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Psicologia Clínica

Print version ISSN 0103-5665On-line version ISSN 1980-5438

Psicol. clin. vol.24 no.1 Rio de Janeiro  2012

 

SEÇÃO TEMÁTICA

 

A sexualidade adolescente a partir de percepções de formuladores de políticas públicas: refletindo o ideário dos adolescentes sujeitos de direitos

 

The adolescent sexuality from the perspective of policymakers: reflecting the ideology of adolescents as subjects of rights

 

 

Vanessa Leite

Instituto de Medicina Social/CLAM-IMS/LIDIS, UERJ, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: vleite@ims.uerj.br

 

 


RESUMO

Este artigo tem como objetivo debater a possibilidade de afirmação da sexualidade como um direito dos adolescentes, explorando como diferentes perspectivas em relação à sexualidade adolescente se articulam no discurso e atuação de atores do campo de garantia de direitos de crianças e adolescentes. A construção do ideário dos direitos sexuais e do paradigma das crianças e adolescentes como sujeitos de direitos, trazido pela mudança no marco legal brasileiro com a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), serve de base para um debate acerca da possibilidade de os adolescentes serem titulares de direitos sexuais. O trabalho se propõe contribuir para uma reflexão mais geral sobre o quanto a sexualidade adolescente coloca em xeque tanto o ideário dos adolescentes sujeitos de direitos como o processo de universalização dos chamados direitos sexuais.

Palavras-chave: sexualidade; adolescência; direitos sexuais.


ABSTRACT

This article aims to discuss the possibility of sexuality affirmation as an adolescents' right, exploring the way by which different perspectives towards adolescent sexuality articulate themselves in the discourse and acting of the actors involved in the assurance field of children and adolescents. The construction of the sexual rights ideology and the paradigm of children and adolescents as subjects of rights, brought by the shift in the Brazilian legal landmark with the promulgation of the Child and Adolescent Statute (ECA) serve as a basis for a debate concerning the possibility of adolescents being holders of sexual rights. The work intends to contribute to a more general reflection about how much adolescent sexuality calls into question both the ideology of adolescents as subjects of rights and the universalism process of the so-called sexual rights.

Keywords: sexuality; adolescence; sexual rights.


 

 

Introdução

Este artigo se propõe apresentar algumas reflexões que desenvolvi em uma pesquisa que teve como objetivo identificar as percepções e representações de Conselheiros de Direitos da Criança e do Adolescente1 sobre a possibilidade de afirmação da sexualidade como um direito dos adolescentes (Leite, 2009). Realizei entrevistas envolvendo conselheiros de direitos do Município e do Estado do Rio de Janeiro e do Conselho Nacional, tanto representantes governamentais quanto não governamentais.

O trabalho buscou explorar como diferentes perspectivas em relação à sexualidade adolescente se articulam no discurso e atuação desses atores do campo de garantia dos direitos das crianças e adolescente2. Optei por focar a pesquisa nas percepções dos conselheiros, dada sua importância na formulação e controle das políticas públicas destinadas aos adolescentes. Também o fiz por saber que encontraria como conselheiros pessoas que tinham uma trajetória extensa na ação junto a adolescentes. O trabalho discutiu a emergência de novos direitos e de novos sujeitos de direitos no cenário político dos direitos humanos.

A concepção de que existe uma fase definida do desenvolvimento humano demarcada por aspectos biofisiológicos, psicológicos e sociais, correspondente ao que atualmente se designa adolescência, é uma construção histórica e social que atinge sua maturidade durante o século XX. Assim, o conceito de adolescência é um "constructo historicamente datado e, na civilização ocidental moderna, corresponde ao período de passagem da infância à idade adulta, que foi sendo expandido com o desenvolvimento da urbanização e com o aprofundamento das relações econômicas de mercado" (Pirotta & Pirotta, 2005, p. 75).

Utilizarei ao longo do texto o termo adolescentes, porque dialoguei na pesquisa com o campo de garantia de direitos de crianças e adolescentes, que se organiza a partir da definição legal, proposta pelo Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA. Contudo, há uma larga discussão acerca das concepções de "adolescência" e "juventude" que mereceriam aprofundamento que não poderei fazer nesse momento. De toda forma, os dois termos habitam trabalhos ligados a diferentes campos do conhecimento que operam com esses conceitos para se referir à parcela da população que vive um processo de entrada na vida adulta. Aproximo-me da perspectiva de que a adolescência não configura um fenômeno homogêneo, o que leva a considerar diferentes adolescências, pautadas por processos sociais distintos e atravessadas por diferentes marcadores sociais de diferença como classe social, gênero e raça.

