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Psicologia Clínica

Print version ISSN 0103-5665On-line version ISSN 1980-5438

Psicol. clin. vol.19 no.2 Rio de Janeiro Dec. 2007

 

ARTIGOS

 

O processo como alegoria de ser Judeu: Franz Kafka e um de seus destinos

 

The Trial and its outcomes: Kafka and his vicissitudes

 

 

Thiago Bastos

Membro associado da Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle (SPID) e Mestrando em Psicossociologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

 

 


RESUMO

A literatura de Kafka, produzida no alvorecer do século XX, é mais um processo em andamento na Europa fin-de-siècle. É a escrita de um jovem que busca, para além de seu trabalho burocrático, um sentido para estar ali. Sua produção literária é a tentativa de dar conta desse mundo que não permite uma apropriação, que ora o incorpora, ora o exclui, por sua condição judaica. Condição muitas vezes secundária para ele e os de sua geração, mas que não deixa de marcá-los significativamente. Marcas involuntárias, que não os abandonam e retornam conforme as produzem. Marcas que caracterizam e permitem a construção de uma obra e de uma vida. Aqui tenta-se ler os vestígios dessa tradição abandonada, mas que não se deixa apagar. Que retorna, que impulsiona a produção, não como uma Musa, mas sim como angústia e necessidade de produzir.

Palavras-chave: Franz Kafka, literatura, subjetivação


ABSTRACT

Kafka's literature is one of the many intellectual projects underway in the European fin-de-siècle. It is the work of a young man in search of a meaning for being there, despite his bureaucratic work at a government agency. His literature is an attempt to get a hold of a society that sometimes accepts him and sometimes rejects him, for his Jewish background. A background usually not considered by him and his fellows, but always present in many different ways. It is this background that gives way to his literary production and, thus, his own life. This paper is an attempt to read the Jewish background that is behind Kafka's work, a background always present, which works in favor of his production, not as a Muse, but as anguish and the necessity to write.

Keywords: Franz Kafka, literatures , subjectivity


 

 

Tenho o cansaço antecipado do que não acharei.
Fernando Pessoa (2002: 298)

 

A produção de Kafka, uma literatura construída no alvorecer do século XX, é mais um processo que está em andamento na Europa da virada do século. Não é uma obra filosófica nem acadêmica, tampouco uma obra que ganhará importância nos meios literários de então. É simplesmente a escrita de um jovem judeu, de alguém que busca, em meio ao seu trabalho burocrático do dia-a-dia, um sentido para estar ali, uma forma de subjetivação.

Entre romances, contos, cartas e entradas de diário, Kafka vai fazendo uma busca singular para compreender seu drama pessoal. Sua produção é uma tentativa de dar conta de um mundo que não permite uma apropriação de fato, que ora o aceita, ora o exclui. Que o aceita, como peça essencial da engrenagem estatal, e o descarta como cidadão de segunda classe, ou até mesmo como não-cidadão, por sua condição de judeu. Condição essa renegada, ou posta em segundo plano, por Kafka, que abriu mão de sua religião e idioma, mas que mesmo assim não deixou de produzir sua marca.

Este artigo surge como uma busca desta marca; um exercício de interpretação. É uma tentativa de ler no texto kafkaniano os resquícios de uma tradição abandonada efetivamente, mas que não se deixa abandonar. Uma tradição que faz um retorno, que impulsiona uma produção, onde inspiração e criatividade surgem como angústia e necessidade de produzir. É, portanto, um texto limitado, que não se presta a uma conclusão. Mais uma interpretação, num campo onde outras já ocorreram e ainda ocorrerão.

 

A EMERGÊNCIA DO ESTRANHO NO PROCESSO DE KAFKA: UM LEGADO JUDAICO

Kafka construiu uma obra perturbadora. Seus textos, produzidos numa Europa que sofria grandes mudanças, trazem as impressões e marcas desse momento de transição, que misturam o arcaico e o moderno, o fim dos impérios e o aparecimento de novos Estados e ideologias, o confronto entre as tradições de uma Europa Oriental ainda feudal e os questionamentos de uma Europa Ocidental mais cosmopolita.

A tradição, e aqui fala-se de uma tradição judaica propriamente dita, era vivida e sentida principalmente através de conflitos. Conflitos intelectuais, religiosos, familiares e sociais, não só de Kafka, mas de toda sua geração, conforme o próprio aponta em Carta ao pai (Kafka, 1919/2004).

