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Tempo psicanalitico

Print version ISSN 0101-4838On-line version ISSN 2316-6576

Tempo psicanal. vol.54 no.1 Rio de Janeiro Jan./June 2022

 

ARTIGOS

 

A dupla volta da subjetivação em Winnicott1

 

The double turn of subjectivation in Winnicott

 

El doble giro de la subjetivación en Winnicott

 

 

Lucas Charafeddine BulamahI*; Daniel KupermannI**

IUniversidade de São Paulo – USP - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O propósito principal deste texto é o de avaliar a pertinência do conceito de subjetivação à guisa da contribuição de Donald Winnicott. Tradicionalmente associadas ao desenvolvimentismo psicológico e mais recentemente ao identitarismo, as ideias do psicanalista inglês têm ficado de fora dos debates contemporâneos acerca da desconstrução do sujeito e da crítica às identidades. Pretendemos reposicionar Winnicott nesse debate avançando à ideia de uma subjetivação propriamente histórica e contingente, caracterizada pelo que chamamos de uma dupla volta, a primeira sendo a que organiza a posição pré-subjetiva que Winnicott chamou de being; e a segunda, a emergência do sujeito propriamente dito a partir da dialética da destruição x sobrevivência do outro.

Palavras-chave: Psicanálise, Relações objetais, Donald Woods Winnicott, Subjetivação, Pós-estruturalismo.


ABSTRACT

In this paper, we aim to reassess the relevance of the concept of subjection in the guise of the contribution of Donald Winnicott. Traditionally associated to psychological development theories and more recently to identitarianism, the ideas of the English psychoanalyst are usually eschewed in contemporary debates regarding the deconstruction of the subject and the critique of identities. Advancing a repositioning of Winnicott in this debate, we propose the idea of a double turn, the first organizing the pre-subjective position that Winnicott named as being; and the second turn, the emergence of the subject itself from the dialectics of destruction x survival of the other.

Keywords: Psychoanalysis, Object relations, Donald Woods Winnicott, Subjection, Post-structuralism.


RESUMEN

El propósito principal de este texto es el de evaluar la relevancia del concepto de subjetivación bajo la contribución de Donald Winnicott. Asociadas tradicionalmente al desarrollismo psicológico y más recientemente al identitarismo, las ideas del psicoanalista inglés han quedado fuera de los debates contemporáneos sobre la deconstrucción del sujeto y la crítica de las identidades. Pretendemos reposicionar a Winnicott en este debate, avanzando la idea de una subjetivación propiamente histórica y contingente, caracterizada por lo que llamamos un doble giro, siendo el primero el que organiza la posición presubjetiva que Winnicott llamó ser; y el segundo, el surgimiento del sujeto propiamente dicho desde la dialéctica destrucción x supervivencia del otro.

Palabras clave: Psicoanálisis, Relaciones objétales, Donald Woods Winnicott, Subjetivación, Posestructuralismo.


 

 

É consensual encontrar, hoje, na literatura que se baseia na psicanálise winnicottiana (de Souza Almeida & Marques, 2020; Mizrahi, 2017; Gomes, 2016), referências ao processo de constituição do self nomeada como subjetivação. Se, para pensar a formação do sujeito, Winnicott lançou mão de termos alheios à psicanálise freudiana, como desenvolvimento e maturação, emprega-se hoje o termo subjetivação recobrindo a mesma extensão dos descritivos usados por Winnicott para pensar o nascimento e a constituição do self.

Respeitando o sentido próprio à noção de subjetivação, bem como o das noções de desenvolvimento e amadurecimento, seria justificável a sobreposição da primeira sobre as últimas? Para a circulação acadêmica contemporânea da produção de conhecimento psicanalítico, parece ser difícil defender termos tão tributários do desenvolvimentismo médico-psicológico e do romantismo. Ademais, o conceito de subjetivação não deveria ser empregado sem uma mirada de esguio à tradição que transportou a noção para os circuitos acadêmicos e psicanalíticos atuais. As narrativas winnicottianas acerca do nascimento do self resistiriam a um deslocamento do naturalismo desenvolvimentista à contingência radical da formação histórica e social do sujeito contida na noção de subjetivação?

Nossa tarefa neste artigo é a de dar um primeiro passo rumo à requalificação de Winnicott no debate acadêmico acerca da subjetivação, mostrando como existe uma proposta de subjetivação própria ao psicanalista inglês. Neste primeiro momento, centraremos o foco no estabelecimento primitivo do indivíduo e seu devir-sujeito como uma dupla "volta", um processo sequencial indissociável do outro, mas não propriamente intersubjetivo, conforme veremos. Em seguida, apontaremos para as consequências a serem exploradas posteriormente, a partir da concordância de que de fato o desenvolvimento postulado por Winnicott se trata de uma subjetivação, em toda a extensão deste conceito.

 

A primeira volta e a segunda volta da subjetivação

É explícito que Winnicott nunca fora adepto do eruditismo filosófico em suas teorizações acerca dos fenômenos psicológicos e da vida humana como um todo. Sua escrita é marcada por um realismo expressivo, originário de sua experiência clínica, da qual se destaca o uso de termos da linguagem corrente para tentar comunicar sem muitos jargões o que compreendia acerca daquilo que tratava em seu cotidiano. A recusa do eruditismo fica bastante clara em uma passagem de O uso de um objeto (Winnicott, 1969/2005f):

Um filósofo de gabinete [armchair philosopher] poderia argumentar a partir disso que não há tal coisa na prática como o uso de um objeto: se o objeto é externo, então o objeto é destruído pelo sujeito. Se o filósofo saísse de sua poltrona e se sentasse junto a seu paciente no chão, ele perceberia que há uma posição intermediária. (p. 120)

Porém, é notável que o sarcasmo (a figura do filósofo de gabinete destacando a idiotia da ruminação erudita) seja expresso justamente em um de seus textos mais abstratos, sendo a posição intermediária sobre a qual advoga o processo de constante destruição dos objetos pelo infans em sua vida imaginária indiferenciada, além da sobrevivência destes ao gesto destrutivo, que promove sua redescoberta como um ente separado de suas fantasias onipotentes.