A construção do ideário dos direitos sexuais no espaço político dos direitos humanos e do paradigma das crianças e adolescentes como sujeitos de direitos, trazido pela mudança no marco legal brasileiro com a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente, serviu de base para um debate acerca da possibilidade de os adolescentes serem titulares de direitos sexuais, a partir das percepções dos conselheiros entrevistados.

De maneira geral, o trabalho pretendeu contribuir para a discussão do processo de construção das crianças e adolescentes como sujeitos de direitos no contexto em que a sexualidade começa a ser considerada como campo de exercício de direitos, ou seja, no momento em que emergem os direitos sexuais. Assim, o trabalho se propôs iniciar uma reflexão sobre o quanto a sexualidade adolescente coloca em xeque tanto o ideário dos adolescentes sujeitos de direitos como o processo de universalização dos chamados direitos sexuais.

 

Crianças e adolescentes: da "situação irregular" a sujeitos de direitos

A sociedade brasileira viveu um processo recente de mudança no marco legal como reflexo da trajetória dos direitos humanos no contexto internacional. A Constituição de 1988 teve como uma de suas marcas o reconhecimento de muitos direitos de cidadania. É importante frisar que todo o processo histórico de elaboração da Constituição estava impregnado por uma ambiência de efetivação internacional de direitos humanos e reconstituição de sociedades democráticas. O discurso dos direitos humanos foi fundamental para a afirmação do campo de garantia dos direitos das crianças e adolescentes, pois sua conformação se deu a partir do impacto de um ideário dos direitos humanos, que se fortalecia internacionalmente, no que poderíamos denominar um "campo da menoridade" no Brasil.

A mudança do paradigma em que se baseava o atendimento à infância pobre no país, fazendo com que os menores se tornassem crianças e adolescentes sujeitos de direitos, é fruto da emergência no espaço político dos direitos humanos de "novos sujeitos de direitos". No cenário sociopolítico das relações internacionais, um aspecto fundamental diz respeito ao destaque dado, a partir da Segunda Conferência Internacional de Direitos Humanos em 1993, realizada em Viena, não mais aos direitos de indivíduos, mas de sujeitos específicos. Processo definido por Bobbio (1992) como de especificação dos direitos humanos. O texto final da Conferência de Viena se refere a sujeitos compreendidos como minoritários, seja pelo sexo, idade, raça ou religião, orientando definitivamente a tendência de os tratados, regimentos, leis nacionais e internacionais passarem a se dirigir a grupos de sujeitos cada vez mais específicos.

Na efervescência do processo de democratização da sociedade brasileira, construiu-se uma grande aliança de setores da sociedade civil e política em torno da problemática das crianças e adolescentes no Brasil. Articulava-se o Movimento de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente, que contou com o envolvimento de diferentes atores sociais. Essa grande frente foi se conformando como um movimento que construiu estratégias de sensibilização da opinião pública, denunciando toda sorte de violação de direitos da população infanto-juvenil pobre no país. Essa mobilização se fortaleceu no período constituinte e teve seu primeiro êxito ao conquistar o reconhecimento dos direitos sociais básicos não mais dos menores, mas de todas as crianças e adolescentes brasileiros, independente de classe social ou raça, no texto constitucional de 1988, através dos artigos 227 e 228. A regulamentação destes se efetivou na elaboração do ECA, aprovado pela Lei n° 8.069, de 13 de julho de 1990. O Estatuto superou legalmente o desgastado modelo da doutrina da "situação irregular", substituindo-o pelo paradigma da "proteção integral", abrangendo todas as crianças e adolescentes.