Kafka, porém, não é explicito, não aborda esses temas de forma organizada ou metódica, não busca uma resolução efetiva para os conflitos que emergem nestes campos. Sua escrita não é política, ele escreve na emergência de si, escreve para dar conta e criar aquilo que é naquele momento, um judeu em experiência de exílio o mais absoluto, pois seu, desprovido da herança simbólica que até então havia mantido seus antepassados. É essa experiência que o leva à literatura. Kafka, um judeu em Praga, desgarrado das tradições religiosas e comunitárias de seus antepassados, vivendo in loco a necessidade de construir-se, de subjetivar-se.

Kafka, como outros judeus dessa geração que buscavam a assimilação, acabou sem uma herança cultural aparente, sem uma língua mãe efetiva. Não tinha domínio da língua falada por seus pais, uma língua em vias de extinção, mas não era realmente parte integrante da comunidade dos idiomas que dominava. Esse exílio, que não era exclusivo de Kafka, era combatido, sobretudo, nesta mesma esfera: pelo domínio da palavra, falada e escrita, e da arte.

Para Kafka, a experiência de exílio se torna constitucional, inerente ao ser judeu, e é através do ato de escrever, da posse da palavra escrita, que sua judeidade retornará, permitindo um modo de subjetivação particular. É um legado que surge pelo estranhamento de si, em sua errância e na criação de si.

É no texto, em suas palavras, que Kafka deixa ressurgir seu judaísmo e é pelas leituras que podemos fazer dele, nas re-interpretações de sua letra, que encontramos o retorno que Kafka faz sobre si. Podemos dizer que a leitura do texto kafkaniano é uma leitura cabalística, uma leitura que, como nos diz Forsters (1999), vai além do "evidente e implícito para abrirse camino por los deslices de una escritura cifrada y polivalente, atiborrada de símbolos que permanecen a la espera de quien pueda descifrarlos" (Forsters, 1999: 168). Uma leitura que busca, através do mergulho na palavra e suas combinações, os vários sentidos contidos num texto.

 

O JUDAÍSMO CENTRO-EUROPEU DE FIN-DE-SIÈCLE

O distanciamento das tradições, conseqüência da onda de assimilação ocorrida a partir da segunda metade do século XIX, traz uma marca definitiva para as primeiras gerações de judeus urbanos da Europa Central, da qual Freud e Kafka fazem parte, que, apesar de não negarem sua origem judaica, esforçavam-se em ser europeus. A assimilação trazia embutida a necessidade de abandonar os rituais tradicionais do judaísmo e adotar novas práticas exigidas pelo mundo burguês, num, "arduo ejercicio de maquillaje y de la actuación" – que – "proveyeron al judío asimilado de una segunda naturaleza que paulatinamente fue ocupando casi todo el espacio de su personalidad" (Forsters, 1999: 40).

Essa re-inscrição de uma nova personalidade, de um novo projeto cultural, que cresce acompanhando a polarização nacionalista e o anti-semitismo no Império austro-húngaro, tem duas facetas: uma pública, sob a influência de idéias racionalistas, com cidadãos de origem judaica pleiteando postos de relativo destaque em instituições públicas e privadas, na política, nas universidades e nas artes; e outra privada, incerta, fruto de uma sensação de não-pertencimento comunitário, sem uma identidade certa – pois eram judeus para o mundo e não o eram em suas próprias casas.

Nas capitais do Império austro-húngaro, esses "novos judeus", conforme aponta Pawel (1986), foram seduzidos a desprenderem-se de seu passado, de sua língua e tradições, foram induzidos ao esquecimento, ao apagamento de suas memórias. Postos na errância do exílio dentro daquilo que consideravam suas próprias pátrias. Contudo, é a partir da experiência da diáspora, da errância pelo "deserto", conseqüência, entre outras razões, de um decreto divino – "e eles andarão errantes entre as nações" (Oséias 9, 17) –, que constroem seu legado histórico e cultural. Segundo Forsters (1999), é exatamente essa característica, o "judaísmo diaspórico", que constitui o tronco central e garante a continuidade de uma tradição singular.

Esse tronco central e essa garantia se dão através de um encontro recorrente com a palavra, com a escuta e com a interpretação. Para essa comunidade de judeus, que agora se encontravam na fronteira do mundo moderno, ou logo além dela, essa lida com a palavra ocorre através de uma rede de atividades culturais que, segundo Pawel (1986), eram desproporcionais ao tamanho da comunidade. Pawel nos fala do papel relevante das artes, sobretudo da literatura, para essa geração: "O gueto deles era uma shtetl paradoxalmente comunitária de individualistas impertinentes, acotovelados no espaço estreito de sua autoconcentração, tendo por religião a literatura e vendo na expressão pessoal o caminho da salvação" (Pawel, 1986: 151).

