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Tempo psicanalitico

Print version ISSN 0101-4838On-line version ISSN 2316-6576

Tempo psicanal. vol.54 no.1 Rio de Janeiro Jan./June 2022

 

ARTIGOS

 

A agressividade na etapa inicial da teoria freudiana

 

Aggressiveness in the early stage of Freudian theory

 

La agresividad en la etapa inicial de la teoría freudiana

 

 

Fabrício de Siqueira GonçalvesI*; Fátima Siqueira CaropresoI**

IUniversidade Federal de Juiz de Fora - UFJF - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Ao longo de sua teoria, Freud procurou compreender e explicar as manifestações agressivas e hostis do ser humano. Podemos dividir essas explicações em três fases. Na primeira, do início de seus escritos até 1913, é enfatizada a ligação entre as manifestações agressivas e as pulsões sexuais. Na segunda, de 1914 até os textos que precedem Além do princípio do prazer (1920), ganha ênfase a abordagem das manifestações agressivas decorrentes das pulsões do Eu. Na terceira, a partir de 1920 até o final de sua obra, as manifestações agressivas passam a ser pensadas, sobretudo, como derivadas da pulsão de morte. Neste artigo, concentramos nossa atenção na primeira fase da teorização de Freud sobre agressividade, com o objetivo de descrever e analisar como o autor concebeu as manifestações agressivas nesse período. A maioria das publicações sobre a agressividade na obra freudiana abordam as ideias apresentadas pelo autor a partir de 1920, de forma que permanece ainda pouco elucidada sua concepção prévia sobre o tema, o que justifica o presente trabalho.

Palavras-chave: Teoria freudiana, agressividade, primeira dualidade pulsional, pulsão de apoderamento, sadismo.


ABSTRACT

Throughout his theory, Freud sought to understand and explain the human being's aggressive and hostile manifestations. We can divide these explanations into three phases. In the first one, from the beginning of his writings until 1913, the link between aggressive manifestations and sexual instincts is emphasized. In the second phase, from 1914 to the texts that precede "Beyond the pleasure principle" (1920), the aggressive manifestations arising from the ego-instincts are emphasized. In the third phase, from 1920 until the end of Freud's work, aggressive manifestations are thought, above all, as derived from the death instinct. In this article, we focus our attention on the first phase of Freud's theorization on aggressiveness, discussing how the author conceived aggressive manifestations in this period. Most publications on aggressiveness in Freud's work address the author's ideas since 1920, so his previous conception on the subject remains unclear, which justifies the present work.

Keywords: Freudian theory, aggressiveness, first instinctual duality, empowerment instinct, sadism.


RESUMEN

A lo largo de su teoría, Freud intentó comprender y explicar las manifestaciones agresivas y hostiles del ser humano. Podemos dividir estas explicaciones en tres fases. En la primera, desde el inicio de sus escritos hasta 1913, se enfatiza el vínculo entre las manifestaciones agresivas y las pulsiones sexuales. En la segunda, desde 1914 hasta los textos precedentes a Más allá del principio de placer (1920), se enfatiza el abordaje de las manifestaciones agresivas derivadas de las pulsiones del Yo. En la tercera fase, desde 1920 hasta el final de su obra, las manifestaciones agresivas pasan a ser pensadas, sobre todo, como derivadas de la pulsión de muerte. En este artículo, centramos nuestra atención en la primera fase de la teorización de Freud sobre la agresividad, con el objetivo de describir y analizar cómo el autor concibe las manifestaciones agresivas en este período. La mayoría de las publicaciones sobre la agresividad en la obra freudiana abordan las ideas presentadas por el autor a partir de 1920, por lo que su concepción previa sobre el tema permanece poco trabajada, lo que justifica el presente estudio.

Palabras clave: Teoría freudiana, agresividad, primera teoría de las pulsiones, pulsión de apoderamiento, sadismo.


 

 

Desde o início de sua teoria, Freud preocupou-se em tentar explicar e descrever a agressividade na vida do indivíduo, tentando relacioná-la às manifestações das pulsões. No entanto, ao longo de sua obra, a ênfase dada às pulsões responsáveis pelas expressões agressivas variou consideravelmente, pois ora foi enfatizada a relação entre as agressividades e as pulsões sexuais, ora a sua relação com as pulsões do Eu, e ora com as pulsões de morte. Rizzuto, Sashin, Buie e Meissner (1993) sustentam que é possível diferenciar três fases na teoria freudiana sobre a agressividade. Na primeira, cujo texto principal é os Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905), Freud apresenta a agressão como um componente da sexualidade masculina normal, que teria como objetivo possibilitar a união com um objeto sexual. Na segunda, que começaria com a publicação de As pulsões e seus destinos (1915), Freud atribui a agressividade às pulsões do Eu, relacionando-a com a tendência a evitar o desprazer e assegurar a sobrevivência do indivíduo. Nesse período, Freud sustenta que o Eu odeia, abomina e persegue os objetos que são fontes de desprazer, com a intenção de destruí-los, sem levar em consideração se eles produzem uma frustração da satisfação sexual ou da satisfação das necessidades de autopreservação. A última fase teria início em 1920, com a publicação do Além do princípio do prazer, texto em que Freud passa a supor a existência de uma pulsão agressiva autônoma atuante no ser humano.

Nas referências secundárias, deparamo-nos com um número considerável de trabalhos que mencionam a concepção freudiana da agressividade em sua obra anterior a 1920. Como exemplo, podemos citar os textos de Hartmann, Kris e Loewenstein (1949); Parens (1973); Smith, Pao e Schweig (1973); Davis (1979); Jaffe (1982); Schwartz (1989); Parens (1991); Pedder (1992); Rizzuto et al. (1993); Mayes e Cohen (1993); Blum (1997); Gray (2000); Dennen (2005); Birman (2006); Ferrari1 (2006); Chaves (2008); Andrade (2008); Aleksandrowicz (2009); Juni (2009); D'Amato (2010); Melo (2011); André (2014); Guillot (2014); Simanke (2014); Fernandes (2016); Corrêa (2019); e Lemos (2019). No entanto, nesses trabalhos, os autores não abordam de forma sistemática e aprofundada o tema, mas apenas citam brevemente algumas das manifestações agressivas consideradas por Freud em sua teoria da primeira dualidade pulsional. A escassez de bibliografia sobre a agressividade na teoria freudiana anterior à Além do princípio do prazer (1920/2018), justifica uma análise mais rigorosa das hipóteses elaboradas sobre esse fenômeno nesse período.