Com a instituição do paradigma da proteção integral, crianças e adolescentes passaram a ser considerados sujeitos de direitos, em condição peculiar de desenvolvimento, que devem ser prioridade absoluta da família, da sociedade e do Estado. O Estatuto, ao forjar a concepção da criança e do adolescente como sujeito de direitos, se coaduna a um movimento global de afirmação dos direitos humanos como direitos de cidadania. Está ligado a um projeto de sociedade calcado na garantia dos direitos humanos e demanda a construção de uma nova relação do mundo adulto com a infância e adolescência, já que nossa sociedade foi historicamente autoritária e tutelar com essas categorias sociais. Está colocado o desafio de reflexão acerca dos valores e concepções construídos historicamente em relação às crianças e adolescentes e que se traduzem em políticas e programas de atendimento no país.

No contato com os conselheiros de direitos entrevistados, pude conversar com alguns deles sobre como viam esse processo de construção de uma nova forma de olhar e lidar com as crianças e adolescentes que a mudança no marco legal impôs a todos os atores envolvidos com a garantia de seus direitos. Pois, como Costa propôs, "a enorme mudança de paradigma incorporada ao plano jurídico-legal aponta que o sistema de atendimento, ou seja, o aparato institucional destinado a operar as novas regras, a pôr em prática os novos conceitos, deverá passar por um amplo, corajoso e profundo processo de reordenamento institucional" (Costa, 2006, p. 46).

No discurso dos entrevistados encontrei o entendimento de que, de alguma forma, a sociedade não rompeu com uma visão das crianças e adolescentes como objetos dos interesses e desmandos dos adultos. Persiste certo "ranço menorista", baseado na lógica da criança coitada, ou da criança perigosa, vítima ou algoz, não sujeito de direitos. No discurso de todos, havia um tom de que "estamos avançando" e de que há muito a ser feito "do escrito para o exercício prático". Aparecia também uma crítica de que nossa sociedade se mantém em uma postura adultocêntrica, e nesse contexto muito há por se fazer na perspectiva de construção de um entendimento das crianças e adolescentes como sujeitos autônomos.

Frente a isso, quis saber o que meus entrevistados pensavam acerca da incorporação dos novos paradigmas pelo campo de garantia de direitos de crianças e adolescentes: se a ideia de incorporação do paradigma de sujeitos de direitos se efetivou, ou ainda se era mantida certa relação de tutela, como era visível em outros setores. Ao que obtive um retorno de que também para aqueles comprometidos com a garantia dos direitos de crianças e adolescentes o menor ainda existe. Foi-me apresentada uma leitura de que mesmo aqueles que atuam na garantia de direitos dos adolescentes, na medida em que ainda não conseguem legitimar esses sujeitos, negando sua fala, negando espaço, também não lhes está assegurando um status de sujeitos.

Segundo uma imagem trazida por uma das entrevistadas, ainda há, mesmo entre os educadores, uma "duvidazinha" se o adolescente é realmente capaz. Os adolescentes são tidos como "os vacilões. Existe ainda uma dúvida se realmente se pode acreditar neles, apostar que não vão vacilar". A percepção dos adolescentes como "vacilões" me acompanhou e se tornou base para um conjunto de reflexões, pois essas concepções se refletem nas políticas, programas e projetos desenvolvidos. Inclusive reflexões ligadas à ideia de proteção integral, que é outra premissa do novo marco legal. Pois, de que proteção se está falando no campo de garantia de direitos de crianças e adolescentes? Do cuidado que estimula o desenvolvimento do outro, ou do controle das ações do outro, no qual não confiamos muito? Em nome da necessidade de proteção, muito controle tem se produzido e se generalizado como legítimo.

Tais comportamentos reafirmam que, apesar da incorporação no campo do discurso do direito, ainda está distante a afirmação dos adolescentes como sujeitos. Segundo Pirotta e Pirotta (2005), o processo histórico que culminou com o advento do ECA demonstrou que a proteção das crianças e dos adolescentes passa pela defesa de seus interesses jurídicos próprios e pela atribuição de direitos que compensem sua histórica situação de inferioridade perante os adultos. Pode-se dizer, portanto, que a "proteção está intimamente ligada ao 'empoderamento' das crianças e dos adolescentes, atribuindo-lhes direitos e garantias e evitando-se a instituição de restrições que, sob, a justificativa de protegê-los de sua própria incapacidade, reiteram a subalternidade atribuída ao grupo" (Pirotta & Pirotta, 2005, p. 85).

