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Tempo psicanalitico
Print version ISSN 0101-4838On-line version ISSN 2316-6576
Tempo psicanal. vol.53 no.2 Rio de Janeiro July/Dec. 2021
ARTIGOS
Freud: do mito à cultura
Freud: from myth to culture
Freud: del mito a la cultura
Marcio GarritI*; Ana Maria RudgeII**
IPontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-Rio - Brasil
IIUniversidade Veiga de Almeida - UVA - Brasil
RESUMO
O objetivo deste artigo é discorrer sobre o mito de autoria de Freud a respeito da fundação da cultura. É em Totem e Tabu (1913) que o pai da psicanálise empreende uma construção, a partir de achados de sua prática clínica e de conceitos psicanalíticos e, sem dispensar o apoio em trabalhos antropológicos, apresenta uma concepção sobre as bases nas quais a civilização se apoia. Sua importância é ser a primeira incursão da psicanálise no que hoje é chamado por alguns de antropologia psicanalítica, ou seja, de estudo psicanalítico sobre a cultura, embora outros considerem, em vista da metodologia diversa que caracteriza os dois campos, que se trata de metapsicologia.
Palavras-chave: Cultura, mito, neurose, sujeito, tabu, totem.
ABSTRACT
The purpose of this article is to discuss Freud's myth about the foundation of culture. It is in Totem and Tabu (1913) that the father of psychoanalysis undertakes a construction, based on findings from his clinical practice and psychoanalytic concepts and, without dispensing support in anthropological works, presents a conception on the bases on which civilization rests. Its importance is to be the first incursion of psychoanalysis in what it is called today, by some authors, psychoanalytic anthropology, that is, a psychoanalytic study of culture, although others consider, in view of the diverse methodology that characterizes the two fields, that it is metapsychology.
Keywords: Culture, myth, neurosis, subject, taboo.
RESUMEN
El propósito de este artículo es discutir el mito de la autoría de Freud sobre el fundamento de la cultura. Es en Tótem y tabú (1913) que el padre del psicoanálisis emprende una construcción, a partir de hallazgos de su práctica clínica y conceptos psicoanalíticos y, sin prescindir del apoyo de trabajos antropológicos, presenta una concepción de las bases sobre las que se construye la civilización soporta. Su importancia radica en ser la primera incursión del psicoanálisis en lo que algunos hoy llaman antropología psicoanalítica, es decir, el estudio psicoanalítico de la cultura, aunque otros consideran, dada la diferente metodología que caracteriza a los dos campos, que se trata de la metapsicología.
Palabras clave: Cultura, mito, neurosis, sujeto, tabú, tótem
Freud e o mito fundador da civilização
[...] o sintoma deva ser considerado também
uma ação de protesto contra a ação de coerção civilizatória.
Rudge; Fuks1
Os escritos freudianos permitem acompanhar a formação de uma concepção de sociedade derivada da Psicanálise e de como o sujeito constitui-se como ser na cultura. Enquanto circundado pelos ditos da cultura à qual pertence, o sujeito, de certa forma, tem seu sintoma neurótico também determinado por discursos e práticas que refletem a estrutura cultural de uma época. Sendo assim, o interesse de Freud pelo estudo da cultura resultou em trabalhos importantes e que mobilizaram muitas discussões. Sua teoria sobre a fundação da civilização foi formulada como um mito, um "mito moderno" construído com base em descobertas que a clínica psicanalítica possibilitou e o diálogo que manteve com pensadores das áreas das ciências sociais e biológicas de sua época.
O mito sobre a inauguração da cultura transmite as marcas presentes na história e no psiquismo do homem civilizado. A fundação da civilização resulta do assassinato do pai e da posterior instituição do totem e do tabu, que são as primeiras formas das organizações sociais, da moral e da religião. Vamos à narrativa do mito que atribui a origem da cultura à violência: ao assassinato do pai da horda.