Essa produção intelectual, fosse nas artes, nas ciências, ou na filosofia, era a forma de essa comunidade, sem muita compreensão ainda, se inserir, atualizar e, novamente, reescrever a tradição à qual estava atada. Kafka, poucos anos antes de sua morte, escreve a Brod sobre o poder que o legado judaico imprimiu nessa geração. "A maioria daqueles que começaram a escrever em alemão queria fugir de seu judaísmo. [...] Queriam escapar, mas suas patas traseiras estavam ainda atadas no judaísmo dos pais, enquanto as patas dianteiras não encontravam terreno seguro. E o desespero daí resultante servia-lhes de inspiração" (Kafka, citado por Pawel, 1986: 98).

Em um livro de memórias, Isaac Bashevis Singer (1996), escritor ainda influenciado pelas mudanças por que passaram as gerações anteriores, ilustra o que Kafka diz, ao descrever uma cena passada em um atelier. Lá, ele relata que os intelectuais e artistas não rezavam, não estudavam os livros sagrados, comiam alimentos proibidos, apesar de compreenderem o iídiche e de não se incomodarem com seus cachos e cafetã.

Essa característica, a de estar à margem das diversas comunidades que compõem a sociedade, leva essa população de intelectuais judeus a um desprendimento que, como diz Forsters (1999), é fruto da desesperança de quem sempre esteve à margem do poder. Mas o estar à margem não significava só não fazer parte das comunidades nacionais ou carregar uma fé cada vez mais diluída e desenraizada, era também estar sujeito a um mundo carregado de ódio anti-semita, a uma ameaça que lhes tolhia o direito de ir e vir livremente, judeus odiados por serem judeus, sujeitos à fúria repentina dos Pogroms. Esse mal-estar traz "uma insígnia daquela 'alteridade', daquele sentimento de ser diferente, que, para muitos dos que pertenceram à geração de Kafka, passou a ser a soma e a essência do judaísmo" (Pawel, 1986: 57).

Essa sensação de ser diferente, ou de não-ser, essa nova errância, sustenta uma produção intelectual singular e fora do comum, que tem como alicerce o trabalho de escrever. Trabalho solitário, que abre caminho para um retorno à coisa judaica abandonada, mas não um retorno ao anterior, e sim um retorno a um novo passado, a uma judeidade renovada. Kafka aponta para as razões de toda essa "literatura". É um esforço para mergulhar numa mística que lhe permita entender a significação de seu judaísmo.

Toda essa literatura é um esforço para romper a fronteira. Não fosse pela intervenção do sionismo, ela se teria facilmente transformado num novo misticismo, numa Cabala. Há tendências incipientes nesse sentido. O que se faz necessário, entretanto, é algo inconcebível, que lance raízes nos séculos ancestrais ou que as recrie por completo, e que, ainda assim, não se desgaste na tarefa, mas apenas dê início ao seu trabalho (Kafka, citado por Pawel, 1986: 98).

 

FREUD, KAFKA E A ESTÉTICA DE O ESTRANHO

Em um texto de 1919, intitulado "O estranho", Freud (1919/1976) relaciona o termo unhiemliche a uma categoria de coisas "do campo do que é assustador" não especialmente relacionadas às que causam medo ou pavor, mas sim àquelas que evocam uma "estranheza". Um termo que aborda "a coisa" por aquilo que ela não é, pela sua negatividade, por aquilo que aparentemente não está nela. Para Freud, a estranheza relaciona-se com o assustador quando se dá a emergência de algo que sempre esteve lá, porém nunca foi, nem será sabido.

Ao analisar o fenômeno do "estranho" em si, Freud aponta que esta é uma sensação que eclode em momentos críticos. Para além dos fatores atribuídos à causa infantil, aponta também para o "fenômeno do duplo". O duplo, que seria uma proteção contra a destruição do eu frente à onipotência da morte, se inverte e "transforma-se em estranho anunciador da morte" (Freud, 1919/1976: 284). A idéia do duplo, que surge como defesa em um estádio primitivo do desenvolvimento, não desaparece; acaba por receber novas significações nos estádios posteriores de desenvolvimento do eu. O duplo passa então a incorporar uma série de atributos como: "todos os futuros, não cumpridos mas possíveis, a que gostamos ainda de nos apegar, por fantasia; todos os esforços do eu que circunstâncias externas aniquilaram e todos os nossos atos de vontade suprimidos, atos que nutrem em nós a ilusão da Vontade Livre" (Freud, 1919/1976: 295).