Neste artigo, concentrar-nos-emos nos textos publicados até 1913, devido à complexidade das hipóteses sobre as expressões agressivas elaboradas nessa etapa de sua obra. Analisando a separação feita por Rizzuto et al. (1993), acreditamos que a primeira fase da concepção freudiana de agressividade pode ser estendida do início de seus escritos até 1913. Ao longo desses anos, Freud elabora algumas hipóteses interessantes, que não foram abordadas em sua totalidade por esses autores. Nesse período, a agressividade é atribuída de forma secundária, principalmente, às pulsões sexuais, mas é possível ver sua manifestação também nas pulsões do Eu. É possível dividir essas manifestações agressivas1 em três grupos. Resumidamente, no primeiro grupo, a agressividade estaria relacionada ao complexo de Édipo. No segundo, a sexualidade masculina possuiria uma pulsão de apoderamento, com o objetivo de superar a resistência do objeto para favorecer a união sexual, e, no terceiro, as pulsões sexuais como um todo teriam um componente sádico, oriundo do estágio pré-genital sádico-anal. Esse componente sádico seria responsável por uma série de sentimentos hostis e agressivos nas relações afetuosas. Vale ressaltar que essas abordagens da agressividade não são descartadas nas obras posteriores, mas modificadas e aprimoradas. Comentaremos, no que se segue, cada uma dessas etapas.

 

A agressividade relacionada ao complexo de Édipo

No texto A interpretação dos sonhos, ao analisar os sonhos de seus pacientes, Freud (1900/1976) chega à conclusão de que alguns sonhos são típicos, isto é, manifestam-se quase da mesma forma ao longo da vida de quase todo ser humano. Assim, em todos os casos, eles possuiriam o mesmo sentido e, possivelmente, decorreriam da mesma fonte. Suas raízes teriam origem nos primeiros anos de vida, nos desejos reprimidos e proibidos da infância. Esses irromperiam no sonho, com o afrouxamento da censura ao dormir. Uma das categorias de sonhos típicos descrita pelo autor é a dos sonhos de morte de entes querido.

Freud (1900/1976) separa em dois grupos os sonhos relacionados à morte de entes queridos, os quais seriam impulsionados pelas pulsões sexuais. Embora só desenvolva o conceito de pulsão sexual em 1905, podemos ver sua origem na teoria anterior a essa data. No primeiro grupo, estariam os sonhos de morte de um ente querido (pai, mãe, irmão, entre outros), em que o sonhador acorda profundamente abalado e pode até mesmo chorar durante o sonho. Já no segundo grupo, o sonhador não é afetado pela tristeza ao acordar e fica surpreso pela falta de sentimento, característica essa que o distingue do outro tipo de sonho descrito. O autor esclarece que esse último grupo possui sentido e desejos diversos do primeiro e, possivelmente, seu conteúdo tem como objetivo ocultar o desejo presente no sonho, o qual poderia ser revelado pela interpretação.

Freud (1900/1976) debruça-se sobre o primeiro grupo de sonhos e levanta a hipótese de que eles são causados pela agressividade e pelos sentimentos hostis direcionados a um dos entes queridos do mesmo sexo do sonhador, presentes no contexto edípico, Nesse grupo de sonhos, a tristeza seria a reação aos pensamentos e sentimentos agressivos e hostis que acarretaram a morte desse ente. Esses pensamentos e sentimentos estavam no inconsciente e, com o afrouxamento da censura ao dormir, manifestaram-se na consciência e originaram o sonho.

Freud (1900/1976) esclarece que esses desejos de morte de um ente querido nem sempre são desejos atuais. Geralmente, são desejos de um passado remoto, mais precisamente da primeira infância, que foram reprimidos e recobertos por outros. Tais desejos se manifestariam no sonho sem sofrer disfarces. Ele comenta: "esses sonhos exemplificam um caso muito pouco frequente: neles, o pensamento onírico formado pelo desejo reprimido escapa a toda censura e se apresenta inalterado no sonho." (Freud, 1900/1976, p. 275).

Para Freud (1900/1976), a ocorrência desses sonhos sem censura seria facilitada por dois fatores. Em primeiro lugar, pelo fato de que nenhum desejo parece tão distante de nós como esse. Por essa razão, a censura do sonho não estaria preparada para barrá-los. Em segundo lugar, o desejo reprimido e insuspeitado coincidiria parcialmente, com extrema frequência, com um resíduo do dia anterior, sob a forma de uma preocupação com a segurança da pessoa em questão. Essa preocupação só conseguiria penetrar no sonho valendo-se do desejo correspondente, enquanto o desejo poderia se disfarçar por trás da preocupação que se tornou ativa durante o dia. Freud (1900/1976) comenta que outro fato que ajuda a explicar esses sonhos é que o significado da morte para a criança pouco tem em comum com o nosso. As crianças não sabem das dificuldades com as quais o adulto tem de lidar quando morre um ente querido. Na maioria das vezes, elas são poupadas de cenas de sofrimento que antecedem a morte. Estar "morto" significa o mesmo que ter "ido embora", ter deixado de incomodar os sobreviventes. A criança não tem uma percepção de como essa ausência é provocada; se é devido à viagem, férias, separação ou morte. Sendo assim, quando uma criança tem motivos para desejar a ausência de outro, não há nada que a impeça de dar a seu desejo a forma da morte, pois elas aprendem cedo que as pessoas mortas estão sempre ausentes e nunca mais voltam. Freud (1900/1976) acredita que tais sentimentos são comuns no inconsciente dos adultos, porque a moralidade e os impulsos altruístas só começam a se formar no fim da infância e adquirem consistência no início da puberdade, empurrando todos esses desejos homicidas para o inconsciente.