É sabido que nos processos sociais a transição entre o velho e o novo frequentemente não se dá de maneira automática e tranquila. E, ao que parece, o campo de garantia de direitos de crianças e adolescentes resiste a mudanças desta ordem. Contudo, para que um novo paradigma se afirme, vigore de modo pleno, é necessário que se enfrentem não só as reações daqueles que defendem explicitamente o velho, mas também o próprio velho, que se mantém dentro do novo que se tenta construir. Como propõe Schuch (2006), a promulgação dos direitos da criança não se fez através de um consenso entre visões de mundo e perspectivas sobre a administração dessa população. Ao contrário, envolveu disputas acerca do sentido desses direitos e da forma de garanti-los.

É importante ressaltar que tais lutas entre posicionamentos políticos e filosóficos distintos não se encerram no promulgar das declarações, normas e leis. O processo de implementação das leis torna-se, desta forma, "uma brecha, na qual é possível seguir refletindo" (Schuch, 2006, p. 60). Ao que parece, no que tange aos direitos das crianças e adolescentes, vivemos um processo rico, mas complexo, de transição. É nesse contexto institucional e político que temos que refletir acerca da possibilidade de afirmação da sexualidade como arena de exercício de direitos dos adolescentes.

 

Sexualidade adolescente e direitos sexuais

Busco contribuir para uma reflexão acerca da emergência no espaço político dos direitos humanos de novos direitos e de novos sujeitos de direitos, buscando articular direitos sexuais e adolescentes. Debater a construção do ideário dos direitos sexuais é acompanhar um processo recente, ainda em construção e que envolve um conjunto heterogêneo de atores. Corrêa (2004) afirma que a linguagem dos direitos sexuais e reprodutivos ganhou legitimidade no contexto de luta pela garantia dos direitos de cidadania das mulheres, numa perspectiva de autodeterminação de seus corpos e relações. No plano internacional, apenas na Conferência Mundial sobre População do Cairo, em 1994, a sexualidade apareceu como algo positivo, sem estar ligada necessariamente à violência. O Plano de Ação do Cairo afirmou os direitos reprodutivos como categoria no interior dos direitos humanos, possibilitando a construção da ideia de direitos sexuais, que permeou as discussões na IV Conferência Mundial da Mulher em 1995 (Beijing).

O conceito de direitos sexuais só começou a ser forjado na década de noventa do século passado, pelos movimentos de gays e lésbicas europeus e norte-americanos e passou também a ser assumido por setores do movimento feminista. O conceito de direitos sexuais foi forjado na perspectiva de descolar a sexualidade da reprodução e da patologia. Ele dissemina a ideia da sexualidade como algo positivo em si mesmo, um direito humano, não necessariamente ligado à violência, ao casamento ou à reprodução. Estrutura-se, assim, como um dispositivo político no campo dos direitos humanos.

Contudo, é de fundamental importância a reflexão desenvolvida por diferentes autores do processo de negativação que marca a trajetória dos direitos sexuais. Como afirma Petchesky (1999, p. 26), as campanhas em favor dos direitos humanos das mulheres receberam em geral maior atenção quando "enfatizaram os piores horrores a que estas estavam submetidas. Tais campanhas capitalizaram a imagem das mulheres como vítimas. Um problema é que essa construção negativa dos direitos sexuais permeia o discurso geral sobre os direitos humanos". Historicamente, a violação dos direitos humanos sempre recebeu mais atenção. Parece-me que esse impasse está na própria história de afirmação dos direitos sexuais como direitos humanos nas sociedades modernas. Esse debate em torno da violação está entre os desafios colocados para aqueles que pretendem contribuir com uma delimitação mais clara dos conteúdos dos direitos sexuais. Se o campo permanecer fixado em uma ideia de sexualidade ligada ao abuso, violência e coerção, dificilmente será possível a elaboração de legislações, políticas públicas e programas comprometidos com uma agenda positiva dos direitos sexuais como direitos humanos.

Postulo que, ao ganhar expressão no campo dos direitos humanos, a ideia de direitos sexuais, construída a partir das lutas feministas e LGBT, abre espaço para que novos sujeitos passem também a ser titulares desses direitos. Os direitos sexuais podem se generalizar, passando a ser não mais direitos de alguns, mas de todos. Proponho discutir como os direitos sexuais, nessa perspectiva positiva, podem compor a agenda de direitos humanos fundamentais dos adolescentes e jovens. Contudo, não podemos perder de vista que os direitos sexuais são "um produto em construção" e que enfrentam dificuldades políticas, sociais e culturais para seu efetivo reconhecimento.

