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Psico

On-line version ISSN 1980-8623

Psico (Porto Alegre) vol.48 no.1 Porto Alegre  2017

https://doi.org/10.15448/1980-8623.2017.1.23871 

ARTIGO ORIGINAL

 

Atitudes de estudantes de medicina face ao "Mais Médicos" revela favorecimento endogrupal

 

Medical students attitudes towards the "More Doctors" reveals favouring ingroup

 

Actitudes de estudiantes de medicina frente al "Más Médicos" revela favorecimiento endogrupal

 

 

Clarissa Maria Dubeux Lopes Barros; Ana Raquel Rosas Torres; Cicero Roberto Pereira

Universidade Federal da Paraíba, PB, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

As pessoas são motivadas a favorecer o seu próprio grupo na distribuição de recursos simbólicos e materiais. Analisou-se em que medida este fenômeno está presente na atitude de estudantes de medicina face ao Programa Mais Médicos. Testou-se as hipóteses de que a oposição à contratação de médicos estrangeiros é motivada pelo favorecimento endogrupal e que este efeito é potencializado pelo preconceito contra a origem dos médicos. O estudo foi realizado em 259 estudantes de medicina alocados aleatoriamente em cenários conforme a origem nacional dos médicos a serem contratados (cubanos vs. espanhóis vs. portugueses vs. brasileiros) que indicaram a sua concordância com a contratação. Os resultados mostram que estudantes são favoráveis à contratação apenas de médicos brasileiros, opondo-se à contratação de médicos estrangeiros. Na discussão abordou-se as atitudes face ao Programa Mais Médicos como indicadoras de tensões sociais subjacentes à distribuição de recursos socialmente valorizados e motivadas por fatores identitários.

Palavras-chave: Identidade social; Favorecimento Endogrupal; Preconceito; Programa Mais Médicos.


ABSTRACT

People are motivated to privilege its own group with material and symbolical resources. We proceeded to analyze how this phenomenon is present in medical student's attitude about More Doctors program. We have tried the hypothesis that their reaction against doctors from other countries is motivated by in-group fostering, and that this effect is overpowered by the prejudice motivated by the doctor's nacionalities. The research was made with 259 medical students placed at random according the origins of the doctors that will be assigned (Cuban vs. Spanish, Portuguese vs. Brazilian). The students show us who they approve it. Studies prove it that the students approve only Brazilian doctors on the job, and are against of doctors that are from other countries. In the panels we talked about those kinds of attitudes about the program More Doctors as indicators of social tensions underlying the resources distributions socially valued and motivated by identity bias.

Keywords: Social identity; Prejudice; Ingroup bias; "Mais Médicos" Program.


RESUMEN

Las personas tienden a favorecer su propio grupo en la distribución de recursos simbólicos y materiales. Analizado en qué medida este fenómeno está presente en la actitud de estudiantes de medicina frente al programa Más Médicos. Demonstrado las hipótesis de que la oposición a la contratación de médicos extranjeros es motivada por el favorecimiento endogrupal y que este efecto es potencializado por el preconcepto contra el origen de los médicos. La investigación fue realizada con 259 estudiantes de medicina situados aleatoriamente en escenarios conforme al origen nacional de los médicos a ser contratados (cubanos vs. españoles vs. portugueses vs. brasileños). Los participantes indicaran su conformidad con la contratación. Los resultados muestran que estudiantes son favorables a la contratación apenas de médicos brasileños, oponiéndose a la contratación de médicos extranjeros. En la discusión fueran tratados las actitudes frente al Programa Más Médicos como indicadoras de tensiones sociales subyacentes a la distribución de recursos socialmente valorizados, así como motivadas por factores de identidad.

Palabras clave: Identidad social; Prejuicio; favoritismo propio grupo; Programa "Más Médicos".


