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Psicologia Clínica

Print version ISSN 0103-5665On-line version ISSN 1980-5438

Psicol. clin. vol.23 no.1 Rio de Janeiro  2011

 

SEÇÃO LIVRE

 

A psicanálise aplicada ao sintoma: uma resposta ética aos impasses enfrentados pelos psicanalistas na atualidade

 

Applied psychoanalysis to the symptom: an ethical response to the challenges faced by the psychoanalysts nowadays

 

 

Alexandre Dutra Gomes da CruzI; Ilka Franco FerrariII

IMestre em Psicologia pela PUC Minas; Professor Assistente contratado por prazo determinado pela PUC-Betim
IIDoutora em Psicologia pela Universidade de Barcelona; Professora no Curso de Graduação e no Programa de Mestrado em Psicologia da PUC Minas; Diretora Secretária Tesoureira da Escola Brasileira de Psicanálise, Seção Minas Gerais (EBP-MG) e membro da Associação Mundial de Psicanálise (AMP); Editora da revista do Instituto de Psicologia/Programa de Pós-graduação da PUC-Minas, "Psicologia em Revista"

 

 


RESUMO

O presente artigo aborda a psicanálise aplicada em uma época de avanço do discurso capitalista, favorecedor da crescente especialização do conhecimento e promotor, no meio clínico, de uma fragmentação das grandes categorias diagnósticas. Disso resulta uma predominância de instituições cada vez mais especializadas e segregativas. Diante da massificação da terapêutica e da crescente burocratização dos procedimentos técnicos colocados em jogo, repletos de medidas avaliativas, os autores propõem a psicanálise aplicada como prática que viabiliza a inserção da psicanálise em instituições de saúde sem dissolvê-la no variado campo das psicoterapias. A formação do analista e o sintoma são considerados eixos articuladores das dimensões epistemológica, ética e política da psicanálise aplicada. Esta é considerada, a partir da orientação lacaniana, uma saída ética para os psicanalistas, confrontados com as novas demandas do mundo contemporâneo.

Palavras-chave: psicanálise aplicada; sintoma; formação do psicanalista; instituições de saúde.


ABSTRACT

This paper is about the applied Psychoanalysis in our time when the capitalist discourse takes place, which enhances the increasing specialization of clinical knowledge and promoter, in the clinical area, of the fragmentation of the major diagnostic categories. This carries out the development of even more specialized and segregative institutions. As far as massification of therapeutic and the increasing bureaucratization of technical procedures – full of evaluative measures – are concerned as being introduced, the authors propose the introduction of applied Psychoanalysis in institutions of health, without allowing it to be dissolved in the several fields of psychotherapies. The psychoanalyst's formation and the symptom are considered articulator axes of epistemological dimensions, ethics and politics of applied Psychoanalysis as far as lacanian orientation is concerned, which means an ethic accomplishment for the psychoanalysts when confronted to the new demands of the contemporary world.

Keywords: applied psychoanalysis; symptom; psychoanalyst's formation, health institutions.


 

 

Introdução

Freud se mostrou cético com relação a efeitos terapêuticos rápidos de uma análise em mais de uma ocasião. Esta postura foi exemplificada nas reservas que fazia à técnica ativa proposta por Sándor Ferenczi. Duas passagens demonstram de forma clara seu ceticismo. Em uma delas ele diz que um só problema vinha monopolizando o interesse de Ferenczi, ou seja, "a necessidade de curar e de ajudar havia se tornado soberana", provavelmente se propondo "objetivos que, mediante nossos meios terapêuticos, estão, atualmente, totalmente fora de nosso alcance" (Freud, [1933] 1987: 225). Em outra, Freud afirma que "um mestre da análise", como Ferenczi, dedicou "os últimos anos de sua vida a experimentos terapêuticos, os quais, infelizmente, se mostraram vãos" (Freud, [1937] 1987: 262). Em suas palavras:

A experiência nos ensinou que a terapia psicanalítica — a libertação de alguém de seus sintomas, inibições e anormalidades de caráter neuróticos — é um assunto que consome tempo. Daí, desde o começo, tentativas terem sido feitas para encurtar a duração das análises. Tais esforços não exigiam justificação; podiam alegar que se baseavam nas mais fortes considerações de razão e conveniência (Freud, [1937] 1987: 247).