Essas considerações, além de outras não abordadas aqui, sobre o fenômeno causador de uma estranheza permitem que Freud conclua que a categoria de coisas assustadoras que constituem o unheimlich pertence a impulsos emocionais que, ao serem recalcados, liberam ou transformam-se em angústia. E, para Freud, não haveria assunto mais relevante, "em que nossas idéias e sentimentos tenham mudado tão pouco desde os primórdios dos tempos, e nas quais formas rejeitadas tenham sido tão completamente preservadas sob escasso disfarce" (Freud, 1919/1976: 301), do que a morte ou sua proximidade.

A morte pode ser pensada aqui como a impossibilidade de rememoração ou o ponto final de toda a possibilidade de lembrar. Para o judaísmo, a morte da tradição não ocorre, na medida em que é sustentada, geração após geração, por uma tríade que "forma o sustento mais sólido em que se edifica o humano": o esquecimento, a lembrança e a responsabilidade (Schmucler, citado por Forsters, 1999: 15). Some-se a isso o elemento messiânico do judaísmo no exílio, que sustenta uma expectativa de redenção, de um futuro ainda não cumprido mas possível, e temos as condições que permitem, naquele momento de crise, uma releitura e uma re-inserção da tradição judaica para aquela geração a de Freud e Kafka que vagava em um novo exílio.

O retorno ao judaísmo foi, assim, feito principalmente através da crítica e da criação intelectual e artística.

Desde la mirada marginal y hasta subalterna del judío. [...] Mirada del exilado de todo poder, del derrotado una y otra vez pero que, en esa desazón de la derrota, siguió encontrando motivos y fuerzas para seguir caminando sin un rumbo fijo por las sendas laberínticas de la historia, en pos de una promesa cuya garantía de cumplimiento no dependía de la razón sino de un sinnúmero de eventualidades que, paradójicamente, la volvían cada vez más frágil pero más indispensable. Mirada cansada de quien ha acumulado la experiencia de generaciones y que conoce lo que significa estar en el margen del poder, de todo poder para sostenerse exclusivamente en la silenciosa pagina del libro (Forsters, 1999: 78).

Essa criação ocorre como um retorno à tradição, pela emergência daquilo que teima em se ocultar. "La experiencia irrecusable de una deriva, la permanencia de una lógica de la interpretación que sabe desde el vamos que siempre deja un resto, ese otro que bloquea cualquier certeza conclusiva" (Forsters, 1999: 31) – é o que constitui a experiência que Kafka busca atingir através de sua literatura.

Gershon Scholem (citado por Forsters, 1999) nos diz que Walter Benjamin já havia reconhecido uma teologia negativa em Kafka, decorrente de uma experiência onde a "morte de Deus" e a crise da modernidade correspondem à perda da garantia de compreensão da história através de um plano racional. Em suas pesquisas sobre os possíveis registros de um judaísmo, Scholem encontra na Cabala a fonte da permanência de uma espiritualidade que ainda tinha força para retornar às suas origens através das características mais particulares e originais do povo judeu: "la hermenéutica interminable del libro, el viaje laberíntico por el territorio del lenguaje" (Scholem citado por Forsters, 1999: 132).

 

O PROCESSO COMO ALEGORIA DE SER JUDEU: KAFKA E UM DE SEUS DESTINOS

A trama d'O processo de Franz Kafka é lida aqui como uma maneira que o artista encontrou para significar sua herança judaica, uma herança nunca questionada, mas nem sempre sabida e de compreensão sempre incerta. Uma maneira de Kafka vir-a-ser, de subjetivar-se. No decorrer d'O processo, essa questão emergirá inúmeras vezes, bem como as tentativas para significá-la. Algumas cenas serão escolhidas, outras serão deixadas de fora, uma escolha subjetiva do autor que produz o texto, precisando trabalhar nos limites de um artigo para publicação. Seguindo as divisões do texto trazidas pela tradução, vamos propor interpretações para as cenas escritas pelo autor salientando o retorno do que seria um legado judaico. A judeidade de Kafka a serviço de sua criação.

Logo na primeira cena do livro, a Detenção, Joseph K. se encontra – enquanto ainda estava em sua cama, numa situação que evoca certa fragilidade – com um sujeito que era "esbelto e de constituição sólida", quiçá uma referência à figura de seu pai, que Kafka via como "forte, grande, possante" (Kafka, 1919/2004: 27). É essa figura, ainda desconhecida nesse inicio de romance – e que terá o nome de Franz –, que alerta Joseph K. para que ele não comece sua busca. Uma busca que levará o herói pelos meandros de sua história mais particular, uma busca calcada na incerteza e de futuro duvidoso, uma busca que, não importa o resultado final, acarretará perdas ao longo do caminho.