 

 

Este trabalho analisa o favorecimento endogrupal no contexto das atitudes de estudantes de medicina em relação à contratação de médicos estrangeiros pelo Programa Mais Médicos. Este programa foi instituído em 2013 pelo Governo Federal, por meio de uma Medida Provisória (MP nº 621, de 8 de julho de 2013) e de uma Portaria Interministerial entre os Ministérios da Saúde e Educação (Portaria Interministerial nº 1.369). Essa Medida Provisória foi depois transformada em Lei (Lei nº 12.871, de 22 de outubro de 2013). Um dos objetivos do programa é promover os cuidados básicos de saúde à população brasileira menos favorecida economicamente por meio do alargamento da rede de médicos disponíveis nos postos de saúde. Para o efeito, propõe a contratação temporária de médicos estrangeiros para atuarem, sobretudo, em zonas onde há menos disponibilidade de médicos nacionais em ação.

O Programa tem sido amplamente discutido como uma das alternativas para atenuar as disparidades regionais e intra-regionais na atuação de profissionais de saúde no Brasil. De fato, o país possui apenas de 1,8 médicos por mil habitantes. Esse índice é menor do que em países como a Argentina (3,2), o Uruguai (3,7) e a Espanha (4) (Ministério da Saúde, 2014). Além disso, o número de médicos no Brasil é similar aos dos países mais pobres do mundo e é bastante inferior ao de países desenvolvidos (Global Health Workforce Alliance & World Health Organization, 2013). Isto significa que o país necessita, objetivamente, de mais médicos nos seus diversos domínios de atuação.

Na primeira etapa do Programa Mais Médicos foram inscritos 1.618 médicos, dentre eles 358 estrangeiros. No período da implementação a maioria dos médicos eram cubanos, portugueses, espanhóis e argentinos, o que representava 10,5% da demanda total do programa. Atualmente o Mais Médicos congrega 18.240 médicos em 4.508 municípios, representando 72,8% dos municípios e 34 distritos sanitários indígenas (Ministério da Saúde, 2015). Dentre o total de médicos contratados 11.429 são cubanos e o restante são estrangeiros de diversos países, atuando em diferentes pontos do país. O número de médicos estrangeiros diminuiu consideravelmente na última seleção, de modo que cerca a quase totalidade das vagas da nova etapa do programa foram preenchidas por profissionais brasileiros de acordo com dados do Ministério da Saúde (2015).

Não sendo a primeira vez que um governo brasileiro se propõe a contratar médicos estrangeiros como forma de atenuar as desigualdades na distribuição de médicos no Brasil, o Programa Mais Médicos foi bastante polemizado, em especial, na medida da não obrigatoriedade da revalidação do diploma dos médicos do Programa, e na contratação de médicos cubanos, face aos termos do convênio estabelecido entre o Governo Brasileiro e a Organização Pan-americana (OPAS), onde questionam-se os direitos trabalhistas dos médicos cubanos, tais como o repasse do salário ao governo cubano, entre outras questões específicas (Associação Médica Brasileira, 2015).

A não obrigatoriedade de validação dos diplomas aumentou a atratividade de médicos estrangeiros por evitar burocracia desnecessária, tornando o Brasil um destino viável de atuação profissional qualificada neste domínio. Como refere Ribeiro (2013), a competição internacional por profissionais qualificados tem se tornado uma questão transversal a várias sociedades, especialmente em países de imigração (como a Austrália, o Canadá, os Estados Unidos da América e a Nova Zelândia). Uma das formas para recompor esse deficit é a contratação de profissionais estrangeiros, que se configura como uma estratégia encontrada em vários lugares como, por exemplo, o Reino Unido, Estados Unidos, Austrália e Canadá (Ministério da Saúde, 2015). No Brasil, a contratação de médicos estrangeiros resultou avaliação favorável da qualidade do atendimento médico e da eficácia das consultas realizadas nos centros de saúde, o que contribuiu para que se evitasse o deslocamento de usuários aos hospitais, garantindo a diminuição da mortalidade infantil, o asseguramento das remessas para reformas das unidades de saúde e o aumento do acesso da população a medicamentos (Rede Observatório, 2015).

