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Psicologia Clínica

Print version ISSN 0103-5665On-line version ISSN 1980-5438

Psicol. clin. vol.29 no.2 Rio de Janeiro  2017

 

SEÇÃO LIVRE

 

Psicodinamismos da tendência antissocial: um estudo transgeracional

 

Psychodynamisms of antisocial trend: a transgenerational study

 

Psicodinámica de la tendencia antisocial: un estudio de corte generación

 

 

Ana Paula MedeirosI; Manoel Antônio dos SantosII; Valéria BarbieriIII

IFaculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP), São Paulo, Brasil
IIProfessor associado da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP-USP), São Paulo, Brasil
IIIProfessor associado da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP-USP), São Paulo, Brasil

 

 


RESUMO

A partir de uma perspectiva transgeracional é possível identificar a forma como ocorrem a transmissão psíquica e o processo estruturante da organização familiar. A tendência antissocial na criança é manifestada por brigas, agressividade, oposição, mentiras, fugas, entre outros sintomas. Este estudo visou compreender os psicodinamismos familiares envolvidos no surgimento e manutenção da tendência antissocial em uma criança do sexo feminino de cinco anos. Foi realizado um estudo de caso com a participação da mãe, avó e a filha que apresentava sintomas de tendência antissocial. Foram utilizadas entrevista psicológica e técnicas projetivas. Os resultados enfocam a transmissão psíquica que envolve a criança, sua mãe e sua avó materna. Os dados revelam que os sintomas da criança estão intimamente relacionados às angústias, sofrimentos e incertezas dos membros de sua família. Faz-se necessária uma intervenção junto à família, para que o tratamento da criança seja efetivo.

Palavras-chave: transmissão psíquica entre gerações; família; psicanálise; estudo de caso.


ABSTRACT

Based on a cross-generational perspective, the way the mental transmission and the structuring process of the family organization take place can be identified. The antisocial trend in children is manifested through fights, aggressiveness, opposition, lies, flights, among others symptoms. This study aimed to understand the family psychodynamics involved in the emergence and maintenance of the antisocial trend in a female five-year-old child. A case study was developed involving the mother, grandmother and daughter, who had antisocial trend symptoms. The psychological interview and projective techniques were used. The results focus on the mental transmission involving the child, her mother and her maternal grandmother. The data reveals that the child’s symptoms are closely related to the anguish, suffering and uncertainties of the family members. An intervention in the family is needed with a view to the efficacy of the child’s treatment.

Keywords: intergenerational mental transmission; family; psychoanalysis; case study.


RESUMEN

A partir de una perspectiva transgeneracional, se puede identificar la forma como ocurren la trasmisión psíquica y el proceso estructurador de la organización familiar. La tendencia antisocial en el niño se manifiesta por peleas, agresividad, oposición, mentiras, fugas, entre otros síntomas. La finalidad de este estudio fue comprender los psicodinamismos familiares involucrados en el surgimiento y manutención de la tendencia antisocial en una niña de cinco años. Fue desarrollado un estudio de caso con la participación de la madre, abuela y su hija, con síntomas de tendencia antisocial. Fueron utilizadas entrevista psicológica y técnicas proyectivas. Los resultados enfocan la trasmisión psíquica que involucra la niña, su madre y su abuela materna. Los datos indican que los síntomas de la niña están íntimamente relacionados a las angustias, sufrimientos y incertidumbres de los miembros de la familia. Es necesaria una intervención en la familia para que el tratamiento de la niña sea efectivo.

Palabras clave: trasmisión psíquica entre generaciones; familia; psicoanálisis; estudio de caso.


 

 

Introdução

A transmissão psíquica transgeracional corresponde a um processo estruturante da organização familiar, que compreende a herança familiar que ocorre em nível inconsciente, que transita entre os níveis intrapsíquicos e intersubjetivos (Féres-Carneiro, Lisboa, & Magalhães, 2011) e que faz parte da constituição do sujeito desde antes de seu nascimento (Santos, & Ghazzi, 2012). A transmissão ocorre predominantemente em caráter inconsciente e por meio da comunicação não verbal, a partir da repetição de comportamentos e da forma como as pulsões se manifestam (Käes, 2001).

A psicanálise de família também contribuiu para enriquecer esse campo (Sei, & Gomes, 2011; Zanetti, & Gomes, 2012), permitindo compreender como se organizam as redes de comunicação, identificação e fantasias que são produzidas no contexto das relações familiares. Para Käes (2001, 2005), o ego de um indivíduo é formado a partir de outros egos, sendo passado das gerações que o precedem para a geração atual por meio dos processos identificatórios. O que é transmitido corresponde àquilo "que não contém, aquilo que não se retém, aquilo de que não se lembra" (Käes, 1998, p. 9). Pode também ser transmitido aquilo que mantém os vínculos familiares, como os mecanismos de defesa e as identificações (Käes, 1998; Valdanha, Scorsolini-Comin, & Santos, 2013).