Tal posicionamento não o impediu de vislumbrar, no entanto, em um futuro próximo, a presença da psicanálise em instituições de saúde, nas quais a abreviação do tratamento se constituiria em uma variável fundamental da clínica.

 

Psicanálise pura e psicanálise aplicada à terapêutica

A discussão sobre os usos atuais da psicanálise, particularmente em instituições de saúde, tem mobilizado os psicanalistas e gerado inúmeros debates e discussões. O próprio Freud chegou a afirmar que, na prática, nada se podia falar contra um psicoterapeuta que combinasse análise com alguma influência sugestiva para que se chegasse a um resultado em tempo mais curto, como é necessário nas instituições. Ao fazer esta afirmação contundente e que poderia gerar muitos equívocos, Freud completa: "Mas é lícito insistir em que ele próprio não se ache em dúvida quanto ao que está fazendo e saiba que o seu método não é o da verdadeira psicanálise" (Freud, [1912] 1987: 157).

Desde então, parece que há uma pergunta fundamental a ser feita pelos praticantes da psicanálise e que, na atualidade, aparece com insistência: como garantir que a psicanálise praticada nas instituições não se dissolva em outros discursos e práticas que estão a serviço do mestre moderno, a exemplo das psicoterapias?

Questões como essa certamente contribuem para o avanço da teorização sobre a psicanálise aplicada, ao mesmo tempo que, na prática, podem dar margem a alguns equívocos. Segundo Jacques-Alain Miller (2001), a psicanálise aplicada é um termo que vem responder a confusões recorrentes tanto de ordem teórica quanto prática.

A distinção entre psicanálise aplicada e psicanálise pura foi considerada por Lacan, em seu "Ato de fundação" (Lacan, [1964] 2003) da Escola Francesa de Psicanálise, em 21 de junho de 1964. Nele traçava essa distinção "na própria definição da experiência de uma escola de psicanálise, situando as duas modalidades no interior de sua proposta de formação do analista" (Santiago, 2005: 2). Ainda que as duas modalidades da psicanálise sejam mencionadas enquanto constituindo duas seções distintas, é importante sublinhar que ambas são tributárias da formação do analista e da causa analítica. São guiadas pelo imperativo ético de exercer uma "crítica assídua", que "denuncie os desvios e concessões que amortecem o progresso da psicanálise, ao degradarem o seu emprego" (Lacan, [1964] 2003: 235).

A psicanálise pura e a psicanálise aplicada, propostas por Lacan, são retomadas por Miller no texto "Psicoanálisis puro, psicoanálisis aplicado y psicoterapia" (2001), no qual chega a marcar que, no segundo ensino de Lacan, esta diferenciação se esfuma:

[...] o último ensino de Lacan, tal como podemos percebê-lo e utilizá-lo em nossa orientação atual, aumenta a distância que separa a psicanálise da psicoterapia – e, ao mesmo tempo, apaga, ou pelo menos tende a apagar a diferença entre a psicanálise pura e a psicanálise aplicada à terapêutica. Desde a perspectiva da psicanálise fora do sentido, a diferença entre psicanálise pura e aplicada à terapêutica se torna irrelevante (Miller, 2001: 11; tradução dos autores1).