Tendo em vista essas considerações de Freud sobre os sonhos de morte de entes queridos, podemos dividir a agressividade presente nesses sonhos em dois subgrupos. No primeiro, ela se apresenta na relação da criança com seus irmãos, que com frequência é permeada por sentimentos hostis, mesmo que relações afetuosas venham a ser desenvolvidas mais tarde. Freud (1900/1976) comenta que, ao longo das análises de seus pacientes, estes relatavam que, em algum momento da vida, sonharam com a morte dos irmãos. Ele argumenta que as crianças são completamente egoístas, colocam suas necessidades acima de tudo e lutam com toda a força para satisfazê-las, especialmente contra os rivais. Com a chegada de um irmãozinho, a criança se vê diante de um adversário com quem terá que dividir tudo, inclusive a atenção e os afetos dos pais. Freud observa que as crianças, principalmente na primeira infância, são capazes de sentir ciúmes com diversos graus de intensidade. Para ela, a perda do irmão representa a possibilidade de voltar a ter toda a atenção e afeto dos pais. Dessa forma, o autor aponta que muitos adultos, que amam seus irmãos e se sentem arruinados diante da possibilidade de eles morrerem, abrigam desejos homicidas contra eles em seu inconsciente, os quais têm sua origem na primeira infância. Tais desejos poderiam se realizar no sonho pelo motivo descrito acima.

Como ilustração da hostilidade desse subgrupo e seus efeitos sobre o psiquismo, podemos citar o caso do pequeno Hans (1909/2018a). Aos três anos e meio, logo após o nascimento de sua irmã, ele apresentou febre e dor de garganta por alguns dias. Nessa situação, disse "eu não quero uma irmãzinha" (Freud, 1909/2018a, p. 131). Além disso, quando alguém a elogiava, falava que ela era bonita, ele zombava: "mas ela não tem dente ainda" (Freud, 1909/2018a, p. 131). Acrescentam-se ainda algumas privações, separações temporárias da mãe e, depois, uma permanente diminuição do cuidado e da atenção com a qual ele teve que se acostumar. Hans admitiu o desejo de que a mãe a deixasse cair durante o banho, de modo que ela morresse. Freud esclarece que a hostilidade por ela logo sofreu repressão e foi projetada para o medo da banheira, devido à consciência de culpa por ter abrigado esse desejo hostil (Freud, 1909/2018a).

É possível atribuir a esses desejos homicidas a participação das pulsões sexuais, pois o alvo do desejo de morte representa um obstáculo para sua intimidade junto a um dos pais, escolhido como primeiro objeto de amor. No entanto, é possível considerar também que tais desejos estejam ligados à atuação das pulsões do Eu, uma vez que a criança depende desses para sua sobrevivência. A morte da(o) irmã(o) significaria maior autonomia para a criança, pois esta não teria que dividir roupas, brinquedos, alimentos e, principalmente, a atenção e o afeto dos pais. Mesmo que Freud só tenha nomeado essa pulsão em 1910, como lembram Laplanche e Pontalis (1982/1995), podemos ver sua presença, de forma implícita, na teoria freudiana anterior.

Com base nas considerações de Freud sobre a agressividade e a hostilidade voltadas para o progenitor do mesmo sexo da criança, podemos incluir tais sentimentos em um segundo subgrupo das manifestações agressivas. Nesse caso, a agressividade estaria intimamente ligada à manifestação das pulsões sexuais, pois estaria relacionada à rivalidade edípica. Já em A interpretação dos sonhos, Freud (1900/1976) indica que o primeiro amor da menina é por seu pai e, do menino, por sua mãe. Diz ele: "É como se uma preferência sexual se fizesse sentir em uma idade precoce: como se os meninos olhassem o pai, e as meninas a mãe como seus rivais no amor, rivais cuja eliminação não poderia deixar de trazer-lhes vantagens" (Freud, 1900/1976, p. 265). Essas considerações são confirmadas pelas observações diretas de crianças feitas por Parens (1991), que notou, durante o terceiro ano de vida, um aumento acentuado da hostilidade e do ódio na relação da criança com seu genitor do mesmo sexo, sentimentos ligados ao que Freud nomeou como complexo de Édipo.

Ao analisar a agressividade direcionada para os pais de mesmo sexo da criança no complexo de Édipo, observamos sua manifestação com algumas particularidades em toda estrutura psíquica. Para ilustrar sua ocorrência e consequência sobre a vida psíquica do ser humano, comentaremos um caso de histeria, um caso de neurose obsessiva e um caso de fobia. Os dois primeiros são citados por Freud em A interpretação dos sonhos (1900/1976) e o terceiro é mencionado, pelo mesmo autor, em Análise da fobia de um garoto de cinco anos (1909/2018a).

Ao relatar um caso de histeria, Freud (1900/1976) descreve que a doença da paciente começou com um estado de excitação confusional e, em seguida, progrediu para uma fase em que ela ficou lúcida, mas um tanto apática e com um sono muito agitado. Ao analisar seus sonhos, ele observa que o sofrimento psíquico da paciente dizia respeito à morte de sua mãe. Embora eles contivessem alguns disfarces, logo foi possível chegar a seu conteúdo a partir da técnica da interpretação dos sonhos. Com a melhora de seu quadro clínico, começaram a aparecer fobias histéricas. A mais torturante delas era o temor de que algo pudesse acontecer a sua mãe.

Freud descreve também um caso de neurose obsessiva, em que o paciente estava impossibilitado de sair à rua, pois era torturado pelo medo de matar todas as pessoas que encontrasse. A análise revelou que a base dessa obsessão era um impulso extremamente severo de assassinar o pai, oriundo da primeira infância (Freud, 1900/1976).

Um terceiro caso mencionado por Freud (1909/2018a) é o da fobia do pequeno Hans, que estava relacionada ao desejo de ver o pai longe para poder dormir e ficar sozinho com a mãe. Esse desejo teria surgido nas férias de verão, quando a ausência e a presença alternada do pai criaram as condições para que o desejo da intimidade com a mãe se revelasse. Seu primeiro anseio foi de que o pai partisse para longe. Em seguida, Hans passou a temer ser castigado pelo pai por seus desejos incestuosos por sua mãe. Pouco depois, esse desejo e o medo sofreram repressão e houve um deslocamento para o medo de ser mordido por um cavalo branco. Após as férias, já em Viena, o desejo assumiu o conteúdo de que o pai estivesse longe para sempre; que estivesse morto.

 

Agressividade relacionada ao impulso de apoderamento

Seguindo a divisão proposta no início deste artigo, o segundo tipo de manifestação de agressividade é abordado nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, texto em que Freud (1905/2018a) introduz a hipótese de uma "pulsão de apoderamento", que dotaria as pulsões sexuais de características agressivas e cuja função seria dominar o objeto sexual pela força.