Se, por um lado, a contratação de médicos estrangeiros pode atenuar as disparidades regionais e intra-regionais no acesso da população aos cuidados básicos de saúde, pode motivar, por outro lado, tensões sociais concretas ao representar uma ameaça aos interesses dos profissionais locais. Isto é, a contratação de mais médicos, ao diminuir a carência de profissionais no mercado, pode tornar a atividade médica mais competitiva e eficiente, representando uma ameaça aos interesses dos médicos locais. A percepção de ameaça é um fator central para a compreensão das tensões "intergrupais" porque os membros do "exogrupo" põem em causa as prerrogativas básicas do "endogrupo" e, portanto, pode ser usada como uma justificativa para a oposição à partilha dos recursos materiais e simbólicos entre os membros de ambos os grupos (Campbel, 1965; Sherif, 1967; Stephan et al., 2002). O princípio psicológico atuante neste processo é a percepção de que o "exogrupo" pode diminuir o bem-estar do "endogrupo" e isto torna legítimo defender os interesses do endogrupo por meio de comportamentos hostis em relação aos membros do exogrupo percebido como a fonte de ameaça (Pereira, Vala, & Costa-Lopes, 2010).

No contexto do Programa Mais Médicos, a reação das entidades de classe nacionais é, evidentemente, a oposição à contratação, oposição justificada com argumentos diversificados. Por exemplo, um dos argumentos usados por profissionais e entidades contrários ao Programa é a ideia de que oferecer mais médicos não significa promover melhorias no acesso aos serviços de saúde (AMB, 2015), configurando-se como uma medida emergencial e paliativa. Neste caso, seria preciso estruturar melhor os hospitais, a retaguarda da saúde e oferecer um adequado planos de carreira para os médicos (Pellegrini, 2015), ficando, assim, o acesso da população ao serviço para um segundo momento. Outro exemplo é o desconforto expresso pela classe médica por meio da voz dos vários Conselhos de medicina manifestando-se contra a contratação de médicos estrangeiros, defendendo que não só a medida é paliativa e ineficaz, mas também promoveria a abertura para que profissionais atuassem no país sem o endosso dos principais órgãos competentes no Brasil.

Esta reatividade também pode ser compreendida à luz da Psicologia Social das Relações Intergrupais (Dovidio & Gaertner, 2010), mais especificamente no âmbito da Teoria da Identidade Social (TIS) (Tajfel & Turner, 1979). De acordo com esta teoria, as pessoas se percebem como membros de algumas categorias e como não membros de outras categorias, o que os leva a perceber o "mundo social" como organizado entre "Nós, os bons" vs. "Eles, os maus". Esta organização perceptiva é um fenômeno denominado categorização social e, mesmo na ausência de uma história de relações de conflito entre os grupos, leva as pessoas a favorecerem o seu próprio grupo e derrogar os outros grupos (Tajfel et al., 1971). A teoria propõe que isto ocorre porque a mera consciência de pertença a um grupo em oposição a outro grupo coloca em saliência o sentimento de identidade social, ou seja, a parte do auto-conceito do indivíduo que deriva da sua consciência de pertença a um grupo com significado emocional e é positivamente valorizado. Finalmente, a teoria prevê que, ao compararem os recursos simbólicos e materiais de seu grupo com os de outros grupos, as pessoas agem no sentido de favorecer o endogrupo porque são motivadas a distinguir positivamente o seu grupo dos outros para manterem uma identidade social positiva.

