us from reflection and the experience of leisure. Questions about the understanding of the subjective effects that this way of life entail for humanity begin to arouse the interest of various fields of knowledge. Therefore, taking the psychoanalytic notion of malaise, this theoretical-bibliographic study aims to provide insights into the phenomenon of digital hyperacceleration, by promoting a dialogue between psychoanalysis and studies on contemporaneity and leisure. In this context, psychoanalysis, by placing itself as a space of experience that produces effects of signification, would allow the subject to occupy a position beyond his or her place in a hyperaccelerated society, seeming, in this way, to provide some clues to think on the leisure experience in cyberculture and its respective importance.

Keywords: Psychoanalysis, cyberculture, digital, leisure.


RÉSUMÉ

Tous les changements technologiques nous invitent à réfléchir sur nos formes de compréhension des phénomènes sociaux et ses effets sur les sujets. Aujourd'hui nous avons à notre disposition de nombreuses machines qui répondent aux nécessités humaines, mais, même avec les apparentes facilités produites par la cyberculture, il semble que nous sommes toujours en état d'attente de la prochaine information, en attente de la prochaine nouvelle urgente qui apparaîtra sur nos écrans. Notre expérience existentielle du malaise face au processus de la cyberculture acquiert des nouveaux contours. La hyperconexion au numérique semble produire un sentiment d'instantanéité que nos empêche la réflexion et l'expérience du temps libre du loisir. Des questions à propos de la compréhension des effets subjectifs liés à cette forme de vivre, commencent à réveiller l'intérêt de plusieurs champs de connaissances. Donc, à partir de l'idée psychanalytique de malaise, cet étude, de caractère théorique, a pour but discuter le phénomene de la hyperaceleration numérique, en dialogue avec les études sur la contemporaineté et les études sur le loisir. Dans ce sens, la psychanalyse, comme une pratique qui produit effets de signification, pourrait, peut-être améner le sujet à une position au-delà de sa place dans une societé hyperacelerée et de ce fait, pourrait fournir certaines indications pour penser à l'expérience du loisir dans la cyberculture et à son importance respective.

Mots-clés: Psychanalyse, cyberculture, numérique, loisir.


 

 

Toda remodelação tecnológica convida à reconstrução de nossas formas de compreensão dos fenômenos sociais e os impactos nos sujeitos de seu tempo. Tememos por seus efeitos devastadores e sonhamos com suas benesses. Freud (1927/2014) acreditava no progresso científico através da técnica como grande força substitutiva frente as ilusões humanas. Já Lacan tem uma proposição menos otimista. É enfático ao afirmar que "não existe progresso, no sentido de que este termo implicaria uma solução feliz" (Lacan, 1992, p. 112). Afinal, se não há como saber o que perdemos, não podemos avaliar exatamente o que ganhamos frente ao que é chamado de progresso científico-tecnológico.

Mesmo assim, as transformações de um tempo trazem consequências e reformulações nas formas de vida, deixando relíquias e ruínas que passamos a cultivar como cultura, imbricada ao nosso processo de civilização e à experiência que atravessa o tempo. Sequelas de um futuro que não pode ser antecipado, que, como nos advertia Freud, "quanto menos se sabe do passado e do presente, tanto incerto é o juízo acerca do futuro" (1927/2014, p. 232).

Freud (1930/2010, p. 52) parece antever o diagnóstico de nosso tempo, a partir das possíveis consequências dos inimagináveis avanços da ciência e da técnica, em que o homem transforma-se em uma espécie de "deus protético". Entretanto, Freud foi sempre taxativo ao afirmar que tais avanços não suprimiriam o mal-estar, ou seja, a relação do homem com a tecnologia no progresso civilizatório produz um embaraço, ao qual devemos nos manter atentos.

Agora, temos gerações nascidas e completamente criadas com acesso farto e irrestrito à vida digital. Questões sobre a compreensão acerca dos efeitos subjetivos que tal forma de vida acarretam à humanidade começam a despertar o interesse de vários campos do conhecimento. A psicanálise, como uma teoria de seu tempo, não está alheia a tais inquietações acerca das novas formas de sofrimento e sintoma que nossos tempos produzem no sujeito. Faz-se necessário um olhar clínico, crítico e advertido para tais implicações acerca de seus efeitos e práticas na gramática discursiva contemporânea e as novas aparições do mal-estar.

Hoje temos à nossa disposição inúmeras máquinas que respondem a necessidades humanas sentidas e criadas ao longo da história de nossa civilização e cultura. Máquinas como o avião, o carro e o telefone, que nos ajudam a poupar o tempo, diminuindo os espaços. Máquinas como rádios, video players e videogames, que são utilizadas para "enriquecer" o tempo. Máquinas que servem para estocar o tempo, como computadores, pendrives e secretárias eletrônicas, substituindo nossa memória. Há ainda as máquinas de programar o tempo, como despertadores, cronômetros e agendas eletrônicas. E, mesmo assim, parece que continuamos em estado de alerta, esperando pela próxima informação e notícia, esperando sempre pela próxima urgência que surgirá instantaneamente em nossa tela (Dutra, 2015).

Para Han (2016b), nossa relação com os aparelhos digitais que compõem as tecnologias de informação e comunicação (TICs) torna-se quase obsessiva, compulsiva. "Os aparelhos digitais tornam móvel o próprio trabalho" (Han, 2016b, p. 46), exacerbando a formalização lógica da produtividade contemporânea. Com a internet, a veiculação intensa das redes sociais digitais reforça maciçamente uma coação da comunicação e uma transparência da informação, que, para o autor, resulta da lógica do capital.

A internet quebra o paradigma espacial geográfico de maneira extrema. Nossa sensação temporal é intensificada. A hiperconectividade imersiva no digital parece produzir um sentimento de instantaneidade. A velocidade com que as informações circulam no espaço da internet trazem a sensação aparente de simultaneidade espaço-temporal. O gadgets, tais como computadores pessoais portáteis, smartphones, tablets, óculos de realidade virtual e aumentada, relógios inteligentes, consoles de videogame, dentre outros equipamentos que surgem a cada dia, passam a nos acompanhar a todos os lugares, nos mantendo conectados 24 horas por dia, na rede e com pessoas em todo o planeta. Os esforços da ciência produzem um verdadeiro arsenal digital em massa.