O apagamento progressivo da fronteira entre psicanálise pura e aplicada se deve à reelaboração do conceito de sintoma dentro da lógica borromeana. Segundo Miller, antes havia uma demarcação entre sintoma e fantasia, mas ao final do ensino ela desaparece. Lacan utiliza até uma nova grafia, sinthome, que conjuga simultaneamente o sintoma enquanto articulação significante, já a fantasia como investidura libidinal, não fazendo mais oposição entre eles. O sinthoma designa, portanto, "a investidura libidinal da articulação significante no corpo" (Miller, 2008: 408; tradução dos autores2). Assim, desloca-se a dimensão do gozo para o registro do real. Logo, a terapêutica no campo da psicanálise aplicada jamais pode desconsiderar a dimensão do gozo do sintoma, sustentada pela fantasia. Isto lhe é próprio e a distingue das demais terapêuticas.

Mesmo sabendo, conforme afirma o autor, que a distinção entre psicanálise pura e psicanálise aplicada tende a desaparecer no segundo ensino de Lacan, é importante considerar que a expressão segue sendo amplamente utilizada na atualidade. O uso dessa distinção, que a princípio é de ordem prática, mostra-se também didaticamente fecundo.

A psicanálise aplicada não é uma prática simulacro da prática exercida em consultórios particulares, que estaria sendo reproduzida nas instituições, nem uma prática corrompida em sua pureza vitalícia. Diferente, mas ao mesmo tempo próxima da psicanálise pura, que visa à formação do analista, a psicanálise aplicada enfatiza o tratamento do sintoma, priorizando os efeitos terapêuticos. Trata-se, assim, quando se considera sua aplicação terapêutica nas instituições, de uma forma de a psicanálise situar-se entre outras práticas e discursos, sem que seus princípios sejam esquecidos. É importante acrescentar que, apesar da ênfase na terapêutica, a psicanálise aplicada mantém a mesma exigência do rigor na formação do psicanalista, predominante na psicanálise pura.

 

A psicanálise aplicada diante da ofensiva reguladora

O tema da psicanálise aplicada tem ocupado espaço em vários campos de aplicação prática de conhecimentos. Éric Laurent, psicanalista francês e membro da Associação Mundial de Psicanálise (AMP), por exemplo, em seu discurso de candidatura à função de Delegado Geral da AMP (Laurent, 2007), afirma que o movimento psicanalítico em que se insere tem orientação decidida no sentido de que a psicanálise aplicada é um instrumento que mantém a psicanálise viva no contexto atual.

A conjuntura atual, conforme vem enfatizando Laurent em várias ocasiões, supõe uma ofensiva reguladora3, que pretende fazer da prática da psicanálise uma prerrogativa para especialistas. E, nessa discussão, cabe aos analistas não se esquecerem de que a psicanálise não é uma técnica a ser dominada por um especialista, "mas sim um discurso que encoraja cada um a produzir sua singularidade, sua exceção" (Laurent, 2007: 218).

A pretensão de regular a prática analítica não é inédita e, a este respeito, cabe lembrar a atualidade da discussão empreendida por Freud em seu texto sobre a análise leiga em 1926 (1987). Neste texto, Freud se posiciona contra um processo movido contraTheodor Reik, membro da Sociedade Psicanalítica de Viena, acusado de exercício abusivo da profissão médica e de charlatanismo pelo fato de exercer a psicanálise sem formação médica.

Para Freud, além do propósito de defender o colega, o debate em torno da análise leiga era mais uma oportunidade para enfatizar a necessidade de uma formação específica para aquele que deseja se tornar psicanalista. Procedendo a um diálogo maiêutico com um interlocutor imaginário, recurso do qual fez uso em ocasiões que o assunto tratado causava polêmica, Freud enfatizou "a exigência de que ninguém deve praticar a análise se não tiver adquirido o direito de fazê-lo através de uma formação específica" ([1926] 1987: 265). Ainda segundo ele, os praticantes de psicanálise "devem aprender a análise da única maneira possível – submetendo-se eles próprios a uma análise" ([1926] 1987: 281).