Situando este fenômeno no contexto das atitudes face à contratação de médicos pelo Programa Mais Médicos, pode-se prever que os médicos nacionais, assim como as suas entidades de classe, estarão mais motivados para concordarem com a contratação de médicos brasileiros, mas não de estrangeiros, o que caracterizaria o mero favorecimento endogrupal classicamente previsto pela TIS. No entanto, o Programa prevê, além da contratação de médicos brasileiros, a abertura para médicos de várias nacionalidades atuarem no Brasil. Isto é, não existe apenas um exogrupo a ser contraposto. A questão que se levanta é a de saber se as atitudes face a contratação de médicos estrangeiros reflete o mero favorecimento endogrupal, ou contempla um processo mais complexo que envolve as representações que se têm dos médicos consoante o seu país de origem. Especificamente, ao estar na presença do favorecimento endogrupal clássico previsto pela TIS, deve-se verificar uma oposição generalizada à contratação de médicos estrangeiros independentemente de seu país de origem, o que será coerente com a evidência empírica que tem indicado que o favoritismo endogrupal também implica a derrogação do exogrupo (Mummendey, Klink, & Bronw, 2001). No entanto, se o fenômeno for mais complexo do que o que se prevê pela TIS, deve-se verificar um processo diferente. Pode-se encontrar uma oposição seletiva, caracterizada pela aceitação da contratação de médicos oriundos de alguns países, mas não de outros. Neste caso, a oposição à contratação de médicos estrangeiros poderá ser motivada pelo preconceito, ou seja, a atitude negativa em relação a uma pessoa simplesmente pelo fato de esta pertencer a um grupo negativamente representado (Pereira et al., 2015). Se este efeito se verificar, pode-se entender as atitudes face ao "Mais Médicos" como um fenômeno privilegiado para o estudo da articulação entre fatores motivacionais e representacionais no comportamento intergrupal, o que indicaria que nem sempre um favoritismo endogrupal implica à rejeição do exogrupo (McGarty, 2001), sendo esta rejeição guiada mais pelo preconceito do que pela motivação para a distintividade positiva.

A presente pesquisa analisa as previsões acima discutidas no contexto das atitudes de estudantes de medicina em relação à contratação de médicos pelo Programa Mais Médicos. Especificamente, testou-se as seguintes hipóteses: a) se a atitude dos estudantes refletir apenas favorecimento endogrupal, eles deverão ser favoráveis à contratação de médicos brasileiros, mas não de estrangeiros, seja qual for a origem nacional destes médicos; b) se a atitude dos estudantes refletir preconceito e não favorecimento endogrupal, eles deverão se opor à contratação de médicos de alguns países, e não de outros. Para testar estas hipóteses, analisou-se a atitude dos estudantes em relação à contratação de médicos brasileiros, espanhóis, portugueses e cubanos. Estes três países-alvo foram escolhidos por serem essas as nacionalidades de maiores percentagens dos médicos estrangeiros inscritos no Programa, na época da coleta de dados.

 

Método

Participantes e delineamento experimental

Participaram 259 estudantes universitários brasileiros (46,7% do sexo feminino), com idade variando de 17 a 52 anos (M=22.15, DP=4.15), do curso de Medicina de universidade pública federal. Os participantes foram randomicamente distribuídos a uma de quatro condições que definiam o grupo-alvo: grupo cubanos (n=61); grupo espanhóis (n=65), grupo portugueses (n=66) e o endogrupo: brasileiros (n=67). Para definir o tamanho da amostra necessária para testar as hipóteses que foram propostas, utilizou-se o software G*Power (Brunin, 2006), o qual indicou ser necessário uma amostra de 231 participantes ou maior para detectar efeitos de tamanho moderado com poder de teste igual a 0.90. O estudo foi aplicado em todos os estudantes que voluntariamente se dispuseram a colaborar como participante.

Procedimentos e manipulação

Um pesquisador devidamente treinado para realização de estudos experimentais apresentou aos participantes um de quatro cenários. Especificamente, os participantes alocados na condição grupo-alvo cubanos foram informados de que o estudo seria sobre as opiniões deles em relação a contratação de médicos cubanos pelo "Programa Mais Médicos". Os participantes da condição "portugueses" foram informados de que o estudo seria sobre a contratação de médicos portugueses. Os participantes da condição "espanhóis" respondiam sobre a contratação de médicos espanhóis. Os participantes da condição grupo-alvo brasileiros foram informados de que o estudo era sobre a opinião deles sobre a contratação de médicos brasileiros pelo Programa. Em síntese, foi dito a todos os participantes que os médicos de tais grupos nacionais faziam parte do Programa.Todos os participantes foram informados de que a colaboração era voluntária e que poderiam interromper a qualquer momento se assim o desejassem. As respostas foram anônimas, não havendo meios de identificar os participantes. Os participantes foram contactados em sala de aula e ali solicitada a colaboração, não havendo recusas nesta etapa.