A explicação de Hartmann et al. (1949) ajuda a compreender a manifestação dessa pulsão de apoderamento no ser humano. Segundo eles, nas primeiras formulações teóricas sobre o tema, nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, Freud centrou sua atenção no desenvolvimento da sexualidade e nas vicissitudes da energia psíquica ligada ao impulso sexual. Já os impulsos de natureza agressiva com manifestações destrutivas ou crueldade eram tratados como componentes da sexualidade. Esses impulsos estariam misturados a esta; seriam impulsos com propensão a subjugar, cujo significado biológico residiria na necessidade de superar a resistência do objeto sexual por outros meios do que apenas cortejar. Então, podemos afirmar que, nesse momento inicial, parte dos impulsos agressivos é considerada como derivada de um impulso para o apoderamento sexual.

Tendo em vista as considerações de Freud (1905/2018a) sobre a pulsão de apoderamento, podemos inferir que ele poderia estar ligado à pulsão sexual. Contudo, Freud (1905/2018a) diferencia a pulsão de apoderamento das pulsões sexuais. Ele afirma que os impulsos cruéis vêm da pulsão de apoderamento e que "podemos supor que os impulsos cruéis procedem de fontes independentes da sexualidade, mas que bem cedo são capazes de, mediante uma anastomose, estabelecer ligação num ponto próximo às origens de ambos" (1905/2018a, p. 101).

Portanto, a pulsão de apoderamento seria responsável pelo elemento agressivo e cruel da libido, já a consciência moral reagiria a eles ocasionando alguns casos de neuroses e a paranoia. Essas patologias surgiriam à custa da sexualidade normal, devido às forças psíquicas que agem como resistências e visam colocar as pulsões sexuais dentro dos limites considerados socialmente aceitáveis, o que acabaria ocasionando o sofrimento psíquico. Freud lembra que "É [...] mediante essa ligação entre libido e crueldade que sucede a transformação de amor em ódio, de impulsos afetuosos em hostis, característica de toda uma série de casos neuróticos e até mesmo da paranoia." (Freud, 1905/2018a, p. 63).

Para compreender a relação entre a pulsão de apoderamento e as pulsões sexuais, é necessário entender a evolução destes últimos até a puberdade. Desde os Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, Freud (1905/2018a) sustenta que o início da puberdade introduz mudanças que levam a vida sexual infantil à sua configuração definitiva. As pulsões sexuais seriam, inicialmente, predominantemente autoeróticas, apresentando uma série de pulsões parciais, que partiriam de diferentes zonas erógenas. Tais pulsões empenhar-se-iam na obtenção de prazer, sem conexão entre si, ou seja, de forma independente. No início da puberdade, eles passam a buscar a união com o objeto como fonte de prazer, e todas as pulsões parciais cooperam para alcançá-lo, enquanto as zonas erógenas se subordinam ao primado das zonas genitais. Logo no início da infância, a pulsão de apoderamento se ligaria a essas pulsões parciais e os dotaria de características agressivas e cruéis.

Ao analisar os comentadores das obras de Freud, deparamo-nos com as informações de Dennen (2005), que esclarece que Freud parece ter concordado com a opinião expressa por Breuer, em 1895, na obra Estudos sobre a histeria. Esse último defendeu que um aumento na excitação sexual em animais machos leva a uma intensificação do instinto agressivo, o que se assemelha às ideias apresentadas por Freud (1905/2018a) ao longo de Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. Nesse texto, o autor considera apenas uma agressão manifesta dirigida para o exterior como componente da masculinidade, sendo a agressividade sexual uma prerrogativa masculina.

Com a colocação de Freud acima mencionada e as demais hipóteses elaboradas em Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905/2018a), podemos supor que a pulsão de apoderamento teria uma origem filogenética e estaria a serviço da sexualidade, mas seria diferente das pulsões sexuais. A seguinte passagem apoia esse ponto de vista:

A história da cultura humana ensina, para além de qualquer dúvida, que crueldade e pulsão sexual estão intimamente relacionadas, mas na explicação desse nexo não se fez mais que enfatizar o elemento agressivo da libido. Conforme alguns autores, essa agressividade mesclada à pulsão sexual é um vestígio de apetites canibalescos, ou seja, uma contribuição do aparelho de apoderamento2. (Freud, 1905/2018a, p. 53, tradução modificada).

Nessa passagem, parece que Freud (1905/2018a) deixa implícita a dúvida sobre se a pulsão de apoderamento é interna ou externa às pulsões sexuais. Ele parece sugerir que a pulsão de apoderamento é interna às pulsões sexuais ao citar "o elemento agressivo da libido". No entanto, quando se refere à agressividade mesclada às pulsões sexuais, dá margem para a interpretação de que a pulsão de apoderamento seria externa a tais pulsões.

Freud (1905/2018a) argumenta que "a libido é, por necessidade e por regra, de natureza masculina, apareça ela no homem ou na mulher, e independentemente do seu objeto ser homem ou mulher" (p. 139). Sua consideração sobre essa questão se deve ao fato de que a agressividade presente na libido seria proveniente da pulsão de apoderamento, sendo uma característica masculina. O autor sustenta, então, que a sexualidade nas garotas pequenas teria caráter completamente masculino, devido às manifestações sexuais autoeróticas e masturbatórias, que seriam características ativas da libido. Essa caraterística da libido (ativa) sofreria repressão para que elas fizessem uso de sua feminilidade em idade adulta e passassem a manifestar características passivas ligadas à sexualidade. Podemos deduzir, então, que o sexo feminino possuiria menos libido livre para investir na busca do objeto do que o sexo masculino e, consequentemente, seria menos agressivo devido à repressão. Freud (1905/2018a) menciona que:

A puberdade, que traz ao menino aquele grande avanço da libido, caracteriza-se na menina por uma nova onda de repressão, que atinge justamente a sexualidade clitoridiana. É uma parcela da vida sexual masculina que aí sucumbe à repressão. O reforço das inibições sexuais, criado por essa repressão que ocorre na puberdade da mulher, resulta num estímulo para a libido do homem, que se vê abrigada a intensificar sua atividade. (Freud, 1905/2018a, p. 141).