Com efeito, Winnicott poderia, sem exageros, ser tido como um "filósofo de divã" que não deixa de sair de sua poltrona e sentar-se com seus pacientes, por mais prático que gostaria de se considerar (Goldman, 1993). O empirismo de Winnicott não lhe permitia abrir concessões a pressuposições transcendentes a apriorísticas acerca do conhecimento, e o material que obtinha de suas experiências psicanalíticas tampouco se furtava a um método, idiossincrático certamente, mas antes de tudo imaginativo e rigoroso.

Ponderando acerca da imaginatividade e especulação inescapável que concerne ao nascimento psicológico do "eu" – o sujeito gramatical, e não a instância tópica do aparelho psíquico – Butler (2005) acerta ao escrever que qualquer um que tente apresentar uma narrativa sobre este mesmo nascimento não está fadado necessariamente ao erro, mas à ficção abstrata:

O fato de não haver reconstrução narrativa definitiva ou adequada da pré-história do "eu" que fala não quer dizer que não possamos contá-la; significa apenas que no momento em que a narramos nós nos tornamos filósofos especulativos ou escritores de ficção. (p. 78)

O "eu" falante, portanto, pode expedir uma narrativa de sua pré-história. Todavia, de acordo com a posição da filósofa, nos primórdios de seu nascimento, antes de ter de fato se tornado um sujeito distinto do ambiente, o "eu" não estava lá para experienciar e apreender epistemicamente sua história. Com efeito, quais seriam as histórias de origem que Winnicott, enquanto ficcionista e filósofo especulativo, apresenta para narrar a pré-história do sujeito?

Mesmo que concordemos que praticamente toda a teorização winnicottiana versa sobre este tema em suas condições de possibilidade e seus infortúnios, há dois grandes eixos metafóricos que abordam o tema da pré-história do "eu", quais sejam a bolha e o centro de gravidade. Ambos, conforme veremos, apresentam distintas consequências para duas noções-chave da metapsicologia winnicottiana: a dita "continuidade do ser" (going on being) e a criatividade e agressividade primordial.

O tema do self como bolha ocorre em 1949, no texto Memórias do parto, trauma do nascimento e ansiedade, em que Winnicott aborda a polêmica do trauma do nascimento para acrescentar sua contribuição de que, havendo uma adaptação ativa por parte do ambiente no nascimento da criança, não há intrusão nem reação do infante e, por isso, o trauma pode ser desconsiderado. Para ilustrar este raciocínio, Winnicott reporta uma metáfora oriunda da associação de uma de suas pacientes, a qual se encontrava sob regressão em análise até um momento bastante primitivo. "A paciente disse", escreve o psicanalista,

No início o indivíduo é como uma bolha. Se a pressão externa ativamente se adapta à pressão interna, então é a bolha a coisa significativa, quer dizer, o self do infante. Se, todavia, a pressão ambiental é maior ou menor que a pressão interna à bolha, então não é a bolha a coisa importante, mas o ambiente. (Winnicott, 1949/2007, p. 183, grifos nossos)

A partir desse ponto, Winnicott (1949/2007) assume a metáfora da paciente e encadeia sua própria reflexão, afirmando que, em análise, a paciente pôde encontrar a experiência ausente em sua entrada no mundo por meio de seu analista, "uma mãe relaxada, quer dizer, viva, desperta e pronta para oferecer adaptação ativa por sua qualidade de ser devota a seu infante" (p. 183). Mais especificamente alinhada à metáfora, a atmosfera (de relaxamento, acrescente-se) do setting analítico oferecido pelo psicanalista sensível às falhas primitivas permite que a bolha, o suposto self da paciente, torne-se a coisa significativa, não tendo que se adaptar reativamente à pressão exterior e podendo retomar a continuidade da existência interrompida pela necessidade de reagir.

A metáfora é claramente apropriada à proposta de uma prática clínica que priorize o encontro analítico enquanto reparador de inícios traumáticos, caracterizados por falhas graves na adaptação. Todavia, por mais evocativa que seja, a metáfora apresenta consequências complicadas. A imagem da bolha, sendo um centro em si mesma – reforçada pela ideia de que o self do infante é o que há de significante –, evoca a impressão de um ente solipsista originário claramente delimitado de seu ambiente desde os primórdios. Ademais, a relação com o ambiente que esta metáfora sugere, mesmo que sirva de ilustração para a noção que, para Winnicott, era fundamental, da adaptação dos cuidadores ao recém-nascido em sua vulnerabilidade radical, faz parecer que a relação entre eles seja meramente a de um ajuste hidráulico. Ou seja, problematicamente, Winnicott assume aquilo que seus críticos atuais mais rejeitam: o sujeito moderno, cuja identidade se desenvolverá a partir de um cerne fixo, sendo apenas balizado pelo ambiente facilitador.

Fabio Belo (2012) é particularmente enfático ao criticar o quanto tal solipsismo é mobilizado em algumas noções winnicottianas, as quais se distinguem de outras menos "ptolemaicas" e mais "copernicanas", utilizando a terminologia de Jean Laplanche (1999)2. Outra consequência que vai ao encontro da acima exposta, detectada por Jan Abram (1997), é o postulado da existência de um self diferenciado desde um momento primordial, antes até do nascimento. Como de costume, aqui fica patente a confusão de Winnicott quanto ao emprego de sua linguagem teórica – por priorizar a clareza comunicativa e a linguagem evocativa – especificamente acerca do que é um self, incluindo o que seria sua extensão ontológica e seu percurso genealógico.