Um processo de transformação – "longo e maldito processo" – que está apenas começando e é determinado por uma lei desconhecida por Joseph K., uma lei "atraída pela culpa", que acusa essas gerações de transição, que abandonaram as tradições em busca da assimilação. Um processo que não é feito sem o fantasma das gerações passadas, onipresentes e oniscientes. São aqueles que, no romance, tudo observam.

Essa transformação reforça as características milenares dos judeus no exílio. O confronto que Joseph K. se permite fazer não é com as condições externas, impostas por uma lei que lhe é superior, mas sim com as leis criadas dentro da tradição à qual ele está "aprisionado". Daí a alusão que faz ao banho que pode não ser tomado para o encontro com o representante da lei – um banho de purificação, um banho ritual.

Em relação à busca que está empreendendo, uma busca para compreender aquilo que o aprisiona, K. (aqui podemos pensar tanto em Joseph quanto em Franz) se diz "surpreso, mas de modo algum muito surpreso", pois sua geração já vem "abrindo caminho pelo mundo" há pelo menos 30 anos (Kafka, 1920/2003: 20-21), embora não perceba realmente o peso da tradição que carrega. Uma tradição que os aprisiona, mas que não impossibilita uma presença marcante no mundo moderno, bem caracterizada pela produção intelectual e pelo trabalho de funcionário público de Franz Kafka, que foi um eficiente burocrata. Esse trabalho, que ia contra a busca que Kafka empreendia através da escrita, que trazia à tona a oposição entre o Kafka escritor e o Kafka burocrata, é representado pelo questionamento de Joseph K. aos executores de sua detenção: "Quer um sentido e executa a coisa mais sem sentido que existe?" (Kafka, 1920/2003: 23).

A detenção, além do mais, não é indício de uma impossibilidade de estar presente e ativo no mundo externo, não é algo que deve tolher o indivíduo de seu modo de vida habitual, é só uma condição inescapável, a de judeu em eterna errância pelo exílio, errância feita através da palavra, da lavra e interpretações dos diversos textos e roteiros que se apresentam durante uma vida.

Nesta primeira parte do livro, toda a culpa e a angústia geradas por este aprisionamento e busca podem ser lidas nos diálogos que K. mantém com as duas personagens femininas presentes na pensão. A conversa com a sra. Grubach, sua senhoria, remete às relações domiciliares de Joseph K. Após mais um dia de trabalho o dia de sua detenção e também o de seu aniversário –, ele retorna mais cedo à pensão, quebrando uma parte de sua rotina, pois "lhe parecia que os incidentes da manhã tinham causado uma grande desordem em toda a casa" (Kafka, 1920/2003: 28) e que só ele poderia restabelecer a ordem. Na conversa que se segue, uma sra. Grubach comovida fala sobre o episódio da detenção como algo que está relacionado à felicidade de Joseph K., algo que ela não entende, mas que está ligado a um determinado tipo de conhecimento. A uma Lei, que organiza seu mundo e que permanece oculta apesar de se fazer presente em todos os detalhes de sua vida. Joseph K., neste momento, ainda tenta desconsiderar esta força retrucando que não a considera "como algo sábio, mas sim como algo que não é nada, absolutamente nada" (Kafka, 1920/2003: 31). Mesmo assim, Joseph K. já reconhece que está despreparado para o que o aguarda.

A cena segue designando o dia de domingo como aquele do "Primeiro Inquérito", ou seja, já aponta explicitamente o que se passará neste processo. Será um processo solitário e pessoal, longe de qualquer instituição concreta do tecido social. Um processo pessoal, interno. É o que nos é dado a ver quando os três funcionários do banco – presentes na cena inicial – reaparecem em seu caminho ao tribunal e reafirmam a aversão de Kafka em conciliar uma vida profissional com sua vida pessoal, íntima. Essa característica também pode ser notada na leitura de A metamorfose (1915/997), quando o gerente para o qual Gregor Samsa trabalha vai à sua residência inquirir as razões para ele não ter embarcado num trem. Essa intromissão de um mundo externo em seu mundo particular, por quaisquer motivos que fossem, era considerada sempre invasiva. Para Joseph K., ou Franz Kafka, "repugnava-o qualquer ajuda externa neste seu caso, por menor que ela fosse" (Kafka, 1920/2003: 48).