A existência da agressão também é reconhecida no fenômeno do sadismo, embora, neste contexto, esse seja considerado uma manifestação perversa da libido. Como nos lembra Dennen (2005), podemos considerar que a pulsão de apoderamento se ligou às pulsões sexuais e, em alguns casos, esse componente agressivo da pulsão sexual torna-se independente.

Para explicar o sadismo/masoquismo, Freud (1905/2018a) considera que a pulsão de apoderamento, que se fundiu às pulsões sexuais no início da infância, como citado acima, adquiririam certa autonomia e passariam a manifestar impulsos cruéis em relação ao objeto. Esses impulsos cruéis se tornariam independentes e seriam colocados na relação principal com o objeto. Após analisar os argumentos de Freud (1905/2018a) sobre esse tema, deduzimos que, para compreender essa perversão, é preciso supor que a pulsão de apoderamento se funde com os impulsos ativos e passivos das pulsões sexuais, de forma que o perverso passaria a carregar impulsos cruéis passivos e ativos, oriundos das pulsões sexuais. O seguinte argumento de Freud (1905/2018a) corrobora essa afirmação:

Quem tem prazer em causar dor aos outros nas relações sexuais também é capaz de fruir, como um prazer, a dor que tais relações lhe proporcionarem. Um sádico sempre é, simultaneamente, um masoquista, embora o lado ativo ou o lado passivo da perversão esteja mais desenvolvido nele e constitua sua atividade sexual predominante. (Freud, 1905/2018a, p. 54).

Embora a pulsão de apoderamento seja amplamente abordada ao longo de Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905/2018a), ela quase não aparece nas obras seguintes analisadas. Tal pulsão é mencionada somente em A predisposição à neurose obsessiva (1913/2018b), na qual é concebida como fazendo parte da pulsão sádica e pertencente às pulsões sexuais, apresentando características eróticas. Assim, podemos supor que Freud reformulou o conceito de pulsão de apoderamento formulado em 1905. Isso porque, de acordo com essa concepção, a agressividade na vida adulta ficaria mais restrita às manifestações sexuais masculinas, o que dificultaria explicar outras condutas agressivas e hostis não relacionadas diretamente à sexualidade masculina. E, também, porque ele mostrava ter dúvidas a respeito de se a pulsão de apoderamento é interna ou externa às pulsões sexuais - fato observado ao afirmar que a pulsão de apoderamento se ligaria às pulsões sexuais no início da infância - e, ao explicar o sadismo/masoquismo, supõe que o componente agressivo das pulsões sexuais se torna independente nessas pulsões.

 

A agressividade proveniente do sadismo

De acordo com a divisão das hipóteses sobre a agressividade apresentada no início deste trabalho, a origem do terceiro tipo inicia em Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905/2018a), em que Freud menciona o prazer relacionado à erogeneidade da zona anal na vida das crianças, o qual é descrito com maiores detalhes no texto Caráter e erotismo anal (1908/2018). Nessa obra, Freud (1908/2018) começa a relacionar alguns traços de caráter (ordem, parcimônia e teimosia, que facilmente dariam lugar a raiva e a ânsia de vingança) com o erotismo anal. Ao analisar alguns pacientes, reparou que eles passaram por eventos parecidos na primeira infância. Demoraram um tempo maior para dominar a incontinência fecal e, mesmo em momento posterior da infância, tiveram que lidar com insucessos provocados por essa função. Então, haveria alguma relação entre traços de caráter e o erotismo anal. Havia indícios de que essas pessoas foram aquelas crianças que se recusaram a evacuar o intestino quando colocadas no vaso, para não perderem nenhum momento de prazer na defecação. No entanto, na idade adulta, a zona anal parece ter perdido sua importância e ter sido substituída pela tríade citada acima. Freud (1908/2018) comenta sobre essa zona erógena:

Esses indícios nos levam a concluir que há em sua constituição sexual, um nítido acento erógeno da região anal; mas como, decorrida a infância, nelas não se encontra mais nenhuma dessas fraquezas e peculiaridades, temos de supor que a zona anal perdeu a significação erógena no curso do desenvolvimento, e presumimos então que a constância desse trio de qualidades no seu caráter pode ser ligada ao desaparecimento do erotismo anal (p. 352).

Contudo, ao se referir a essa perda do erotismo anal na idade adulta, Freud (1908/2018) diz acreditar que ela se deve à sublimação dos impulsos gerados por essa zona. A seguinte passagem apoia essa afirmação:

O erotismo anal se inclui entre os componentes da pulsão que no curso do desenvolvimento, e conforme a educação exigida em nossa cultura, tornaram-se inutilizáveis para fins sexuais, não seria despropositado reconhecer, nos traços de caráter dos que foram erótico-anais, preocupação com a ordem, parcimônia e obstinação, os resultados primeiros e mais constantes da sublimação do erotismo anal3 (Freud, 1908/2018, p. 353, tradução modificada).

No entanto, apesar de suspeitar que essa tríade surge a partir da sublimação dos impulsos erógenos gerados pela zona anal na infância, Freud não consegue relacioná-los com a raiva e a vingança, que substituiriam com facilidade essa tríade. Na obra Análise da fobia de um garoto de cinco anos (1909/2018a), de forma implícita, Freud já considera a formação reativa dos impulsos gerados pela zona erógena anal e não mais se refere a processos sublimatórios. Observamos essa mudança quando ele descreve que "Hans começa a ocupar-se do complexo do Lumpf (fezes) e a mostrar nojo de coisas que lhe lembram a evacuação" (p. 260).

No caso clínico do pequeno Hans, Freud (1909/2018a) comenta sobre a influência do erotismo anal na infância e relata como é prazerosa para a criança a defecção antes de ocorrer a repressão. Em relação ao erotismo anal, desde o início, Freud percebeu que Hans possuía uma relação com os excrementos bastante peculiar. O menino costumava insistir para sua mãe deixá-lo entrar no banheiro quando ela ia fazer suas necessidades para ficar olhando. Após ficar livre da fobia, criou uma fantasia que conciliava seus desejos eróticos com os excrementos e a repressão, a qual é descrita na seguinte passagem:

De manhã eu fui ao banheiro com todos os meus filhos. Primeiro eu fiz Lumpf e depois pipi, e eles ficaram olhando. Depois coloquei eles no vaso e eles fizeram pipi e Lumpf e eu limpei o traseiro deles com papel. Sabe por quê? Porque eu gosto muito de crianças, então quero fazer tudo para elas, levar ao banheiro, limpar o bumbum, tudo isso que se faz com as crianças (Freud, 1909/2018a, p. 230).