De acordo com Freud (1913), um pai violento e opressor, o mais forte da horda, dela expulsava todos os filhos homens e reservava para si as mulheres da tribo. Certa vez, os irmãos excluídos, que separados nada poderiam fazer, decidem se aliar para assassinar e devorar o pai; com isso, funda-se a cultura, a lei, a moralidade e a religião. Opai, ao ser devorado, satisfaz tanto o ódio quanto a admiração dos filhos que, através da identificação, buscam apropriar-se de sua força. Essa refeição totêmica é marcada por amor e ódio. O ódio foi gerado pela impossibilidade de os filhos satisfazerem suas necessidades sexuais e de poder, e o amor surge na identificação, após o ato. O remorso pelo assassinato leva-os a se reunirem em grupos simbolizados por um totem, geralmente um animal, que representa o pai morto. Obedecendo às injunções paternas, o sexo com as mulheres do mesmo totem torna-se proibido, e Freud observa que o pai morto se torna mais forte do que quando vivo.
Esse mito, que Freud qualifica de científico, apresenta a limitação da satisfação pulsional do indivíduo como inerente à vida na cultura. Essa é uma das normas inegociáveis para qualquer organização social e tais limitações estão baseadas em alguns interditos básicos. O criador da psicanálise inaugura seus estudos sobre a cultura apresentando o interdito do incesto como renúncia necessária para o estabelecimento da civilização. Mas não só o incesto é proibido. Os irmãos dão-se conta, após o parricídio, de que o desejo de ocupar o lugar do pai morto poderia levar a uma luta fratricida em que a segurança de todos estaria sempre em risco e estabelecem, como outra proibição, a luta por ocupar o lugar do pai.
Freud era marcado por Thomas Hobbes, filósofo político do século XVII, cuja fórmula "o homem é o lobo do homem" é citada em O mal-estar na civilização, ao qualificar o homem como uma besta selvagem que não poupa nem os de sua própria espécie (p. 77).Mas Totem e Tabu já traz uma influência desse pensador no mito sobre a origem da civilização2. De acordo com Maranhão (2008),"essa influência é perceptível em grandes linhas na própria estrutura contratualista do relato mítico criado por Freud, em que a gênese da cultura coincide com a celebração de um pacto fundador" (S. p). O filósofo considerava que no estado natural, devido à escassez, haveria uma guerra constante que ameaçaria a todos de morte. Por essa razão, um contrato social é estabelecido para impor limites à violência e ao individualismo.
Embora só no final de sua obra o pessimismo e o reconhecimento da violência humana tomem lugar no cerne da teoria psicanalítica com a noção de pulsão de morte, podemos encontrar em Totem e Tabu uma antecipação deste ponto de vista, quando o parricídio é invocado como pressuposto à introdução da lei.
De acordo com Koltai (2010), o parricídio era para Freud um fato histórico devido ao fato de que, onde os filhos supostamente mataram o pai, os neuróticos o continuam fazendo em pensamento. Entretanto, o próprio fato de que Freud chama sua narrativa de mito, e não de fato histórico, coloca outra perspectiva em jogo, a de uma narrativa com certa função - teoria, e não arquivo.
O mito é sempre uma narrativa sobre fatos do passado remoto, aparentemente arbitrária, porque na origem dos tempos não se sabe o que ocorreu. Entretanto, o valor do mito é que essa construção arbitrária sobre fatos que teriam ocorrido no passado é também uma estrutura permanente que se articula tanto ao passado, como ao presente e ao futuro. Lévi Strauss (S. d.) observa;
Tudo pode acontecer num mito; parece que a sucessão dos acontecimentos não está aí sujeita a nenhuma regra de lógica ou de continuidade (...). Contudo, esses mitos, aparentemente arbitrários, se reproduzem com os mesmos caracteres segundo os mesmos detalhes nas diversas regiões do mundo. (p.239)
O mito construído por Freud, a partir de seus achados da clínica, promove a ambivalência, o ódio e a culpa como centrais na civilização, marcas do homem civilizado. O mito freudiano mostra-se de inquestionável valor para a psicanálise, e é nele que inúmeros outros conceitos se apoiam para posterior desenvolvimento. Freud valoriza-o não só ao qualificar seu mito como científico, mas também ao confessar seu interesse por Totem e tabu, a ponto de concorrer com o livro A interpretação dos sonhos , que é considerado nada menos do que a obra inaugural da psicanálise. Em 11 de agosto de 1911, de acordo com Falzeder et al. (1994), ele escreve algumas cartas ao mesmo amigo Ferenczi, com quem vinha tratando de assuntos cotidianos, com uma frase incisiva: "Sou todo Totem e Tabu" (p. 357).E, em 13 de maio de 1913, escrever sobre seu novo trabalho; "Desde A interpretação dos sonhos não escrevi nada com semelhante segurança e entusiasmo" (p. 210), e, assim, a gestação do livro foi longa.