O local onde ocorre o inquérito, um prédio semelhante a qualquer outro, marca da assimilação, se transforma em um enigma ou labirinto, uma miríade de caminhos com escassas ou nenhuma indicação, mas sem a possibilidade de engano, já que todos os caminhos o levariam ao tribunal, à sua marca singular, à sua insígnia judaica. Não é à-toa que Joseph K. "subiu finalmente a escada, brincando mentalmente com a lembrança de uma expressão do guarda Willem, segundo a qual o tribunal é atraído pela culpa, de onde, na verdade, se seguia que a sala de audiência deveria ficar na escada que K. escolhesse ao acaso" (Kafka, 1920/2003: 49-50).

Uma vez na sala de audiência, o ambiente confuso empurra Joseph K. para um confronto com a Lei. Joseph K. vai ao extremo nesta audiência, podemos dizer que passa ao ato, quando, ao arrancar o livro do juiz de instrução, questiona inconscientemente o valor da letra, do texto, do caderno, do Livro – e aqui cabe pensarmos na Torá – aludidos aqui como uma simples caderneta escolar. Mas, ao mesmo tempo que ocorre o confronto, há uma incapacidade de se apropriar com segurança daquilo que julga desprezar, "pois só posso apanhá-lo com dois dedos e não tomá-lo à mão" (Kafka, 1920/2003: 57). Como se a tradição e o seu reconhecimento lhe fossem estranhos, estivessem para além de seu alcance e compreensão.

O que entra em processo aqui é o estatuto da judeidade para Kafka e sua geração, desamparados pela tradição, mas todavia judeus, estrangeiros em terras estrangeiras, sempre em exílio. Coisa que Kafka e Joseph K. sabiam: "o que aconteceu comigo é somente um caso isolado, e como tal não muito importante, já que eu não levo muito a sério, mas é um indício de como se move um processo contra tantas pessoas. É só por elas que eu falo, não por mim" (Kafka, 1920/2003: 57).

Uma vez começado, o processo se transforma em moto contínuo e ocorrerá de qualquer maneira, já não importa mais o que aconteça. É isso que é representado nos capítulos que seguem estes dois iniciais, capítulos que podem ser lidos e interpretados à luz do já exposto acima. Interpretações que nunca serão únicas e que podem ser sempre re-atualizadas. Aqui, nos direcionaremos aos capítulos finais, para concluir dentro do espaço que ainda resta.

Ao finalmente tentar tomar as rédeas de seu processo, Joseph K. percebe "que é impossível terminar a petição" devido à exigência que essa tarefa requer, a de "recobrar na memória toda sua vida nos mínimos atos e acontecimentos, expondo-a e examinando-a por todos os lados" (Kafka, 1920/2003: 156). Nesse sentido, pode-se pensar em O processo como a retomada obrigatória de Kafka, de sua produção literária que se arrasta pelos interstícios de uma "vida regular, vazia e insensata" (Carone, citado por Kafka, 1920/2003: 317). Essa retomada, que o deixa completamente implicado em seu processo, traz também a esperança de uma "liberação plena e definitiva", mas para isso ele "precisava correr um risco muito maior do que o até agora" (Kafka, 1920/2003: 161). Todavia, para proceder dessa maneira, Joseph K., tal qual Kafka, sabe que terá que abrir mão de sua eficiência profissional, que precisará abandonar de vez sua lucidez.

É o encontro com Titorelli que enreda Joseph de maneira inconfundível nas teias da tradição, é aí que nosso herói pode admitir que "no final emerge, de alguma parte onde originariamente não existia nada, uma grande culpa" (Kafka, 1920/2003: 181). É ele também quem revela a K. algo que até esse momento só estava implícito no texto, que ainda não havia sido apreendido pelo protagonista, que "tudo pertence ao tribunal" (Kafka, 1920/2003: 183).

São três os destinos possíveis para K., de acordo com o tipo de "libertação" que ele busca: "a absolvição real, a absolvição aparente e o processo arrastado" (Kafka, 1920/2003: 186). Em relação à primeira, cuja única condição para obtenção é, de fato, a inocência do acusado, não há nada que possa ser feito, a não ser esperar e acreditar que ela virá. Pode-se dizer que a única maneira de obtê-la é não sendo afetado pelas influências da tradição. Para Kafka, e a legião de judeus dessa época, simplesmente uma impossibilidade.