As tecnologias digitais, como um dos grandes triunfos produzidos pelo discurso tecnocientífico em aparceiramento com a lógica do capital, promovem a falsa promessa de um mundo sem limites (Lebrun, 2004, p. 34). Um mundo sem proibições, sem o desamparo da castração. O mundo da hiperdisponibilidade, da urgência e do extremo da positividade. Dentre outras coisas, parece que a imersão excessiva no "digital desmonta o Real e totaliza o Imaginário, submetendo a uma reconstrução da tríade lacaniana do Real, Simbólico e Imaginário", segundo Byung-Chul Han (2016b). Obviamente, Han é impreciso nessa afirmação, pois, seguindo a construção teórica lacaniana, há uma impossibilidade de desmonte de cada um dos registros que compõem o nó borromeano ao qual o autor se refere. Acreditamos, seguindo Žižek (2013), que há uma totalização do Imaginário justamente pela imaginarização redundante da crença no apagamento do Real que a hiperimersão no digital parece promover. Pretendemos trazer essa discussão mais adiante.

Portanto, as inovações tecnológicas produzidas nas últimas décadas, intensificadas principalmente no século XXI, exacerbam a partícula hiper da modernidade (Lipovetsky & Serroy, 2011). Assistem a uma sociedade que incessantemente busca o desempenho, o resultado, a produção e a hiperconexão, resultando em um extremo e excessivo cansaço, no qual o homem é posto ao ato sem ação, reflexo da aceleração do tempo, que impossibilita a introdução do tempo de ócio (Han, 2016a, 2017b).

Como observa Martins (2018, p. 40) "na sociedade hiperconectada não há a condição da contemplação, reduz-se o homem a um constante fazer e parecer fazer, não ser e parecer ser" a contemporaneidade, temos que estar informados, não há espaço para a criação e a invenção, não há tempo para a contemplação e para o ócio. Neste trabalho, trataremos o ócio a partir da acepção de Martins (2013, 2018), que propõe o ócio como experiência desejada, livremente escolhida, experiência esta autêntica de criação, contemplação, autonomia, relacionada ao "florescimento da vida, no qual se convoca um eterno criar-se e recriar-se" (Martins, 2018, p. 42). Em outras palavras, o ócio configura-se como um desafio e uma forma de resistência em nossos tempos de tecnicismos e aceleramentos, em que, por exemplo, a própria experiência temporal de um processo analítico é atacada por terapias que prometem como resultado o aumento de produtividade e podem ser facilmente acessadas pela internet.

Como podemos notar, nossa experiência existencial do mal-estar frente ao processo cultural ganha novos contornos com a própria busca incessante de uma linguagem técnica que o suture. Sendo assim, pretendemos, a partir das contribuições de Rosa (2016) acerca do método de pesquisa em psicanálise, nos alinharmos aos grupos de psicanalistas que têm formulado e privilegiado as articulações dos fenômenos sociais, políticos, culturais e subjetivos em suas práticas e produções. Com isso, faz-se "necessário que esse percurso inclua visitar outros campos de leitura dos fenômenos, tais como a história, a ciência política, a sociologia, a antropologia e a filosofia" (Rosa, 2016, p. 26). Portanto, acreditamos em um diálogo possível entre a psicanálise, como uma experiência teórico-clínica, e estudos sobre o ócio para trazer contribuições ao entendimento dos efeitos da hiperimersão do sujeito no ambiente digital promovido pela cibercultura - palavra esta que nos convoca a algumas contextualizações, esclarecimentos e apontamentos.

 

Sobre a cibercultura e as tecnologias digitais

A origem da cibercultura foi marcada por Norbet Wiener que, em 1947, logo após o fim da II Guerra Mundial, propusera o investimento moral e intelectual do planeta em uma nova forma de pensamento tecnológico, uma nova ciência que ficou conhecida como cibernética.

O pensamento cibernético, segundo seu propositor, deveria resolver através da técnica os mais notáveis problemas sociais e impasses políticos por meio da "sublimação funcional do ser humano em automatismos maquinísticos" (Rüdiger, 2016, p. 11). Essa proposta foi amplamente aceita, dando-lhe acesso não apenas a pesquisas tecnológicas de vanguarda, como também, por consequência, atraindo atenção de vários setores políticos e econômicos, interessados em como explorar e controlar as condições de vida coletiva numa economia de mercado em curso de massificação. A radicalização dessa proposta exacerba, ainda mais, o deus protético que Freud (1930/2010) descrevera, ganhando uma dimensão cada vez mais próxima do imaginário divino criador.

Um dos intelectuais de seu tempo, interessado em investir esforços na compreensão da cibernética, foi Jacques Lacan. Na penúltima aula do seminário de 1955, Lacan tratou de articular a cibernética e a psicanálise, percorrendo em sua aula a estruturação da linguagem matemática fundamental dos dispositivos cibernéticos em busca da natureza da linguagem. Para Lacan (1954/1955/2010, p. 398), a cibernética é um campo da ciência com fronteiras extremamente indeterminadas, pois "achar sua unidade força-nos a percorrer com os olhos esferas de racionalização dispersadas, que vão da política, da teoria dos jogos, às teorias da comunicação, e até mesmo certas definições da noção de informática".

Ao refletirmos sobre a figura do computador, do imaginário homem-máquina e de uma linguagem matemática capaz de, por meio de um equipamento, permitir a comunicação universal dos seres humanos, acessamos a gênese do pensamento iluminista científico da modernidade. Com o investimento dos esforços no estudo da teoria geral de sistemas, ou seja, no comparativo dos sistemas e mecanismos de controle automático, regulação e comunicação nos seres vivos e nas máquinas, o projeto científico cibernético prescreveu "uma construção tecnocultural marcada pela hibridização entre a dimensão global das redes comunicacionais em tempo real e o contexto local do corpo e da experiência cotidiana sob o tempo que passa" (Trivinho, 2014, p. 26).

Com o advento da cibernética e dos processos históricos que ocorreram durante a segunda metade do século XX, a sociedade adentrou em um novo ciclo de desenvolvimento tecnológico, baseado na expansão da informática maquinística de processamento de dados e criação de redes de comunicação computacional. O processamento, controle e extensão do tempo surgem como propósitos desse projeto científico em expansão. O surgimento da expressão cibercultura situa-se nesse contexto e, segundo Rüdiger (2016), deve sua criação à engenheira, informata e empresária norte-americana Alice Hilton em 1964, ano em que fundou o Institute of Cybercultural Research.

A engenheira computacional foi pioneira ao usar a expressão cibercultura com significante manifestação, promulgando que a nova revolução em curso exigiria um desafio ético de escala global, seria então necessário discutir um novo processo cultural. No livro lançado após a primeira conferência anual sobre a revolução cibercultural, cibernética e automação, Hilton (1966) afirma que a humanidade está agora posta na situação de ter de escolher entre duas trajetórias determinantes: (1) a educação emancipatória e o lazer criativo e (2) a adaptação mecânica e a idiotia apática.