Todavia, em um momento posterior, Winnicott apresentará uma outra imagem para pensar o tema da gênese do self, na qual a confusão advinda do postulado de um self presente desde os primórdios é evitada por algo que caracterizará cada vez mais o pensamento tardio de Winnicott: a primazia dos processos frente aos fins. Abordando novamente o tema que dá o título ao artigo, em Ansiedade associada à insegurança (Winnicott, 1952/1987), o psicanalista se volta-se novamente ao nascimento e aos primórdios da vida subjetiva. A questão que norteia uma das afirmações mais potentes de Winnicott endereça o que precederia a primeira relação de objeto.

A resposta, por sua vez, envolve a retomada do que o psicanalista havia afirmado anos antes com sua máxima: "Não existe tal coisa como um bebê" (Winnicott, 1952/1987, p. 99). Quer dizer, a despeito do que parece para o observador externo, aquela criatura nunca será vista sozinha, tanto no sentido prosaico quanto metapsicológico: sua vida, mesmo que ainda não tenha se configurado como uma vida pessoal, é sempre acompanhada por um outro, mesmo que este, por sua vez, ainda não seja de fato conhecido como outro. Lemos em Winnicott que:

a unidade não é o indivíduo, a unidade é o arranjo indivíduo-ambiente (environment-individual set-up). O centro de gravidade do ser (being) não começa no indivíduo. Ele está no arranjo todo. Através do cuidado suficientemente bom, do holding e do manejo geral, a casca começa a tomar forma e o núcleo (que a nós parecia ser o tempo todo um bebê humano) pode começar a se tornar um indivíduo. (ibid., pp. 99-100)

Observemos a sutileza do pensamento winnicottiano nessa reflexão. O autor evita qualquer expediente assertivo sobre a gênese do sujeito em assunções biologizantes e individualistas ao trocar o foco de um suposto self-bolha presente desde o início a um centro de gravidade intersticial, ou uma "cultura materna"3. A noção de arranjo (set-up) é tão mais apropriada nesta sutileza na medida em que não se compromete com diferenciações que serão feitas posteriormente, evocando no leitor a imagem do que Winnicott repetidamente enfatizará como a não-integração (Winnicott, 1945/1987c). A realidade fragmentária de um devir-sujeito, imiscuído com os fragmentos de um ambiente, é ilustrada mais especificamente em Introdução primária à realidade: "não há uma linha entre o interno e o externo", escreve Winnicott (1948/1996), "mas várias coisas fragmentadas, o céu visto através das árvores, algo que tem a ver com os olhos da mãe, entrando e saindo, vagando por aí." (p. 25).

Ademais, destaca-se o caráter processual da gênese do futuro sujeito, conforme se pode observar na proposição de Ansiedade associada à insegurança (1952/1987), por meio do uso de gerúndios e expressões que denotam eventos em potencial. Poderíamos parodiar Winnicott e dizer, contrariamente à metáfora "roubada" de sua paciente, que "não há tal coisa como uma bolha"; a partir desta consideração do centro de gravidade e sua gênese no espaço intersticial entre dois entes é que se constituirão em uma virtualidade posterior. Como é costumeiramente dito que o silêncio entre duas notas musicais é a definição mesma de música, pode-se dizer, a partir dessa noção de centro de gravidade, que do espaço entre dois corpos em processo de constituição, potencialmente, se constitui um sujeito.

Com efeito, contra o solipsismo e em consonância com esta metáfora, vale a assertiva de Michael Oppenheim (2006): "não há self, não há tal coisa como um self, sem o outro" (p. 103). Assim, o que será designado como núcleo do self se situa como o tempo do informe primordial, mantido ao abrigo da integração e da situação do sujeito na estrutura comunicativa do mundo externo e de seus objetos objetivos. Seguindo a citação acima reproduzida de Introdução primária à realidade (Winnicott, 1948/1996), o psicanalista aponta justamente para isso. Após descrever a fragmentação e a mistura do ambiente e do sujeito no arranjo (set-up) primordial, Winnicott escreve que "Não há qualquer necessidade de integração (p. 25, grifos nossos) e, ademais,

Isto é algo extremamente valioso de se reter: nós perdemos algo sem isso. Tem algo a ver com estar calmo, relaxado, descansado e se sentindo misturado com pessoas e coisas quando não há excitação. (p. 25, grifos nossos)

Ou seja, a integração que, diga-se de passagem, é apontada aqui como resultante de uma necessidade, é associada à inquietude e à separação e distinção do self e do outro. É compreensível, assim, a crítica de Fabio Belo (2012) à noção de um self isolado e incomunicável. Todavia, sugerimos que esse aparente fechamento solipsista deva ser compreendido como a aquisição, por parte do sujeito em potencial, da impressão de sua agência no mundo, de ser um autor de onde emanam seus atos.

Com efeito, do ponto de vista da criatividade do sujeito unificado, o estabelecimento de sua agência é tão mais eficiente quanto maior for a presença e atitude do que se indiferencia entre o eu e o outro na cultura materna. Empregamos o termo imiscuir, e não introjetar, para pensar sobre estes fenômenos primordiais. Isso se dá na medida em que, ao contrário da tradição kleiniana e observando o movimento winnicottiano para fora do solipsismo originário da figura mais influente em sua formação psicanalítica, não há, de saída, um Eu que assimile para dentro de sua esfera representacional os objetos enquanto objetos. Por outro lado, não havendo um Eu primordial, tampouco há espaço para a operação da expulsão de conteúdos repudiados por este em um objeto que os encarne.