As outras conclusões possíveis para o processo, ambas insatisfatórias, pois indicam a impossibilidade de um outro caminho, um caminho caracterizado pelo positivo, pelo não estranhamento de sua condição de pária e exilado, são sempre conclusões parciais, que não permitem um encerramento definitivo da causa em questão, que não evitam o eterno movimento de retorno daquilo que se fazia adormecido.

Na absolvição aparente, procede-se para conseguir a absolvição do réu perante o juiz com base numa confissão de inocência secundada por outros juízes. Isso aparentemente encerra o caso – nunca diante o tribunal supremo – nos tribunais superiores e inferiores, mas não impede que o processo continue tramitando. O acusado pode vir a ser detido novamente a qualquer momento e o processo recomeça, podendo-se obter então uma nova absolvição aparente e assim sucessivamente. No processo arrastado, o futuro do acusado não está tão sujeito a oscilações e aos humores dos tribunais, mas ele "precisa girar continuamente no pequeno círculo em que está encerrado de modo artificial" (Kafka, 1920/2003: 196). Assim, embora não esteja sujeito aos sustos de uma detenção súbita, o acusado não pode nunca se ver realmente livre dos tribunais e suas demandas. Além da impossibilidade de um fim, ou do eterno retorno da causa, "os dois métodos têm em comum o fato de que impedem uma condenação do acusado. [...] Mas impedem também a absolvição real" (Kafka, 1920/2003: 196).

Joseph K. sai desse encontro com o pintor com a constatação de que não há caminho possível para fora do processo, mas, como bem aponta Titorelli, vai fazer disso o elemento de sua busca. É o reconhecimento de que sua busca, a busca que deve ser empreendida por sua geração, a geração de Kafka, se dará na penumbra do negativo. E que só se responsabilizando por ela algo irá advir. "Algumas pessoas rejeitam quadros como esses, porque são muito sombrios, mas outras – e o senhor é uma delas – gostam justamente do aspecto sombrio" (Kafka, 1920/2003: 199).

Num capítulo inacabado, quando K. decide tomar às mãos seu processo, vemos pelo relato de Leni o quão semelhante isto é com história da tradição judaica que assombra Kafka. O relato que Leni faz do comportamento do comerciante, junto com a descrição que K. nos dá deste, o retratam como um diligente estudante dos livros sagrados, como alguém que estuda para assumir um lugar numa linhagem, alguém que busca fazer mais uma decodificação, através de leituras e releituras, interpretações e re-interpretações, do texto sagrado: "ele lia a fundo. O dia todo leu a mesma página e ao ler acompanhava as linhas com o dedo. Sempre que eu olhava para dentro, na sua direção, ele suspirava, como se a leitura causasse muito esforço" (Kafka, 1920/2003: 239).

Ao chegar ao fim de seu romance, não o fim de fato, mas o fim possível, Kafka transporta Joseph K. para dentro de uma catedral, diríamos, um Templo. Na catedral, há o encontro com um sacerdote que remete K. diretamente às questões que o assombram. O que Joseph K. faz ali? O sacerdote aparece como o lugar de quem mostra a Lei e suas facetas, quem explica os destinos dos processos, apontando que não há saída. E quanto a isso o sacerdote é taxativo: "A sentença não vem de uma vez, é o processo que se converte aos poucos em veredicto" (Kafka, 1920/2003: 258).

Um trecho deste capítulo, pode-se dizer um conto à parte, desencadeia uma série de ponderações feitas tanto por K. quanto pelo sacerdote, ponderações que mostram as várias possibilidades de leitura de um mesmo texto e permitem uma conclusão pragmática sobre o tribunal: "Ele o acolhe quando você vem e o deixa quando você vai" (Kafka, 1920/2003: 271).

O livro termina quando K. está para completar seu trigésimo primeiro aniversário, um treze invertido, que lança o menino judeu em sua maioridade religiosa, permitindo agora, depois do bar mitsvá, que ele seja considerado no minian – o quorum mínimo de dez homens necessário para as cerimônias religiosas. Agora, com K. em sua maioridade e com o número mínimo de capítulos necessários no livro, o último ritual, ou realização, pode se dar.

Neste dia, K. recebe a visita dos guardas que conduzirão sua sentença, guardas que ele já aguardava e que aparentam velhos atores – quiçá alusão aos atores quase mambembes que, através do teatro iídiche, transportaram Kafka de volta para o universo de seu povo, da cultura e tradição judaica centro-européia; atores que Kafka encontra por duas vezes em palcos tchecos representando o que ainda remanescia daquela cultura.

