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Print version ISSN 0102-7395

Reverso vol.31 no.57 Belo Horizonte June 2009

 

TEORIA PSICANALÍTICA

 

Schreber e a crise da investidura simbólica

 

Schreber and the symbolic investiture crisis

 

 

Flávio Eustáquio Bertelli

Círculo Psicanalítico de Minas Gerais
Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos

Endereço para correspondência

 

 


Resumo

Partindo da leitura e interpretação freudiana do clássico “Caso Schreber”, dos seus delírios, e a interpretação que deles fez Freud, são introduzidos e articulados os conceitos de crise da investidura simbólica do sociólogo Pierre Bourdieu e aspectos do aparecimento da violência ligados à crise da modernidade, na ótica do filósofo Walter Benjamin, com o objetivo de ampliar o estudo da paranoia, inserindo-a no contexto histórico onde os paranoicos atuam.

Palavras-chave:Investidura simbólica, Crise, Delírio, Angústia de influência, Estado de emergência, Enunciado performativo, Violência.


Abstract

Based upon Freud’s interpretations of Schreber’ deliriums in his classic study “The Schreber Case”, we herein introduce and operate with concepts used by the sociologist Pierre Bourdieu (the crisis of symbolic investiture) and the philosopher Walter Benjamin (aspects on the increase in violence in relation to the crisis of modernity). Our objective is to amplify the study on paranoia, considering it within the historic context in which paranoics act.

Keywords:Symbolic investiture, Crisis, Delirium, Influenced anxiety, State of emergency, Performatic statements, Violence.


 

 

Uma das primeiras grandes convocações para a captura do poder político, usando o apelo divino, foi do profeta Isaías, que viveu entre 740 e 681 a.C. Crítico ferino da política externa judaica e preocupado com as convulsões sociais internas do povo israelita, o profeta clamou:

"O povo que andava em trevas viu grande luz; os que moravam em terra de sombras da morte, a luz resplandeceu sobre eles. Porque um menino nos nasceu, nos foi dado um filho; traz o governo em seus ombros. Seu nome será Conselheiro admirável, herói de Deus, Padre Eterno, Príncipe da Paz, nascido para restabelecê-la e afirmá-la através do direito e da justiça, desde agora e para sempre"1.

A espera do Messias constitui um dos aspectos mais determinantes em toda a história religiosa judaica. Tal importância não é menor para o cristianismo, mesmo que já tenha seu Messias descendo à terra, na figura do Jesus de Nazaré.

A relação entre Antonio Conselheiro, no sertão de Alagoas, o monge José Maria, na região do Contestado, no sul do Brasil, e Daniel Schreber, na Alemanha, guardando cada um suas especificidades históricas ou pessoais, é que foram casos de claro messianismo2.

Não seria coincidência notar o fato de tais movimentos, entre outros, no Brasil, guardarem consonância de datas com os acontecimentos vivenciados por Schreber, narrados na sua notável obra3. Canudos, com Antonio Conselheiro, aconteceu entre 1896/97, o Contestado de João Maria entre 1910 e 1914, e mesmo o Juazeiro do Padre Cícero começando em 1872, teve seu apogeu de lutas entre 1912/13. Daniel Paul Schreber teve sua primeira derrota política, desencadeante do seu primeiro surto psicótico, em 1884. Sua primeira consulta e internação com Flechsig ocorreu em novembro do mesmo ano; publicou suas memórias em 1903 e morreu em 1911, após sucessivas crises e surtos, sempre ligados aos traumas da violência simbólica de seus fracassos.

Mesmo que as contingências das realidades sociais, políticas ou culturais fossem diferentes, uma coincidência ainda maior une indelevelmente seus protagonistas: a paranoia e a megalomania incidentes nesses sujeitos messiânicos.

Seria instigante a tarefa de cotejar simetrias e dissimetrias que se encontrariam nas histórias – clínicas ou não – desses “doentes dos nervos”. Lamentamos, porém, que a historiografia brasileira, ou mesmo nossos estudos específicos de psicanálise, não contemplem material organizado para tal estudo. O mesmo não acontece na Alemanha, onde o “Caso Schreber”4, sobretudo após a magistral leitura clínica que dele fez Freud, possui uma extensa bibliografia.

Suponho que as crises sucessivas que precipitaram os delírios de Schreber estariam ligadas às mesmas crises da modernidade, que propiciaram aos nazistas elaborar sua doutrina onde a violência e as soluções finais são a tônica dessas ideias também delirantes. Assinalo também as crises da pós-modernidade e a erupção do capitalismo mundializado como formas de um fascismo pós-moderno, cuja representação contemporânea seria a doutrina Bush, estrutural e ideologicamente messiânica, com seus epígonos salvacionistas.