Instrumentos

Após as instruções, os participantes receberam um questionário contendo uma medida de preconceito contra o grupo-alvo para o qual foram alocados e uma de oposição à contratação de médicos pelo Programa Mais Médicos. Os itens destas medidas tinham formato Likert de sete pontos. As respostas variaram de 1 (discordo totalmente) a 7 (concordo totalmente). Cada participante, por ter sido alocado a apenas um cenário, respondeu a somente um grupo-alvo: cubanos ou espanhóis ou portugueses ou brasileiros.

Medida de preconceito

Por meio de dez itens apresentados avaliou-se em que medida os participantes exprimem preconceito em relação aos médicos do Programa, consoante a origem destes. Esta escala foi adaptada do instrumento desenvolvido por Pettigrew e Merteens (1995).

Aos participantes foi solicitado que indicassem em que medida concordavam com cada uma das seguintes afirmações: "Dentre os médicos imigrantes do Programa Mais Médicos, os cubanos/espanhóis/portugueses/brasileiros são aqueles que eu tenho uma opinião menos favorável"; "Sinto simpatia pelos médicos cubanos/espanhóis/portugueses/brasileiros"; "Trataria com hospitalidade os médicos cubanos/espanhóis/portugueses/brasileiros"; "Dentre os médicos estrangeiros, os cubanos/espanhóis/portugueses são os mais competentes"; "Os cubanos/espanhóis/portugueses/brasileiros são mais competentes do que os brasileiros"; "A contratação de médicos cubanos/espanhóis/portugueses/brasileiros promoverá pouca melhoria na saúde da população"; "A contratação de médicos cubanos/espanhóis/portugueses/brasileiros é uma excelente resposta para garantir cuidado com a saúde da população brasileira"; "Os médicos cubanos/espanhóis/portugueses/brasileiros realizam um trabalho de má qualidade". "Os médicos cubanos/espanhóis/portugueses/brasileiros são despreparados nas suas práticas profissionais". "Os cubanos/espanhóis/portugueses/brasileiros são excelentes médicos". Uma análise fatorial (método principal axis factoring) permitiu extrair um fator com valor próprio =3.56; cargas fatoriais variando de 0.41 a 0.72, que explica 35.65% da variância. A consistência interna desta medida foi alta (α = 0,83).

Medida da Oposição à contratação de médicos estrangeiros

A escala é composta por 6 itens que foram construídos exclusivamente para esta pesquisa e desenvolvidos a partir das notícias veiculadas pelos meios de comunicação na época da implantação do Programa Mais Médicos. Foi solicitado aos participantes que indicassem em que medida concordavam com os seguintes itens: "Sentir-me-ia desconfortável em ser atendido(a) por um médico cubano/espanhol/português/brasileiro"; "Prefiro ser atendido por um médico brasileiro do que por um médico cubano/ espanhol/português/brasileiro";"Precisamos trazer mais médicos cubanos/espanhóisl/portugueses/brasileiros para o Brasil"; "Gostaria de ser atendido por um médico cubano/espanhol/português/brasileiro". "Recuso-me a ser atendido por um médico cubano/espanhol/português/brasileiro"; "Eu sou a favor da contratação de médicos cubanos/espanhóis/portugueses/brasileiros". Os resultados de uma análise fatorial (método principal axis factoring) permitiu extrair um fator que explica 45.70% da variância das respostas aos itens de oposição ao médico imigrante. Valor próprio =2.74; cargas fatoriais variando de 0.48 a 0.87. A consistência interna desta medida interna foi alta (α = 0.81).

Análise de dados

Procedeu-se ao tratamento estatístico por meio da Análise de Covariância (ANCOVA), sendo a origem dos médicos e o preconceito como variáveis independentes e a oposição à contratação como variável dependente.