A pesquisadora sugere, com ares proféticos, que a revolução das tecnologias computacionais dará origem a uma espécie de "cibernação" de proporções globais em um curto espaço de tempo, e que, nela, uma situação calamitosa regressiva só será evitada com a promoção do que chamou de cibercultura. Com isso, tomando uma posição otimista em relação à cibercultura, Hilton afirma que a revolução cibernética exige uma remodelação dos processos e programas educacionais, pois só os seres humanos que aprenderem a usar as máquinas com sabedoria serão liberados para alcançar a sua excelência, acreditando claramente na cibercultura como processo educacional possível e promotor de experiências criativas.

Porém, atravessada pela lógica do capitalismo globalizado, a cibercultura, segundo Rüdiger (2016), seria resultado da exploração do pensamento cibernético originário e de suas circunstâncias. Surge com o objetivo de criar um sistema artificial capaz de desenvolver funções humanas, de acordo com "um projeto que se vai criando historicamente, mas que, como tal, vai incorporando inúmeras ordens de outros fatores" (Rüdiger, 2016, p. 10). Tal construção conceitual passa a levar sua ideia central a perder a conexão primeva com aquele pensamento cibernético originário e seus desenvolvimentos especializados, "a projetar-se de um modo cada vez mais cotidiano e profano, em que só de forma muito mediada, estranha para o seu sujeito, está em jogo a cibernética" (Rüdiger, 2016, p. 10).

Cibercultura é a expressão que serve à consciência mais ilustrada para designar o conjunto dos fenômenos cotidianos, agenciado ou promovido com o progresso da telemática e seus maquinismos. Afinando o conceito um pouco mais, pode ser definida como "a formação histórica, ao mesmo tempo prática e simbólica, de cunho cotidiano, que se expande com base no desenvolvimento das novas tecnologias eletrônicas de comunicação" (Rüdiger, 2016, p. 11).

Nessa perspectiva, a cibercultura diz respeito ao momento em que a convergência das linhas de pensamento científico da cibernética e telemática saem do domínio do conhecimento pela base. Ou seja, saem do domínio exclusivo e preponderante das grandes corporações e dos governos, passando a integrar o cotidiano comum das pessoas, graças à transformação dos computadores em equipamentos domésticos e portáteis, que se convertem em plataformas ou fenômenos de costumes teoricamente democráticos (Rüdiger, 2016), na linha de fuga sistêmica e de expressão molecular da sociedade capitalista. Castells (2003) reflete acerca dessa temática ao trabalhar o conceito de capitalismo informacional, tendo como característica as práticas econômicas relacionadas à terceira fase de desenvolvimento do capitalismo neoliberal, e que tem como mola propulsora o acúmulo e uso de conhecimento informacional, principalmente na área de tecnologia da informação e comunicação.

Com isso, o fenômeno da cibercultura seria concebido em gênese pela convergência do pensamento cibernético e da telemática com as organizações de uma cultura popular que são articuladas em conformidade com o que foi denominado de indústria cultural por Adorno e Horkheimer (1985). A concepção de indústria cultural, para os filósofos frankfurtianos, envolve não apenas o atrelamento da arte e da mídia aos grandes monopólios do capital como também aos princípios que regem a produção pela via da "estandardização da própria coisa" e a "racionalização das técnicas de distribuição" (Adorno, & Horkheimer, 1985, p. 100).

Para expandir essa linha de pensamento, seguindo o sociólogo espanhol Manuel Castells (2016), quando o progresso tecnológico e a expansão do capital confluem no sentido da exploração do campo da cibernética e da telemática e, por esse caminho, os dispositivos tecnológicos digitais são convertidos em bens de consumo de massa, estão configuradas os alicerces da sociedade em rede. Acrescentamos aqui a expansão da cibercultura e a colonização do ciberespaço - mundo próprio criado pela cibercultura - pelos sistemas e práticas da indústria cultural que, já no início do século XX, estava se convertendo em princípio geral de construção da nossa sociedade contemporânea.

Logo, por volta dos anos 1990, a internet iniciou seu percurso de popularização como uma das principais ferramentas de comunicação. Sua exploração mercadológica e publicitária, como observa Rüdiger (2016), se torna relevante, desde esse período em diante, à formatação da sociedade contemporânea. Diversos intelectuais, de vários campos do conhecimento, passam a investir seus interesses de estudo na crescente cultura cibernética. O surgimento do que passa a ser nomeado de cibercultura tem como causa, sobretudo, a revolução dos novos dispositivos tecnológicos de uso comum por partes de toda a sociedade, desde as pessoas às instituições. Porém o autor chama atenção para o fato de que os aparatos eletrônicos computacionais e a internet já são, eles mesmos, efeitos do que se pode nomear de cibercultura.

A cibercultura pode ser entendida como uma formação histórica de cunho prático e cotidiano, cujas linhas de força e rápida expansão, baseadas nas redes telemáticas, estão criando, em pouco tempo, não apenas um mundo próprio, mas, também, um campo de interrogação intelectual pujante, dividido em várias tendências de interpretação (Rüdiger, 2016, p. 7).

Assim como a pólvora mudou o movimento, o papel mudou a memória, a bússola mudou o espaço e o relógio mudou o tempo, as tecnologias digitais, como efeito da cultura cibernética, nos dispõem uma infinidade de dispositivos maquinísticos que nos ajudam a administrar e calcular de forma imediata a memória, o espaço e o tempo. "A era digital totaliza o aditivo, o calcular e o enumerar" (Han, 2016b, p. 47). Tal contexto parece desencadear efeitos e consequências nos sujeitos em uma sociedade hiperacelerada, que, segundo Turkle (2011), nunca esteve tão conectada e com o sentimento de solidão tão presente.

 

Sobre o mal-estar na cibercultura

O processo civilizatório, como nos lembra Freud (1930/2010), é muito difícil para nós. Traz muitas dores, decepções, tarefas insolúveis. Nosso processo civilizatório surge na tentativa de lidar com três fontes primárias de sofrimento, a saber: as forças incontroláveis da natureza, a finitude de nossos corpos e a fragilidade das regras que regulam as relações humanas. Freud também traz três recursos paliativos que não podemos dispensar frente ao sofrimento: "poderosas diversões, que nos permitem fazer pouco de nossa miséria, gratificações substitutivas, que a diminuem, e substâncias inebriantes, que nos tornam insensíveis a ela" (Freud, 1930/2010, p. 28).

Então, Freud (1927/2014) afirma que o principal e primevo objetivo da cultura é nos proteger frente às forças da natureza. Um dos métodos que tende a evitar o desprazer frente às forças naturais, sejam humanas ou da natureza, é através da técnica oriunda da ciência. Esta desenvolve aparatos técnicos na busca de submeter a natureza à vontade humana (Freud, 1930/2010). Porém o processo civilizatório produz efeitos e cobra seu preço. Exige dos homens um forte grau de renúncia pulsional, descentrando e deslocando a subjetividade humana. O mal-estar então passa a ser condição existencial humana frente à cultura, não apenas ligado a uma sensação desagradável frente ao destino, mas um sentimento de perda de lugar, a experiência real de estar fora de lugar (Dunker, 2015). O processo de hominização e a entrada do homem na cultura produzem, como resultado dessa operação, sempre um resto como marca da angústia no cerne da experiência humana (Pinheiro, & Carneiro, 2013).