Cabe ressaltar a formidável exceção da experiência de Schreber, que vivenciando de maneira profunda o esvaziamento da ordem que induziu outros paranoicos a aventuras totalitaristas, conseguiu evitar, através de uma série de identificações aberrantes, a tentação totalitária.

O que lhe permitiu ficar onde ficou, isto é, apenas na interpelação verborrágica daquele conflito entre ele, sujeito, e a autoridade social e institucional – as convocações, os ritos e processos de investidura – foi que a sua defesa alucinada e delirante acabou sendo o bastante para responder aos conflitos causados pelas investiduras simbólicas que lhe foram imputadas.

Seu discurso e sua ação foram contidos, por assim dizer, no seu protesto paranoico individualizado, pelas circunstâncias de sua própria história individual. É conveniente lembrar que Schreber foi candidato derrotado a uma cadeira do Parlamento saxônico, onde, talvez, suas fantasias e seus delírios pudessem ter tido campo para o exercício de alguma aventura totalitária.

Não fora o assunto mais tratado e mais citado de toda a literatura psicanalítica, o “caso Schreber” tem sido um formidável manancial para estudiosos de outras áreas do conhecimento. Ele permite que se estude a psicose alargando suas fronteiras além da psicanálise.

Não se poderá olvidar que Freud, quando escreveu sobre o caso, estaria no limite de importantes impasses teóricos para a construção do colossal edifício da psicanálise. Suas lutas defensivas pessoais e o recente fim da sua problemática relação com Wilhelm Fliess deixaram algumas sequelas que ele mesmo percebeu.

Numa carta a Ferenczi, de 06 de outubro de 1910, ele diz: “desde o episódio de Fliess, com cuja superação você me via ocupado recentemente, essa necessidade morreu em mim. Uma carga homossexual foi retirada e utilizada na ampliação de meu próprio eu. Tive êxito onde o paranoico fracassa". Numa outra carta, meses depois ao mesmo Ferenczi, amplia o círculo das suas preocupações ao dizer que "Fliess – você estava muito curioso a esse respeito – eu superei.(...) Adler é um pouquinho um Fliess redivivo, igualmente paranoico. Stekel, como apêndice dele, pelo menos se chama Wilhelm"5.

Anteriormente, Freud já havia escrito a Jung que “meu ex-amigo Fliess desenvolveu uma bela paranoia depois que se desfez de sua inclinação decerto nada pequena, por mim". E, finalmente, ao falar sobre Ferenczi, com quem viajava pela Itália na ocasião (em meio ao projeto sobre Schreber), Freud escrevia ao mesmo Jung sobre o companheiro de viagem: "Ele deixa que se faça tudo por ele como uma mulher, e, afinal, minha homossexualidade não chega a ponto de aceitá-lo como tal"4.

Tais citações, entre outras, sugerem uma presença “alegórica” de Freud em seu próprio texto, e se de fato Freud estava lutando contra os demônios schreberianos, esta luta não se prendia somente às questões sobre a sua sexualidade. Mais do que isto, diferentes ênfases, tal como a necessidade explícita no texto de Freud, de assegurar ao leitor que aqueles delírios de Schreber já eram presumidos por ele quando diz: “chegam quase a soar como percepções endopsíquicas dos processos cuja existência presumi, nestas páginas, como sendo a base de nossa explicação” e, invocando o testemunho de Ferenczi, escreve “desenvolvi minha teoria da paranoia antes de tomar conhecimento do conteúdo do livro de Schreber"6.

Parece não haver dúvidas sobre o excessivo cuidado de Freud, em toda a sua obra, com as questões de originalidade e influências, que Peter Gay7 chamará de “angústia de influência”.

O período entre o contato de Freud com o livro de Schreber e a publicação do caso foi de sérias divergências internas no movimento psicanalítico. O rompimento definitivo com Adler em 1911 e com Jung dois anos depois, que de resto permitiu ao próprio Freud reformular algumas de suas mais caras propostas apresentadas até então, colocou a psicanálise numa crise. O relacionamento de Freud com Fliess foi sobredeterminado por uma preocupação com a influência e a originalidade, no tocante às descobertas teóricas sobre a natureza da sexualidade humana. A correspondência entre Freud e Fliess terminou num grave desentendimento motivado pela afirmação de Fliess de que Freud teria transmitido suas teorias sobre bissexualidade a Otto Weininger – que as publicou em 1903, no célebre livro Sexo e Caráter.