Considerações éticas

O estudo foi submetido e aprovado pela Comitê de Ética em Pesquisa de Ensino Superior sob o número 1.429.454. Foi informado aos participantes que a sua colaboração era voluntária e que caso desejassem tinham a possibilidade de negar a colaboração a qualquer momento. Também declarou-se que todas as respostas eram anônimas, bem como a eventual publicação dos dados. Seguiram-se as diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos, conforme orientações das Resoluções 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde (CNS, 2012) e 016/2000 do Conselho Federal de Psicologia (2000), mas também está de acordo com a Resolução nº 510/2016 do CNS, publicada após o estudo ter sido realizado.

 

Resultados

A Tabela 1 apresenta as correlações entre o preconceito e a oposição à contratação dos médicos em cada condição. Como se pode observar, há uma correlação positiva e significativa entre os índices do preconceito e da oposição à contratação nos quatro grupos de origem dos médicos, de modo que quanto mais negativa é a atitude em relação ao grupo nacional de origem dos médicos, maior é a oposição aos médicos estrangeiros.

 

 

Foram testadas duas hipóteses que se contrapõem: a atitude dos estudantes reflete apenas favorecimento endogrupal de modo que eles são favoráveis à contratação apenas de médicos brasileiros; a atitude dos estudantes reflete preconceito e não favorecimento endogrupal, de modo que eles se opõem à contratação de médicos de alguns países, mas não de outros. Se esta hipótese tiver fundamento, deve-se obter uma interação significativa entre a origem dos médicos e o preconceito contra eles. Para testar esta hipótese, foi necessário calcular uma Análise de Covariâncias (ANCOVA) em que a oposição à contratação foi especificada como a variável dependente e a origem dos médicos como o fator entre-participantes, incluíndo o preconceito como uma covariável. A aplicação desta técnica foi necessária porque a origem dos médicos é uma variável categórica e o preconceito é uma variável medida quantitativamente.

Os resultados obtidos mostram um efeito principal da origem dos médicos, F(3, 218)=11,12, p<.001, η2p=0,133. Este efeito indica que a origem dos médicos influencia a oposição à sua contratação pelo Programa Mais Médicos, conforme pode-se observar na Figura 1. De fato, os estudantes se opuseram à contratação dos médicos estrangeiros, mas não à contratação de brasileiros. A oposição à contratação dos estrangeiros estrangeiros ocorre de forma uniforme, não havendo diferença significativa entre cubanos, espanhóis e portugueses. Isto é, os estudantes se opõem à contratação de médicos estrangeiros, independentemente de sua nacionalidade, o que vai ao encontro da primeira hipótese que foi levantada.

 

 

Os resultados também indicaram um efeito principal do preconceito na oposição à contratação, F(1, 218) = 73,30, p<0.001, η2p =,252 (ver a Tabela 2). Este efeito significa que quanto mais preconceituosos são os estudantes em relação aos médicos, mais eles se opõem à contratação, conforme pode-se observar na Figura 2. Foi verificada uma interação não significativa entre o preconceito e a origem dos médicos, F(3, 218)=2.67, ns., η2p=,03, o que indica que o efeito do preconceito na oposição à contratação ocorre na mesma intensidade em cada grupo-alvo. Significa, também, que a influência do grupo-alvo na oposição à contratação ocorre igualmente em indivíduos mais e menos preconceituosos. Este padrão de resultados indica que a oposição ocorre não apenas entre indivíduos preconceituosos, mas reflete um favoritismo endogrupal generalizado, i.e., independente das representações negativas face ao país de origem dos médicos.

 

 

 

 

Discussão

Neste estudo analisou-se a atitude de estudantes de medicina em relação à contratação de médicos brasileiros e estrangeiros pelo Programa Mais Médicos. Os dados que foram obtidos mostraram o seguinte padrão de resultados: os estudantes são favoráveis à contratação de médicos brasileiros e se opõem à contratação de médicos estrangeiros, sejam eles cubanos, espanhóis ou portugueses; quanto mais preconceituosa é a atitude que os participantes têm em relação aos médicos do programa, maior é a sua oposição à contratação; a oposição à contratação de médicos estrangeiros ocorre independentemente do preconceito face ao país de origem dos médicos, isto é, tanto os participantes mais preconceituosos, quanto os menos preconceituosos são favoráveis apenas à contratação de médicos brasileiros e são desfavoráveis à contratação de médicos estrangeiros. A média da oposição foi maior para o grupo de cubanos, seguido de espanhóis e portugueses. No entanto, entre eles não houve diferença significativa. Este padrão de resultados revela um claro favorecimento endogrupal na atitude dos estudantes de medicina face à contratação de médicos pelo Programa Mais Médicos.