Nessa linha, a psicanálise já nos adverte que a fala é tomada enquanto artifício, ou seja, intervenção técnica do homem sobre o mundo natural que determina o ser falante, além de sua mera condição de ser vivo (Pinheiro, & Carneiro, 2013). Sobre isso Lacan (1964/2008) explica que a linguagem abriu ao homem essa margem para-além da vida. Já que falamos, somos marcados pelo significante numa relação para sempre não natural com o mundo. É justamente neste ponto que Freud (1930/2010) estabelece o mal-estar na cultura como a presença da insistente pulsão de morte como condição do processo de hominização dos seres humanos. Obviamente, isso não é sem consequências e, como afirmam Pinheiro e Carneiro (2013), o preço pago pelo homem por sua condição de ser simbólico é ser atravessado por essa estrutura simbólica que instaura o gozo e a falência de qualquer projeto esférico e totalizante para a satisfação do homem, isto é, a eterna busca pela felicidade.

A intervenção técnica na vida humana não elimina o sofrimento, ao contrário, participa ativamente na produção de uma espécie de sofrimento que caracteriza a civilização no sentido estrito: o mal-estar. Com o passar do tempo, a humanidade vivencia mal-estar em sua condição de não mais completa imersão no mundo natural e instintivo, ou seja, experiencia o mal-estar no adiamento da satisfação pulsional, na diferenciação entre sujeito e objeto e na sofisticação das formas de caça e novas formas de associação com o outro que as ferramentas propiciaram.

O desenvolvimento das tecnologias como desdobramento de nossas capacidades simbólicas tem como consequências uma dupla saída: de um lado alivia o sofrimento, e de outro gera mal-estar (Lacan, 2005). Dessa forma, a civilização é indissociável da tecnificação (Pinheiro, & Carneiro, 2013). É o preço que se paga: renúncia pulsional e o gozo da pulsão de morte. É justamente a pulsão de morte que se impõe ao ciclo monótono do prazer-desprazer. Ao mesmo tempo rompe com o preconceito de que a cultura seria um produto evidente de um progresso. É em cima dessa premissa que Freud (1930/2010) constrói sua teoria do mal-estar no processo civilizatório.

Frente ao apontado, afirmamos que a cibercultura e o advento do digital formam construções técnicas que atualizam questões das mais variadas levantadas por Freud. O efeito do discurso da ciência e do mercado parece trazer novas formas de controle sobre os domínios individuais e sociais, configurando transformações no processo cultural e civilizatório em nossa sociedade contemporânea. O mal-estar estabelecido por Freud (1930/2010) está no cerne do movimento dos esforços civilizatórios, e a tentativa de eliminá-lo criou recursos para superar seu desamparo e suas debilidades. Žižek (2006) observa que o discurso tecnocientífico neoliberal da universalização busca substitutos estéticos para o preenchimento do buraco existencial humano.

Sendo assim, as intervenções técnicas ou tecnológicas que nossa sociedade produz não eliminam o mal-estar humano, ao contrário, ao intervirem na humanidade com o objetivo de subjugá-lo, elas produzem angústia como subproduto de sua oferta de eliminação de sofrimento (Pinheiro, & Carneiro, 2013). Temos aqui um duplo sentido na relação da humanidade com aquilo que acreditamos ser o progresso tecnológico. Enquanto a tecnologia e a ciência tornaram-se fortes aliadas nos esforços do processo civilizatório, passam a encobrir aos humanos mais uma ilusão: a possibilidade de construir uma civilização sem o sentimento de descolamento, sem angústia, sem falta, sem mal-estar. Como reiteram Pinheiro e Carneiro (2013), as invenções e os avanços tecnocientíficos não cessam de procurar respostas aos temores da humanidade, isto é, a verdade sobre a morte, o desamparo, a dor e o sexo.

Seguindo essa tratativa, Miller (2011) afirma que estamos "desbussolados" desde que inventaram a bússola. Segundo o autor, desde que saímos de uma sociedade agrícola para uma sociedade dominantemente industrial, o desamparo humano radicalizou-se. Nesse sentido, até meados do século XIX a moral sexual civilizada ou cultural nos serviu como bússola, uma espécie de esteio para o desamparo. Esse movimento culminou naquilo que chamamos de tecnociência - tomamos aqui a cibernética como uma capilarização da tecnociência e promotora da cibercultura -, como o princípio de um discurso prevalente na contemporaneidade e que, como discurso, tem efeitos na posição do sujeito diante de sua satisfação pulsional.

Jorge Forbes (2011) corrobora essa posição nos chamando atenção para o aspecto de que há hoje uma horizontalização das percepções racionais. Segundo o autor, a primeira modernidade era composta por uma sociedade "pai-orientada", organizada verticalmente, onde o grande desafio era descobrir como chegar à diretoria, ao topo da pirâmide familiar ou profissional. Hoje, a questão é: aonde ir? O homem está desorientado, ou seja, houve uma perda de referências que coincide com o advento da globalização, a chegada da segunda modernidade, ao estatuto hiper das coisas, a hipermodernidade.

Se a bússola da civilização era a moral sexual prevalente na cultura, hoje os objetos "a " em suas faces paradoxais são elevados à condição de orientação para a sociedade. Portanto a relação que o sujeito mantém com o objeto de seu desejo é uma relação de aproximação e repulsa.

Na teoria lacaniana, o objeto a traz a marca da falta de objeto que a pulsão porta, há uma constante familiaridade, sempre estrangeira, que permeia todo arrolamento humano, que mantém a relação do sujeito do inconsciente com o outro idealizado, o grande Outro (Pinheiro, & Carneiro, 2013). Esse objeto a é justamente um dos principais conceitos da obra de Jacques Lacan. Tal conceito lacaniano surge para demonstrar, a partir da lógica, aquilo que se perde na operação de linguagem em sua apreensão da verdade. Como infere Danziato (2010), a construção lógica fornece o modelo de como produzir uma escrita do impossível, permitindo assim que Lacan avance na conceituação do impossível não mais como contrário do possível, mas como oposto do possível, o Real.

Dessa forma, Pinheiro e Carneiro (2013) afirmam que os efeitos hegemônicos do discurso da tecnociência são tamanhos, podendo ser comparados apenas à revolução criada pela transição da cultura oral para a escrita na história da humanidade. O digital é um dos efeitos técnicos dessa forma discursiva atual, seus efeitos sobre o mal-estar e o Real na atualidade podem ser uma pista sobre os rumos futuros de nossa cultura. Se tomarmos a tecnociência como discurso hegemônico na contemporaneidade, a visão determinista parece ganhar fôlego.