K., ao acompanhá-los [os guardas] pelas ruas, ainda pensa em dificultar o trabalho de seus executores. De fato, eles até "toleravam que K. definisse o caminho", algo que ele fez ao longo de todo o romance. Nesse momento, o de caminhar acompanhado para um fim, só um dos fins possíveis, K. percebe que a carga toda de seu processo está em seus ombros: "Sou grato por terem me dado como acompanhantes estes senhores semimudos, que não entendem nada, e pelo fato de terem deixado para mim a incumbência de dizer a mim mesmo o que é necessário" (Kafka, 1920/2003: 275).

O ritual de sacrifício a que K. é submetido e o instrumento que é utilizado em sua execução, um instrumento de um carniceiro ritual, o shochet, que expia suas vítimas sem sofrimento, dão fim ao romance e a Joseph K. Mas não a sua condição, nem à condição de seu povo, de exilado, de errante, de uma tradição que, por mais assimilada que esteja, sempre carregará algo para distingui-la, pois "Era como se a vergonha devesse sobreviver a ele" (Kafka, 1920/2003: 278).

 

COMENTÁRIOS FINAIS

São várias as formas de se ler um texto. Essa que se deu aqui, só mais um exercício. O texto de Franz Kafka nos deixa muitas brechas, muitos meandros pelos quais podemos nos esgueirar.

Essa leitura pretendeu demonstrar que o texto kafkaniano, para além de qualquer significado que possa ser dado a ele, carrega em seu corpo a marca de uma tradição – uma judeidade – que, mesmo não sendo parte integrante da vida dos judeus espalhados pela diáspora, se faz presente e ressurge em traços que os vinculam a essa tradição. É uma escritura como modo ou tentativa de subjetivação. É uma marca que supera a questão religiosa e o sionismo, duas possibilidades para o judaísmo que existiam então e persistem até os dias de hoje. Que está, até mesmo, para além de uma crença em Deus.

Kafka, em toda sua prosa, principalmente aquela que foi publicada em vida, com sua autorização, simplesmente não aborda a questão religiosa, nem mesmo sua herança e sua ligação à tradição judaica. Seus textos são marcados pelos desencontros, pelas buscas incessantes, pela errância em um deserto pessoal. Toda a ambientação de seus contos e romances são só moldura para o desencontro inerente desse novo homem, que não erra por desertos, mas que não se encontra dentro de si.

Em Carta ao pai, publicado postumamente em forma de livro, Kafka (1919/2004) se permite discorrer sobre sua condição de judeu, não como homem religioso, mas marcado por uma herança proveniente da cultura, da lei, do pai. Essa marca, que faz com que ele vasculhe todos os becos e vielas de sua personalidade, é o que permite uma produção intelectual instigante. Não se produz por produzir. Produz-se como uma busca, uma busca que nunca abarca o todo, que sempre deixa um resto, um outro lugar para se voltar, para continuar remexendo. Uma procura às peças de um quebra-cabeça que constituem a personalidade desse novo ser. Um quebra-cabeça que vai sendo montado a cada novo texto produzido, a cada idéia debatida, a cada releitura e criação.

Na forma, tanto de escrita quanto de leitura, encontra-se a possibilidade de se defrontar com o que constitui a essência de uma maneira de ser, aquilo que sempre pôde manter o judaísmo vivo, mesmo entre aqueles mais distantes de uma tradição normatizada. Simplesmente uma nova possibilidade de leitura, uma nova forma de interpretação, que deixa surgir, repetidamente, os traços que constituem uma história que será para sempre recontada, em busca de novos significados e sentidos. Uma história sem fim.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Forsters, R. (1999). El exilio de la palabra: en torno a lo judío. Buenos Aires: Eudeba.         [ Links ]

Freud, S. (1919). O estranho. Obras completas, ESB, v. XVII. Rio de Janeiro: Imago, 1976.         [ Links ]

Kafka, F. (1915). A metamorfose. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.         [ Links ]

_____. (1919). Carta ao pai. Porto Alegre: L&PM Pocket, 2004.         [ Links ]

_____. (1920). O processo. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.         [ Links ]

Oséias (s.d.). Bíblia sagrada. São Paulo: Edição Claretiana, 1980.         [ Links ]

Pawel, E. (1986). O pesadelo da razão: uma biografia de Franz Kafka. Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Pessoa, F. (2002). Poesia Álvaro de Campos. São Paulo: Companhia das Letras.         [ Links ]

Singer, I. B. (1996). En la corte de mi padre. Bogotá: Editorial Norma.        [ Links ]

 

 

Recebido em 27 de maio de 2007
Aceito para publicação em 5 de novembro de 2007

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