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Print version ISSN 0102-7395
Reverso vol.27 no.52 Belo Horizonte Sept. 2005
AUTORES SELECIONADOS
A construção do conceito de superego em Freud1
Nadja Ribeiro LaenderI
Círculo Psicanalítico de Minas Gerais
RESUMO
Coteja os conceitos preliminares de superego nos diversos momentos da obra freudiana até sua formalização no texto “O Ego e o Id” de 1923. A autora explicita as diferenças existentes entre as noções de ideal de ego e superego. O que norteou esta pesquisa foi o motivo de Freud usar esses conceitos algumas vezes como sinônimos numa época em que ele já possuía embasamento suficiente para não incorrer nessa indiferenciação.
Palavras-chave: Agente crítico, Agente psíquico especial, Consciência especial, Complexo de Édipo, Ego, Ego ideal, Ideal do ego, Identificação, Libido do ego, Libido objetal, Luto, Melancolia, Narcisismo, Segunda tópica, Superego.
ABSTRACT
It shows the preliminary concepts of superego and the diverse moments of Freud´s work until its formalization in the text “The Ego and Id” dated 1923. The author explains the existing differences between the slight knowledge of ideal ego and superego. What guided the research was based upon Freud´s use of these concepts some times as synonymous when he already had knowledge not to incur into this difference.
Keywords: Critical agent, Psyche special agent, Special conscious, Oedipus complex, Ego, Ideal ego, Identification, Libido of the ego, Object’s libido, Mourning, Melancholy, Narcissism, Superego.
Introdução
Freud elabora a teoria do superego a partir de observações clínicas. Essa teorização ocorre quando ele se depara com um ego coagido por algo que o faz agir como se estivesse sendo censurado, observado, criticado e, algumas vezes, mortificado. Para formulá-la, Freud necessitou elaborar durante quase quatorze anos esse conceito capital, não só por seu papel estruturante no psiquismo, mas também por sua importância clínica na condução do tratamento. Destaca-se, ainda, a sutileza e precisão com que Freud especifica as características do agente psíquico especial, assim como também do agente crítico, que, na evolução de seu pensamento, vai dar origem ao superego, termo introduzido por Freud em 1923, em “O Ego e o Id” (1923).
Em sua origem o conceito de su-perego confunde-se com a consciência. Em “Atos Obsessivos e Práticas Religiosas” (1907), Freud menciona pela primeira vez o aparecimento de uma consciência especial, que surge devido ao recalcamento de idéias sexuais consideradas incompatíveis com a consciência. A neurose obsessiva e a religião com seus ritos, proibições e evitações são formas exemplares de como o recalque representa uma defesa do ego contra as pulsões sexuais. A consciência especial, uma censura inconsciente, é exem-plificada pelos atos cerimoniais aparentemente sem sentido da neurose obsessiva, pois as compulsões carentes de sentido testemunham seu significado inconsciente. A pulsão recalcada, fazendo censura sobre as pulsões sexuais, ameaça a consciência especial com uma pressão constante, sentida pelo ego como uma tentação que induz a uma ansiedade expectante cuja conseqüência é o aparecimento do sentimento inconsciente de culpa.
A consciência especial é a primeira formação defensiva contra as pulsões sexuais, sinalizando um rudimento do que a posteriori será nomeado como superego.
No texto “Sobre o Narcisismo: Uma Introdução” (1914), Freud redefinirá a função do ego a partir da teoria da libido. Para tal, ele discorrerá sobre as relações do ego com os objetos externos, o que culmina na necessidade de diferenciar a libido do ego da libido objetal até a formulação do conceito de narcisismo.
Antes do narcisismo existe o período do auto-erotismo. As pulsões parciais são assim chamadas por se satisfazerem no próprio corpo da criança. O prazer está localizado em partes do corpo chamadas zonas erógenas: bordas e orifícios corporais, fonte das pulsões sexuais. Entretanto, a pulsão sexual se apóia naquela de autoconservação e a desvirtua, libidinizando o ato de mamar quando a criança recebe um a-mais que não pedira e nem previra. É o momento da vivência do corpo fragmentado, ocorrendo uma indiferenciação entre o eu e o outro. Por isso conclui que “uma unidade comparável ao ego não pode existir no indivíduo desde o começo; o ego tem de ser desenvolvido. Os institntos auto-eróticos, contudo, ali se encontram desde o início, sendo portanto, necessário que algo seja adicionado ao auto-erotismo – uma nova ação psíquica – a fim de provocar o narcisismo” (Freud, v. XIV:93). Sem a entrada do ser experiente que nomeia e articula as necessidades da criança não haverá a assunção da imagem do corpo unificado do narcisismo.