Questiona-se a capacitação técnica do profissional em desempenhar a atividade a que se propõe, no caso a psicanálise. Nesse sentido, uma questão técnica, colocada em ato pelos gestores da saúde, encontra em Freud uma resposta ética, apontando para a formação do analista irredutível às normas de formação universitária ou a "avaliações do que foi adquirido na prática" (Laurent, 2007: 219). Seguindo o ensinamento freudiano, o psicanalista se vê confrontado em subordinar o campo da técnica à dimensão ética.

Lacan reafirma o compromisso do analista com a sua formação. Esta é o eixo principal do tripé constituído, também, pela supervisão clínica e pelo estudo teórico. "Trata-se de um rigor, de certa forma ético, fora do qual toda análise, mesmo recheada de conhecimentos psicanalíticos, não poderia ser senão psicoterapia" (Lacan, [1955] 1998: 326).

Para Brodsky (2003), o campo da técnica da psicanálise é o campo do ato psicanalítico. É a este campo que se refere à psicanálise, seja ela pura ou aplicada. Nesta perspectiva, o princípio ético que orienta a práxis do psicanalista tem como ponto de sustentação o ato psicanalítico.

Sensíveis às questões colocadas em jogo pela regulamentação estatal, os psicanalistas pertencentes à AMP divulgaram uma declaração de princípios intitulada "Princípios diretores do ato psicanalítico" (Laurent, 2007: 215), a partir dos quais se pretende assinalar que, se não há regulação possível do ato psicanalítico, isso não quer dizer que ele seja arbitrário.

 

A psicanálise aplicada diante dos imperativos do mercado globalizado

A regulamentação estatal não se restringe ao campo da capacitação técnica do profissional; ela é generalizada, estendendo seus tentáculos sobre toda a extensão do procedimento técnico, de modo a controlá-lo e avaliá-lo em termos de eficácia e custo-benefício.

Nessa perspectiva, a clínica tem a sua finalidade reduzida aos imperativos de eficácia terapêutica e de garantia de resultados em curto prazo. O "saber-fazer com" o sofrimento psíquico enquanto práxis clínica acabaria cedendo espaço às novas tecnologias de gestão da saúde pública, pelas quais a palavra de ordem é "prever para controlar". Segundo Brousse,

O saber é hoje totalmente submisso à gestão. Gerem-se estoques, fluxos, fenômenos, catástrofes, populações, meio ambiente, criminalidade, sentimentos, paixões, o sofrimento, o stress ou a violência. O princípio de gestão é válido para todos os domínios dos assuntos humanos. O mercado das terapias é regido por esse princípio de gestão e os terapeutas são antes de tudo os gestores da saúde pública, tornada ela mesma um elemento constitutivo da ordem pública (Brousse, 2007a: 2).

Trata-se, para o mestre moderno, de exercer um controle de qualidade sobre a prática clínica, procurando garanti-la e validá-la. Sendo assim, o terapeuta se tornaria, ele próprio, um gestor da saúde, reproduzindo em sua prática o mesmo controle ao qual se encontra submetido.

Nesse contexto, a eficácia de um tratamento terapêutico é medida estatisticamente, sendo que esta medida é tanto mais favorável quanto mais alcança a redução ou mesmo extinção dos sintomas. O imperativo de produtividade preconizado pelo discurso capitalista é elevado à dignidade de norma social, da qual o sintoma constitui um impertinente desvio.

A psicanálise se contrapõe a esta lógica, na medida em que concebe o sintoma como um invólucro para o que há de mais singular no sujeito: o seu estranho/ familiar modo de gozar. Sendo assim, o sintoma se torna condição fundamental para o seu exercício: "é preciso que haja sintoma analítico e que haja sofrimento do sintoma, que este gozo do sintoma se apresente como desprazer. E isto já basta para implicar a transferência" (Miller, 1999: 55).

A partir disso, podem ser situadas as diferenças que a psicanálise aplicada estabelece em relação às psicoterapias, tão em voga na atualidade. Estas últimas têm em vista uma meta adaptativa, implícita na proposta de uma restituição da síntese do sujeito mediante o apagamento do sintoma. A singularidade do sujeito desaparece por trás do critério normativo de cura, que se baseia na estatística e nos protocolos.