O mito científico de Freud foi estruturado a partir das descobertas da Psicanálise, especialmente o complexo de Édipo, o qual encontrou recorrentemente nos neuróticos que atendeu, assim como na análise de seus próprios sonhos. Freud não intentava contribuir para o desenvolvimento de uma Antropologia e, mesmo assim, suas descobertas e ilações a partir da clínica e construções conceituais da Psicanálise acabaram por agregar conteúdo relevante aos antropólogos. Apesar do estranhamento inicial com que foi recebido o texto Totem e Tabu por parte de antropólogos como Malinowski e Kroeber, para citar seus mais importantes críticos, a sequência no tempo mostra uma aproximação entre ambos os campos de saber. Não apenas Lévi-Strauss testemunhou a importância crucial da influência de Freud em sua obra, mas também antropólogos ilustres da contemporaneidade, como Clifford Geertz, sentem-se à vontade para incluir Freud entre os grandes antropólogos. Refletindo sobre o trabalho antropológico sobre a religião, Geertz observa:
(...) esse trabalho continua a extrair os conceitos que utiliza de uma tradição intelectual estreitamente definida. Existem Durkheim, Weber, Freud ou Malinowski, e qualquer trabalho segue a abordagem de uma ou duas dessas figuras transcendentais, com apenas as poucas correções marginais exigidas pela tendência natural ao excesso das mentes seminais, ou em virtude da expansão do montante da documentação descritiva religiosa. (p. 101)
A partir do complexo de Édipo e do recalque dos desejos incestuosos, a que Freud concede o status de universalidade, evolve sua abordagem da civilização e da proibição do incesto. No Manuscrito N, Freud (1897/1977) enuncia sua descoberta de que os impulsos hostis contra os pais são parte integrante de toda neurose.
(...) os seres humanos, para o benefício da comunidade maior, sacrificaram uma porção de sua liberdade sexual.(...).O horror do incesto (algo ímpio) é baseado no fato que, como resultado da comunidade de vida sexual (mesmo na infância) os membros de uma família mantêm-se juntos permanentemente e se tornam incapazes de contato com estranhos. Portanto, o incesto é antissocial- a civilização consiste nessa renúncia progressiva. (1989, p. 257).
Na primeira incursão freudiana no estudo psicanalítico da cultura, a proibição do incesto é o móvel principal. O pai da Psicanálise baseou-se na cultura de uma tribo conceituada pelos etnógrafos da época como uma das mais atrasadas e miseráveis: os aborígenes da Austrália. Seus hábitos eram bem rudimentares: não tinham moradias permanentes, agricultura, animais domésticos, exceto os cachorros, e nem qualquer conhecimento de atividades artesanais como a cerâmica. Alimentavam-se de caça e raízes, não tinham lideranças nem religiosidade, e tudo era decidido em assembleias. Freud observa que, entretanto, havia uma moral sexual comparável à da civilização ocidental; o incesto era passível de severas penas e a organização social aparentava ter uma estrutura a serviço desse cuidado.
Ao comparar a restrição de satisfação das pulsões sexuais entre os aborígenes com os presentes em civilizações ditas desenvolvidas, Freud volta seu interesse ao totemismo, pois percebe uma relação direta do totem com a exogamia. O totem, que é o símbolo de um grupo familiar, vem acompanhado da interdição de que membros do mesmo totem mantenham relações sexuais entre si. A análise de Freud a respeito dos costumes dos aborígenes e a relação estabelecida entre essa civilização e a nossa através da interdição do incesto indica que, apesar das particularidades que as diferenciam, a interdição é um elemento invariável nas culturas. Isso é perceptível nos costumes da vida sexual e moral, ou seja, nas imposições que limitam a satisfação pulsional.