Minha suposição é que a instituição Psicanálise estaria atravessando um período de crise, exposta ao surgimento de um estado de emergência, nos moldes da temática abordada por Walter Benjamin8. Suponho ainda que no período em que Freud esteve ocupado com o caso, esta força performativa dos enunciados contestatórios de seus colegas tenha influenciado de maneira importante seus enunciados ligados à homossexualidade de Schreber. De alguma forma ele, Freud, teria atravessado, também, sobretudo nessa ocasião, uma crise de investidura simbólica.

Benjamin, três anos após encontrar num sebo um exemplar das “Memórias”, escreveu em 1921 um ensaio – “Zur Kritik der Gewalt” (Para uma crítica da violência) – abordando um dos cernes destacados no texto de Schreber, a decadência. O centro de suas reflexões é a autorreferência do direito e das instituições legais, ou ditos de outra maneira, que a lei reafirma a si mesma, e nesta violência algo de podre se revela. O preceito legal é sustentado também pela força/violência de um enunciado tautológico – a lei é a lei - que para Benjamin é a fonte do desequilíbrio e da degeneração institucional crônica.

Benjamin ainda alerta sobre as profundas ligações entre a paranoia e a teologia, sugerindo que a disposição teológica torna sensível a contaminação de forças mecânicas, inferindo que quando existe uma cultura da paranoia, o prognóstico de um tipo qualquer de fascismo está próximo, ou mesmo instalado. Assim, as conexões entre o caso Schreber e o núcleo paranoico da ideologia do nacional-socialismo não me soam como coincidência.

Essa conexão é relativamente bem explorada na literatura europeia. Canetti9, para quem a paranoia seria o “objeto máximo das pulsões”, em sua monumental obra sobre a psicologia das massas, dedicou os dois últimos capítulos a Schreber, interpretando o “Memórias” como um texto precursor de outra autobiografia, o “Mein Kampf, de Adolf Hitler. Para o autor, o elo principal dessa ligação estaria nem tanto nos conteúdos e nas tramas conspiratórias de ambos, como as dos perigos da contaminação e da corrupção judaicas, mas diretamente no seu aspecto formal, o da existência de uma doença do poder a que estariam submetidos seus autores, implicando uma vontade patológica de sobrevivência exclusiva e um impulso concomitante para sacrificar o resto do mundo em nome dessa sobrevivência. Assim também Deleuze e Guatari10, de certa maneira, subscrevem a leitura de Canetti ao perceberem na obra de Schreber um ‘depósito de fantasias e estruturas fantasísticas protofascistas.

Da mesma forma, o psicanalista americano Wiliam Niederland num interessantíssimo trabalho enfatiza a importância das doutrinas ortopédicas e pedagógicas do pai de Schreber – o Dr. Daniel Moritz Shcreber –, tanto na sociedade alemã da época e atual quanto na vida do seu filho. Niederland estabelece diversas implicações importantes para o estudo do fascismo alemão11.

O conceito de “capital político” das instituições, do sociólogo Pierre Bourdieu, é bastante útil para dar cobertura ao viés que pretendo abordar neste trabalho. Trata-se de

"uma forma de capital simbólico, de crédito, baseado na credibilidade ou crença e no reconhecimento, ou em termos exatos, nas inúmeras operações de crédito mediante as quais os agentes conferem a uma pessoa (ou objeto) os próprios poderes que reconhecem nela (ou nele). É esta a ambiguidade da fides (...): um poder objetivo, passível de ser objetivado em coisas (e, em particular, em tudo o que constitui a natureza simbólica do poder – tronos, cetros, coroas), é produto de atos subjetivos de reconhecimento, e na medida em que é crédito e credibilidade, existe apenas na e através da representação, na e através da confiança, da crença e da obediência. O poder simbólico é um poder conferido pela pessoa que se submete à pessoa que o exerce, um crédito que ela lhe concede, uma fides e uma autorictas das quais a investe ao depositar sua confiança nela"12.

Sem dúvida, encontra-se aqui, em outras palavras, o mecanismo transferencial de que faz uso a psicanálise de forma tão original13.

Um ato performativo é aquele que acarreta seu próprio conteúdo de proposição, criando fatos sociais novos no mundo, como, por exemplo, um juiz ou um padre quando declaram um casal marido e mulher. Para que um juiz possa realizar uma cerimônia de casamento, primeiro será preciso sua legitimação como agente social, ou que seu poder e autoridade simbólicos lhe sejam transferidos por outros atos performativos que o declarem “juiz".