Ou seja, tanto a introjeção quanto a projeção, enquanto dependentes da assunção de relações objetais e de um Eu primordiais, no pensamento propriamente autoral de Winnicott são apenas possíveis depois de um longo desenvolvimento no âmbito deste momento fundamental de indiferenciação e ausência de formas e limites fronteiriços.

Por isso, acreditamos que seja interessante lançar mão do termo imiscuir para descrever o estado de coisas neste momento de indiferenciação entre o Eu e o outro. A virtualidade do que será posteriormente repudiado afeta o Eu em desenvolvimento por meio das impressões afetivas e representações fragmentárias, mistura-se e se confunde com este último na cultura materna, conforme o próprio significado da palavra imiscuir, de ligar-se intimamente, confundir-se. Dessa forma, ao mesmo tempo em que se sublinha a indistinção primordial entre o subjetivo e o objetivo na vida primitiva do bebê, evita-se a pressuposição de um continente ou receptor que porte o conceito de introjeção, algo que ainda não cabe no momento paradoxal de relacionalidade indistinta.

Com efeito, essas duas narrativas de origem do Eu apresentam consequências distintas para a conceituação das noções de continuidade do ser (going on being) e de gesto espontâneo, ambas fundamentais no pensamento winnicottiano. Em síntese, os dois grandes índices de distinção entre as duas posições supracitadas repousam justamente sobre o solipsismo da noção do self-bolha presente desde os primórdios e o núcleo identitário, ausente na noção do centro de gravidade e da gênese social do self. Mas antes de pensarmos sobre esta distinção, perguntemos: o que Winnicott entende ser a continuidade do ser (going on being)?

A continuidade do ser, ou continuidade da existência – as duas traduções consagradas na literatura winnicottiana no Brasil –, em uma primeira leitura, parece ser a forma que a subjetividade assume no tempo quando não precisa reagir a intrusões ambientais paralisantes. Conforme escreve Winnicott (1960/1990),

Se os cuidados maternos não são suficientemente bons, o infante na verdade não chega a aceder à existência, na medida em que não há a continuidade do ser (continuity of being); ao contrário, a personalidade se ergue na base de reações a intrusões ambientais. (p. 54, grifos nossos)

Ou seja, ao usar a expressão "aceder à existência", Winnicott implica que o próprio ser (being) possui uma história, e esta história é contada pelo psicanalista em um texto tardio chamado A criatividade e suas origens (Winnicott, 1971/2005). Neste, como indica o título, Winnicott buscará pensar (de forma tão ou mais imaginativa e abstrata do que havia feito em O uso de um objeto) o nascimento do sujeito criativo naquilo que chamou de "elemento feminino puro" e no "elemento masculino puro".

O elemento feminino puro é, grosso modo, o potencial identificatório do sujeito em desenvolvimento, manifestado em condições de máxima dependência, que sedimenta a história relacional do infans, os primeiros contornos de seu self": "a história de um bebê individual não pode ser escrita nos termos do bebê sozinho" (Winnicott, 1971/2005, p. 95). Em primeiro lugar, no contexto da cultura materna, há o encenar daquilo que do lado de fora, um observador poderia ver como a mãe amamentando (ou segurando, trocando, movendo e acariciando seu infante), algo que resulta na presença indiferenciada do que Winnicott chamou de "objetos subjetivos".

Ao objeto subjetivo primordial, aquele que responde ao gesto voraz do corpo ainda não integrado do infans, Winnicott nomeará convenientemente de "seio". As aspas são empregadas por ele próprio ao refletir sobre este objeto, na medida em que não se trata de um seio real ou uma representação dele. Trata-se, antes, de um dispositivo, um catalisador da experiência da ilusão: um dos dois terminais das "duas linhas" que podem se sobrepor (Winnicott, 1945/1987) na gênese de um momento de ilusão. Em síntese, trata-se daquilo que oferecerá ao infans, quando ele o ataca impiedosamente, a resposta nutritiva que ele não "sabia" que desejava, mas que se manifestará como uma experiência de criação própria e mágica.

Esse tipo de relação objetal propriamente inconsciente, com efeito, "estabelece o que é talvez a mais simples de todas as experiências", qual seja "a experiência do being" (Winnicott, 1971/2005, p. 108). Tal experiência, ademais, estabelece aquilo que Winnicott chama de "identidade primária (primary identity)" (p. 108). Retomando o que vimos acima, o sujeito winnicottiano e sua suposta identidade têm em seu núcleo não um caractere ou um conjunto de caracteres fixos e essenciais que se manifestam com o suporte do ambiente. Ele é propriamente a sedimentação de uma experiência social, contingente e histórica.

Com efeito, esta primeira experiência e sua repetição ao longo dos cuidados com o infans em seus primeiros momentos de vida tende a consolidar, junto à parceria psicossomática que advém da psiquê, encontrando morada no corpo, aquilo que costumamos descrever como ser ou existência. Todavia, há também nesta experiência identificatória primária três aspectos que não devemos perder de vista: a proposição posicional e dinâmica contida no being winnicottiano, a problemática distinção entre o ser e o fazer e a questão do gesto criativo/destrutivo.

A teorização do psicanalista inglês é prenhe de noções que remetem a realidades espaciais abstratas. Com efeito, muito do que pode ser tido como tributário de uma ontologia em Winnicott, inclusive o próprio going on being, poderia ser facilmente intercambiável: de um conjunto de atributos das propriedades gerais do ser por uma especulação imaginativa acerca dos distintos espaços do self winnicottiano. Ora, é justamente esta heterotopia que está em jogo quando se percebe que being, no inglês do psicanalista, pode se verter nas línguas latinas tanto por "ser" quanto por "estar". A teorização expandir-se-ia caso não nos detivéssemos tanto em uma série de interrogações sobre a ontologia quanto sobre o tema da topologia e da heterotopia no pensamento winnicottiano.