Essa passagem mostra que Hans obtinha prazer no ato da defecação, ao ver alguém defecando e, também, ao ser auxiliado pelos adultos na sua higiene depois da evacuação. Todavia, Freud (1909/2018a) não consegue relacionar o erotismo anal de Hans com seus impulsos sádicos. Com sua exposição dos fatos clínicos, ele dá a entender que havia alguma relação entre eles, mas não especifica qual. Ao citar esses impulsos, o autor os relaciona aos sentimentos que tinha pela mãe e os separa dos sentimentos hostis que o garoto possuía pelo pai. Essa separação aparece apenas em dois fragmentos, sendo um deles o seguinte:

Tudo deve se prestar para sua vingança do pai, a quem ele guarda rancor por enganá-lo com a fábula da cegonha. É bem como se ele quisesse dizer: "Se você me achou tão tolo e imaginou que eu acreditava que a cegonha havia trazido Hanna, em troca eu posso exigir que tome por verdades minhas invenções". A esse ato de vingança do pequeno pesquisador sucede, em clara conexão, a fantasia de provocar e bater nos cavalos. Também ela é duplamente constituída: por um lado se apoia na provocação que acabou de fazer ao pai e, por outro, traz de novo os obscuros desejos sádicos em relação à mãe, que, inicialmente não compreendidos, haviam se manifestado nas fantasias das ações proibidas (Freud, 1909/2018a, p. 264).

De acordo com essas considerações de Freud (1909/2018a), podemos relacionar os sentimentos hostis pelo pai como provenientes do complexo de Édipo, como exposto ao comentar o primeiro grupo sobre a agressividade no início deste trabalho. Já os impulsos sádicos são considerados na relação do sexo masculino com o objeto sexual. Desde Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905/2018a), Freud buscava explicar o componente sádico das pulsões sexuais sobre o objeto por meio do conceito de pulsão de apoderamento, porém acabou reformulando sua teoria sobre essa pulsão pelos motivos expostos anteriormente. A partir do texto Caráter e erotismo anal (1908/2018), o autor procura fundamentar o ponto de vista de que, na gênese das pulsões sexuais, há um componente sádico responsável pelos sentimentos agressivos. Todavia, continua defendendo que o sexo masculino possui um componente agressivo nas pulsões sexuais, o qual visa dominar e subjugar o objeto e estar a serviço da função sexual (pulsão de apoderamento). Esse componente agressivo faria parte da pulsão sádica.

Em Observações sobre um caso de neurose obsessiva, Freud (1909/2018b) afirma que o conflito entre amor e ódio direcionado à mesma pessoa é ocasionada pelo componente sádico do amor:

o componente sádico do amor desenvolveu-se constitucionalmente de forma bastante acentuada, daí experimentando uma supressão prematura e demasiado radical, e os fenômenos neuróticos observados derivam, por um lado, da ternura consciente elevada ao máximo pela reação e, por outro lado, do sadismo que prossegue atuando como ódio no inconsciente (Freud, 1909/2018b, p. 102).

Portanto, quando nos referirmos a esse conflito de sentimentos direcionado para o mesmo indivíduo na neurose obsessiva, estaremos utilizando o ódio como correspondente ao impulso sádico, pois Freud (1909/2018b) nos faz pensar que esse conflito entre amor e ódio seria ocasionado pelo componente sádico que sofreu repressão.

Para Freud (1909/2018b), essa separação entre o amor e ódio ocorreria "bem cedo, nos anos pré-históricos da infância, com a repressão de uma das partes, geralmente o ódio" (p. 101). Esse ponto de vista será desenvolvido em maiores detalhes com a inserção da fase pré-genital sádico-anal, na obra A predisposição à neurose obsessiva (1913/2018b), em que o autor passa a atribuir a gênese desse sentimento à influência da pulsão sádica, como será exposto logo adiante.

De acordo com as considerações de Freud (1909/2018b) sobre o ódio, é possível supor que esse sentimento ocasiona a intensificação da hostilidade no complexo de Édipo na neurose obsessiva. Essa suposição pode ser inferida quando Freud afirma que os sentimentos hostis do homem dos ratos por seu pai foram reprimidos em tenra idade e que "nessa repressão do ódio infantil ao pai enxergamos o evento que impeliu tudo o que sucedeu depois para o âmbito da neurose" (Freud, 1909/2018b, p. 100). O papel desempenhado, na vida adulta, por essa intensificação da hostilidade no Édipo pode ser compreendido a partir da seguinte passagem: "se meu pai estivesse vivo, ficaria tão aborrecido com meu projeto de esposar essa mulher, quanto ficou naquele episódio de minha infância, de modo que eu teria novamente raiva dele e lhe desejaria tudo de mau" (Freud, 1909/2018b, pp. 87-89). Também na seguinte colocação: "sabemos, além disso, como o pensamento da morte do pai ocupara bem cedo a sua mente, e podemos ver seu próprio adoecimento como reação a esse evento, desejada obsessivamente quinze anos antes" (Freud, 1909/2018b, p. 97).

Freud (1909/2018b) explica que a separação desses sentimentos opostos ocorreu bem cedo, nos anos iniciais da infância, com a repressão do ódio. Essa repressão teria feito com que os dois sentimentos fossem direcionados com a máxima intensidade para toda relação afetiva próxima. O autor afirma que: "O amor não pôde extinguir o ódio, apenas empurrá-lo para o inconsciente, e ali este pode conservar-se e até crescer, protegido da ação eliminadora da consciência" (Freud, 1909/2018b, p. 101). Como consequência, o amor consciente seria intensificado, de forma reativa, para manter reprimido o ódio no inconsciente. Esse ponto de vista é diferente do que está presente em Análise da fobia de um garoto de cinco anos (1909/2018a), em que Freud separa os sentimentos hostis, ligados ao complexo de Édipo, dos sentimentos sádicos, presentes apenas na relação com o objeto.