Embora possamos tomar decisões sobre como utilizar a tecnologia ou sobre quem tem ou não acesso a ela, isso não significa que no campo discursivo tenhamos muito controle sobre os avanços tecnológicos. Mais confuso ainda seria controlar os efeitos desse discurso que remodela a atividade humana e seu significado (Carr, 2011). A tecnociência não pode ser tomada meramente como auxílio à atividade humana civilizatória, mas como uma montagem de discurso que tem sua própria lógica e envolve um momento crucial para a civilização e suas formas de trabalhar com o mal-estar (Pinheiro, & Carneiro, 2013).

A cibercultura, como expressão do discurso tecnocientífico, convoca a uma constante avaliação sobre como o sujeito deverá responder quando chamado a assumir uma posição ética que implique sua condição de sujeito falante, dividido entre saber e verdade, entre desejo e gozo.

A tecnociência, ao funcionar sob o primado da pulsão de morte, revela o que de não-humano há no seio do humano. O desenvolvimento da técnica e da racionalidade é fruto, em grande parte, da pulsão de morte modificada em sua meta de satisfação plena, isto é, o gozo do encontro com o objeto da pulsão (Pinheiro, & Carneiro, 2013).

Desse modo, a cibercultura produz bens de consumo, os gadgets, que visam ocupar o lugar de objeto a e se colocam como hipótese de satisfação (Lemos, 2016). Já que o mercado produz uma oferta contínua e sempre renovada, fabrica-se a ideia de que um novo objeto-produto pode sempre ser melhor e entregar o a mais de satisfação ao substituir o anterior, abastecendo igualmente as leis do capital.

A tecnologia, consequentemente, simula a proximidade a partir de ilusões que condensam imagem e voz, mas a presença não pode se resumir em significante e imagem (Rinaldi, 2011). Nesse contexto, como afirma Lemos (2016), a função das tecnologias de comunicação e informação pode aproximar-se ao recurso do aparato da fantasia, nisso de se estabelecerem igualmente como mediadores entre eu e o outro, ou seja, como uma espécie de escudo que resguarda o sujeito do outro.

Forbes (2012) afirma que, em um tempo passado, as pessoas se queixavam por não conseguirem atingir os objetivos que perseguiam. No tempo presente, quase ao avesso, as pessoas se queixam pelas múltiplas possibilidades que se oferecem. Segundo o autor, se ontem se analisava para se compreender mais, para ir mais fundo, hoje se dirige o tratamento ao limite do saber, onde surge a necessidade da aposta, na precipitação de um tempo sempre incompleto. Não temos tempo para sofrer, não temos tempo para experienciar, não temos tempo para o tempo de ócio. É tempo de consumir, conectar e informar. Tal como ocorre com a realidade material, o drama na realidade digital reside nas incertezas da valoração e dos processos de identificação (Forbes, 2012).

Já o psicanalista Christian Dunker (2017) nos traz menções diagnósticas das narrativas de sofrimento do nosso tempo a partir do modo de vida digital, de nossa sociedade hiperconectada. Segundo o autor, parece improvável que estejamos vivendo formações sintomáticas específicas com o uso exacerbado e intoxicante da vida digital, "os sintomas serão provavelmente difusos e a epidemia virá sem que entendamos seu processo de transmissão" (Dunker, 2017, p. 119).

Como expusemos até aqui, as formações discursivas que fazem laço em nossa sociedade, apresentadas por Jacques Lacan, representam a posição do sujeito em sua relação com o outro. Desse modo, Dunker (2017, p. 119) afirma que "a intoxicação digital crônica é uma patologia discursiva", ou seja, deve ser entendida simultaneamente como uma alteração do laço social, da economia de gozo e da relação de reconhecimento, que, segundo ele, são três perspectivas que presidiram a construção do conceito de discurso em Lacan.

Para Dunker (2017), a vida digital vem sendo caracterizada por três posições ou disposições subjetivas: o aumento da velocidade das demandas, ou seja, trocas e acesso fácil a informações; a superficialidade dos contatos interpessoais, com a redução da espessura imaginária da vida fantasística, e o correlato aumento de sua extensão; e a introdução de práticas que substituem o conflito, como "a evitação situacional por meio da exclusão, invisibilidade ou indiferença" (Dunker, 2017, p. 121). A hipótese do autor é que a intoxicação digital decorre de uma nova moral sexual civilizada que altera difusamente práticas sociais e o uso da linguagem. Como os ecrãs táteis que Han (2016b) exemplifica, superfícies de imagem que, quando tocadas, determinam alterações no padrão de continuidade e transformação da imagem. Então, com a hiperconexão, a entrada na linguagem, a aquisição da fala e a generalização da extensão simbólica fundam um tipo de demanda com uma forma de discurso, concluindo a formação de um modo de subjetivação marcado pela intoxicação digital crônica (Dunker, 2017).

Sendo assim, há um problema na demanda do sujeito causada pelo anonimato calculado do discurso digital, sendo identificada como uma depressivização do desejo (Dunker, 2017). Esse é um traço clínico que Dunker (2017, p. 143) articula à intoxicação digital, afirmando que ela é "uma patologia do reconhecimento, baseada na suspensão do pedir e na petrificação do sujeito na posição do 'não é isso'". Essa patologia do reconhecimento é a função desencadeadora de um segundo problema identificado pelo autor: a suspensão do laço social definido pelo discurso.

Em nosso tempo digital, cronometrado por máquinas que parecem acelerar a substância de nossas vidas, as revoluções provocadas pela cibercultura resultaram, com o tempo, na extrapolação das atividades produtivas e, desse modo, passaram a influenciar na existência cotidiana, conforme dito anteriormente, desde antes do surgimento das primeiras tecnologias digitais. Agora nosso mundo passa por um movimento cada vez menos silencioso de transformações conduzidas tecnologicamente. É tempo do excesso, da hiperaceleração sem experienciação, da hiperconexão sem laço, da transparência e do cansaço. O digital parece exacerbar a busca incessante por um excesso de tempo que não se vive.

 

Sobre a hiperconectividade transparente e a hiperaceleração digital

Para Žižek (2006), existem duas tentações a que se deve resistir, uma falsa oposição na matriz do pensamento, tanto otimista, quanto pessimista em relação à navegação no ciberespaço e o mundo digital. As consequências da hiperconectividade no digital extrapolam a polarização de um multiverso de possibilidades tanto utópicas quanto distópicas.