Apesar de não ter se estendido sobre o tema, em um breve comentário acerca do going on being (que prefere traduzir como continuidade de existência), Heitor O´Dwyer de Macedo (2012) não se furta a descrever repetidamente o percurso winnicottiano do desenvolvimento como relativo à emergência de um espaço:

Esse percurso, que vai de uma dependência absoluta à autonomia da criança é, de fato, a consequência lógica de diversos operadores psíquicos que permitem a emergência de um espaço, também ele psíquico, que coincide com o surgimento do sujeito. (p. 62, grifos nossos)

Ademais, quando retorna para o tema central de seu ensaio, a "continuidade da existência", Macedo (2012) volta a ressaltar a temática do lugar na teorização winnicottiana da história de origem do self. Particularmente acerca do que vimos sobre a identificação do infante com o "seio" na origem da pertença espacial/ontológica chamada de being (Winnicott, 2005), o autor escreve:

Podemos, então, dizer que o campo da noção de continuidade de existência inclui uma teoria da identificação primária. Formulo essa teoria assim: a primeira identificação é a identificação a um lugar. Esse lugar se encontra no espaço psíquico da mãe, lugar preservado para que esse sujeito preciso, e não outro, possa advir. Garantir a continuidade de existência é a mesma coisa que garantir a continuidade do self, e o self é o sujeito, a pessoa real. (Macedo, 2012, p. 63)

Com efeito, voltando à temática do fomento da substância da ilusão contida na provisão do "seio" que encontra o gesto que emerge daquilo que se tornará um self, é possível afirmar, junto a Macedo (2012), que a identificação com este lugar, com a cultura materna, é a própria criação deste lugar. Um "lugar básico de onde se opera" (Winnicott, 1986, p. 39), como escreveu uma vez o psicanalista inglês. Uma criação "conjunta" que quase nem mereceria esta denominação, dado que não há dois elementos em relação, mas uma dinâmica de forças que se renova em uma virtualidade espacial, inclusive após a separação entre o sujeito e o objeto. Esta dinâmica, pertinente ao jogo de forças indiferenciado que se renova perenemente, mesmo quando o self se diferencia do outro concreto, em concomitância com a diferenciação entre sujeito e objeto é, novamente, algo perdido pela reificação do ser (e, também, da existência) na tradução de going on being por "continuidade do ser" ou mesmo "continuidade de existência".

O being winnicottiano, tendo como referente o ser, aponta para a forma que toma a sensação de existir, de ser real e possuir uma experiência vital animada pela experiência reiterativa da ilusão nos primórdios indiferenciados da cultura materna, algo que também é compreendido pela versão existir. Ambos, porém, encerram-se no infinitivo, na forma verbal de algo consolidado. Porém, o being como estar parece menos comprometido com uma forma ontológica estática e com a identidade enquanto algo fixo. Avança, assim, a proposição de um ancoramento do self em um conjunto de experiências que não compromete seu potencial expansivo e heterotópico: o lugar que o devir-sujeito ocupou, seu nascedouro, por assim dizer, é apenas o primeiro de várias outras posições que possa vir a ocupar durante a vida. Seu potencial identificatório primário é passível de ser sempre renovado. O mesmo ocorre com o being vertido por sendo, preservando a forma tanto circunstancial quanto iterativa do gerúndio.

Com efeito, é para preservar esta ambiguidade que expande as direções múltiplas que a palavra being apresenta no inglês que optamos por não traduzir o termo going on being por nenhuma nova versão, nem tampouco pelas traduções consagradas na literatura brasileira.

 

O gesto espontâneo e os elementos "masculino" e "feminino"

Dediquemo-nos a um outro elemento da teorização winnicottiana acerca da "história de origem" do sujeito, qual seja, o chamado gesto espontâneo. Como ocorre com todas as noções mais peculiares do corpus teórico de Winnicott (verdadeiro e falso self, objetos transicionais e espaço potencial etc.), por mais que tenham se tornado slogans na posteridade winnicottiana, é raro encontrar um consenso acerca do que se trata a noção de gesto espontâneo.

Vimos um pouco acima a especificação teórica feita por Winnicott (2005) daquilo que ele chamou de "elemento feminino puro", o potencial identificatório primário que constitui a primeira experiência ilusória e posicional do futuro sujeito, ligada ao "seio". No mesmo texto em que introduz esta noção e sua importância para a origem da criatividade, Winnicott pretende diferenciá-la daquilo que ele nomeou como "elemento masculino puro". Da mesma maneira que o "elemento feminino puro" relaciona-se ao potencial identificatório e, portanto, ao being (ser, sendo ou estar, conforme chamamos à atenção), o "elemento masculino puro" relaciona-se ao doing (que, semelhante ao being, pode ser traduzido por "fazer" ou por "fazendo"). Mas o que é o doing e por que Winnicott o coloca como um evento secundário ao being? Essa distinção sustentar-se-ia mediante o escrutínio?

Vejamos a própria síntese que Winnicott (2005) faz na apresentação de seus dois pilares teóricos da vida primitiva do self em formação:

Quero dizer que o elemento que estou chamando de "masculino" transita em termos do relacionar-se ativo, ou do passivo ser relacionado, ambos respaldados pelos instintos. É no desenvolvimento desta ideia que falamos das moções instintivas (instinct drives) na relação do bebê com o seio e com a alimentação, e subsequentemente em relação a todas as experiências envolvendo as principais zonas erógenas, além das pulsões e satisfações subsidiárias. Minha sugestão é que, em contraste, o elemento feminino puro se relaciona com o seio (ou com a mãe) no sentido de o bebê tornando-se o seio (ou a mãe), no sentido de que o objeto é o sujeito. Não consigo enxergar a ação do instinto nisso. (p. 107)

Porém, sugerimos que essa distinção e temporalidade deva ser colocada em suspeita: haveria uma identificação primária que funda o being sem nenhum gesto, nenhuma forma de ação? Se o self em devir realiza um gesto (ainda sem direção ou origem definida, dado que não há nem sujeito, objeto e nem desejo) que é propriamente interpelado por um objeto (o "seio" na convenção teórica que vimos), que resulta em uma operação identificatória primária e em uma experiência de ilusão, por que deveríamos ainda assim atribuir ao being a temporalidade primordial? É apenas mediante este gesto em direção ao objeto, presentificado, por sua vez, por seu próprio gesto em direção ao infans que a identificação primária pode ocorrer (as duas linhas que se sobrepõem, lembremos).