Ora, a afirmação de Benjamin é que, a certa altura, essa cadeia de transferência atinge o fundo e se depara com um elo perdido na origem do capital simbólico que circula através dela. Com efeito, Benjamin distingue dois aspectos da dimensão marginal da lei: a violência instauradora dela e a violência mantenedora da lei. Na primeira os atos instaurados inauguram a fronteira entre o que será considerado legal e ilegal; na segunda, os atos servirão para manutenção e regulação desta fronteira anterior entre o legal e o ilegal, depois de elas terem se instaurado.

"Quando, em outras palavras, é-se declarado marido e mulher, professor ou Senatspräsident, é-se investido de um mandato simbólico, o qual, por sua vez, obriga a uma série regulamentada de desempenhos, rituais e comportamentos sociais, que corresponde à posição simbólica na comunidade que 'itera' e, com isso, atesta o performativo originário que estabelece a mudança da situação do sujeito"14.

Além desta ligação íntima entre performatividade, repetição e força não apenas na eficácia da lei, como salienta Benjamin, o funcionamento desses ritos institucionais e seu aspecto mágico, por assim dizer, foi explorado de maneira instigante pelo intelectual francês Pierre Bourdieu. Atos como o chamamento feito pela política e principalmente pelo Ministério da Justiça a Daniel Paul Schreber, ao nomeá-lo e depois interpelá-lo, para a posição de Senatspräzen, estariam dentro desse olhar.

Torna-te quem és, eis o princípio por trás da magia performativa de todos os atos institucionais. A essência conferida através da nomeação e da investidura é, literalmente, um fatum.

"(...) Todos os destinos sociais, positivos ou negativos, por consagração ou estigma, são igualmente fatais - com o que quero dizer mortais - porque encerram aqueles a quem caracterizam dentro dos limites que lhes são atribuídos e que eles são levados a reconhecer"15.

A tautologia “lei é lei”, tal como quer Benjamin, é sustentada, não só pela razão, mas também pela força/violência, sendo fonte permanente de desequilíbrio e degeneração institucionais crônicos. Ainda ligado aos temas destino e violência, tão caros e enigmáticos em Benjamin e em Bourdieu, Freud, no seu artigo “O problema econômico do masoquismo”, relaciona “o poder obscuro do destino” à série de mandatos simbólicos e éticos aos quais os indivíduos são solicitados a introjetar e naturalizar, a começar pelas demandas que estruturam o pacto edipiano.

O masoquismo, sugere Freud, é uma das maneiras de o sujeito chegar a um acordo com o excesso da força ou violência que impõe – impulsiona – este trabalho de ‘naturalização’. É o que ele vai chamar de desfusão das pulsões, afirmando que tal excesso pulsional é um atributo do supereu, que tanto pode ser representante do isso quanto do ego. Passou a existir mediante a introjeção, no eu, dos primeiros objetos dos impulsos libidinais do isso, ou seja, os pais. Nesse processo a relação com tais objetos dessexualizou-se. “(...) Apenas dessa maneira é que foi possível superar o complexo de Édipo. O supereu reteve características essenciais das pessoas introjetadas – a inclinação a supervisionar e punir"16.

Tal como Freud o fez, deve-se levar Schreber a sério. Ao chegar, por meio de uma investidura simbólica, a um dos principais centros de poder e autoridade da Alemanha guilhermina, suas descobertas, mesmo que por intermédio de seus delírios, foram também uma forma de conhecimento das funções e disfunções dos processos político-teológicos, aquilo que do ponto de vista ontológico chamaríamos de “mundo”. O mundo de Schreber, ou nosso mundo?

O ensaio de Freud sobre Schreber divide-se em três seções em meio a um pequeno prefácio, onde reconhece a sua limitada experiência com o tratamento das psicoses, e um posfácio – que pelo seu conteúdo, demonstrativo da grandeza e honestidade intelectual de Freud, encorajou-me a escrever este artigo. Lá, Freud sugere, um ano após ter escrito seu ensaio, que suas descobertas teriam ligações com estudos antropológicos dos mitos, dos rituais e da fantasia religiosa.