Os resultados aqui apresentados contribuem para compreendermos melhor as motivações subjacentes ao modo como uma categoria profissional se posiciona face a uma política social que alarga as fronteira de atuação dos membros desta categoria e contribui para amenizar as disparidades inter e intra regionais do acesso da população mais carenciada aos cuidados básicos de saúde. A política de inclusão social promovida pelo Programa Mais Médicos, ao promover o aumento no número de médicos no sistema, pode ter despertado o sentimento em ameaça aos privilégios e às prerrogativas antes exclusiva aos médicos nacionais, colocando em saliência fatores motivacionais presentes em qualquer relação intergrupal. Esta motivação tem sido discutida em duas linhas de pesquisa complementares no domínio da psicologia social dos grupos e das relações intergrupais: teoria da identidade social (Tajfel & Turner, 1979); teoria dos conflitos reais de interesse (Sherif et al., 1961).

De fato, os resultados obtidos podem ser compreendidos à luz da Teoria da Identidade Social segundo a qual as pessoas, quando pertencem a grupos socialmente valorizados, como é exemplo a categoria profissional da medicina, são espontaneamente motivadas para agirem de forma a favorecerem o seu próprio grupo e a derrogarem os outros grupos, como efetivamente tem sido demostrado em mais de quatro décadas de pesquisa nesta área (Dovidio & Gaertner, 2010; Vala, Pereira, Lima, & Leyens, 2012; Tajfel & Turner, 1979). Segundo esta linha de pensamento, os estudantes são favoráveis à contratação de médicos brasileiros e desfavoráveis à contratação de médicos estrangeiros porque são motivados a diferenciar positivamente a sua categoria de pertença das outras.

Ainda que a motivação para a distintividade positiva esteja presente na atitude dos estudantes de medicina, esta motivação não nos parece ser suficiente para explicar a complexidade do fenômeno aqui identificado: favorecimento de médicos nacionais; oposição à médicos estrangeiros. Evidentemente, a motivação subjacente às atitudes dos estudantes não pode ser a mera identificação com a categoria "médicos", dado que esta contempla, numa classe supra-ordenada, os nacionais e os estrangeiros. Poderá, alternativamente, ser motivada pela identificação com uma sub-categoria mais específica: médicos brasileiros. Esta especificidade é importante para se entender a natureza da motivação à distintividade positiva aqui presente. Os estudantes expressaram favorecimento endogrupal, mas este foi motivado mais pela defesa dos privilégios da categoria médicos brasileiros, do que pela necessidade de distintividade positiva.

Esta possibilidade permite aproximar uma explicação baseada na Teoria da Identidade Social com uma compreensão do fenômeno à luz da teoria dos conflitos reais de interesse (Sherif et al., 1961). De acordo com esta teoria, as pessoas são motivadas a agir em defesa dos interesses reais de seu grupo de pertença (Torres & Neiva, 2011). Elas agem assim porque percebem que o seu grupo está em competição contra os outros grupos para obter recursos escassos. Esta percepção é denominada "interdependência negativa" porque a percepção de que um dos grupos está a obter mais recursos, implica perceber que o outro grupo está a perder os recursos obtidos (Coser, 1956; Levine & Campbell, 1972; Sherif, 1967). Este fenômeno ajuda, de fato, motivar a oposição dos estudantes à contratação de médicos estrangeiros, pois a atuação destes no Brasil pode ser percebida como uma ameaça real aos interesses materiais dos médicos nacionais, de modo que a atitude favorável apenas à contratação de médicos locais pode significa "reserva de mercado". Assim, a atitude dos estudantes de medicina reflete favorecimento endogrupal motivado pela defesa dos seus próprios interesses profissionais, os quais seriam legítimos, desde que não violasse um princípio axiológico supremo, que é o bem de toda a comunidade.