Quando consideramos o gesto, levamos em conta não o que Winnicott atribui aos instintos ou pulsões – que pressupõem a separação e o desejo –, mas o movimento do corpo em expansão, "respondido" pelo ambiente que o suporta (holding), maneja (handling) e o alimenta desde antes do nascimento. Esse gesto relaciona-se tanto àquilo que Winnicott chamou de "força básica da vida individual" e, também, ao "gesto espontâneo". Na resenha de Memórias, sonhos e reflexões, de Carl Jung, após a expressão de sua contrariedade quanto à atitude defensiva de Jung com respeito à "destrutividade, com o caos, desintegração e as outras loucuras", expressa na harmonia e perfeição das mandalas, vemos um Winnicott (1964/1989) entusiasta dessas mesmas coisas afirmar que "O que é mais importante é procurar as forças básicas da vida individual, e a mim é seguro que se a base real é a criatividade, a mais próxima dela é a destruição". (p. 491)

Por sua vez, o "gesto espontâneo", novamente na sugestão do próprio Winnicott, é indissociável do verdadeiro self, sendo o gesto sua presentificação em ato. Em uma descrição notável por sua tautologia, o psicanalista escreve que "o verdadeiro self é a posição teórica [observemos, novamente, a razão topológica] de onde advém o gesto espontâneo" e, logo em seguida, que "o gesto espontâneo é o verdadeiro self em ação (Winnicott,1960/1990, p. 148). Ora, se o verdadeiro self é, como podemos observar na citação acima, a posição teórica de onde parte o gesto espontâneo, não seria o próprio verdadeiro self equânime àquele "lugar básico de onde se opera", que emerge na identificação primária?

Assim, being e doing, conforme sugerimos, são indissociáveis em suas temporalidades. São duas faces do mesmo acontecimento, sendo que o gesto espontâneo, quando recebido pelo objeto ainda indiferenciado, dá os primeiros contornos espaciais ao self em devir. Pensar o gesto (e o ator por trás do ato) junto a Winnicott é indissociável não de uma entidade transcendente que manifesta sua identidade enquanto agente de cada gesto, de um cerne identitário personalizado; o gesto criativo não emana do ator, mas cria o próprio ator no momento em que é expedido e recebido por um outro em um ciclo contínuo. Conforme colocou poeticamente Fulgencio (2016):

No gesto criativo – antes, na e depois da fase da transicionalidade –, a criança encontra a si mesma, ou melhor, o gesto é a ação deste si mesmo. Trata-se de um gesto que gera o seu próprio autor e, ao mesmo tempo, o objeto com o qual este si mesmo se relaciona. Tal como o geômetra que num único traço gera o côncavo e o convexo, este gesto criativo gera o si mesmo e o objeto com o qual se relaciona. (p. 107)

Dito de outra forma, o self é imediatamente causa e efeito deste gesto sem ator preexistente a seu efeito. Não há, em um sentido estrito, um indivíduo anterior a esta "volta". Ele é o próprio efeito desta "volta", deste "momento fundador cujo status ontológico se mantém permanentemente incerto", nas palavras de Butler (2017, p. 11); momento em que o gesto criador engendra o objeto e volta ao self a potência criativa. O gesto, tornado significativo pela interpelação do outro, funda retroativamente um ator por trás do ato: o outro é o envelope de um domínio de pura potencialidade não-reflexiva e não-idêntica a si própria.

O being em Winnicott não é, portanto, um vazio e tampouco um ente solipsista que tem sua trajetória pré-definida. Propomos que o being winnicottiano seja uma topologia permanentemente incerta de sua ontologia e densa em experiências de ilusão. A subjetivação em Winnicott é, com efeito, a realização no tempo de um devir histórico que se constitui e se renova perenemente na constante relação de sua potência com a resistência outro, no início em um estado de máxima dependência e, posteriormente, em uma independência potencial que nunca, de fato, se realiza.

 

A dupla volta: being e sujeito

Conseguinte ao afastamento da diferenciação entre o being e o doing, aprofundemos a formação do sujeito em Winnicott enquanto efeito de uma "volta": o arco que o gesto do devir-sujeito percorre, a partir da deflexão do outro, incidindo sobre "ele" próprio e dando os primeiros traços de sua subjetivação. A subjetivação propriamente dita, conforme vimos refletindo, deve atentar à conotação ambígua do seu termo originário: "Sujeição significa tanto o processo de se tornar subordinado pelo poder quanto o processo de se tornar um sujeito" (Butler, 2017, p. 10).

