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Print version ISSN 0102-7395
Reverso vol.30 no.55 Belo Horizonte June 2008
DISCURSOS
Discurso de posse da Diretoria do CPMG: biênio 2007/2009
Ana Cristina Teixeira da Costa Salles*
Círculo Psicanalítico de Minas Gerais
“Aquilo que herdaste de teus pais, conquista-o para fazê-lo teu”.1
Goethe, Fausto – Parte I, Cena I
Esta frase de Goethe, citada por Freud em “Totem e Tabu”, foi um ponto de reflexão quando resolvi aceitar o convite e o desafio de candidatar-me à Presidência do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais na gestão que ora se inicia.
O convite feito por algumas colegas em junho deste ano causou-me “espanto”, pois nunca havia pensado em ocupar cargos de direção.
Entretanto, como dizia Aristóteles, “o espanto é desde sempre motivo para as pessoas filosofarem, continuando a sê-lo ainda hoje”. “Espanto” aqui entendido como “espanto filosófico”, “o pasmo perante fenômenos e acontecimentos inexplicáveis do qual nascem as interrogações acerca das causas”2.
Assim, um questionamento foi crescendo e me desafiando a rever o meu percurso como psicanalista e como sócia do CPMG, e também as minhas motivações para aqui estar.
Quando cheguei ao Círculo Psicanalítico de Minas Gerais, no final da década de 1970, já havia iniciado uma análise com o Dr. Antonio Franco Ribeiro da Silva, analista didata desta instituição.
O desejo de começar uma formação psicanalítica para aprofundar meus conhecimentos sobre Psicanálise e para capacitar-me para a prática clínica foi sendo elaborado na análise e gradativamente ganhando corpo até que finalmente iniciei a minha formação, depois de cumprir os pré-requisitos e de passar por uma seleção rigorosa.
Éramos dez colegas, todos jovens, animados e cheios de expectativas.
Durante cinco anos fizemos o nosso percurso na instituição freqüentando os seminários, as reuniões clínicas e os cursos que na época eram ministrados pelos analistas didatas.
Terminada a formação básica, alguns colegas saíram, outros permaneceram por mais algum tempo, mas posteriormente optaram por outros caminhos.
Da turma inicial restam, atualmente, Maria Lúcia Salvo Coimbra, Valderez Pinho e eu, já que perdemos o nosso querido Adelson de Souza Pires há alguns anos.
“Viver é muito perigoso”3, dizia Guimarães Rosa em Grande Sertão: Veredas, e como a vida não segue o curso que planejamos e constantemente nos lança desafios que precisamos enfrentar, estive durante um certo período impossibilitada de continuar a minha caminhada. Perdas significativas na minha vida me afastaram temporariamente do CPMG. Ainda não era hora de me engajar na instituição. A vida me requisitava para outras tarefas e era preciso enfrentá-las. E assim foi feito. Algum tempo depois terminei a minha análise, as supervisões clínicas e iniciei minha carreira como psicanalista.
Além das atividades do consultório, trabalhava como Psicóloga no IPSEMG, onde uma vasta experiência clínica foi se acumulando com o passar dos anos e onde inúmeras amizades foram sendo conquistadas, pessoas que até hoje têm um lugar especial na minha vida.
Hoje agradeço aqueles tempos difíceis mas plenos de trocas, camaradagem e trabalho produtivo.
Tempos de aprender a clínica e me surpreender com ela e de reafirmar a cada dia o meu desejo de ser psicanalista.
Pouco a pouco a vida foi se ajeitando e fui voltando a participar mais ativamente no CPMG.
Vivemos uma época de muita efervescência na instituição com uma vasta gama de experiências, informações, aprendizagem e troca entre pares. O Círculo passou por momentos difíceis, teve as suas crises, as suas perdas, mas superou-as e fomos seguindo em frente.
Aqui também criei laços afetivos e sociais. A convivência com os colegas, as amizades que nasceram e que foram se estreitando com o passar do tempo, as identificações com o grupo em torno de um ideal comum – a transferência com a Psicanálise – fortaleceram meu compromisso com a instituição.
Há cerca de dez anos, desde a gestão de Eliana Rodrigues Pereira Mendes, venho atuando ativamente em várias Diretorias com a realização de diversas tarefas, assumindo várias funções e integrando o corpo docente do CPMG, cuja experiência enriquecedora a cada dia mais me surpreende.
Recordando essa história, percebi que estou profundamente ligada ao Círculo Psicanalítico de Minas Gerais.
Criei raízes, enlacei-me com a instituição e com meus pares, fruto de décadas de trabalho conjunto e de um convívio intenso, nem sempre fácil, mas sem dúvida alguma enriquecedor.
Creio que isto foi fundamental para aceitar o desafio de ser presidente do CPMG e continuar o trabalho que outros colegas iniciaram, ou seja, manter viva e atuante a nossa sociedade, comprometida como sempre foi com o ensino, a transmissão e a ética da Psicanálise.
A tarefa não é fácil, sabemos que as instituições psicanalíticas, como todos os agrupamentos humanos, estão sujeitas aos fenômenos de identificações, idealizações, coesões e cisões.
Algumas vezes, rupturas violentas acontecem demonstrando toda força e ambivalência dos afetos, das paixões a que estamos submetidos.