Eiguer (1998) tem se destacado por sua relevante produção nessa temática, propondo uma teoria da transmissão psíquica transgeracional que se baseia na ideia de que há um campo de forças psíquicas inconscientes, resultante de um trabalho de sucessivas gerações. Para Eiguer (1985), a família é organizada a partir do conjunto inconsciente da vida familiar, formado por um coletivo de psiquismos individuais, sendo, no entanto, diferente da mera soma dessas partes. Cada integrante torna-se ativo e responsável por sua história, assim como a de seu grupo de pertença. O papel assumido por cada membro na dinâmica familiar influencia os outros envolvidos, uma vez que há circulação de fantasias entre os membros, culminando com a instauração de um espaço simbólico no qual habitam angústias e medos (Figueiras et al., 2007).

Para sistematizar sua teoria, Eiguer (1998) faz uso do conceito de "objeto de transmissão". De acordo com ele, o que se transmite na cadeia intergeracional corresponde a representações de um objeto que são colocadas em um outro por meio da intermediação de um sujeito, sendo que esse indivíduo foi eleito porque já investiu e erotizou o objeto anteriormente. Esse processo é proporcionado pela identificação e deve ocorrer no campo da intersubjetividade (Magalhães, & Féres-Carneiro, 2004).

Nesse sentido, deve-se compreender o conceito de "fantasma", que delimita a ligação entre conteúdos conscientes, pré-conscientes e inconscientes, manifestando-se inicialmente no momento da união do casal parental (Eiguer, 1985). De acordo com Valdanha et al. (2013, p. 74), são esses conteúdos que estão presentes em objetos inconscientes e que serão projetados nos vínculos libidinais de objeto, de maneira que "cada membro da família se relaciona com o outro de acordo com o modelo objetal dessas representações, que são dinâmicas e, portanto, passíveis de transformação no tempo".

Para Gomes (2011), o sintoma da criança muitas vezes expressa a problemática dos pais. Nessa vertente, as dores e aflições infantis que manifestariam a doença da família poderiam estar enraizadas na genealogia familiar (Pratta, & Santos, 2006). Para Eiguer muitas vezes os filhos também adoecem em decorrência de uma confrontação entre o ambiente social e o meio familiar (Passos, 2006). A psicopatologia do transgeracional estaria relacionada ao fato de os filhos vivenciarem como seus os traumas de seus pais ou avós que não puderam ser elaborados pelas gerações que os precederam. O pai passaria ao filho, por meio de uma identificação que é desorganizadora, situações não elaboradas que podem desencadear sintomas (Eiguer, 1997). Eiguer afirma que a ausência do pai e/ou da mãe, a constante mudança dessas figuras ou a dificuldade de delimitar seus papéis podem originar dificuldades nos filhos, resultando em problemas graves como a delinquência. Eiguer defende a ideia de que o indivíduo considerado infrator apresentou dificuldade em construir a sua identidade e/ou tem um sentimento de que foi lesado ou roubado pela família (Passos, 2006).

As considerações desses autores parecem fornecer um enquadre bastante promissor para a compreensão da atuação dos psicodinamismos inconscientes da família na produção transgeracional da psicopatologia infantil, particularmente nos casos de tendência antissocial. Nesse contexto teórico, o presente estudo busca entender como operaria a relação entre o funcionamento familiar e a tendência antissocial, uma vez que a literatura científica reconhece a influência capital da família no desenvolvimento dessa condição.

 

Tendência antissocial: aspectos descritivos e compreensão psicanalítica

Os sintomas que caracterizam a tendência antissocial se referem à presença de brigas ou intimidações em excesso, episódios de roubo, mentiras, crueldade com pessoas ou animais, desobediência grave e contínua, fugas, frequentes ataques de birra, entre outros. Para Winnicott (1958/1999), a tendência antissocial fundamenta-se em uma privação ocorrida no passado da criança, em um momento em que ela já consegue perceber que a falha é ambiental, ou seja, quando apresenta uma diferenciação mínima entre o eu e a realidade. De acordo com o autor, a criança com tendência antissocial perdeu algo de bom que ocorreu em sua vida, e a duração dessa retirada extrapolou o tempo em que ela teria sido capaz de reter a lembrança do objeto e da experiência vivenciada, caracterizando a de-privação. Os comportamentos delinquentes seriam uma tentativa de reencontrar o objeto e a experiência que foram perdidos e de reconquistar a autoconfiança.