Se, conforme vimos acima, é na primeira "volta" que se constitui o being enquanto efeito e causa de seu gesto criativo e destrutivo, imiscuído na presença do outro como objeto subjetivo, na segunda "volta", o infans tornar-se-á sujeito, tanto no sentido de um ente autorreflexivo quanto no de ser dependente e subordinado a outros sujeitos, os quais continuamente tentará destruir (Winnicott, 1969/2005). "O amor de uma criança", lemos em Butler (2017), inclusive em uma terminologia familiar a Winnicott,

é anterior ao julgamento e à decisão; quando a criança é cuidada e nutrida de uma forma "suficientemente boa" [good-enough, no original], o amor acontece primeiro; só depois é que ela terá a chance de discernir entre os que ama. (...) Para que o sujeito surja, esse apego, em suas formas primárias, deve tanto vir a ser quanto ser negado, seu devir deve consistir em sua negação parcial. (p. 17)

Dessa maneira, em distinção à emergência do being que ocorre logo nos primeiros momentos da vida do infante, a subjetivação é pertinente a uma etapa posterior do desenvolvimento primitivo, que coincide com o que Winnicott (1945/1987a) chamou de realização. Particularmente, concerne ao paradoxo da negação e da sobrevivência que Winnicott (1969/2005) descreveu em seu O uso de um objeto.

Neste influente ensaio anteriormente citado, Winnicott (1969/2005) descreverá o ambiente tornando-se objeto a partir de suas falhas de adaptação à onipotência do sujeito em desenvolvimento. Em síntese, o psicanalista teoriza que a chave da passagem do objeto subjetivo ao objeto objetivamente percebido, ou ainda mais fundamentalmente, sua passagem de objeto a sujeito, se dá por sua constante sobrevivência à constante destruição feita pelo sujeito em desenvolvimento na cena fantasmática de seu inconsciente. A criança, após destruir os objetos ainda em seu controle onipotente, ao "abrir os olhos", enxerga um mundo intacto, que não sucumbiu à destruição: um mundo objetivo, independentemente de sua asserção onipotente, composto por sujeitos com "direitos próprios" (p. 120). Uma "coisa-em-si (thing in itself)" (p. 118), em uma explícita e não-atribuída referência ao conceito kantiano.

Inúmeras implicações podem ser recolhidas a partir da positivação da sobrevivência do mundo objetivo aos ataques do infans na esfera de sua fantasia onipotente. A mais imediata é, evidentemente, aquela destacada pelo próprio Winnicott (1969/2005) no referido ensaio, qual seja, que a sobrevivência do objeto destruído em fantasia é a condição de possibilidade da separação e mudança no registro da dinâmica de relação com objetos ao uso de objetos, com a consequente emergência do próprio sujeito. Em síntese, de que sem a dialética entre destruição e sobrevivência não há amor.

A esta implicação explícita da abstração winnicottiana, cabe acrescentar mais duas. A primeira, conforme vimos, é a de que no momento de separação o sujeito "irá se dar conta de" sua dependência e sujeição a um mundo cuja existência é anterior à sua e que o interpela, algo que Winnicott (1969/2005) ressalta em seu aspecto positivo: "Destas formas" escreve o psicanalista, "o objeto desenvolve sua própria autonomia e sua própria vida e (se ele sobrevive), contribuirá para o sujeito de acordo com suas próprias características" (p. 121).

Todavia, atentando ao duplo sentido da sujeição, não é apenas de aspectos positivos, da contribuição à vida do sujeito no sentido de um enriquecimento pessoal, que se trata a emergência do sujeito. Os aspectos "negativos" da emergência do indivíduo tornado sujeito em – e assujeitado a – um mundo independente de si, do qual é vitalmente dependente, foram abordados por Winnicott em um texto anterior, escrito seis anos antes de Uso de um objeto e que se coloca como um complemento indispensável à teoria da subjetivação que podemos apreender na teorização do autor, o Comunicar-se e não se comunicar levando ao estudo de certos opostos (Winnicott, 1963/1990).

A segunda implicação de Uso de um objeto à qual devemos atentar diz respeito ao postulado de uma dinâmica agonística, de um jogo de forças entre o indivíduo tornado sujeito através das implicações de sua destrutividade e os objetos objetivos (os objetos tornados sujeitos autônomos) com os quais virá a se relacionar. Da mesma maneira que na constituição do being, o gesto criativo e destrutivo do infans indiferenciado volta a si, passando pela resistência do outro e dando contornos à primeira topologia subjetiva, quando da destruição e sobrevivência do objeto, cabe a assertiva de que uma outra "volta" aconteceria.

Esta segunda "volta", ocorrendo por sua vez tendo o self já percorrido as experiências de integração e personalização, criará um sujeito que é assujeitado a um objeto que já não é mais parte imiscuída de seu universo indiferenciado. É verdadeiramente um outro do qual o sujeito depende e ama porque pode destruir. Diríamos "impunemente", não fosse o fato de que a expectativa do retorno a si do mesmo gesto destrutivo que realiza constantemente em sua fantasia inconsciente é, desta vez, atribuída ao objeto, separado e externo, tornado também sujeito. Em outras palavras, se eu posso destruir o outro, ao reconhecê-lo como sobrevivente a meu gesto destrutivo e reintegrá-lo à minha esfera onipotente de indiferenciação, ele pode fazer o mesmo comigo.

Há, portanto, um reposicionamento da paranoia neste contexto. Winnicott propôs que, no momento de indiferenciação do self e no contexto do estabelecimento do being, o objeto suportivo serve como um "ego auxiliar" (Winnicott, 1963/1990, p. 77), referindo-se à função egoica da mediação contra eventos externos e internos potencialmente ameaçadores. "O início", o psicanalista assume,

é potencialmente terrível em virtude das angústias que mencionei e também por causa do estado paranoide que prontamente sucede a primeira integração, bem como dos primeiros momentos instintivos, trazendo ao bebê um novo sentido aos relacionamentos objetais. (Winnicott, 1952/1987, p. 99, grifos nossos)

Se a "primeira integração" é precária, no sentido de que sempre deixa de fora conteúdos que potencialmente se voltarão contra o self com um caráter de estranheza e ameaça, não poderíamos pensar o mesmo a partir do evento da separação entre sujeito e objeto quando da destruição e sobrevivência deste último? O gesto que, com efeito, deflete no objeto que emerge como uma coisa-em-si e, dada sua sobrevivência como ente separado, recebe também a projeção da destrutividade que lhe promoveu como ente separado. O objeto sobrevivente e externo guarda, assim, tanto o amor do qual o sujeito depende quanto a destruição potencial que o próprio sujeito constantemente ensaia, contra ele, em sua fantasia. Dito de outra maneira, a concepção winnicottiana sugere que o poder implicado na destrutividade não é imposto ao sujeito por uma instância soberana, sendo antes o fruto de um circuito que não apenas constrange o sujeito. E essa dinâmica interpela o sujeito criativa e destrutivamente em sua própria sujeição ao mundo externo enquanto consequência e causa.