O narcisismo primário caracteriza-se pelas primeiras satisfações narcísicas, predominando a auto-suficiência, ideal de toda perfeição. O ego ideal se torna depositário de toda idealização, perfeição e felicidades ilimitadas do narcisismo primário.
O narcisismo secundário corresponde ao narcisismo do ego, produzido pelo retorno dos investimentos dos objetos para o ego, tomado como objeto. O desenvolvimento do ego se dá pelo afastamento do narcisismo primário, buscando recuperar a perfeição e res-gatá-la sob a forma de um ideal: o ideal do ego, seu modelo ideal.
A introdução do conceito de agente psíquico especial ocorre em Freud no momento em que explicita o modo de funcionamento do ideal do ego, existente para assegurar a satisfação narcísica proveniente do ideal do ego e tem como função a auto-observação; além disso, serve como referência e avalia o ego em suas ações.
Deduz-se, pois, que o agente psíquico especial aumenta as exigências do ego para que ele cumpra o que está determinado pelo seu ideal. Há uma diferença entre o ideal do ego e o agente psíquico especial. Enquanto o primeiro é um modelo a ser seguido, está inter-nalizado como substituto do ego ideal, o segundo é exemplificado por Freud pelos delírios de observação na paranóia e nos sentimentos de culpa nas neuroses de transferência. O problema é que as suas manifestações são feitas através de vozes faladas na terceira pessoa e que se dirigem ao sujeito como algo externo a ele (“agora ele está pensando aquilo de novo, agora ela está saindo”).
Mais adiante, Freud explica que as exigências culturais, as críticas dos pais e as censuras dos educadores são os meios encontrados por essas proibições de fora, que falam na terceira pessoa, para se internalizarem como a voz da consciência por efeito do recalcamento.
Em 1917, Freud estabelece uma diferenciação entre o luto e a melancolia, mediante a elaboração conceitual do narcisismo e ideal do ego. É na diferenciação da reação à perda do objeto que ele ressalta a importância do mecanismo identificatório e das modificações produzidas no ego.
No luto observa-se uma reação à perda de um objeto traduzida por uma tentativa reinterada do ego em continuar a investir no objeto perdido, provocando desinteresse pelo mundo externo e dificuldade de encontrar outro objeto. Tudo gira em torno dessa perda. Porém, o princípio da realidade intervém, o ego percebe que o objeto amado não existe mais. Após inúmeras tentativas de investimentos e desinvestimentos no mundo exterior, a libido volta a circular, e assim ele pode investir em novo objeto. No final desse percurso, o trabalho de luto finaliza-se.
O trabalho que o ego tem na melancolia é dramaticamente diferente do trabalho que tem no luto. A perda do objeto na melancolia causa uma cisão no ego em razão de ela ser introjetada como uma perda relativa ao ego através da identificação narcísica com o objeto perdido o que explica o seu alheamento do mundo. O ego cindido em duas partes, uma identificada ao objeto perdido, e a outra constituindo o agente crítico que o julga como se fosse o objeto perdido, o ataca com agressividade, sem discernir que está atacando a si próprio.
Enquanto no luto há uma perda objetal consciente, na melancolia a perda objetal é inconsciente. O melancólico também retira a libido do mundo externo, diminui sua capacidade de amar, mas diferentemente da pessoa enlutada, ele avilta a si mesmo e tem uma ansiedade de ser punido a qualquer momento. Freud diz: “ele sabe quem ele perdeu, mas não o que perdeu nesse alguém” (Freud, v. XIV:277).
O agente crítico vem prenunciar a questão sádica do superego, a pulsão de morte e as ambivalências presentes nas identificações edipianas.
O conceito de identificação fundamenta a construção do psiquismo humano. Ele é a mais remota expressão de um laço emocional com outra pessoa, norteia o complexo de Édipo, pois é necessário que a criança passe da identificação materna para a identificação paterna, e demonstra de forma clara a herança identificatória do superego.