Já na primeira parte, a partir da documentação do julgamento da Suprema Corte da Saxônia e dos laudos do Dr. Guido Weber, diretor do Sanatório onde Shreber ficou internado por oito anos (junho de 1894 a dezembro de 1902), Freud começa a delinear sua orientação, concluindo que os dois principais aspectos do sistema delirante de Schreber são, primeiro, a fantasia da convocação messiânica – ter sido escolhido por Deus e pela sua Ordem do Mundo para redimir a humanidade de um estado de desequilíbrio cósmico – e segundo, o imperativo da transformação sexual em mulher, com o objetivo de repovoar o mundo através de sua prole, num corpo – o dele, Schreber – inseminado por Deus.

O verdadeiro núcleo e sintoma primário da psicose, para Freud, é a fantasia da feminização, à qual Schreber sempre se refere como uma emasculação (Entmannung), surgindo a posteriori a ideia delirante soteriológica:

"sabemos que a ideia de se transformar em mulher (isto é, de ser emasculado) constituiu o delírio primário, que ele no início encarava esse ato como grave injúria e perseguição, e que o mesmo só se relacionou com o papel de Redentor de maneira secundária. Não pode haver dúvida, além disso, de que ele originalmente acreditava que a transformação deveria ser efetuada com a finalidade de abusos sexuais e não para servir a altos desígnios. Pode-se formular a situação, dizendo-se que um delírio sexual de perseguição foi posteriormente transformado, na mente do paciente, em delírio religioso de grandeza"17.

Enfatizando sua tese da prioridade da autonomia da fantasia de feminização, Freud escreve que ela já viera à tona durante o que ele denominou de “período de incubação” do segundo surto de Schreber, quando da premonição prodômica deste, de um gozo feminino, pouco antes de ele assumir seu cargo na Suprema Corte:

"(...) ainda deitado na cama (não sei mais se meio adormecido ou já desperto) tive uma sensação que me perturbou de maneira mais estranha, quando pensei nela depois, em completo estado de vigília. Era a ideia de que deveria ser realmente bom ser uma mulher se submetendo ao coito"18.

As singularidades das relações de Schreber com Deus são o próximo passo de Freud, de onde emerge a condição da “Ordem do Mundo”, repetidamente enfatizada por Schreber, para criação de um preceito legal cosmológico. Tais particularidades levam o Deus de Schreber a instigar tramas contra ele, de forma a torná-lo idiota e submetê-lo a provações. As falhas da autoridade de Deus, de sua onisciência, que convivem com outro lado, o da defesa intransigente que d’Ele faz Schreber, marcam sua profunda ambivalência com relação a Deus, e a quaisquer outras instâncias ou campos de autoridade onde ele, Deus, pudesse ser visto como representante. Segundo Freud:

"Nenhuma tentativa de explicar o caso de Schreber terá possibilidade de ser correta, se não levar em consideração essas peculiaridades de sua concepção de Deus, essa mistura de reverência e rebeldia em sua atitude para com Ele"19.

A cosmologia de Schreber vai privilegiar a afinidade profunda, uma quase identidade, entre o estado de bem-aventurança – Seligkeit - e o estado do gozo sexual feminino, chamado por ele de volúpia de mulher, que é produzido nele por exposições excessivas a influências sobrenaturais – os raios penetrantes de Deus. A partir de certo momento, ele se reconcilia com o processo de feminização, antes vivenciado como insultuoso e lesivo, mas dota-o de uma finalidade soteriológica. Parte disto se deveu à mudança da dimensão moral de sua relação com o prazer sexual, transmudada, agora, num dever moral de gozar. Ele se supõe na condição excepcional de “imaginar um homem e uma mulher numa só pessoa, consumando o coito comigo mesmo".

Sua volúpia tornou-se “temente a Deus, sendo a solução satisfatória mais provável para o choque das circunstâncias contrárias à Ordem do Mundo". Trechos da obra de Schreber foram cruciais para que Freud o interpretasse como interpretou, sublinhando a ligação entre a doença mental e os distúrbios da sexualidade, além de se contrapor às dúvidas levantadas por Jung, Adler e outros, na época do seu ensaio, como transcrevo:

"(...) nós, psicanalistas, até o presente apoiamos a opinião de que as raízes de todo distúrbio nervoso e mental devem se encontrar principalmente na vida sexual do paciente — alguns de nós baseados simplesmente em fundamentos empíricos, outros, influenciados, além disso, por considerações teóricas. As amostras dos delírios de Schreber já fornecidas capacitam-nos, sem mais, a pôr de lado a suspeita de que exatamente esse distúrbio paranoide pudesse vir a ser o ‘caso negativo’ há tanto tempo procurado: um caso em que a sexualidade desempenhe apenas papel muito pouco importante. O próprio Schreber fala repetidas vezes como se partilhasse de nosso preconceito. Fala constantemente, e no mesmo alento, de ‘distúrbio nervoso’ e lapsos eróticos, como se as duas coisas fossem inseparáveis"20.