 

Conclusão

Ao buscarmos contrapor a ilustração do self-bolha e do centro de gravidade, pudemos ver que, em Winnicott, convivem distintas metáforas para o nascimento psicológico do sujeito. Distintamente do self-bolha, que implica o desenvolvimento em uma narrativa romântica e naturalista, o centro de gravidade intersticial destaca os primeiros momentos do devir do sujeito como um processo alteritário e contingente, não redutível ao solipsismo que costumeiramente se aponta em Winnicott.

A partir das consequências da assunção do interjogo das forças contidas nesse momento indiferenciado do desenvolvimento, pudemos ver que o self não acede à existência apenas como efeito da manifestação de uma potencialidade inata. A partir do que chamamos de primeira volta da subjetivação, o self, em seus primeiros contornos, é a sedimentação de um espaço, o envelope que contém o precipitado dos momentos de ilusão cujo contorno é a sobreposição das duas linhas que partem de posições indiferenciadas, mas que se reunirão no espaço de onde opera o a posteriori que chamaremos de sujeito.

Tanto na subjetivação propriamente dita quanto no momento de emergência do being, pressupomos o evento que chamamos acima de "volta" do gesto do sujeito em potencial sobre o que – como efeito desta volta – se tornará sua forma-sujeito. Esta "volta", portanto, ocorre em dois tempos, sendo o primeiro a cena de interpelação de um ambiente indiferenciado que inaugura o lugar-tenente do indivíduo, o being ou a localização primordial do self. No segundo momento, ocorre o que Winnicott apontou como sendo a destruição e sobrevivência do objeto. Momento em que a "fantasia começa para o indivíduo" (p. 121), no sentido que a fantasia só merece este nome na medida em que é um evento privado do sujeito recém-emergido, contraposto ao "mundo dos objetos" (p. 121).

Em ambas voltas está a pressuposição do movimento expansivo primário do corpo, primeiramente indiferenciado do outro e ainda não assimilado à parceria psicossomática (Winnicott, 1949/2007b). O movimento expansivo associado à espontaneidade sempre pressupõe, com efeito, um outro que interpele este mesmo movimento, para que progressivamente o sentimento de si se torne uma realidade da experiência subjetiva.

Algo do sujeito, porém, escapa à interpelação e assume um "lugar" separado. Trata-se do "self não-comunicante do indivíduo, ou o núcleo pessoal do self que é um isolado verdadeiro" (Winnicott, 1963/1990, p. 182). Algo de um excesso que assumirá os descritivos de silêncio e de segredo pertinentes, ao que Winnicott postulou como um núcleo afastado da relacionalidade. Um núcleo cindido, constituído pelas vivências inaugurais da heterotopia do futuro sujeito, não-autorreflexivo e indiferenciado do mundo objetivo.

O postulado deste núcleo implica, com efeito, a revisão da ideia de cisão em Winnicott e, consequentemente, da perturbação da noção de integração enquanto sinônimo de um sujeito totalizado, em que todas as partes se presentificarão para o self em sinergia e harmonia se acompanhados por um ambiente hospitaleiro e não-traumatizante. Inaugura-se uma parte do self indisponível tanto à relação com o sujeito subjetivo e ao Eu autorreflexivo, quanto à relacionalidade com os outros sujeitos e o mundo objetivo, uma cisão no seio da subjetividade que não é, portanto, exclusiva apenas aos cenários traumáticos.

 

 

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Artigo recebido em: 01/05/2021
Aprovado para publicação em: 20/08/2021

Endereço para correspondência
Lucas Charafeddine Bulamah
E-mail: bulamah@gmail.com
Daniel Kupermann
E-mail: danielkupermann@gmail.com

 

 

*Psicólogo, psicanalista, mestre e doutor em Psicologia Clínica pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Membro do GBPSF (Grupo Brasileiro de Pesquisas Sándor Ferenczi).
**Professor Associado (livre docente) do Departamento de Psicologia Clínica da Universidade de São Paulo (USP) e bolsista de produtividade do CNPq. Presidente do GBPSF (Grupo Brasileiro de Pesquisas Sándor Ferenczi) e coordenador do psiA – Laboratório de pesquisas e intervenções em psicanálise.
1O presente artigo é um excerto da tese de doutorado intitulada O sujeito winnicottiano entre o recentramento e o descentramento e defendida no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo em 2019.
2O copernicano e o ptolemaico, para Laplanche (1999), referem-se respectivamente às narrativas psicanalíticas que destacam a preeminência do outro na estruturação da subjetividade e aquelas que priorizam um raciocínio solipsista.
3O termo "cultura materna" refere-se a este espaço majoritariamente indiferenciado entre a mãe e o bebê, em que a mistura de dois espaços psíquicos indiferenciados e os processos de cuidado se desenrolam de modo a formar o sujeito. A escolha de palavras não é inconsequente, e podemos pensar comparativamente no "caldo primordial", que serve até hoje como origem teórica de compostos que deram origem à vida na Terra.

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