O autor nos chama a atenção para que evitemos a percepção da realidade real como simplesmente uma dentre uma multidão de realidades virtuais, ou seja, evitemos afirmar que "a realidade seja mais uma janela de computador" (Žižek, & Dally, 2006, p 122), bem como "são janelas com portas, que sem espaços nem instâncias intermédias, comunicam com outras janelas" (Han, 2016b, p. 28). Žižek acena aí para uma falsa oposição entre as duas concepções, segundo ele equivocadas, da realidade: ou temos uma plenitude de realidade fora do digital, ou não existe realidade externa e a vida real é meramente outra janela.

Acerca da discussão sobre a falsa oposição exposta, Žižek (2006) critica a moda otimista de utilização do ciberespaço, ou espaço digital, como um novo campo de ação protocomunista ou ciberutópico. Segundo o filósofo esloveno, essa linha de pensamento seria o campo de inteligência coletiva em que os seres humanos passariam a viver como entidades virtuais, flutuando livremente em um espaço compartilhado e trocando informações para a construção de um processo otimizado e socialmente livre. Han (2016b) corrobora essa crítica ao afirmar que há, no meio digital, uma exigência de tornar transparente o próprio ato de escrever. Com isso, a lógica hipertextual equivale à própria liquidação da escrita. Escrever seria uma atividade exclusiva e singular, enquanto a escrita coletiva, transparente, é meramente aditiva, não tem a capacidade de engendrar o completamente outro, a singularidade.

Žižek (2006) estende sua crítica aos pensadores tecnoconservadores, aqueles que acreditam em um processo tecnoapocalíptico onde a humanidade será controlada pelas grandes corporações que detiverem os códigos digitais ou por inteligências artificiais superiores à nossa. Esse pensamento, segundo Žižek, enxerga o ciberespaço apenas como uma armadilha ilusória, que solapa o potencial humano e sua capacidade de exercer a verdadeira liberdade e autonomia. Pensadores dessa abordagem militam por um uso controlado da tecnologia e, para sanar essa problemática, aprender a regular o ímpeto tecnológico. Para Žižek, ambas as posições otimistas e pessimistas desconsideram a existência do Real (R) e do sujeito ($).

No entanto, é preciso entender dois pontos que perpassam a construção da realidade virtual em oposição à realidade Real, como Žižek a nomeia. Ao consumir os objetos high-tech desenvolvidos no século XXI, a humanidade passa a ter acesso a um novo ambiente de realidade. A realidade virtual digital surge como uma nova promessa de atualização das fantasias e um novo jeito em lidar com o sofrimento da realidade material (Nobre, & Moreira, 2013).

Žižek é categórico ao dizer que "o modo como a digitalização afetará nossas vidas não está inscrito na própria tecnologia" (Žižek, & Daly, 2006, p. 119). Para ele, não é que houve uma realidade anterior e que nesse momento estamos vivendo na realidade virtual proporcionada pelos dispositivos digitais, mas sim que aprendemos que nunca houve uma "realidade", no sentido da experiência imediata, ou não mediada, seja pelo tempo de assimilação simbólica, seja por um objeto a de bolso. Ou seja, a própria realidade em si é não-toda.

Há uma lacuna na própria realidade, e a fantasia é precisamente o que preenche essa lacuna. A virtualização é possibilitada justamente porque o Real abre uma lacuna na realidade, que é então preenchida pela virtualização (Žižek, & Daly, 2006, p. 119).

O núcleo de nossa subjetividade é um vazio preenchido por aparências (Žižek, & Daly, 2006). O discurso tecnocientífico neoliberal da universalização preconiza a noção de positividade. A mercadoria como um substituto estético para o preenchimento do buraco existencial humano, que não consegue, de fato, ser preenchido, já que o objeto todo é menor que a promessa e aponta para a divisão do sujeito. Essa falha proposital tem incidência no Real. Como não conseguimos preencher a verdade do Real, trocamos de objetos a na esperança fantasmática de que um dia a ciência chegará lá. "Portanto, consuma!". Eis o imperativo superegoico da lógica de consumo. O consumo que produz um uso excessivo, quase que incontrolável de tais objetos, revela que há algo de pulsional em jogo, um gozo com esses objetos tecnológicos (Lima, & Generoso, 2016).

A tentativa de aplacar o Real através dos meios digitais incide diretamente na forma de comunicação digital. Segundo Han (2016b, 2018), por conta da eficácia da comodidade da comunicação digital, além de evitarmos cada vez mais o contato direto, o contato com o corpo de pessoas reais, passamos a evitar o contato com o Real de maneira geral, alimentando assim uma proliferação do igual, uma mesmidade e sua profícua capacidade de autodestruição. Para Žižek (2006), o referente supremo de nossa experiência é o mundo da vida real. As atividades no ciberespaço procuram romper com essa noção e, ao furar nossa ligação com esse mundo, geram fenômenos como os jogos de automutilação, ou ainda o fascínio pelas catástrofes, violências, dentre outros fenômenos que devem ser compreendidos como outras tentativas desesperadas de retorno ao Real.

Surge aqui outra situação a ser evitada: é preciso afastar a ideia do Real como mundo vital supremo, o Real lacaniano é "mais real que a realidade" (Žižek, & Daly, 2006, p. 221). Como tal, o Real intervém nas rupturas da realidade que a linguagem não compreende. Lacan (1969-1972/1992) aponta que o Real não é para ser sabido, e acrescenta que por isso mesmo ele é o único dique capaz de conter o idealismo. O Real é, portanto, aquilo que sinaliza, permanentemente, o impossível.

A celebração dos novos potenciais tecnológicos a partir das revoluções da nanotecnologia, biotecnologia, informática e cognição, conhecida como NBIC (Alexandre, 2018), eleva à máxima potência o princípio neoliberal da positividade e recusa radicalmente a negatividade do sujeito. Ampliando ou suprimindo a diferença sexual, criando outras possibilidades frente à morte e novas intervenções no corpo, multiversos computacionais de comunicação em massa, desenvolvimento de inteligências artificiais e intervenções neuronais, o discurso tecnocientífico busca tamponar o Real da falta em relação ao corpo, a natureza e as relações humanas, mercantilizando o consumo das máquinas tecnológicas e prometendo, como Žižek aponta, um a mais de gozo.

Nessa perspectiva, as formas discursivas atuais efetivam e buscam a transparência (Han, 2017b). O discurso neoliberal evoca enfaticamente o tema da liberdade de informação, promulgando uma intensificação fetichista acerca da transparência, tornando-o um tema totalizante. Segundo Han (2016a, 2017a, 2017b, 2018), a sociedade da negatividade dá espaço a uma sociedade que passa a desconstruir a negatividade em favor de uma positividade. Portanto a sociedade da transparência, que busca aplacar a todo custo o sujeito, "é um abismo infernal do igual" (Han, 2017b, p.10). Ao mercantilizar a informação, o imperativo da sociedade da transparência é: "tudo deve ser aberto e disponível, sempre ao alcance de todos e a qualquer momento" (Han, 2017b, p.10).