O tabu é algo presente na sociedade atual, com modificações devidas ao avanço do tempo, porém subsistindo como "imperativo categórico3" de Kant, porque as proibições que nos regulam não são muito diversas dos tabus primitivos.
O totem e a exogamia
O totem é, na maior parte das vezes, um animal comestível, inofensivo ou não, ou, mais raramente, uma planta ou elemento da natureza. Ele mantém uma relação especial com todo clã que o instituiu. Tomado como um ancestral comum ao clã, serve, ao mesmo tempo, como um espírito protetor e divinatório. O clã, em retribuição, não mata ou come seu totem, o que é passível de punição severa. Entretanto, em festividades com diversas homenagens ao clã, esse animal é comido em um banquete totêmico.
O totem é transmitido hereditariamente por linhagem paterna ou materna. Remete diretamente a significantes de proteção e acolhimento ao clã, mas o importante é que, segundo Freud (1913), " em quase toda parte em que vigora o totem (...) não se pode casar ou ter relações sexuais entre membros do mesmo totem. É a instituição da exogamia, ligada ao totem." (p. 12). E o autor continua afirmando que a articulação entre totem e exogamia implica que o totem "torna impossível, para um homem, a união sexual com todas as mulheres de seu próprio clã, ou seja, com bom número de mulheres que não são suas parentas de sangue." (p. 14). Com essa observação, Freud já se distingue da Antropologia evolucionista que atribuía a motivos biológicos o tabu do incesto, como as consequências negativas de união entre parentes de sangue para a descendência, ou o desinteresse sexual a que a convivência naturalmente destinaria os parentes.
Todos que descendem do totem formam uma família e isso se torna um obstáculo para a união sexual, mostrando, assim, ser um interdito mais severo do que as proibições de nossa cultura. Toda a dinâmica relacionada à exogamia totêmica, que proíbe os vínculos sexuais com os do mesmo clã, acaba sendo o cenário adequado para evitar o que Freud vem a chamar de "incesto de grupo".
Para Freud (1913), a primeira escolha sexual é incestuosa e, sendo assim, "o neurótico representa para nós um quê de infantilismo psíquico, ele não conseguiu libertar-se das condições infantis da psicossexualidade ou reverteu a elas." (p. 25). A fixação inconsciente a pulsões infantis incestuosas impõe ao neurótico um direcionamento determinante de seu sintoma.
A neurose envolve a tentativa de evitar uma realidade que não é satisfatória para o sujeito, por meio da introversão da libido. O início é o recalque das pulsões incestuosas, mas estas continuam dinâmicas inconscientemente. A formação dos sintomas neuróticos implica o deslocamento da pulsão recalcada para um cenário imaginário de fantasias que tanto desvelam quanto censuram o desejo recalcado. Em algum grau, o sintoma é uma escolha por satisfações imaginárias, o que significa um relativo desinvestindo do mundo real. A satisfação pela fantasia significa que são poupados esforços para se modificar a realidade insatisfatória, o trabalho e a sublimação são economizados. Por esse motivo, Freud observa que, ao evitar a realidade, o neurótico está se excluindo da comunidade humana.
Os atos incestuosos são interditados como condição para a cultura; é necessário renunciara eles para que haja a formação de um corpo social. Assim como o totemismo associado à proibição do sexo ou casamento com os membros do mesmo totem teria existido entre culturas australianas, a forma como se organizam as interdições do incesto variam com as culturas, mas sempre se tem que sair da família de origem para fazer laços com famílias estranhas.
Em Moisés e o monoteísmo, tomando o totemismo como a forma mais antiga de religião, Freud (1939) esclarece que suas duas normas fundamentais, reverenciar o totem(não o matar)e renunciar ao incesto, são proibições de ordem religiosa, que perpetuam as ordens do pai. Mas a terceira norma, aquela que garante a aliança entre os irmãos, a restrição à rivalidade violenta entre eles, não é fruto da vontade do pai, mas se justifica pelo desejo de manter a nova ordem que sucedeu à morte do pai, e se aproxima da filosofia política contratualista.