Segundo Winnicott (1958/1999), os primeiros sinais da tendência antissocial seriam a avidez e a inibição de apetite: a avidez representa uma procura, pelo bebê, da mãe que foi responsável pela privação e a inibição do apetite demonstra que a criança não consegue receber aquilo que foi oferecido pela mãe, o alimento.

Winnicott (1958/1999) propõe a existência de duas vertentes para a tendência antissocial: o roubo e a destrutividade. A primeira refere-se à situação em que a criança busca a experiência perdida ligada ao seu relacionamento inicial com a mãe e não a encontra, optando por buscar um objeto substituto. Na destrutividade, a criança procura uma estabilidade ambiental que não foi encontrada no lar e que deve suportar a tensão decorrente do seu comportamento impulsivo. É essa estabilidade que define limites e que vai permitir à criança movimentar-se ou excitar-se, pois sem ela há angústia e a criança ou se torna inibida ou atua de modo antissocial para liberar a tensão. A agressividade seria uma estratégia empregada pela criança para buscar limites e contenção por parte das figuras de autoridade.

A tendência antissocial, em sua vertente do roubo, estaria relacionada à ausência da figura materna, o que representaria o sentimento de perda de objeto, de forma que a criança não conta com a disponibilidade da mãe e não tem suas necessidades emocionais atendidas. Na vertente da agressividade, a tendência antissocial estaria relacionada à falta de limites, que deveriam ser impostos por uma figura paterna rigorosa, capaz de conter a criança e de proteger a mãe (Winnicott, 1958/1999). Sem essa proteção e contenção, a criança age de forma livre, mas desprotegida, representando a destrutividade. De acordo com Winnicott, há uma característica positiva nos sintomas da tendência antissocial, pois a criança comporta-se dessa maneira porque tem esperança de que suas necessidades não satisfeitas ainda poderão ser atendidas, de forma que os comportamentos disruptivos refletem uma procura por ajuda.

Com relação ao tratamento para a tendência antissocial, Winnicott (1956/2000) compreende que os sintomas relacionados à problemática poderão ser sanados se a figura materna conseguir reconhecer e atender às necessidades da criança e se for capaz de permitir que ela expresse o seu ódio pela privação sofrida. Já Bordin e Offord (2002) ressaltam a importância de uma intervenção realizada por um longo período e que abranja a criança, a família e a escola, sendo importante investir em um trabalho preventivo, que atente para os primeiros sinais do distúrbio e previna o seu desenvolvimento.

A partir dessas considerações, entende-se que a tendência antissocial se caracteriza como uma temática complexa e que envolve uma profusão de fatores. É importante considerar nesse quadro as relações entre os membros da família para que seja possível compreender os sintomas da criança em sua articulação com os conteúdos transmitidos transgeracionalmente, visto que os estudos apresentados são unânimes ao afirmarem que pais cujos filhos exibem essa sintomatologia também apresentam dificuldades, que, por sua vez, podem estar ligadas a problemas que eles viveram com os próprios pais. Nesse sentido, a teoria da transmissão psíquica transgeracional (Eiguer, 1998) possibilitaria a investigação de conteúdos manifestos e latentes que influenciam as relações da criança antissocial com seus pais e avós, de forma a abranger a discussão a respeito do desenvolvimento da problemática e auxiliar na delimitação de estratégias de cuidado específico.

Diante das considerações apresentadas, a presente investigação tem por objetivo compreender, por meio de estudo de caso, os psicodinamismos familiares envolvidos no surgimento e na manutenção dos sintomas de tendência antissocial na criança, a partir da perspectiva teórica da transmissão psíquica transgeracional.

 

Método

Esta pesquisa insere-se em uma perspectiva qualitativa, que emprega a estratégia metodológica do estudo de caso (Peres, & Santos, 2005), com a utilização de instrumentos de avaliação psicológica, dentre os quais se destacam os procedimentos projetivos. O referencial teórico psicanalítico winnicottiano embasa as análises e interpretações, a partir das recomendações acerca do uso de material clínico na investigação psicanalítica (Safra, 1993) e das considerações gerais e orientações práticas sobre o emprego de estudos de caso na pesquisa (Peres, & Santos, 2005).

Participantes

Participou deste estudo uma família que apresentou queixas referentes a comportamentos relacionados à tendência antissocial da filha de cinco anos de idade. O recrutamento se deu por meio da rede pessoal da pesquisadora mediante divulgação da pesquisa.