Ora, com isso, a quantidade excessiva de mídias comunicativas que promovem a transparência informacional se expressa como adiposidade, massificação e proliferação obscena. Para Han (2016a, 2017b), a sociedade torna-se obscena quando os sujeitos são privados de toda narratividade, de todo direcionamento, de todo sentido. As atividades, vinculadas à economia de mercado, à produtividade e à intermedia digital, proliferam e crescem sem objetivo, sem forma, residindo a obscenidade na hiperatividade, na hiperprodução e na hipercomunicação. Os três estatutos descritos pelo autor caracterizam a hiperaceleração contemporânea, que não move, não faz agir, não leva adiante, é meramente aditiva. Portanto, a transparência contemporânea busca aplacar a sensação Real de estar fora de lugar, o mal-estar, mercantilizando tudo, produzindo sujeitos hiperacelerados e hiperconectados.

 

Sobre o sujeito e o ócio na contemporaneidade digital

A sociedade da transparência elimina o tempo da experiência, as cerimonias, os rituais, a singularidade. Na tentativa de aplacar o Real e o sujeito, a disposição discursiva na cibercultura precisa operacionar as metas, objetivar os processos, o singular e ritualístico, características do sujeito que atrapalham a circulação da informação, da comunicação e da produção. Assim, como outrora mencionado: "o imperativo do rendimento neoliberal transforma o tempo em tempo de trabalho" (Han, 2016b, p. 45). Desse modo, não há tempo para a experiência de ócio, pois não se abre possibilidade para o tempo de apropriação subjetiva (Han, 2016a; Martins, 2018).

A informação transparente não permite o ócio do saber como experiência criativa. Não faz conhecer, hiperacelera a comunicação em ato, sem ação, pois a ação, segundo Han (2016b), pressupõe um trabalho de resistência, habita-se a negatividade. Ao passo que a contemporaneidade visa à positividade, busca eliminar todo tipo de resistência, eliminando, portanto, as ações. Atualmente, "o sujeito é marcado por um excesso que o lança sempre a mais atividade para livrá-lo o máximo possível de sua angústia" (Martins, 2018, p. 39) e, como vimos, o mal-estar permanece, sendo inscrito em novas formas na contemporaneidade.

A informação parece deslizar como mais um objeto a produzido pelo discurso tecnocientífico. "A transparência é a essência da informação. É o modo de proceder da comunicação digital" (Han, 2016b, p. 51). Posto isso, Han (2017b, p. 37) é categórico ao afirmar que "a transparência é a morte do desejo".

Seguindo os passos da teoria lacaniana, o filósofo sul-coreano sugere que o digital, na busca de uma positividade, opera tentativas de desmonte do Real, totalizando o Imaginário a partir da transparência. "Os smartphones fazem as vezes de um espelho digital na nova edição pós-infantil do estádio do espelho" (Han, 2017b, p.34). Abre um estádio narcísico, uma esfera do imaginário, na qual todos nós nos incluímos, pois no celular não é o outro que fala. A partir desse momento, o olhar do outro, um olhar que vem do Real, é retirado de cena. Há a promessa de que não existe o perigo de irrupção do Real, nem do outro. Segundo Han (2016b), esses aparelhos digitais rasuram toda forma de negatividade. Como Žižek (2013) já expunha, buscam, sem sucesso, aplacar toda manifestação do Real.

A experiência, enquanto irrupção do outro, interrompe, através de sua negatividade, o narcisismo imaginário. Afinal, "a negatividade do outro dá forma e medida a uma mesmidade" (Han, 2018, p.11, tradução nossa), que, sem isso, seria apenas uma massa amorfa. Já a positividade, inerente ao digital, reduz a possibilidade de uma experiência semelhante. No digital, através do toque com a ponta dos dedos, dispomos do outro (Han, 2016b). Para Han (2016b, p. 36), "Lacan, se vivo, diria que o touchscreen, como ecrã tátil, se distingue categoricamente da imagem-ecrã que nos protege do olhar do outro, ao mesmo tempo que o faz aparecer". A tela do smartphone é transparente, não tem olhar. Não há rosto transparente. O rosto que desejamos é sempre opaco. Essa negatividade da sombra que a opacidade denota é constitutiva do desejo. Portanto, a tela transparente dos celulares não permite qualquer desejo, já que o desejo é sempre suscitado pelo outro. "É precisamente pela sombra que se dá o brilho" (Han, 2016b, p.37), Seguindo a lógica do pensamento do filósofo sul-coreano, a transparência do outro, mediada pelos dispositivos tecnológicos, abala o sujeito desejante, que passa a ser bombardeado por objetos a - causa do desejo e, também, mais-de-gozar -, que assumem a forma da informação como fetiche mercadológico.

A informação digital, como produto na sociedade da transparência, parece exercer grande poder de hiperindividualização. "As novas massas são o enxame digital" (Han, 2016b, p. 22), já que esse enxame passa a ser formado por indivíduos isolados, carecendo de alma e de um sentimento de pertencimento, de união, de nós, capaz de uma ação comum ou de seguir uma direção. Nasce um novo homem, o homo digitalis (Han, 2016b). Caracterizado pela solicitação de atenção dentro do enxame, o homo digitalis mantém sua identidade privada, esta parece ser mais preciosa do que uma unidade de grupo ou identificação de massa. No enxame forma-se uma concentração sem união, uma multiplicidade sem interioridade.

Como afirma Danziato (2010), estamos assistindo na contemporaneidade a uma grande assimilação da lógica capitalista e uma intensificação e generalização da disciplina e da biopolítica. A contemporaneidade é fortemente marcada pela passagem da sociedade disciplinar, descrita por Foucault, para uma nova configuração estrutural de sociedade que foi descrita por Deleuze (1992/2013): a sociedade do controle (Danziato, 2010). Segundo o autor, há um deslocamento no que poderíamos denominar de uma "lógica discursivo-diagramática na cultura", de maneira que as formas de subjetivação, seus lugares e seus efeitos de gozo ganham uma nova roupagem e um novo campo: o mercado.

Porém Byung-Chul Han (2016b) aponta que estamos diante de um movimento de transição ainda mais radical frente à revolução digital. Uma nova formação numerosa assedia as relações de poder e dominação já estabelecidas. De acordo com o filósofo, a travessia entre a sociedade disciplinar de Foucault e a sociedade de controle de Deleuze passa por novos caminhos diante da era digital da cibercultura.