Mas sempre foi assim, a história do movimento psicanalítico o atesta e nem por isso a psicanálise naufragou e as sociedades psicanalíticas acabaram. Pelo contrário, algumas vezes se fortalecem pois os que permanecem se reorganizam, reafirmam seu compromisso e seguem em frente.
Tais fenômenos fazem parte da vida societária, não devemos nos preocupar em demasia com eles, mas sim possibilitar a emergência de um espaço criativo que proporcione a circulação e transmissão de um saber, a troca entre pares e a transferência de trabalho em torno de um projeto comum onde as diferenças possam ser reconhecidas e respeitadas, pois a psicanálise não floresce em regimes totalitários que impossibilitam a emergência do desejo.
De todas as propostas que apresentamos aos sócios na nossa Carta de Intenções, algumas são especialmente importantes:
1. A ênfase no ensino e na transmissão da psicanálise valorizando o tripé fundamental: ensino teórico, análise pessoal e supervisão, através de uma política institucional que marque a identidade do CPMG como sociedade psicanalítica comprometida com a ética da Psicanálise.
2. O estudo dos textos freudianos e do ensino de Jacques Lacan, com todo rigor que for necessário, sem que isto implique uma rigidez de pensamento e um desconhecimento da importância de outros autores que contribuíram para o crescimento da Psicanálise.
3. Repensar e melhorar o nosso modelo de formação/transmissão sem desvalorizar e negar as conquistas já realizadas.
4. Introduzir novos projetos e modalidades de ensino/transmissão buscando um aprimoramento e aprofundamento teórico, como também uma maior participação dos sócios nesses projetos e atividades científicas do CPMG.
5. O trabalho em torno de um tema central que mobilize a sociedade, com uma produção teórica a ser apresentada em jornadas/congressos colocando o Círculo Psicanalítico de Minas Gerais em diálogo com outras sociedades psicanalíticas, é uma meta a ser atingida.
6. A participação efetiva do CPMG na estrutura social é outra meta importante e coincide com o desenvolvimento da idéia da OSCIP e da divulgação do trabalho da “Clínica de Psicanálise”.
7. Incentivar a participação dos alunos e participantes do Fórum nas atividades administrativas e científicas do CPMG, buscando a integração do corpo societário.
8. Implementar uma abertura tecnológica com o uso de videoconferências, cursos e palestras a distância; atualizar sempre o nosso site com informações precisas sobre a nossa sociedade, eventos e publicações científicas.
Freud sempre se preocupou com o destino da psicanálise após a sua morte, pois pressentia que o futuro do que havia descoberto não estava garantido.
O caráter inovador, chocante e subversivo da psicanálise provocou, desde o início, oposições violentas e várias tentativas de desmoralização, críticas ferrenhas ou desvirtuações de seu corpo teórico e de sua prática clínica.
Como dizia Octave Mannoni, “ainda hoje é necessário que a obra de Freud seja defendida contra as potências recalcadoras que sempre tendem a encobri-la e a enterrá-la”4.
Mais de cem anos após a sua criação e mesmo depois de seu reconhecimento como uma das grandes conquistas culturais da humanidade, a situação se repete.
Nestes tempos sombrios em que vivemos, quando assistimos à destruição de valores e princípios como ética, honradez, honestidade e respeito, e onde o discurso capitalista a tudo invade e corrói, novamente a psicanálise se vê ameaçada e desta vez por elementos que, movidos por interesses espúrios, tentam destruir a sua prática e a sua ética.
Mais uma vez faz-se necessário um outro retorno a Freud, às nossas origens, à herança que recebemos a fim de manter vivo o legado freudiano. Este também é nosso dever ético.
Para terminar, gostaria de agradecer à Diretoria que ora termina seus trabalhos pelo seu esforço, dedicação e compromisso no desempenho de suas funções. Vocês conduziram o barco com firmeza mesmo atravessando algumas tormentas. Parabéns pelo trabalho executado.
Aos colegas do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais que referendaram o meu nome e dos outros membros desta Diretoria, bem como as nossas propostas de gestão, o nosso muito obrigada. Contamos com todos para a realização de um projeto que não é só da Diretoria mas de todos nós.
Aos membros do Fórum e aos alunos agradeço o apoio e as palavras de incentivo e amizade. Vamos trabalhar para vocês que são o futuro desta casa.
Aos colegas da Diretoria não há palavras para expressar o meu apreço e os meus agradecimentos pela confiança e pela aposta de realizarmos juntos um trabalho produtivo e eficaz.
Aos funcionários do CPMG fica o desejo de continuarmos nesta jornada. Nosso trabalho e nosso êxito dependem em muito da colaboração de vocês.
Para todos nós aqui presentes deixo as palavras sábias de Guimarães Rosa:
“o correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem”3.<
*Presidente do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais - Biênio 2007/2009.
1FREUD, Sigmund. Totem e tabu. ESB, v.XIII. Rio de Janeiro: Imago, 1974, p.188.
2CHRISTOPH, Delins; GATZEMEIER, Mathias; STERCAN, Deniz; Wünscher, Kathleen. A antiguidade. In História da Filosofia, da antiguidade aos dias de hoje. Könemann, 2001, p.6.
3ROSA, Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006, p.16 e p.318.
4MANNONI, O. O futuro de uma desilusão. In Freud e a psicanálise. Rio de Janeiro: Rio Sociedade Cultural, 1976, p.127-131 e p.133-152.