A identificação implica uma mudança do ego através da introjeção dos traços do objeto, por isso Freud afirma: “...o caráter do ego é um precipitado de catexias objetais abandonadas e ele contém a história dessas escolhas de objeto” (Freud, v.XIX:43). Sendo assim, o ideal do ego representa uma identificação primária com a figura do pai, ele é o que gostaríamos de ser. Há uma tentativa de moldar o próprio ego àquele que foi tomado como modelo; é anterior a qualquer escolha sexual de objeto e se faz de maneira direta. Com o aparecimento do investimento objetal do menino pela mãe e o aparecimento da figura paterna, temos o início do complexo de Édipo. O pai é visto como um rival que está impedindo a relação do menino com sua mãe. Por esse motivo, sua identificação com o pai sofre um abalo, surgindo uma hostilidade em direção à figura paterna. O menino se identifica com o desejo de substituí-lo em sua relação com a mãe (complexo de Édipo positivo), ou pode ocorrer uma inversão (complexo de Édipo negativo) e o investimento amoroso ser direcionado para o pai, caracterizando uma atitude feminina por parte do menino, ser amado pelo pai de forma passiva. Ora, no Édipo a posição paterna faz uma torção, ela passa do que gostaríamos de ser para o que gostaríamos de ter. O pai, agora, está na posição de objeto, pressupondo uma escolha objetal, uma identificação secundária, indicativa de um recalcamento.
Com a constatação, na clínica de Freud, da existência da reação terapêutica negativa, das compulsões à repetição e do conceito de pulsão de morte, ele vê-se diante de um impasse teórico. A primeira tópica já não consegue sustentar o que ele encontra nos seus clientes. Assim, nasce a segunda tópica, formalizada em “O Ego e o Id”, em 1923. Freud já havia estabelecido as formas de identificacão do ego; esmiúça agora sua ligação com o id e principalmente introduz o conceito de superego, explicitando a sua formação.
De posse de conceitos-chave como a identificação primária, identificação secundária, ideal do ego, mais a problemática da melancolia e suas conseqüências para o ego – noções que embasam e ratificam o conceito de superego –, torna-se obscura a indistinção que Freud faz, por diversas vezes, entre o ideal do ego e o superego.
Em “O Ego e o Id”, Freud declara, ao se referir ao superego e sua relação com o ego e os preceitos, que
Você deveria ser assim (como o seu pai)”. (...) também compreende a proibição: Você não pode ser assim (como o seu pai).(...). Esse aspecto duplo do ideal do ego deriva do fato de que o ideal do ego tem a missão de reprimir o complexo de Édipo; em verdade, é a esse evento revolucionário que ele deve a sua existência (Freud, v.XIX: 49).
A palavra superego não é nem citada nessa parte do texto, tampouco tem sua função explicitada. O ideal do ego como tal, no nosso entendimento, refere-se ao primeiro preceito, “Você deveria ser assim”, levando-se em conta a dimensão identificatória. Ao superego caberia a proibição “Você não pode ser assim”, em razão do surgimento dessa nova estrutura no ego. Ou seja, ele aponta para o fato de que há um superego arcaico que se origina das escolhas objetais do id e aparece sob a forma “você deveria ser assim (como seu pai)” e é produto de uma identificação com o objeto primordial, dando origem ao ideal do ego. Mas existe um outro preceito, “Você não pode ser assim (como seu pai)”. O “não” indica a impossibilidade da identificação primária devido à vigência da lei edipiana e ao aparecimento do superego como representante da lei paterna que interdita a relação mãe-filho. Finalizando o parágrafo citado, Freud introduz o superego na vertente da lei paterna, lei do interdito, e suas conseqüências sobre o ego.
O superego retém o caráter do pai, enquanto que quanto mais poderoso o complexo de Édipo e mais rapidamente sucumbir à repressão (sob a influência da autoridade, do ensino religioso, da educação escolar e da leitura), mais severa será posteriormente a dominação do superego sobre o ego, sob a forma de consciência (conscience) ou, talvez, de um sentimento inconsciente de culpa (Freud, v. XIX: 49).
Um pouco à frente, o ideal do ego é apresentado como o herdeiro do complexo de Édipo. “Erigindo esse ideal do ego, o ego dominou o complexo de Édipo e, ao mesmo tempo, colocou-se em sujeição ao id” (Freud, v. XIX: 51). Como entender que o ideal do ego vinculado aos modelos identificatórios primários possa ser o fator determinante na resolução do complexo de Édipo, que implica uma identificação secundária?