Apesar da relação entre amor e ódio ser uma das características mais significativas da neurose obsessiva, é necessário ressaltar que essa relação está presente em todas as neuroses. Freud (1909/2018b) argumenta que "o ódio retido pelo amor com a supressão no inconsciente também tem um grande papel na patogênese da histeria e da paranoia" (Freud, 1909/2018b, p. 102). Porém, ele enfatiza que é difícil chegar a uma conclusão definitiva sobre o assunto, devido ao "componente sádico da libido que permanece obscuro" (Freud, 1909/2018b, p. 102). Esse argumento é enfatizado desde Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905/2018a), quando ele se refere à ligação entre libido e agressividade.

Freud lembra que a relação entre amor e ódio direcionados para mesma pessoa é responsável pelos desejos mais hostis no ser humano e, por esse motivo, o ódio tende a permanecer no inconsciente devido à repressão. Quando acontece algo no dia a dia do sujeito que tende a despertar esses desejos hostis, a repressão passa a atuar com mais força, ocasionando algum dano ao sujeito. Um bom exemplo dado por Freud (1913/2018a) é quando uma filha perde sua mãe e é acometida por inúmeras recriminações, como se fosse culpada por ter causado tal morte. Nenhuma das lembranças do cuidado e zelo que teve com a doente são capazes de pôr fim às recriminações. Não é que a filha realmente seja culpada da morte ou tenha sido negligente com mãe, mas nela havia um desejo inconsciente para o óbito desta. Freud (1913/2018a) afirma que essa hostilidade oculta no inconsciente existe em quase todos os casos de intensa ligação afetiva e é um caso clássico da relação entre amor e ódio direcionados para mesma pessoa. Para Freud, essa relação encontra-se, em maior ou menor grau, na constituição de todo indivíduo, de forma que todo ser humano, por natureza, possuiria correntes hostis atuando em seu inconsciente e, ao mesmo tempo, teria que encontrar uma forma de lidar com essa hostilidade.

O componente sádico das pulsões sexuais vinha chamando a atenção de Freud há algum tempo, como vimos, embora ele formulasse explicações pouco claras sobre esse componente. Como tentativa de elaborar uma resposta bem fundamentada para a questão, Freud (1913/2018b) redige o texto A predisposição à neurose obsessiva, em que insere o estágio pré-genital sádico-anal. Diz ele:

Agora vemos necessidade de reconhecer um outro estágio antes da configuração final, no qual as pulsões parciais já se reuniram para a escolha de objeto, o objeto já se coloca como outro ante a própria pessoa, mas o primado das zonas genitais ainda não se instaurou. As pulsões parciais que dominam essa organização pré-genital da vida sexual são os erótico-anais e os sádicos4 (Freud, 1913/2018b, p. 330, tradução modificada).

De acordo com as informações coletadas nas obras de Freud, podemos afirmar que a inserção desse estágio pré-genital sádico-anal (Freud, 1913/2018b) permite compreender vários aspectos da agressividade e do ódio nas diferentes estruturas psíquicas que, até o momento, permaneciam obscuras. Esse estágio explicaria por que, na neurose obsessiva, a hostilidade e o conflito entre amor e ódio direcionados para mesma pessoa seriam tão intensos. Isso se deveria ao fato de haver, em tal neurose, uma fixação intensa nessa fase, o que faria com que o sujeito facilmente regredisse a ela, e explicaria o fato de que a agressividade e o ódio dominassem seus comportamentos. Para Freud, o indivíduo acabaria manifestando em seu comportamento as características desse estágio: expulsão, retenção, domínio da musculatura sobre o objeto, entre outros.

Para explicar como o estágio sádico-anal interfere na vida do sujeito, Freud (1913/2018b) defende que as pulsões sexuais, assim como as pulsões do Eu, perfazem um longo e complicado caminho até alcançarem o estado característico do adulto normal. Tal desenvolvimento não ocorreria de modo impecável quando uma parte das pulsões sexuais permanecesse retida no estágio anterior, ou seja, quando uma parte da libido não prosseguisse o desenvolvimento, produzindo uma fixação. Essa fixação facilitaria a ocorrência de regressão a etapas prévias do desenvolvimento sexual, quando o sujeito experenciasse frustrações.

De acordo com o ponto de fixação, ao longo do desenvolvimento da pulsão sexual, a pessoa teria maior predisposição a manifestar determinada neurose. A fixação na fase sádico-anal causaria uma série de impulsos e pensamentos hostis. Freud (1913/2018b) aponta que:

Já foi notado por muitos observadores, e agora enfaticamente sublinhado por Ernest Jones, o papel extraordinário que têm os impulsos de ódio e erotismo anal na sintomatologia da neurose obsessiva. Ora, isso decorre diretamente da nossa colocação, se supomos que nessa neurose essas pulsões parciais assumiram novamente a representação das pulsões genitais, dos quais foram precursores durante o desenvolvimento5 (Freud, 1913/2018b, pp. 330-331, tradução modificada).

Para demonstrar a importância do estágio sádico-anal, Freud (1913/2018b) cita um caso clínico de uma paciente que passa da neurose histérica para a neurose obsessiva. A primeira é derivada da frustação por não poder ter um descendente, causada pela infertilidade do marido, ou seja, pela rejeição a fantasias de sedução em que abrigava o desejo de ter um filho. A segunda seria motivada pela perda do valor de sua vida genital, que a fez recuar ao estágio sádico-anal.

Para dar mais consistência à influência desse estágio na vida do indivíduo, Freud investiga também o papel desempenhado pelo impulso sádico no desenvolvimento do caráter. É feita uma distinção entre este e a neurose. Na formação do caráter, a repressão não atuaria ou seria substituída sem dificuldades por formações reativas ou sublimações. Na neurose, a repressão fracassaria e ocorreria o retorno do reprimido. Segundo Freud (1913/2018b), no desenvolvimento do caráter, encontra-se uma boa analogia com a organização sexual pré-genital sádico-anal. Freud sugere que, frequentemente, as mulheres mudam seu caráter de forma peculiar, após abandonar suas funções genitais. Elas se tornam briguentas, arrogantes, avarentas e mostram, assim, traços tipicamente sádicos, que estavam reprimidos na época de sua feminilidade. Freud (1913/2018b) argumenta:

que tal mudança de caráter corresponde ao estágio pré-genital sádico-erótico-anal, em que descobrimos a predisposição à neurose obsessiva. Ele seria, então, não apenas o precursor da fase genital, mas, com frequência, também o sucessor e substituto, depois que os genitais cumpriram sua função (Freud, 1913/2018b, p. 334).