Freud apresenta um estado natural, em que a violência imperava. O direito é a única forma de racionalizar as relações sociais, barrando o império da força. Como a cultura é posterior ao parricídio, antes do assassinato havia apenas o chefe "orangotango", o mais forte da horda, e não um pai. O pai mítico só existe enquanto morto, como referencial simbólico do grupo que é representado pelo totem. Portanto, não há por que se lamentar da destituição do poder paterno na modernidade. O pai da horda nunca existiu, embora a nostalgia pelo pai que tudo sabe e pode, tal como ele nos apareceu na infância, relativamente a nosso desamparo e impotência, sempre ameace de nos deixar seduzir para rumos infelizes, na obediência a líderes paranoicos.
O tabu e a neurose
Totem e tabu não é resultado de um trabalho de campo etnográfico, embora muitas das críticas que suscitou tenham partido do engano de que pretendesse ser. Embora ambos os campos de saber se voltem ao homem, as diferenças metodológicas são inarredáveis. Os achados da clínica psicanalítica estão na base da teoria sobre a cultura que o texto apresenta. O campo de pesquisa da psicanálise é a própria experiência psicanalítica, e não a pesquisa etnográfica. Freud, que era um aplicado pesquisador, reviu muitas teorias etnológicas da época, mas isso para justificar e melhor situar pontos de vista que adquirira previamente no trabalho clínico.
Tanto as descobertas de sua clínica, quanto as relativas à sua análise, que conduziu a partir da anotação e interpretação dos próprios sonhos, mostraram invariavelmente a Freud uma intensa ligação erótica à mãe, e um sentimento ambivalente em relação ao pai, como um rival nas atenções da mãe. Sua convicção a respeito da universalidade do tabu do incesto resulta dessas descobertas clínicas.
Embora ainda não use o termo "complexo", de acordo com Masson (1986), já em 15 de outubro de 1897, relata a Fliess: "descobri, também em meu próprio caso, o fenômeno de me apaixonar por mamãe e ter ciúme de papai, e agora o considero um acontecimento universal do início da infância" (p. 273). Prossegue observando que o poder de atração do Édipo Rei se origina do fato de que "a lenda grega salienta uma compulsão que todos reconhecem, pois cada um pressente sua existência em si mesmo"(p. 273).A arte e o mito têm o valor de expressar algo de inconsciente, assim como o amor pela mãe e o ciúme e ambivalência em relação ao pai são tidos como sendo de alcance universal. Em pé de página acrescentado em 1920 aos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, Freud (1905) é mais explícito sobre a centralidade do tema:
Tem sido dito, e com razão, que o complexo de Édipo é o complexo nuclear da neurose, e constitui a parte essencial de seu conteúdo (...). Cada nova chegada a este planeta é confrontada com a tarefa de dominar o complexo de Édipo; qualquer um que falhe em fazê-lo cai vítima de neurose. Com o progresso dos estudos psicanalíticos, a importância do complexo de Édipo tornou-se mais e mais claramente evidente; seu reconhecimento tornou-se o shibboleth que distingue os aderentes da psicanálise a seus opositores. (p. 226)
Essa decidida convicção na universalidade do Édipo, que se esboça desde tão cedo, encontra sua contrapartida no nível de sua teoria da cultura, na universalidade do tabu do incesto. E não é só essa a articulação com o que apreendeu na clínica. O tabu encontra uma analogia interessante com sintomas da neurose obsessiva. Ele exprime restrições semelhantes a certas proibições que são parte do sintoma obsessivo, das quais o obsessivo não consegue entender as razões, mas que não pode desobedecer sob risco de ser tomado pela angústia. Sobre isso, Freud (1913) afirma que;
As proibições do tabu prescindem de qualquer fundamentação; têm origem desconhecida; para nós obscuras, parecem evidentes para aqueles sob o seu domínio. Wundt afirma que o tabu é o mais antigo código de leis não escritas da humanidade. Considera-se geralmente que o tabu é mais antigo que os deuses e remonta a épocas anteriores a qualquer religião. (p. 27)
O tabu é dotado de tal poder que se impõe ao sujeito de forma invasiva e violenta e, segundo Freud (1913), "conforme seu sentido literal é algo simultaneamente sagrado, acima do habitual e perigoso, impuro, inquietante" (p. 30).A interdição principal dos tabus é o toque: tudo que faz dirigir o pensamento à coisa proibida, ao contato com ela, se mostra da ordem do impossível, tanto na neurose obsessiva como nas interdições do tabu. De acordo com Freud (1913):
As proibições obsessivas trazem consigo formidáveis renúncias e limitações da vida, tais como as proibições do tabu; mas uma parte delas pode ser cancelada mediante a execução de determinadas ações que então têm de ocorrer, que possuem caráter obsessivo - atos obsessivos -, e de cuja natureza como penitência, expiação, medida defensiva e limpeza não pode haver dúvida. A mais comum destas ações obsessivas é a lavagem com água (mania de lavagem) (p. 36).