A discussão acerca da possibilidade de afirmação da sexualidade como um direito dos adolescentes pode desvelar algumas das mais complicadas dificuldades dessa construção. Os adolescentes em nossa sociedade são sujeitos de direitos? Seriam os adolescentes, assim, sujeitos de direitos sexuais? A ideia de exercício da sexualidade como direito baseia-se em princípios que podem moldar uma nova perspectiva de atuação junto a esse público, focada no prazer, na autonomia, na possibilidade de liberdade, de exercício de direitos e, por isso também, em um novo patamar de cidadania desses sujeitos.

Na interlocução acerca do exercício da sexualidade adolescente, busquei construir, a partir das percepções dos entrevistados, um certo diagnóstico de como o tema se apresenta ou ainda as dificuldades para tratá-lo, nos variados espaços do campo, especialmente nos programas e projetos das organizações não-governamentais e no espaço de discussão e formulação dos Conselhos. Ao conversar com os entrevistados sobre a abordagem do tema pelas instituições, onde a ação junto aos adolescentes concretamente se efetiva, pude dialogar sobre algumas dimensões do exercício da sexualidade: homossexualidade e travestilidade, gravidez, a sexualidade em situação de abrigamento ou internação para cumprimento de medidas socioeducativas bem como sobre as formas a partir das quais as hierarquias de gênero produzem formas diferenciadas do trato desses temas para meninas e meninos.

Todos os interlocutores afirmaram que a grande maioria das instituições não trata formalmente o tema da sexualidade com os adolescentes, de certa maneira negando essa dimensão da vida deles. Quando elas o fazem, é numa perspectiva de prevenção da gravidez e das doenças sexualmente transmissíveis, ou ainda tendo como foco o enfrentamento da violência sexual. Ouvi de mais de um entrevistado que os adolescentes são tratados como "assexuados". Não há uma perspectiva de articular a dimensão sexual a outras na vida dos adolescentes, e essa postura estaria ligada a uma dificuldade dos profissionais em lidarem com o tema. A inabilidade destes, relatada pelos interlocutores, não seria apenas técnica, mas fundamentalmente ética, porque eles estariam imbuídos de preconceitos.

As instituições, em sua grande maioria, quando confrontadas com o exercício da sexualidade adolescente, remetem-se diretamente à discussão da prevenção das DST/AIDS e à gravidez, mantendo a meu ver, em última instância, uma postura de controle repressivo sobre os adolescentes, sem uma efetiva vinculação com a garantia de seus direitos. Essa perspectiva de controle repressivo sobre os corpos incidiria de forma diferente em relação a meninos e meninas, pois as convenções de gênero aparecem para demarcar uma forma diferenciada de lidar com o tema. Mais de um interlocutor apontou que, em relação às meninas, esse controle está mais explícito, em função de a gravidez ser tratada como um "problema de meninas". Essa tradicional vinculação entre sexualidade e reprodução faz com que as meninas sejam alvo maior de preocupações, pois seriam elas as responsáveis pelo (malfadado) "problema da gravidez precoce3".

Se o "problema" das meninas é que elas engravidam, o "problema dos meninos" seria a construção de uma masculinidade em oposição a uma possível homossexualidade. Assim, a forte perspectiva de controle no exercício da sexualidade das meninas, com o intuito de evitar uma gravidez, não emerge como tão pertinente em relação aos meninos, como se eles não precisassem ser educados sexualmente, exceto se forem gays ou travestis. Ficou claro no contato com os interlocutores que a discussão sobre homossexualidade, travestilidade e transexualidade é a que mais põe em xeque o discurso dos direitos.

Quando o tema foi diversidade sexual e de gênero, ficou mais evidente a dificuldade da maioria dos entrevistados em lidar com os adolescentes como sujeitos, e eles claramente assumiram "preconceitos". Os entrevistados mais imbuídos do entendimento da sexualidade como um direito fizeram uma leitura de que o campo é extremamente preconceituoso, "que existem instituições que agem com forte homofobia, da mesma forma que a maioria da sociedade age". Uma das entrevistadas ressaltou que os adolescentes "sofrem muita violência institucional com a vivência da homossexualidade".