A inserção de cada membro da família ocorreu a partir de sua disponibilidade para participar do estudo e do preenchimento dos seguintes critérios de inclusão: ser proveniente de família intacta; ter avós dispostos a participarem da pesquisa; ter nível socioeconômico médio, a fim de não configurar privações concretas reais extremas. Foram critérios de exclusão: (1) em relação à criança e familiares: ter histórico de tentativa de suicídio, de internação psiquiátrica e/ou diagnóstico de Transtorno de Personalidade Antissocial; ter indícios de comprometimento intelectual, verbal ou motor, de modo a inviabilizar a aplicação dos instrumentos; (b) em relação aos avós: não apresentarem quadro psiquiátrico ou demencial.

A família participante é composta por uma criança do sexo feminino, seus pais (Fátima, 38 anos, e Carlos, 44 anos) e avós paterna (Roseli, 60 anos) e materna (Aparecida, 58 anos). O avô paterno é falecido e o avô materno é divorciado da avó e não mantém contato com a família. Neste estudo serão focalizados os resultados da criança, de sua mãe e de sua avó materna.

Instrumentos

Foram utilizados a entrevista psicológica com auxílio de roteiro semiestruturado, realizada com a mãe da criança; Teste das Matrizes Progressivas Coloridas de Raven e Teste de Apercepção Temática Infantil, forma animal (CAT-A), conforme proposto por Bellak e Bellak (1949/1981) com a criança; Teste de Apercepção Temática (TAT), na forma reduzida, composta por 15 cartões para cada participante (1, 2, 3RH, 4, 5, 6MF, 7MF, 9MF, 10, 11, 12RM, 13R, 13HF, 19, e 16, para a mãe e avó), conforme modelo de aplicação proposto por Brelet-Foulard e Chabert (2005); Bateria de Grafismo de Hammer, segundo a proposição de Buck (2003), Machover (1967) e Corman (1979), aplicada em todos os participantes.

A despeito da utilização de diversas técnicas, serão exploradas neste estudo as análises provenientes da entrevista, do CAT-A e do TAT, por estes terem sido os instrumentos que forneceram dados que melhor possibilitaram a compreensão da tendência antissocial em suas relações com a dinâmica de funcionamento da família investigada.

Procedimentos

A mãe da criança avaliada contatou a psicóloga após ter tomado conhecimento da pesquisa. Foi agendada uma sessão de entrevista a fim de verificar se a família se enquadrava no perfil estabelecido pelos critérios de inclusão/exclusão. Com a confirmação da adequação, foram agendadas as sessões. Foram realizadas duas sessões com a criança, sendo que na primeira foi aplicado o Teste das Matrizes Coloridas de Raven e a Bateria de Grafismo de Hammer e, na segunda, o CAT-A. Em seguida, foram agendadas as sessões com a mãe: uma para aplicação da Bateria de Grafismo de Hammer e outra para a aplicação do TAT. Com a avó materna, a pedido dela, foi realizada apenas uma sessão, em que foram aplicadas a Bateria de Grafismo de Hammer e o TAT. Todas as sessões foram audiogravadas em MP3, mediante consentimento prévio dos participantes e, posteriormente, transcritas pela pesquisadora.

Análise dos dados

A análise da entrevista foi realizada por meio do método da livre inspeção do material (Trinca, 1984). Buscou-se uma delimitação precisa da queixa que a mãe apresentava em relação à criança, o conhecimento dos principais aspectos do desenvolvimento da criança e da dinâmica familiar. O Teste das Matrizes Progressivas Coloridas de Raven foi analisado a partir dos critérios definidos por Raven, Raven e Court (1988). A análise dos dados obtidos com o TAT também foi realizada pelo método da livre inspeção do material (Trinca, 1984), mas considerando os conteúdos manifestos e latentes de cada cartão conforme definidos por Brelet-Fourlard e Chabert (2005). A análise do CAT-A foi desenvolvida de forma análoga à do TAT, por meio de uma interpretação cartão a cartão, a fim de compreender os conteúdos manifestos e latentes presentes em cada uma das estórias produzidas pela criança, conforme recomendam Boekholt (2000), Chabert (1983) e Haworth (1966). A análise dos testes gráficos projetivos foi norteada pela lista de conceitos interpretativos sugeridos por Buck (2003).

Aspectos éticos

O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa envolvendo Seres Humanos da instituição à qual a pesquisadora está vinculada. Todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Os pais, responsáveis pela criança, autorizaram sua participação na pesquisa. Os nomes próprios utilizados neste estudo são todos fictícios.