Apesar dos tabus aparentarem ser proibições muito antigas, impostas por gerações primitivas, eles terminaram por se fixar como patrimônio psíquico herdado, porque há o desejo, chamado por Freud (1913) de original, de fazer o que é proibido. "As mais antigas e importantes proibições do tabu são as duas leis fundamentais do totemismo: não liquidar o animal totêmico e evitar relações sexuais com os indivíduos do mesmo totem que são do sexo oposto" (p. 39).
Tem-se, nessas duas proibições fundamentais do tabu, o que Freud (1913) considerava o ponto nodal e nuclear da neurose, ou seja, o conflito do sujeito existe tanto em sua relação com o incesto, como com o totem, o que se revela no banquete totêmico em que imolam e comem, com grande satisfação, o totem tão reverenciado durante o resto do tempo. Obedecer ao tabu, dessa maneira, envolve sempre a renúncia a algo que o sujeito deseja. Freud (1913) defendeu que só precisa de ser proibido aquilo que é desejado.
O tabu é uma proibição antiquíssima, imposta do exterior (por uma autoridade) e voltada contra os mais fortes desejos do ser humano. A vontade de transgredi-lo continua a existir no inconsciente; aqueles que obedecem ao tabu têm uma postura ambivalente quanto ao alvo do tabu (...). (p. 42).
Apesar da analogia proposta por Freud (1913) entre o tabu que funda a civilização e o tabu como sintoma na neurose obsessiva, é importante pontuar que "o tabu não é uma neurose, e sim uma instituição social." (p. 76). Conclui-se, assim, que o tabu marca a neurose enquanto patrimônio psíquico herdado, e que será operativo no recalque de desejos que, embora inconscientes, serão efetivos na produção de conflitos neuróticos.
O mito, a religião e o pai
O totem, como vimos, era geralmente um animal tomado como ancestral de cada clã, reverenciado e protegido pela proibição de matá-lo. O animal totêmico é o sucedâneo do pai morto. A ambivalência, a coexistência de amor e ódio em relação ao pai assassinado, transparece no respeito ao totem na maior parte dos dias, em contraste à comemoração por seu assassinato e sua repetição no banquete totêmico. De acordo com Freud (1913):
A psicanálise nos revelou que o animal totêmico é de fato o sucedâneo do pai, e com isso harmoniza-se a contradição de que normalmente é proibido matá-lo, mas o assassínio torna-se ocasião de festa, de que o animal é morto e, no entanto, pranteado. A postura afetiva ambivalente, que ainda hoje caracteriza o complexo paterno em nossas crianças e frequentemente prossegue na vida adulta, se estenderia também ao sucedâneo do pai, o animal totêmico (p. 140).
As religiões surgem a partir do sentimento de culpa em relação ao pai e obediência a ele a posteriori. A ambivalência permanece nas religiões, que refletem a culpa e o arrependimento permanentes pelo crime. O totem, para Freud (1913),é um primeiro representante do pai morto, que terá outras versões, como a ideia de Deus e o super eu. O parricídio, ao elevar o pai à condição de Deus, torna-se "uma tentativa de expiação muito mais séria do que o velho contrato com o totem" (p. 147).