É oportuno lembrar que Freud ainda não havia revigorado sua teoria com a segunda tópica, nem mesmo com o texto sobre o narcisismo.

A hipótese de que a luta interna dentro da instituição psicanálise, como já mencionada, tenha perturbado Freud de maneira importante – o estado de emergência tratado por Benjamin e o ato performativo de Bourdieu –, leva-nos a supor que ela teria causado em Freud um impedimento de perceber que nos paradoxos da relação sexualizada de Schreber com Deus haveria uma crise de investidura, pertinente à transferência do poder e da autoridade simbólicos. Como escreve Santner:

"(...) Schreber descobre que o poder não apenas proíbe, modera, diz 'não', mas pode também funcionar no sentido de intensificar e ampliar o corpo e suas sensações. (...) Schreber descobre que a autoridade simbólica em estado de emergência é transgressora, exibe uma obscena super proximidade do sujeito: ou seja, nas palavras dele, exige o gozo. A experiência que Schreber tem de seu corpo e de sua mente como sede de intervenções e manipulações violentas e transgressivas, que produzem, como um resíduo ou um resto, uma espécie de excedente de gozo, é (...) o indício de uma crise que afeta sua relação com o campo exemplar da autoridade simbólica a que sua vida estava intimamente ligada, a saber, a lei"21.

O que tento enfatizar é que Schreber conta uma história em que os efeitos advindos de uma situação onde uma figura de autoridade exerce um excesso de poder que ultrapassa o pacto simbólico no qual se funda tal autoridade, são catastróficos. Com base nos enunciados de Benjamin e Bourdieu, o texto schreberiano se insere num contexto que se introduz num sistema narrativo teológico e de crise de autoridade. A podridão do reino da Dinamarca, como também o desrespeito à Ordem do Mundo, como diz Schreber, ao menos em parte, se manifestam nas relações demoníacas estabelecidas pelo discurso médico (Flechsig) e as imposições geradas pela sua doença.

A fixação de Schreber em Flechsig – uma “alma provada” – indicaria que Flechsig representa a dependência secretada no inconsciente, da podridão íntima da investidura simbólica que não colou, porque ele, Schreber, não conseguiu captá-la na sua compreensão de si mesmo.

Evidencia-se em Fleshsig, pois, uma podridão íntima de toda investidura simbólica tal como a trato aqui, à medida que ela se prolonga, tomando uma dimensão de força, compulsão, ou uma pulsão performativa. Uma correlação dessa natureza pode ser compreendida na concepção lacaniana do superego, que, como cita Zizek,

"(...) É essa própria exterioridade que, segundo Lacan, define o estatuto do supereu: supereu é Lei na medida em que não está integrado no universo simbólico do sujeito, na medida em que funciona como uma ordem incompreensível, absurda, traumática (...) que atesta uma espécie de neutralidade maléfica para com o sujeito, indiferente a suas empatias e temores. Nesse exato ponto, ao se confrontar com a ‘instância da letra’ em sua exterioridade original e radical, com o absurdo do significante em sua forma mais pura, o sujeito depara com a ordem do supereu, ‘Goza’, que é endereçada ao cerne íntimo do seu ser"22.

Freud parece ter-se dado conta disso, desvelando as origens verdadeiras, em última instância, eróticas, desse excesso extra-jurídico de poder/influência, de Schreber, primeiro nas suas relações com Flechsig e mais tarde com Deus, ao escrever o que até hoje todos temos como a fórmula da paranoia:

"(...) Parece que a pessoa a quem o delírio atribui tanto poder e influência, a cujas mãos todos os fios da conspiração convergem, é, se claramente nomeada, idêntica a alguém que desempenhou papel igualmente importante na vida emocional do paciente antes de sua enfermidade, ou facilmente reconhecível como substituto dela. A intensidade da emoção é projetada sob a forma de poder externo, enquanto sua qualidade é transformada no oposto. A pessoa agora odiada e temida, por ser um perseguidor, foi, noutra época, amada e honrada. O principal propósito da perseguição asseverada pelo delírio do paciente é justificar a modificação em sua atitude emocional"23.

Embora tenha admitido que lhe faltassem informações históricas e biográficas do autor das “Memórias”, Freud não fez a ligação entre a perversão de Schreber e suas mudanças de “status” simbólico, de fato passadas por Schreber: uma nomeação para um cargo de grande poder e autoridade jurídica – Ernennung - e a emasculação - Entmannung.