Na p.64 do mesmo texto, Freud escreve que o ego é formado por restos de identificações do id, sendo que a primeira dessas identificações se comporta como uma instância especial mantida à parte do ego sob a forma de superego. Ora, de novo entendemos como primeira identificação do ego o ideal do ego e não o superego. Mais adiante, ele continua:
O superego deve sua posição especial no ego (...) a um fator que deve ser considerado sob dois aspectos: por um lado, ele foi a primeira identificação, (...) quando o ego era ainda fraco; por outro, é o herdeiro do complexo de Édipo, e assim introduziu os objetos mais significativos no ego” (Freud. V. XIX: 64).
O que fica bem marcado é a formação do superego dividida em duas fases. A primeira, a fase identificatória primária objetal, em que o ego se apodera dos investimentos do id, pega-os para si para depois projetá-los nos objetos e, em seguida, introjeta-os pela identificação. A segunda fase, compreende a resolução do complexo de Édipo, quando surge a instância superegóica propriamente dita, com a internalização da lei paterna e o aparecimento do sentimento inconsciente de culpa, gerado pelo masoquismo moral, que representa uma força poderosa para a submissão do ego.
Por ter como uma de suas origens a identificação paterna, traz como conseqüência a dessexualização que leva a uma sublimação. A corrente erótica e a corrente agressiva sofrem uma separação e não conseguem mais se reunir. Dessa maneira podemos explicar a agressividade do superego contra o ego, presentificada pelo imperativo categórico do ditatorial farás.
O ser superior, que se transformou no ideal do ego, outrora ameaçara de castração, e esse temor de castração é provavelmente o núcleo em torno do qual o medo subseqüente da consciência se agrupou; é esse temor que persiste como medo da consciência (Freud, v. XIX: 74).
Mais uma vez, sabemos que o medo da castração, surgido no final do complexo de Édipo, leva-o ao seu declínio, dá origem ao superego e inicia o período de latência. Logo, em lugar de ideal do ego deveria ser superego.
Nas “Novas Conferências Intro-dutórias Sobre Psicanálise”, em especial na “Conferência XXXI: A dissecção da personalidade psíquica” (1933), Freud retoma a construção do aparelho psíquico e o superego aparece nos moldes da cisão que ocorre no ego na melancolia. O superego é independente do ego, retira sua energia do id, e ainda tem o papel da consciência. Não é a consciência da primeira tópica que fica localizada no exterior do aparelho psíquico, mas sim uma consciência interiorizada com o sentido de julgamento, avaliação e auto-observação. A severidade e crueldade do superego é explicada pela melancolia em razão de todo mecanismo de introjeção e cisão a que o ego é submetido. O superego é, pois, um exemplo de identificação primária relacionada ao ideal do ego, com ênfase no pai e na relevância de sua mudança de posição ao longo do processo edipiano, cujo desfecho será o aparecimento do superego através da introjeção da lei paterna.
Após este percurso a questão do superego se esclarece. Em “O Ego e o Id”, Freud identifica o ideal do ego ao superego, confundindo em certos períodos a especificidade de cada um. O ideal do ego é a instância pela qual o ego se guia e cria seu modelo e ideal de perfeição. “Sejam quais forem as modificações que intervêm em seu ambiente e seu meio, o que é adquirido como Ideal do eu permanece, no sujeito, exatamente como a pátria que o exilado carregaria na sola dos sapatos – seu Ideal do eu lhe pertence, é, para ele, algo de adquirido. Não se trata de um objeto, mas de uma coisa que, no sujeito, é a mais” (Lacan (1957-1958):301). O superego propriamente dito aparece num momento mais tardio, sendo com certeza o herdeiro do complexo de Édipo. Um e outro são os lados de uma mesma moeda. Cada um possui especificidades próprias e maneiras de formação diferentes, e articulando-se produzem o que há de mais rico na subjetividade humana: as múltiplas faces dos sentimentos de culpa, moralidade, dever e ideais.
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Endereço para Correspondência
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Te.: (31) 3281-9689
E-mail: rlaender.bh@terra.com.br
Recebido em maio de 2005
Aceito em agosto de 2005
1 Este texto é o resumo da monografia de conclusão do Curso de Especialização em Teoria Psicanalítica da FAFICH – UFMG.
I Psicóloga. Psicanalista. Membro do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais – CPMG.