Tendo em vista as ideias de Freud (1913/2018b), podemos inferir que, no caso das mulheres, após renunciarem a suas funções genitais, poderiam regredir a essa fase, o que produziria a mudança de caráter. O homem sempre estaria condicionado a ela, principalmente, pela atividade que "é fornecida pela ordinária pulsão de apoderamento, que chamamos de sadismo, ao encontrá-la a serviço da função sexual"6 (Freud, 1913/2018b, p. 332, tradução modificada). Tal pulsão teria importantes serviços a cumprir, como vencer a resistência do objeto.

É importante ressaltar que Freud (1913/2018b) retoma duas hipóteses defendidas em Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905/2018a), as quais quase não tinham aparecido até esse momento: a primeira que, ao entrar na puberdade, o sexo feminino tem que reprimir a corrente ativa das pulsões sexuais de sua sexualidade para fazer uso da satisfação ocasionada por sua função genital. Isso conduz à suposição de que o estágio pré-genital sádico-anal deveria sofrer repressão total no sexo feminino e de que esse sexo poderia regredir a esse estágio devido algum infortúnio, o que ocasionaria a perda da função genital e a manifestação de pensamentos e comportamentos sádicos. A segunda é que a atividade no sexo masculino é alimentada pela pulsão de apoderamento que, nessa obra, passa a ser identificada à pulsão sádica, como integrante das pulsões sexuais.

Ao analisar a relação entre agressividade e pulsão, vale citar a resposta que Freud (1909/2018a) dá a Alfred Adler devido à sugestão deste de que, no ser humano, haveria uma pulsão de agressão, ao lado e no mesmo plano das pulsões sexuais e do Eu. Freud (1909/2018a) argumenta que cada pulsão tem sua própria capacidade de tornar-se agressiva, e rejeita, então, a visão de Adler. Tal afirmação de Freud permite uma melhor compreensão da sua concepção de agressividade nessa etapa de sua obra. Como se sabe, essa recusa da existência de uma pulsão agressiva independente não será mantida a partir de 1920.

 

Considerações finais

Analisamos como a agressividade é concebida em algumas obras de Freud do início de seus escritos psicanalíticos até 1913. Nesse período, observamos que ela é pensada pelo autor como estando relacionada às pulsões sexuais, por meio da pulsão de apoderamento, do complexo de Édipo e da pulsão sádica.

Nesse recorte temporal a que nos referimos acima, a teoria psicanalítica estava em seu início e não possuía fundamentação conceitual e clínica suficientes para aprofundar a compreensão das manifestações agressivas. O autor explora as expressões da agressividade que podem ser consideradas como derivadas das manifestações das pulsões sexuais, o que lhe permite abordar um número reduzido de fenômenos agressivos. Ele observou as manifestações agressivas que surgiam no dia a dia de sua prática como psicanalista e as relacionou com os dados clínicos e as hipóteses elaboradas até então. Procurou relacionar também a agressividade com dados fornecidos pela biologia, o que o conduziu à suposição da pulsão de apoderamento.

A concepção do estágio sádico-anal levou oito anos para ser formulada. Em 1913, Freud passa a ter dados para fundamentar suas hipóteses e avançar em suas especulações, apresentando sua teoria sobre esse estágio. Com a formulação do conceito de estágio sádico-anal, a agressividade continua a ser pensada como proveniente da pulsão de apoderamento7, ao atuar a serviço da função sexual. Essas hipóteses sobre as manifestações da agressividade não serão descartadas em obras posteriores, mas sim aprimoradas e modificadas para se adequarem aos novos dados obtidos. Contudo, Freud acaba sendo levado a reconhecer a necessidade de supor uma pulsão agressiva autônoma, independente das pulsões sexuais, ideia cabalmente introduzida em Além do princípio do prazer (1920/2018). Em trabalhos futuros, analisaremos o desenvolvimento posterior da teoria freudiana sobre a agressividade.

 

 

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Artigo recebido em: 28/10/2020
Aprovado para publicação em: 19/11/2021

Endereço para correspondência
Fabrício de Siqueira Gonçalves
E-mail: fabriciosg87@yahoo.com.br
Fátima Siqueira Caropreso
E-mail: fatimacaropreso@uol.com.br

 

 

*Doutorando em Psicologia pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).
**Doutora em Filosofia pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Professora do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPQ - nível 2.
1Em O chiste e sua relação com o inconsciente, Freud (1905/2018b) menciona um tipo de chiste fruto da vida do indivíduo na civilização, o chiste hostil ou agressivo. Esse tipo de chiste representaria uma forma de lidar com a agressividade e o ódio que sentimos pelo outro de uma maneira socialmente aceitável, para favorecer a vida em sociedade. O autor lembra que esse tipo de chiste é causado pelos impulsos hostis contra nosso próximo, que "estão submetidos desde a nossa infância individual, como desde a infância da civilização humana, às mesmas limitações e à mesma repressão crescente de nossos anseios sexuais" (p. 147) e se manifestam através do chiste hostil ou agressivo. Porém, Freud não detalha e aprofunda essa relação agressiva entre o indivíduo e civilização, até 1913, motivo pelo qual não abordamos essa relação dentre as hipóteses desenvolvidas nesse período. Podemos supor que essa ausência se deva à falta de arcabouço teórico para desenvolver o tema. Essa relação entre agressividade e civilização será abordada de forma mais sistemática a partir de Totem e o Tabu (19013a/2018), com as hipóteses sobre o início da vida em sociedade. Alcançará seu auge em Considerações sobre a guerra e a morte (1915/2018), com a hipótese de uma pulsão primitiva fonte de impulsos cruéis e egoístas, na primeira dualidade pulsional.
2Nessa passagem, o termo "instinto", usado pelo tradutor da edição Companhia das Letras como tradução de trieb, foi substituído por "pulsão".
3Conferir nota 2.
4Conferir nota 2.
5Conferir nota 2.
6Conferir nota 2.
7Passa a ser sinônimo de sadismo, na obra A predisposição à neurose obsessiva (1913/2018b).

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