O posicionamento de outros deixou claro que o maior "problema" são os travestis e transexuais, pois estes incomodam, porque rompem com uma certa regra do silêncio. Rompem com a lógica de que "você pode até fazer, mas não pode expressar". A "visibilidade" traz à tona o incômodo que, não assumido pela instituição, volta-se contra o adolescente que ousa revelá-lo. Um dos entrevistados, ao relatar a experiência de sua instituição, diz que, se não houver um acordo (ou seja, adesão às roupas e comportamento esperado do gênero a ele atribuído), o adolescente não poderá ser "protegido da violência dos outros", ele que "será o prejudicado".

Os entrevistados permitiram que me defrontasse com um aspecto importante em relação à discussão acerca da orientação sexual e da identidade de gênero dos jovens, pois, como Carrara e Vianna (2004) demonstram, ao discutir o assassinato de homossexuais há uma tendência a culpabilizar as vítimas, uma ideia de que ela foi responsável por seu destino. Não discutimos neste trabalho a violência letal, mas, frente a essa clara afirmação de violência institucional, a reflexão sugerida pelos autores me parece pertinente, visto que o adolescente acaba sendo responsabilizado por possíveis problemas vividos na instituição, efeito da homofobia tanto dos outros adolescentes quanto dos próprios profissionais, aqui encoberta pelo discurso da proteção. Agora, mesmo que "haja acordo" com a instituição, esse adolescente será vitimizado por desrespeito à sua identidade de gênero.

Uma discussão importante trazida por Carrara e Vianna (2004) diz respeito à reflexão sobre a violência sofrida por travestis, que, ao que parece, "trazem mais problemas" às instituições. Para os autores, sujeitos cuja identidade não heterossexual (suposta ou certa) é mais evidente através da exibição ou incorporação de atributos de gênero não-conformes ao sexo designado no nascimento são proporcionalmente mais atingidos por diferentes modalidades de violência e discriminação. "A desestabilização provocada por sua performance de gênero, constantemente associada a um conjunto de estereótipos negativos sobre a homossexualidade em geral, torna as travestis as vítimas preferenciais de violência homofóbica em diferentes contextos" (Carrara & Vianna, 2006, p. 234).

 

Desafios a serem enfrentados na construção de ações voltadas à afirmação dos direitos sexuais dos adolescentes

Um dos desafios éticos emergentes parece ser a questão da autonomia versus tutela. Se, por um lado, os limites da autonomia adolescente são consideravelmente mais largos que a infantil, dada a amplitude do seu próprio estágio de desenvolvimento (inclusive sexual), por outro lado os programas de saúde e educação tendem a reforçar o discurso da irresponsabilidade e desorientação dos adolescentes no que tange à sexualidade, o que justificaria uma postura de tutela por parte dessas políticas. A própria questão da adolescência dentro do campo da saúde pública tem sido abordada a partir da ótica do risco ou da vulnerabilidade, o que também se reflete nos programas e pesquisas dirigidas a este grupo social. Confrontamo-nos com concepções de adolescência "naturalizadoras", determinadas pelo aspecto biológico. É reforçado um entendimento da adolescência a partir da teoria dos instintos e dos hormônios pelo qual a sexualidade adolescente estaria completamente submetida a uma força biológica, que precisa ser "controlada" e frente à qual os adolescentes estariam especialmente vulneráveis.

Partilho da concepção de que a sexualidade é uma experiência complexa que envolve aspectos culturais, sociais, históricos e políticos, além da dimensão biológica e psicológica. Assim, não deve ser entendida como uma mera questão de instintos, impulsos e hormônios. A permanente tensão entre autonomia e tutela, que parece ser inerente à discussão da sexualidade adolescente, coloca em alguma medida em xeque a prerrogativa dos direitos sexuais, pois junto com a afirmação do lugar do/a adolescente como sujeito de direitos emergem questionamentos mais ou menos radicais acerca de sua real capacidade de resposta aos possíveis efeitos desta autonomia.