Na medida em que situam seu objetivo em conformidade com a norma social e com as exigências de produtividade do discurso capitalista, essas modalidades terapêuticas ignoram a transferência. A partir disso produz, como efeito colateral, o reforço da identificação do sujeito justamente com aquilo que elas pretendem eliminar: o sintoma.

Este efeito colateral tem como contrapartida a massificação da terapêutica acompanhada pela medicalização generalizada, o que pode ser hoje constatado na emergência de uma multiplicidade de comunidades sintomáticas de gozo, verdadeiras pragas sintomáticas (Bassols, 2003). Tais comunidades ganharam na atualidade um estatuto globalizado, constituindo-se mediante a identificação do sujeito com um significante mestre (S1), que proporciona a estabilidade de uma identificação para um ser inconsistente, que aí se evanesce.

Não se pode deixar de lembrar o paradoxo que caracteriza o discurso do mestre atual. De um lado, a ciência não cessa de fazer desaparecer o sintoma – quimicamente ou por recondicionamento, com ou sem o consentimento do sujeito. Mas de outro, é a partir dos sintomas que os sujeitos se ordenam nas instituições cada vez menos generalistas, cada vez mais segregativas: instituições especializadas nos problemas alimentares, terapias específicas das fobias, acolhimento para vítimas, etc (Brousse, 2007a: 9).

A segregação constitui, portanto, o efeito reverso da homogeneização, resultante do avanço global do discurso capitalista em sua parceria com as tecnociências. A massificação globalizada do sintoma se constitui como um paradoxo, uma vez que ela se efetiva mediante a segregação dos sujeitos aí implicados em comunidades sintomáticas, seguindo a lógica capitalista do mestre moderno. Trata-se de sujeitos que só se globalizam ao custo da segregação, em um modo paradoxal de isolarem-se juntos.

Diante dessa lógica implacável do mercado da saúde, Miller aborda em seu texto "As contraindicações ao tratamento psicanalítico" uma saída possível para a psicanálise sob uma perspectiva que ele nomeia como "disjunção entre a psicanálise e o psicanalista" (Miller, 1999: 54). Nessa perspectiva, a presença do analista se conjuga com a ausência de análise, e o analista se dispõe ao uso que fizerem dele. Desloca-se, assim, a ênfase do dispositivo psicanalítico para os usos possíveis do objeto-psicanalista, que se torna doravante: "disponível no mercado, como se diz – e se presta a usos muito distintos daquele que fora concebido sob o termo de psicanálise pura. A psicanálise pura não é, assim, mais do que um dos usos aos quais o psicanalista se presta" (Miller, 1999: 54).

 

Os três pontos de ancoragem da psicanálise aplicada

Para Brousse, a psicanálise aplicada "é o nome dado à tentativa de inserção do nó político, epistemológico e ético da psicanálise como discurso, ou seja, como tratamento inédito do gozo no campo dos outros discursos" (Brousse, 2003: 38; tradução dos autores4). Ela se constitui, assim, segundo esta autora, em uma máquina de guerra contra a dissolução da psicanálise no campo das psicoterapias. Esta afirmação permite pensar a psicanálise aplicada não apenas enquanto uma inovação técnica, mas sim como uma aposta decidida por parte dos psicanalistas na capacidade do discurso analítico em proporcionar um novo laço social, bem como uma colocação à prova dos princípios da psicanálise e da formação do psicanalista.

Cabe aos psicanalistas a responsabilidade em zelar pelo futuro da psicanálise, evitando a sua dissolução no campo genérico das psicoterapias. A partir da teoria lacaniana dos quatro discursos, Brousse (2007b) situa três pontos de ancoragem que balizam o campo operacional da psicanálise aplicada, permitindo delinear os seus fundamentos e distingui-la de outras abordagens terapêuticas.