 

Resultados

Apresentação do caso

Mariana tinha cinco anos quando foi iniciado o processo de avaliação, completando seis ao longo do estudo. A principal queixa em relação à criança refere-se ao fato de ser agitada e agressiva, o que gera problemas de relacionamento com os colegas e familiares. Os pais notam que a filha é agitada desde quando era bebê, mas as dificuldades se intensificaram a partir dos quatro anos de idade. Mariana mora com seus pais, Carlos e Fátima, e com os dois irmãos: Pedro, de 10 anos, e Priscila, de 20 anos.

Os avós maternos de Mariana são divorciados há 12 anos. Desde então, o pai de Fátima cortou os laços com a família e se afastou, de modo que não conheceu a neta. Assim, apenas a avó materna, Aparecida, participou da pesquisa. Aparecida tem 58 anos, quatro filhos, sendo três mulheres e um homem. Com relação aos avós paternos da criança, o pai de Carlos faleceu há 12 anos. Assim, Mariana também não o conheceu. Roseli, avó paterna, tem 60 anos, dois filhos, e mora atualmente com o filho mais novo, de 19 anos, e um novo companheiro, com quem convive há seis anos, mas com histórico de várias separações entremeadas com reconciliações.

Análise da entrevista inicial

No processo da entrevista ficou marcada a recusa do pai, que não quis participar do estudo mesmo estando presente na residência onde os dados foram coletados. Há indícios de que a educação e os cuidados da criança são preocupações quase que exclusivas de Fátima, embora ela busque justificar o fato ao dizer que o pai não é próximo da filha por trabalhar à noite. O fato de Fátima não trabalhar fora de casa favoreceu que ela tenha desenvolvido um vínculo estreito com a filha e agora tema o seu crescimento, como se manter a filha pequena e dependente fosse uma forma de preservar sua companhia e os papéis e atribuições que ela tem atualmente. Há evidências de que a relação entre mãe e filha é simbiótica e conflituosa.

Fátima revela que Mariana tem o hábito de dormir de madrugada, pois gosta de assistir a programas na televisão, sobretudo filmes de terror, que são exibidos muito tarde. Além disso, a criança apresenta recusa alimentar, refluxo gastroesofágico e desenvolveu grave alergia ao leite de vaca na primeira infância. Apesar da aparente preocupação de Fátima com a filha mais nova, ela não descreve como queixas essas dificuldades, o que sugere que a mãe não consegue perceber sintomas importantes da filha. Assim, é possível notar a presença de ambivalência na relação mãe-filha, uma vez que parece haver um padrão de relacionamento simbiótico por um lado, mas, por outro, a criança vivencia certo abandono e negligência de cuidados.

Na análise da interação familiar é preciso destacar a falta de limites em relação ao comportamento da criança. Ela encontra espaço para se manifestar de maneira agressiva, o que também contribui para entender outras atitudes, como o fato de ela ver filmes de terror durante a madrugada. Essas informações permitem inferir que a criança está disposta a testar os perigos do mundo, reais e fantasiosos. Com isso, a ausência de enquadre e de holding pode fazer com que Mariana apresente excedentes de ansiedade, sinalizada pela agitação. A insônia da menina parece ser também uma maneira de esperar pela figura paterna, que está ausente no período noturno – assim como evita o envolvimento emocional com ela – representando uma expectativa inconsciente da criança de criar/encontrar o pai e de ser encontrada por ele.

Fátima relata que não autoriza que a filha execute algumas tarefas sozinha, como tomar banho, de forma que a mãe parece barrar os movimentos de busca de independência da criança em vários aspectos. Fátima busca manter a filha como um bebê, o que impede a aquisição da autonomia da criança, ao não lhe transmitir a necessária confiança, colocando obstáculos em seu desenvolvimento. Além disso, falta à menina a compreensão da existência de uma hierarquia entre ela e os adultos, de maneira que fica sem referências do que pode ou não fazer. Entende-se que as atitudes da mãe deixam Mariana confusa e angustiada, o que faz com que ela necessite se comportar de forma agressiva para que seja percebida e tenha suas necessidades atendidas.

É preciso buscar entender as dificuldades alimentares que a criança apresenta desde seu nascimento: refluxo, alergia ao leite e recusa alimentar. Pode-se notar que a criança apresenta dificuldades emocionais desde o início da vida, sendo que pode ter havido prejuízos na interiorização da mãe e daquilo que é oferecido por ela, simbolicamente representado pelo leite. Essa dificuldade de introjetar a figura materna leva a um prejuízo no processo de simbolização e a criança não consegue desenvolver-se de modo autônomo.

É importante destacar que a emergência dos sintomas de Mariana pode ser tomada como indicador positivo, pois representa um movimento de busca da criança por algo que poderá ajudá-la a superar seus impasses desenvolvimentais. Além disso, a sintomatologia antissocial parece refletir em parte a dinâmica familiar, e pode representar conflitos resultantes de fenômenos intergeracionais ou transgeracionais (Pichon-Rivière, 1980/1994).