Neste sentido, a consciência de que a oposição à contratação de médicos estrangeiros viola o princípio do bem-comum pode motivar o uso de argumentos diferentes da defesa dos interesses de classe para justificar esta oposição. Exemplos destes argumentos são: os estrangeiros não foram submetidos ao Exame Nacional de Revalidação de Diplomas; não garante políticas públicas de qualidade porque aborda apenas o problema do acesso à saúde; é uma medida para favorecer ao governo cubano. Este último argumento, o de que o Programa Mais Médicos seria uma medida meramente ideológica para transferir recursos nacionais para ajudar Cuba, é relevante para aprofundarmos a compreensão do fenômeno porque nos remete a análise da oposição à contratação para o domínio da representação que se têm da origem dos médicos. Isto é, se a oposição fosse motivada pela atitude negativa face aos médicos cubanos, deveria-se ter obtido oposição mais fortemente negativa à contratação destes médicos do que à contratação de médicos espanhóis e portugueses. Como foi verificado nos resultados, isto não ocorreu, pois os estudantes se opuseram de forma generalizada aos médicos estrangeiros. Este fenômeno situa as justificações que foram apresentadas pelas entidades médicas como um exemplo dos processos psicossociais subjacentes à legitimação das desigualdades sociais (Costa-Lopes et al., 2013; Lima-Nunes, Pereira, & Correia, 2013; Pereira, Vala, & Costa-Lopes, 2010; Souza, Pereira, Lima, Torres, & Camino, 2016).

A evidência empírica aqui demostrada é suficientemente forte para afirmarmos que a atitudes dos estudantes de medicina face aos médicos estrangeiros indica favorecimento intergrupal revestido por interesse de classe. Porém, algumas limitações deste estudo devem ser levadas em conta antes de generalizarmos estes resultados. Em primeiro lugar, o estudo foi realizado com estudantes, não necessariamente refletindo as motivações dos médicos brasileiros, mesmo que as predições que foram levantadas indiquem que os efeitos obtidos devam ser mais fortes nesses médicos, pois já estão a atuar na profissão que se torna mais competitiva com a entrada de mais médicos no sistema nacional de saúde.

Em segundo lugar, o estudo restringe a análise a fatores motivacionaias decorrentes da Teoria da Identidade Social e da Teoria dos Conflitos Reais de Interesses, dando pouca saliência a outros fatores também presentes na discussão realizada nos meios institucionais e no senso comum sobre a oposição à contratação dos médicos cubanos, fatores como a ideologia política dos proponentes do Programa, a orientação sociopolítica dos estudantes.

Apesar destas limitações, a pesquisa aqui apresentada é pioneira no estudo das atitudes face ao Programa Mais Médicos e contribui para ampliar a nossa compreensão dos fatores psicossociais atuantes nas atitudes de estudantes de medicina face ao Programa. Uma importante contribuição do estudo foi em ter priorizado estudantes de medicina e compreender a sua atitude como um dos principais atores, futuros médicos, neste processo intergrupal entre membros da sociedade de acolhimento e médicos estrangeiros. A pesquisa também é pioneira no cenário dos estudos que envolvem o Programa Mais Médicos, mostrando ser atual e bastante válido o contributo da psicologia social na avaliação de aceitação de políticas sociais envolvendo profissionais de saúde.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Clarissa Maria Dubeux Lopes Barros
Rua José de Holanda, 485/1702 - Torre
50710-140 Recife, PE, Brasil
claramabarros@gmail.com

Recebido em: 02.05.2016
Aceito em: 07.11.2016

 

 

Apoio: O presente trabalho foi realizado com apoio da CAPES, Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil.
Autores: Clarissa Maria Dubeux Lopes Barros – Doutora, Universidade Federal da Paraíba.
Ana Raquel Rosas Torres – Pós-Doutorado, Universidade Federal da Paraíba.
Cicero Roberto Pereira – Pós-Doutorado, Universidade Federal da Paraíba.

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