É o remorso que torna os assassinos em filhos, no momento em que transformam o chefe da horda assassinado em pai através desse sentimento. Os tabus da sociedade primitiva no mito correspondem aos mesmos desejos que a psicanálise descobriu como recalcados no complexo de Édipo. A civilização criada no ódio passa a ser mantida pelo amor ao pai morto, e com isso se cria o primeiro ideal de eu. O aspecto de figura odiada do pai manter-se-á no inconsciente em traços do super eu. De acordo com Koltai (2010):
(...) a ilusão/religião seria uma neurose universal da humanidade (...). Eis a razão para qual Freud a religião é, antes de tudo, um ato de submissão, de interdição do pensamento. Ao fazer prevalecer soluções afetivas análogas ao recalque, a religião mantém o sujeito numa posição de infantilismo psíquico, obtura o caminho dos processos racionais e representa a derrota do intelecto (p. 69).
O assassinato do pai da horda é o marco zero de passagem do estado pré-civilizatório para o civilizatório, e o mito não visa ser um relato que corresponda aos fatos do passado, mas é uma ferramenta teórica pela qual Freud, a partir de suas descobertas na clínica, mas sem dispensar o estudo de autores da Antropologia, apresenta o que considera como os fundamentos da civilização. O assassinato do Urvater, esse pai do gozo pleno, aponta para o lugar que, na metapsicologia, é o do recalque originário.
O pai de família vem sendo questionado em seu papel como porta-voz da cultura e transmissor da renúncia pulsional, o que leva a certos diagnósticos da atualidade que apontam a dissolução da família tradicional e a falta de referências e de autoridade (Melman, 2003) como situações que geram a incapacidade de promover o recalque originário e nos garantir uma saída satisfatória do complexo de Édipo.
Entretanto, não é o pai da horda, orangotango, em seu ilimitado poder sobre a horda, quem instaura a cultura. Bem ao contrário, é seu assassinato e o "contrato" entre os filhos o momento de emergência da cultura. Embora as crianças pequenas, por seu desamparo e dependência do adulto em contraste com o tamanho e a força do seu pai, possam imaginá-lo como o senhor de tudo, faz parte da saída da infância aceitar as limitações, o pai castrado, que obedece à lei tanto quanto todos, e foi barrado pelo tabu do incesto tanto quanto o filho. O impulso a restaurar o pai da horda todo poderoso, todavia, e se refugiar na fantasia de estar protegido às custas da submissão a ele, é uma tentação permanente que às vezes conduz à religião e, nos piores dos destinos, à idealização e eleição de um líder tirânico e paranoico.
Referências
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Artigo recebido em: 02/05/2019
Aprovado para publicação em: 08/09/2019
Endereço para correspondência
Marcio Garrit
E-mail: marciogarrit@yahoo.com.br
Ana Maria Rudge
E-mail: amrudge@outlook.com
*Doutorando em Psicologia clínica pela PUC/RJ e, Mestre em Psicanálise, Cultura e Sociedade pela Universidade Veiga de Almeida (UVA).
**Doutora em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Professora do Programa de Pós-graduação em Psicanálise, Saúde e Sociedade da Universidade Veiga de Almeida (UVA). Bolsista de Produtividade em Pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
1Perspectivas da crítica freudiana à cultura. (2011). In Fuks, B. (Org.). 100 anos de novidade: A moral sexual "cultural" e o nervosismo moderno, de Sigmund Freud [1908-2008]. (p. 79). (1ª ed.). RJ: Contracapa.
2Em nota de rodapé de 1914 ao Capítulo VII (B) de A Interpretação dos Sonhos, Freud atribuiu o conceito de regressão à influência do Leviathan, de Hobbes (1651).
3Termo criado por Kant, talvez por analogia ao termo bíblico "mandamento", para indicar a fórmula que expressa uma norma da razão (...). Para o homem, norma da razão é uma ordem, pois a vontade humana não é a faculdade de escolher apenas o que a razão reconhece como praticamente necessário, ou seja, como bom. Se assim fosse, a norma da razão não teria caráter coativo e não seria uma ordem (...) como o homem pode escolher também segundo a inclinação sensível, a lei da razão assume para ele a forma de ordem e por isso sua expressão é um I (...) a palavra I. Não passa de outro nome para a palavra dever. (Abbagnano, 2007, p. 545).