Em primeiro lugar situa-se a referência ao sujeito barrado (), que constitui o destinatário a quem o analista se endereça. Este sujeito não deve ser confundido com o eu unificado das psicoterapias, nem com o cidadão das abordagens socioassistenciais; a barra que incide sobre ele indica a sua divisão entre os efeitos significantes e o gozo, subjacente ao sintoma do qual se queixa. Trata-se de um sujeito que não é passível de nomeação por nenhuma categoria preconcebida.

O segundo referencial indicado por Brousse consiste na barra que, dessa vez, está atravessada no campo do Outro (). Se o primeiro referencial aponta para o ponto de visada do psicanalista, o segundo aponta para o lugar no qual o analista deve se situar para efetivar o seu ato. Esse ato só se torna possível a partir da destituição da onipotência do Outro regulador, seja enquanto um ideal normativo, seja enquanto uma garantia de um encontro feliz. Desta forma, o Outro é inconsistente, só comparecendo como uma ficção, um semblante encobridor do vazio que sustenta a demanda do sujeito.

O terceiro referencial mencionado é o saber (S2), enquanto saber textual e não referencial. Neste sentido, pode-se afirmar que o saber textual, advindo do sujeito, interroga o saber referencial dos especialistas e gestores da saúde pública. Enquanto que o saber textual é construído de modo singular pelo sujeito na transferência, o saber referencial está previamente estabelecido e legitimado universalmente, distanciado do real que a psicanálise visa atingir pela sua ação clínica.

A partir do segundo ensin o de Lacan, pode-se perceber uma orientação decidida em direção ao real e ao sintoma, em detrimento do sentido. Daí uma distinção fundamental entre a psicanálise aplicada e as psicoterapias, uma vez que estas se pautam pelo excesso de sentido, "despejando sentido aos borbotões para o barco sexual" (Lacan, 1993: 20-21). Se as psicoterapias promovem uma proliferação do sentido, a psicanálise por sua vez aponta para um real fora de sentido, irredutível à interpretação.

 

A política do sintoma e suas consequências

A partir dos três referenciais indicados por Brousse, torna-se possível pensar a psicanálise aplicada enquanto uma nova solução ética, implicada em uma política da psicanálise. A referência ao real e ao sintoma implica, segundo Naveau, "uma escolha que se orienta a partir da política lacaniana. A escolha proposta ao praticante é: ou bem ir em direção ao sentido e ao imaginário, ou bem ir em direção ao gozo e ao real. [...] A partir daí, o sintoma se torna o nó da questão" (Naveau, 2007: 12).

Essa mesma direção é apontada por Brodsky em seu texto "A solução do sintoma", ao afirmar que "a questão da psicanálise aplicada se entrelaça com a questão do sintoma" (Brodsky, 2003: 19). A partir disso, pode-se pensar no sintoma enquanto um quarto elemento articulado aos outros três já referidos por Brousse. A dimensão do sintoma torna-se fundamental para articular a inserção do nó epistemológico, político e ético colocado em jogo pela psicanálise aplicada.

Em seu texto "Acto y instituición", Laurent (2003) elabora o que ele denomina de "matema" (Laurent, 2003: 49) do trabalho do psicanalista em instituições. Trata-se de colocar em estrita equivalência o S1 com o sintoma (S), posicionamento que produz como efeito, numa perspectiva mais ampla, a definição de uma política atual para a psicanálise, que poderíamos denominar de política do sintoma.

 

 

Esse matema subverte a forma habitual de considerar o S1, na vertente das regras e regulamentos. Ao invés disso, Laurent propõe situá-lo enquanto sintoma. A partir daí, torna-se possível pensar a instituição enquanto um texto das regras que o sujeito desorganiza pela via do sintoma. Isto implica que o analista saiba julgar o momento oportuno de esquecer esse texto de regras instituído () para voltar-se para o texto do sujeito.