Ao discutir alguns posicionamentos dos entrevistados sobre a atuação das organizações em que atuam com relação ao tema da sexualidade adolescente, me refiro na maior parte do tempo à ação das organizações da sociedade civil. Contudo, as políticas e programas governamentais que lidam com a sexualidade adolescente em geral também não rompem com a perspectiva de trabalho do tema a partir das doenças ou da gravidez. O tema se encontra fundamentalmente ligado às instituições e profissionais de saúde, dentro de programas que focam na prevenção de DST/AIDS e não trabalham com uma dimensão mais integral de saúde. Além disso, as instituições de saúde e seus programas, quando reconhecem a sexualidade adolescente, tendem a relacioná-la exclusivamente com a heterossexualidade.

Um instrumento para uma afirmação mais positiva do exercício da sexualidade adolescente seria a construção de propostas intersetoriais. Adolescentes e jovens são público para todas as políticas setoriais e, na perspectiva de a sexualidade ser uma dimensão fundamental da vida desses sujeitos, as políticas e programas vinculados a esse tema deveriam ser elaboradas de forma articulada. Entendo que a política de educação precisa assumir o tema da sexualidade como seu, "assumir essa pauta" não apenas como um tema transversal, mas a partir de programas de educação continuada, numa perspectiva de educação em direitos humanos. Nessa perspectiva, um aspecto fundamental na pauta de ações a serem desenvolvidas está a construção de espaços formativos, de processos de educação em sexualidade que envolvam os diferentes profissionais ligados ao trabalho junto a crianças, adolescentes e jovens, em instituições governamentais e não-governamentais.

Outro desafio bastante presente no discurso de meus interlocutores se refere ao que denomino de certa "hierarquia de emergências", porque há tantos problemas a serem resolvidos que sexualidade não é uma prioridade. Segundo alguns deles, enfrenta-se a situação de crianças morrendo de fome, morrendo de dengue, sendo exploradas nas ruas, fumando crack, e a sexualidade não pode ser uma emergência. Uma hierarquização não só das necessidades, mas também dos direitos. Em resposta a essa perspectiva, diferentes autores apontam que os direitos sexuais devem ser entendidos não como um supérfluo, mas como um direito básico que é essencial para reivindicar qualquer outro direito e que deveria compor os processos de construção de um novo patamar de cidadania para diferentes sujeitos.

Como propõem Cornwall e Jolly (2008), a sexualidade tem ramificações em cada uma das dimensões da pobreza e implicações para vários aspectos do desenvolvimento. Além disso, há o entendimento de que os princípios de integralidade, indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos baseiam-se no fato de que as violações de certos direitos afetam os demais, indicando um enfoque da sexualidade inter-relacionada aos direitos à educação, saúde, trabalho entre outros. Nesse sentido, sem o reconhecimento das implicações da sexualidade para tudo aquilo que constitui o desenvolvimento, os esforços para melhorar a vida das pessoas serão menos capazes de fazer uma diferença genuína e duradoura. Também para Armas (2008), os direitos sexuais não são menos importantes do que os direitos à educação, à saúde ou ao trabalho. Mas, segundo o autor, apesar do consenso teórico sobre a integralidade, formuladores de políticas raramente tentam levar em consideração os muitos vínculos reais e práticos entre os direitos sexuais e outros direitos.

Certa postura de vitimização dos adolescentes em relação ao exercício da sexualidade emergiu claramente entre os entrevistados, em função da forte presença do tema do enfrentamento à violência sexual contra crianças e adolescentes no campo, relatada por todos. O contato com o discurso dos conselheiros me possibilitou perceber que a discussão da sexualidade, esse "território pantanoso", nas palavras de um deles, pode se fazer presente desde que se mantenham a criança e o adolescente no lugar da vítima, da que vai ser cuidada, protegida. A sexualidade adolescente não pode aparecer como o território do prazer.