Certamente não será coincidência que o ato de nomeação (uma denominação) seja associado ao ato de transformação sexual de Schreber. Isto porque tal nova denominação instaura também um novo enunciado performativo. Tanto o ato da interpelação do Ministério da Justiça a Schreber quanto o “insulto” proferido por Deus em suas “Memórias” podem ser encarados como atos de fala, tendo em comum com o que Bourdieu chama de intenção performativa ou mágica, indicativas de como alguém vem a possuir esta ou aquela propriedade e que tal pessoa “(...) deve portar-se de acordo com a essência social que com isso lhe é conferida"24, como no tópico:

"(...) Creio poder dizer que, nessa ocasião, e apenas nessa ocasião, vi a onipotência de Deus em sua plena pureza. Durante a noite (...) o Deus inferior (Ariman) apareceu. A imagem resplandecente de seus raios tornou-se visível para meu olho espiritual (...), ou seja, ele se refletiu em meu sistema nervoso interno. Simultaneamente, ouvi sua voz, mas essa não era um sussurro suave – como sempre foi a conversa das vozes, antes e depois dessa ocasião (...) ela ecoava num tom de baixo profundo, como que bem em frente à janela do meu quarto. A impressão era tão imponente que qualquer um que não estivesse calejado como eu por impressões miraculosas apavorantes teria tremido da cabeça aos pés. E aquilo que era dito também tinha um tom nada amistoso: tudo parecia premeditado para me instilar medo e terror e ouviu-se várias vezes a palavra ‘ordinário’ ou ‘burro’ (Luder) – uma expressão comum, na língua fundamental, para detonar uma pessoa fadada a ser destruída por Deus e a sentir o poder e a ira divinos"25.

A conexão entre essas duas mudanças simbólicas torna-se razoável não só pela sua proximidade temporal, mas principalmente pela condição de a própria transformação sexual de Schreber ocasionar, em um momento crucial da sua história, um ato de nomeação, ou um enunciado performativo, que o dota de um novo status simbólico. Dito pelo próprio Shreber, o conteúdo insultuoso dessa epifania terá efeito benéfico, “a despeito dos insultos contidos em algumas palavras". Uma delas, "Luder", tem implicações particularmente ricas nas desditas do autor das "Memórias": ordinário, vigarista, esperto, patife, além de prostituta, vagabunda (puta) e, como significante mestre, carne morta, putrefata, carniça. Existiria aqui a relação direta da sua crise precipitada pela denominação proferida por Ariman com a outra denominação – Ernennung (a nomeação oficial) – que parece ser um subproduto do gozo feminino, associado, por sua vez, à abjeção (corpo putrefato). Estaríamos, então, com a epifania de Ariman, “em meio à dimensão da função simbólica que Benjamin caracterizou como uma podridão interna estrutural"26.

Após ter lido Schreber e o interpretado dentro de sua gramática homofóbica, Freud parece ter percebido que haveria algo a mais do que simplesmente o mecanismo do recalcamento. Confessando sua dificuldade em manter a posição do recalcamento, da projeção e da negação homofóbica via recalque, Freud escreve que

"Não podemos mais pôr de lado a possibilidade de que distúrbios da libido reajam sobre as catexias pelo ego. Na verdade, é provável que processos deste tipo constituam a característica istintiva das psicoses. O quanto de tudo isso se pode aplicar à paranoia é impossível dizer presentemente"27.

O posfácio do Caso Schreber vai mostrar como Freud, com sua máxima sensibilidade, demonstra a afinidade do caso com os padrões totêmicos, ao escrever as obsessões de Schreber ligadas com nomes, títulos e linhagens. “Ele demonstra uma aguda consciência” (Santner) dos problemas concernentes à transmissão histórica dos legados de legitimização social e existencial. O próprio Schreber parece indicar que sua perturbação, bem como as diversas aberrações na sua ordem psíquica e/ou cósmica, decorre de erros de transmissão dos recursos simbólicos com os quais ele poderia ter-se assegurado de ser confiável, legítimo, no seu sentido mais profundo.

Assim, se Freud demonstra o quanto a falta da onipotência de Deus, sentida por Schreber como rebeldia, hostilidade e agressão, no fundo estaria ligada à instância paterna como falta, Schreber parece ter descoberto, também, uma chave importante do mecanismo paranoico: na cisão do pai, não só pela parte faltosa mas também pela parte do excesso de pai, que, de resto, estaria mais em conformidade com a lei.