Mariana, a filha

A fim de ilustrar os elementos obtidos por meio da avaliação da criança apresenta-se a estória elaborada por ela para a primeira prancha do CAT-A, cujo título atribuído foi: "A mamãe":

A galinha e os pintinhos. Eles tavam lá no pátio, quando a mãe deles chegaram e vieram... para almoçar. Eles tavam comendo frango. [E eles estavam gostando?] Estavam. E a mamãe que fez. A mesa era feita de madeira. De palha e com os amigos. Um estava almoçando. Bateu a colher e a mesa caiu. Ele estava com tanta fome que deixou a mesa cair e quebrou. Depois, a mamãe escreveu a receita bem no quarto do tio Margarido. E acharam que ela fez a comida e colocaram a mesa de volta e comeram e foram feliz para sempre.

Essa estória sugere que Mariana sofreu uma privação ("tanta fome") que suscitou sua voracidade, o que faz com que ela destrua involuntariamente o objeto. O holding oferecido pela mãe é sentido como frágil (mesa de palha) e a tolerância à agressividade é pequena, de modo que não há continência que possibilite sua elaboração. A mãe delega sua função de gratificação e sustentação a outro ("tio Margarido"), porém ainda assim as crianças são responsáveis por oferecer holding a si mesmas, mesmo que pareça que a mãe o faz (acharam que a mãe fez a comida, mas foram eles que colocaram a mesa de volta). O final da estória ("foram felizes para sempre") sugere uma defesa maníaca contra o precário holding materno, embora também indique uma tentativa de reparação que busca eliminar os prejuízos que a voracidade causou.

Compreende-se que a criança experimenta sentimentos de insegurança e dependência em relação ao outro, advindos da maneira como ela vivencia a relação com a mãe: não confia que a figura materna possa protegê-la. Essa fantasia impede que ela se desenvolva livremente rumo ao alcance gradual da autonomia, o que acentua a dependência, criando um círculo vicioso difícil de romper. Mariana sente que a mãe não consegue atender suas necessidades e demonstra que o holding materno é deficitário e não lhe oferece suporte e limites. Sem contenção por parte da mãe, Mariana não consegue estabelecer solidamente os limites do seu self, o que a orientaria em relação a quem é e até onde pode ir, sem se perder da família e de si mesma. É essa situação que promove os sentimentos de desproteção, vulnerabilidade e angústia, que ela expressa e combate por meio de uma conduta impulsiva e agitada. Embora tenha consciência de que essas ações podem ocasionar danos graves ao outro, a criança não as consegue conter sozinha, o que agrava a angústia (alimentada pela culpa), que ela tenta evacuar rapidamente por meio de defesas de caráter maníaco e antissocial.

Como evidenciado na estória descrita, as outras produções de Mariana sugerem que suas dificuldades parecem enraizar-se em situações de perdas sofridas, provavelmente mais de natureza emocional do que real, e vinculadas sobretudo à figura da mãe. Essas experiências não puderam ser reparadas posteriormente por Fátima, o que dificultou o processo de introjeção de uma figura materna boa e sólida, que a auxilie a enfrentar as dificuldades quando não há alguém por perto.

Em sua vertente positiva, os comportamentos agressivos, agitados e impulsivos de Mariana constituem um esforço que ela faz para encontrar a mãe que ofereça holding, que atenda a suas necessidades e a auxilie na compreensão dos limites do self. O insucesso dessas tentativas faz com que se acentue seu sentimento de desamparo e ela passe a buscar experiências de reparação em figuras externas ao meio familiar, ou até mesmo em animais, porém sem lograr êxito.

Assim, o quadro sintomático da criança denota uma busca e um anseio por mudanças que possam auxiliá-la, indicando que não está passiva, mas que precisa de ajuda para continuar a se desenvolver. Mariana reflete tentativas de fazer e buscar reparações autênticas, que representam o desenvolvimento de comportamentos visando à reconstrução do objeto, o que pode indicar um bom prognóstico para essa criança.

Fátima, a mãe

Dentre as produções no TAT da participante, destaca-se aquela elaborada a partir do cartão 7MF, que foi por ela intitulada: "O que é ser mãe":

Uma mãe, uma criança e uma boneca, né? Eu vejo a mãe, aquela figura de mãe, e a filha brincando sozinha com uma boneca, né? A mãe tá só presente, tá ali, mas não tá brincando. O olhar da menina tá até triste, porque ela tá ali, mas não tá presente. Ela tá perto, mas ao mesmo tempo tá longe, não tá prestando atenção. [...] E a menina também está longe. Do mesmo jeito que a mãe tá tratando ela, ela tá tratando essa boneca. Porque a boneca também não tá perto, a boneca tá longe, né? É isso. E o título é "O que é ser mãe". Porque às vezes a gente acha que sabe tudo e não sabe. É uma coisa assim que... E cada filho é diferente, né?