A violação na sexualidade parece atuar como a frágil ponte que possibilita a comunicação entre tendências que têm concepções muito diferentes, por vezes antagônicas, tanto em relação à adolescência quanto à sexualidade. A perspectiva da violação possibilita a construção de alianças e de uma agenda comum, pois é mais difícil rejeitar a discussão da sexualidade quando ela é feita em nome da proteção das pobres crianças violentadas. Contudo, a perspectiva da violação pode também atuar como uma providencial parede de vidro a que todo o campo se submete, um limite concreto e pouco visível, estabelecendo até onde se pode ir ao tema, até onde existe acordo. Na presença da parede, não será preciso construir um mundo em que os adolescentes sejam efetivamente sujeitos e façam claramente suas próprias escolhas, inclusive sexuais, sobretudo se elas não se confundirem com as nossas. Elaborar políticas sob a perspectiva do exercício da sexualidade como um direito dos adolescentes demanda desse campo refletir e enfrentar suas próprias concepções e práticas.

Gostaria de ressaltar um aspecto que apareceu indiretamente nos discursos de alguns entrevistados e que nos leva à reflexão acerca do lugar ocupado pelos adolescentes e jovens. Eles me trouxeram a ideia de que seria a participação e organização dos adolescentes que poderia fazer a grande ruptura nessa relação tutelar que insiste em permanecer. Enquanto os adolescentes forem objetos da política voltada à garantia de seus direitos e não forem os protagonistas desse processo, dificilmente chegarão ao lugar de sujeitos de direitos. Embora os jovens manifestem disposição para atuar socialmente, faltam canais de participação novos, ou seja, sem os vícios das instituições tradicionais. Nessa perspectiva, seria na construção de um lugar ativo, onde realizassem o seu direito de participação, que os adolescentes poderiam se tornar sujeitos e agentes reguladores de sua própria sexualidade.

Postulo que uma ação que se pretenda emancipatória junto a adolescentes e jovens não pode focar nas "ausências", ou seja, nas dimensões que os sujeitos ainda não desenvolveram, nem no "problema". O "empoderamento" dos sujeitos, que possibilita inclusive que tenham um comportamento sexual responsável, passa fundamentalmente pela afirmação de suas competências. É a afirmação da possibilidade de uma vivência autônoma e prazerosa da sexualidade, que poderá efetivamente proteger os adolescentes da violência e das doenças. A meu ver, lidar com os adolescentes como sujeitos de direitos é apostar na construção de uma agenda positiva em relação ao conjunto de aspectos de sua existência, inclusive a sexualidade. Os fatores de risco devem estar na ação educativa, mas não ser sua principal via de expressão. Para que isso se concretize, será necessário que se converta o discurso do direito na prática do direito no cotidiano das políticas, projetos e instituições.

 

Referências

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Recebido em 23 de novembro de 2011
Aceito para publicação em 12 de janeiro de 2012

 

 

Notas

1 Os Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente são órgãos do Poder Executivo formados de forma paritária por representantes do governo e da sociedade civil organizada e têm o papel de formulação e controle de políticas públicas na perspectiva de garantirem a efetivação dos direitos de crianças e adolescentes.
2 Trabalho com a concepção de campo inspirada pela proposta de Bourdieu. O autor define campos como "espaços estruturados de posições (ou de postos) cujas propriedades dependem das posições nestes espaços, podendo ser analisadas independentemente das características de seus ocupantes" (Bordieu, 1983, p. 89). Por campo de garantia dos direitos da criança e do adolescente entendo o conjunto das arenas e dos atores que atuam em nossa sociedade no sentido de desenvolver diferentes ações para ampliar a garantia do conjunto de direitos de que crianças e adolescentes são titulares. Nessa perspectiva, compõem esse campo setores do Executivo, Legislativo e Judiciário envolvidos com a temática da infância e juventude, o conjunto de organizações não-governamentais que desenvolvem ações ligadas a essa categoria social (seja pelo atendimento direto, pela pesquisa ou pelo advocacy) bem como estruturas criadas para efetivar os direitos de crianças e adolescentes, como os Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente, nas esferas nacional, estadual e municipal, e os Conselhos Tutelares.
3 Referindo-se a um artigo de Zuenir Ventura, Heilborn (2008) discute "o mal-estar brasileiro" em torno da gravidez adolescente. Para ela, o autor, ademais como diversos outros articulistas da grande imprensa, caiu numa armadilha que volta e meia se traveste de preocupação com a infância pobre. A armadilha se pauta numa equação reducionista que associa reprodução entre os pobres a "invasão das hordas de criminosos que assolam as grandes metrópoles brasileiras". Acredito que, também neste contexto estudado, esta equação se atualize e dê direção a algumas das práticas institucionais.

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