Ao contrário do que se poderia pensar, ao fazer a ligação com o ego, Freud não induzirá a qualquer aventura pela psicologia do ego. Suponho que o melhor contexto para maximizar a leitura freudiana e tudo o que vem dela seja pelo contexto das crises da autoridade e do poder simbólicos, como tentei esboçar.

 

Bibliografia

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RECEBIDO EM: 15/04/2009
APROVADO EM: 27/04/2009

 

 

Sobre o Autor

Flávio Eustáquio Bertelli
Bacharel em Sociologia pela UFMG. Psicanalista. Membro do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais – CPMG. Membro do Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos – EBEP/RJ. Especialista em Saúde Mental e Psicanálise pelo Centro Universitário Newton de Paiva/BH.

1 DARMESTETER, J. Los profetas de Israel. Buenos Aires: Sociedade Hebraica Argentina, 1944.
2 Queiroz, Maria I. P. O messianismo no Brasil e no mundo. 3. ed. São Paulo: Alfa-Ômega, 2003
3 SCHREBER, Daniel P. Memórias de um doente dos nervos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1955.
4 FREUD, S. Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranoia (dementia paranoides). ESB. 3. ed. Rio de Janeiro: Imago, 1990, v.XII.
5 SANTNER, Eric L. A Alemanha de Schreber: uma história secreta da modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, p.33-34.
6 FREUD, S. Edição Eletrônica Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro. CD-ROM.
7 Ver o excelente material recolhido por SANTNER, Eric L. em A Alemanha de Schreber, p.32-39 (ob.cit).
8 Walter Benjamin (1892-1940).
9 Canetti, Elias. Massa e poder. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
10 DELEUZE, G; GUATARI, F. O anti-édipo: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Imago, 1976.
11 NIEDERLAND, William G. O caso Schreber: um perfil psicanalítico de uma personalidade paranoide. Rio de Janeiro: Campus, 1981.
12 BOURDIEU, P. Language and symbolic power. Cambridge, Mass, Harvard University Press, 1991 apud SANTNER, Eric L. A Alemanha de Schreber: uma história secreta da modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, p.181 (grifo meu).
13 Para uma interessante abordagem a respeito ao mecanismo transferencial que sustenta a autoridade do mestre clássico, ver ZIZEK, S. em Eles não sabem o que fazem: o sublime objeto da ideologia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992, p.46.
14 SANTNER, Eric L. 1997, p.24. (ob. cit.)
15 BOURDIEU, P. Language and symbolic power. Cambridge, Mass, Harvard University Press, 1991 apud SANTNER, Eric L. A Alemanha de Schreber: uma história secreta da modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, p.122 (grifo meu).
16 FREUD, S. O problema econômico do masoquismo. ESB. 3. ed. Rio de Janeiro: Imago, 1990, v.XIX, p. 208.
17 FREUD, S. Edição Eletrônica Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro. CD-ROM.
18 SCHREBER, Daniel P. Memórias de um doente dos nervos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1955, p.54. (A equiparação entre feminização e emasculação-castração real foi criticada por vários autores. A esse respeito, ver p.183 (nota 24) da obra de Santner já citada).
19 FREUD, S. Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranoia (dementia paranoides). ESB. 3. ed. Rio de Janeiro: Imago, 1990, v.XII, p.45.
20 FREUD, S. Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranoia (dementia paranoides). ESB. 3. ed. Rio de Janeiro: Imago, 1990, v.XII, p.48.
21 SANTNER, Eric L. 1997, p.47 (ob. cit.).
22 ZIZEK, S. The Methastases of Enjoyement: six essays on woman causality. Londres: Verso, 1994, p.20, apud SANTNER, Eric L. A Alemanha de Schreber: uma história secreta da modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, p.181 (nota 35).
23 FREUD, S. Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranoia (dementia paranoides). ESB. 3. ed. Rio de Janeiro: Imago, 1990, v.XII, p.59.
24 BOURDIEU, P. Language and symbolic power. Cambridge, Mass, Harvard University Press, 1991 apud SANTNER, Eric L. A Alemanha de Schreber: uma história secreta da modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, p.57.
25 Citação retirada da obra citada de Santner, p. 56, onde o autor faz a ligação desta epifania do poder divino (Lacan) como algo que Schreber reiteradamente busca no seu “‘ludertum”, da feminização abjeta.
26 SANTNER, Eric L. 1997, p.57 (ob. cit.).
27 FREUD, S. Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranoia (dementia paranoides). ESB. 3. ed. Rio de Janeiro: Imago, 1990, v.XII, p.99.

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