Ainda segundo este autor (Laurent, 2000), é importante traçar uma distinção entre o orientar-se pelas regras da instituição e o "saber fazer com" essas regras. No primeiro caso, o resultado seria o relativismo conformista, com a subsequente anulação da dimensão ética da clínica. No segundo caso, seria possível situar a ética da psicanálise articulada a uma pragmática do ato psicanalítico: "saber fazer com" o gozo colocado em jogo pelas regras, levando em conta o fato de que "entre as linhas da regra a pulsão se satisfaz. Esta hipótese se chama teoria do supereu" (Laurent, 2000: 85; tradução dos autores5).

A teoria do supereu implica que o analista considere o segundo ponto de ancoragem da psicanálise aplicada, que situa o Outro enquanto barrado. Trata-se, portanto, de descompletar e tornar inconsistentes as figuras do supereu institucional e da demanda. Para tanto, cabe ao analista considerar os regulamentos que regem toda instituição, mas sustentar o seu ato para além deles.

As consequências da matemização proposta por Laurent são amplas: de ordenador-mestre das identificações segregativas, típicas das comunidades sintomáticas de gozo, o S1 passa a funcionar como ponto singular de ancoragem para o gozo do sujeito, diluindo a consistência das identificações coletivas às quais ele está fixado. Trata-se, portanto, de tomar o sintoma como uma invenção singular do sujeito, a qual cabe ao analista sancionar e valorizar.

Pode-se afirmar, portanto, que a psicanálise aplicada é a colocação em ato de uma "eleição do sintoma diante da lógica das instituições ao serviço do mestre moderno" (Brousse, 2003: 38; tradução dos autores6). Sem dúvida, isto constituiria uma apropriada resposta dos psicanalistas, confrontados com os impasses das novas demandas do mundo contemporâneo.

Para finalizar, retomando Laurent (2000), "há que formar analistas que possam dedicar-se a este objetivo, precisamente, não o de oferecer a cura analítica para todos, mas sim poder situar-se em um lugar de um uso possível para todos" (Laurent, 2000: 58; tradução dos autores7). Pode-se concluir, portanto, que a política colocada em jogo pelo "nó da psicanálise aplicada" implica em uma grande responsabilidade, tanto por parte das instituições psicanalíticas, quanto por parte dos psicanalistas que as integram.

 

Referências

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Notas

1 "la última enseñanza de Lacan, tal como lo podemos percibir y utilizar en nuestra orientación actual, profundiza la fosa que separa de la psicoterapia- y, al mismo tiempo, borra, o al menos tiende a borrar, la diferencia entre el psicoanálisis puro y el aplicado a la terapéutica. Desde la perspectiva del psicoanálisis fuera de sentido, la diferencia entre psicoanálisis puro y aplicado a la terapéutica resulta inesencial".

2 "la investidura libidinal de la articulación significante en el cuerpo".

3 A expressão "ofensiva reguladora" vem sendo usada pelos psicanalistas para se referirem aos excessos decorrentes do avanço disciplinar do cientificismo no campo da saúde, que hoje se encontra sob pressão de normas reguladoras cada vez mais rígidas. Levado ao extremo em alguns países europeus, esse processo de regulamentação generalizada anula a atmosfera democrática do debate científico, tornando-o refém do poder estatal.

4 "Podríamos decir que el psicoanálisis aplicado es el nombre dado a la tentativa de inserción del nudo político, epistemológico y ético del psicoanálisis como discurso, es decir como tratamiento inédito del goce en el campo de otros discursos".

5 "Entre las líneas de la regla se satisface la pulsión. Esta hipótesis se llama teoría del superyó".

6 "El psicoanálisis aplicado es la elección del síntoma ante la lógica de las instituciones al servicio del amo moderno".

7 "Hay que formar analistas que puedan dedicarse a este objetivo; precisamente, no ofrecer la cura analítica para todos, sino poder instalarse en un lugar de un uso posible para todos".

 

 

Recebido em 15 de outubro de 2009
Aceito para publicação em 29 de outubro de 2010

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