A estória contada apresenta uma mãe que está fisicamente presente, mas que não dá amor, que parece constituir uma representação de como Fátima vive seu relacionamento com Aparecida e de como se relaciona com Mariana. Fátima coloca em cena uma temática transgeracional: da mesma maneira que a mãe se relaciona com a menina, a menina se comporta com a boneca. Fátima parece reproduzir com Mariana a maneira como sua mãe se relacionou com ela, de modo que as mães são afetivamente distantes e privam as filhas de afeto. Esse enredo parece se repetir entre as gerações. Ao final da estória, a participante diz que cada filho é diferente e que mães não sabem tudo, o que pode indicar uma frustração pelas dificuldades que ela percebe em si mesma ao exercer a função materna. Mostra que há uma distância entre ela e Mariana que é maior do que a que existe entre ela e os outros filhos.

Considerando as outras produções, a participante demonstra que a separação de seus pais (desencadeada pela descoberta de que seu pai mantinha um relacionamento extraconjugal) representou um evento traumático para toda a família, já que significou a perda real do pai e a perda psicológica da mãe, uma vez que esta deixou de exercer a função anterior de promover a união familiar, além de ter passado a apresentar um quadro depressivo. Sendo assim, filha e mãe parecem ter se distanciado emocionalmente, o que gerou em Fátima uma busca ainda maior por holding materno, em um momento em que Aparecida não pôde oferecê-lo, porque também estava necessitando desse holding. Apesar do distanciamento da mãe, Fátima sente-se muito ligada psicologicamente a ela, muitas vezes vivenciando angústias e conflitos que, na verdade, são de Aparecida. Essa situação revela a permeabilidade dos limites do self entre as duas, resultado de uma diferenciação que parece não ter se completado. Com isso, a volatilidade do espaço vazio entre Fátima e Aparecida dificulta o trabalho de introjeção da figura da última pela primeira. Mesmo diante dessas condições desfavoráveis, Fátima tenta identificar-se com a mãe – para que possa recuperá-la em sua realidade psíquica – mas suas condições não lhe permitem sucesso nessa empreitada e, como Aparecida, ela sente o peso do fracasso e fica deprimida.

O quadro depressivo de Fátima repercute na maneira como ela vivencia sua relação com Mariana, demonstrando ambivalência, ou seja, de modo inconsciente Fátima não deseja que a filha cresça, o que a faz ser complacente com alguns comportamentos que claramente são inadequados para uma criança pequena. Além disso, como acontece entre ela e sua mãe (Aparecida), a relação com a filha é caracterizada pela dificuldade de impor limites, que poderiam proporcionar à menina o sentimento de dispor de um self pessoal e autônomo. Há, também, indícios de que o relacionamento entre Fátima e Carlos é distante, mas que ela suporta as dificuldades por temer a separação, repetindo a história de rompimento do vínculo conjugal de seus pais. Com isso, Fátima mergulha em uma atmosfera psíquica marcada pela solidão e desamparo.

Aparecida, a avó

A produção que melhor expressa as temáticas apresentadas por Aparecida ao longo das atividades propostas é a estória intitulada "O amor acabou", elaborada a partir do cartão 4 do TAT.

Aqui seria um abandono, uma pessoa querendo ir e a outra pedindo para ficar, entende? Tipo assim, o amor acabou. Ele quer ir embora porque o amor acabou e ela quer tentar de novo. Dá a impressão, pelo jeito dele querendo sair do abraço dela, eu penso nisso. [E ele vai embora?] Olha, pelo que eu conheço, pela minha experiência, ele vai embora. Se fosse pela minha época, há muitos anos atrás, eu acho que ele vai embora, porque a pessoa, quando ela está decidida de uma coisa, ela pode até voltar depois, mas a hora que ela está decidida a ir embora, ela vai embora. É isso daí.

Considerando o exposto, compreende-se que a representação dos personagens é a de um homem que simboliza a rejeição da relação conjugal, pois não há mais amor de sua parte e ele quer partir, enquanto a mulher rejeitada é vista como a principal figura de amor, pois tenta segurá-lo para que eles tentem uma reconciliação. Nesse caso, nota-se uma impulsividade da figura masculina, que sai de casa, embora possa mudar de ideia e voltar posteriormente. Nota-se que Aparecida faz uma referência pessoal, demonstrando reviver o abandono que sofreu com a separação do marido. Sendo assim, a temática perda/abandono do objeto é algo mobilizador para ela e parece corresponder a um evento traumático em sua vida.