Diante desse movimento, para o autor, a época biopolítica analisada por Foucault está perto de ser ultrapassada. Caminhamos para uma época de psicopolítica digital, onde o poder intervém nos processos psicológicos inconscientes. Segundo Han (2016b), o psicopoder seria mais eficiente do que o biopoder na medida em que vigia, controla e faz mover os sujeitos não a partir de fora, mas de dentro, daquilo que eles expõem, das informações compartilhadas. Como afirma Martins (2018), os sujeitos na contemporaneidade se mostram confusos e com uma aparente necessidade de comunicação com outros para provar a si mesmos que não estão sozinhos. Porém, como observamos, uma comunicação sem olhar e hiperacelerada.

A aceleração do tempo em uma sociedade que preconiza a produtividade tem como resultado a hiperconexão mediada e positiva. Não há lugar para o tempo da desconexão, pois a vivência de não estar conectado pressupõe algo que se reconhece como tedioso, onde reside o lado negativo da disseminação popular da palavra ócio: "um nada fazer sem sentido" (Martins, 2018, p. 40).

Na verdade, "o ócio começa onde o trabalho cessa de fato" (Han, 2016b, p. 45). Não há uma definição última para o ócio, o que caracteriza a noção de experiência singular vivida no encontro de cada sujeito, no um a um. Pensando no ócio como uma travessia, a vida digital, sem coisas, não introduz o tempo do ócio, o tempo do ócio é outro tempo. Como já dissemos, o imperativo de mercado que transforma tudo em objetos a consumíveis, inclusive o tempo e a informação, a partir da hiperaceleração e hiperconexão, transforma o tempo em trabalho. Inclusive, para Han (2016a, 2016b, 2017a), o tempo de diversão e lazer não é o outro do trabalho, mas o seu produto. Os gadgets comercializados pela indústria tecnológica digital trazem uma nova coação: nos encontramos livres das máquinas da era industrial que nos exploravam e nos escravizavam, porém saímos de uma biopolítica para uma nova forma de escravatura psicopolítica (Han, 2016a).

A linguagem do ciberespaço e das redes sociais digitais nos "viciam" tão facilmente justamente por oferecerem meios de reduzir o tamanho do mundo, de criar muros de invisibilidade, agregar massas de identidades semelhantes ou, tomando Han (2016b), enxames de identidades que não se identificam com a massa. Administra um tempo calculado, uma "somatória de informações e imagens sem fim, onde o sujeito não consegue elaborar uma experiência e dela extrair narrativas" (Martins, 2018, p. 40). A linguagem digital projeta inimigos de ocasião, cria idealizações massivas sobre como são as vidas alheias e o sentimento de que o outro (a rede) está sempre lá, esperando por nós (Dunker, 2018).

Com isso, parece imprescindível rememorarmos o ideário primevo do pensamento da cibercultura. O resgate da proposta de Hilton (1966) de utilizar o conhecimento reflexivo produzido por vários campos do saber na construção de uma trajetória que privilegie a educação emancipatória e o lazer criativo. Se a linguagem no digital é controlada pela lógica discursiva de mercado a partir da psicopolítica, precisamos retomar a ideia de cibercultura como promotora de experiências criativas através da insistência e resistência do sujeito desejante.

O digital é um novo ambiente territorial onde as experiências humanas são atualizadas e podem ser reinventadas. Sendo assim, seguindo a proposta de Martins (2018), acreditamos que em tempos de hiperconexão no digital é possível que, tanto na realidade material quanto na realidade digital, o homo digitalis possa "caminhar descompromissadamente sem interesse em consumo, somente pelo fato de vagar sem direção"(Martins, 2018, p. 42), transitar por espaços poluídos por informação e propaganda, resistindo ao culto à velocidade. Nesse sentido, vagar sem direção não é o mesmo que compor uma horda de sujeitos desimplicados e desidentificados. Pelo contrário: a proposta do autor nada tem a ver com hordas de zumbis digitais, mas com o encantamento da experiência de atravessar o desconhecido, deixando-se tocar pelo tempo do atravessamento e da assimilação simbólica, a opacidade do outro, a negatividade característica da condição existencial humana.

Ao refletirmos sobre o apagamento do sujeito, o refreamento da experiência criativa de ócio e a mercantilização do tempo, a experiência atravessada pelo processo analítico ganha novos contornos. Já que o ócio parece apontar para a experienciação singular que é produzida a partir do encontro daquele que a vive consigo mesmo, cremos que há uma aproximação entre os estudos de ócio com a experiência analítica. Sendo assim, como observa Martins (2018), na experiência de ócio não há espaço para determinismos, assim como em uma análise. Portanto, precisamos refletir sobre o ócio na contemporaneidade hiperacelerada, que produz sujeitos hiperconectados e, ao mesmo tempo, desconectados de si e do outro.

Finalmente, em tempos de hiperaceleração digital, característica de uma sociedade transparente, onde para tudo se pretende uma explicação e uma resposta eficaz, aqui nós frustramos a lógica hegemônica. Não trazemos uma solução prêt-à-porter, buscamos interrogar e implicar o sujeito em sua relação com as novas tecnologias digitais e as inúmeras possibilidades criativas de experiência e sentido. Diante disso, como aparato teórico-clínico, a psicanálise pode ter algo a dizer sobre o multiverso paralelo de possibilidades que a cibercultura inaugurou, permitindo ao sujeito ocupar uma posição para além do lugar que lhe cabe em uma sociedade hiperacelerada, parecendo, dessa maneira, fornecer algumas pistas para se pensar a relação entre a experiência de ócio e o digital. A construção de outros espaços de conhecimento, de outras territorialidades, é o grande desafio posto pela contemporaneidade aos pensadores de nosso tempo.

 

 

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Artigo recebido em: 07/04/2020
Aprovado para publicação em: 23/02/2021

Endereço para correspondência
Samuel Alcântara
E-mail: samuelalcantara@gmail.com
José Clerton de Oliveira Martins
E-mail: clerton@unifor.br
Francisco Welligton de Sousa Barbosa Junior
E-mail: welligtonbjr@gmail.com
Maria Celina Peixoto Lima
E-mail: celina.lima@unifor.br

 

 

*Psicanalista. Mestre em Psicologia pela Universidade de Fortaleza (UNIFOR), Fortaleza -CE/Brasil. Especialista em Ciências Humanas: filosofia, sociologia e história pela PUC/RS.
**Doutor em Psicologia pela Universidade de Barcelona/Espanha. Professor do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade de Fortaleza (UNIFOR), Fortaleza - CE/Brasil.
***Doutorando em Estudos Culturais pela Universidade de Aveiro/Portugal. Mestre em Literatura pela Universidade de Évora/Portugal e em Psicologia pela Universidade do Minho/Portugal.
****Psicanalista. Doutora em Psicologia pela Université Paris 13/França. Professora Colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade de Fortaleza (UNIFOR), Fortaleza - CE/Brasil.

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