Essa temática de perda do objeto é a que mais se destaca em toda a avaliação de Aparecida. Durante a infância, parece ter sentido como insuficiente o holding que recebeu das figuras parentais, de forma que, provavelmente, vivenciou sentimentos de abandono nesse período. Atualmente, revela uma dependência da figura materna, como se houvesse uma necessidade de recuperar esse holding e de senti-lo em conformidade com aquilo de que necessita. A fragilidade que sente nesse momento, devido à solidão que experimenta, torna-se um entrave para assumir o papel de mãe e oferecer holding aos seus filhos, que também anseiam por isso.

Diante do trauma precoce da infância, a separação conjugal de Aparecida foi vivida com mais sofrimento. Ela demonstra arrependimento por ter optado pelo divórcio, evidenciando que sua escolha foi baseada no desejo de outros familiares que não aceitaram a traição de seu marido. Aparecida parece ter dificuldade para lidar com o afastamento do outro e, embora necessite ardentemente estabelecer vínculos pessoais, parece ter se fechado para novas relações, o que prejudicou inclusive seu relacionamento com os filhos. A situação se torna ainda mais difícil porque a ausência do marido faz com que Aparecida não se sinta inserida na família, o que parece exacerbar seu sentimento de insegurança e não pertencimento ao ambiente familiar.

 

Discussão

Ao considerar os dados obtidos foi possível compreender como as relações familiares influenciam a forma como Mariana expressa suas dificuldades e necessidades. Nesse sentido, a história transgeracional da família se desenvolve a partir de uma trama de perdas concretas e emocionais, com desdobramentos em termos de sentimentos de insuficiência de holding e de serem exigidos além de suas capacidades. A ausência de apoio percebida em etapas precoces do desenvolvimento leva a buscas malogradas de ajuda do outro, com alternância entre esperança e desesperança, depressão e sentimentos de inutilidade/futilidade diante da vida e do mundo.

A partir da história de Carlos e Fátima, percebe-se que ambos sofreram perdas importantes há cerca de 12 anos: o pai de Carlos faleceu e os pais de Fátima se divorciaram, sendo que ela deixou de ter a figura do pai presente no ambiente familiar. Esses eventos adversos tiveram outros desdobramentos: assim como ocorreu com Fátima, Aparecida parece ter desenvolvido um quadro depressivo, o que a levou a não poder auxiliar Fátima no exercício da maternagem, principalmente a de Mariana.

Esses acontecimentos, assim como outros ocorridos desde a infância dos participantes, causaram um impacto importante na constituição, funcionamento e equilíbrio de suas personalidades e nos relacionamentos estabelecidos. A separação dos pais de Fátima ocasionou uma importante mudança no relacionamento dela com sua mãe, sobretudo em termos de distanciamento afetivo. A depressão desenvolvida por Aparecida parece haver fomentado em Fátima uma percepção de que os vínculos são frágeis, o que compromete a introjeção de figuras parentais boas e sólidas e reflete na forma como Fátima vivencia a maternidade.

Assim, Fátima busca identificar-se com a frágil figura materna introjetada que dispõe e assumir o papel que seria de sua mãe na relação com sua família constituída e de origem para manter a união de todos, corroborando o que alguns autores postulam em termos de a sintomatologia da criança estar articulada com a dinâmica do casal (Gomes, 2011).

A pouca estabilidade e inconstância da figura materna introjetada leva Fátima a sentir-se sobrecarregada e exigida além de seus recursos afetivos. Ela apresenta ambivalência no exercício da maternidade, ora fazendo tudo pela filha, ora afastando-se e deixando a menina desamparada e entregue a si mesma. A dificuldade de Fátima está relacionada à sua impossibilidade de se identificar plenamente com a filha, o que ocorre devido à sua busca pela mãe e à identificação dela com as angústias de Aparecida.

A ameaça da depressão, ocasionada pela perda do objeto que assombra Fátima, impacta diretamente sua relação com Mariana. A mãe da criança encontra sérios entraves para oferecer a ela os limites necessários à constituição de um self criativo e autônomo. Em decorrência disso, Mariana não sabe até que ponto pode agir com segurança, de maneira que se sente desprotegida e teme pelas consequências de seus comportamentos impulsivos. Mariana também parece reagir à depressão da mãe e da avó, agindo de forma agitada e impulsiva, como um tipo de defesa maníaca reativa ao quadro depressivo recorrente em sua linhagem matrilinear.

Sendo assim, as dificuldades que Fátima experimenta em sua relação com Mariana e que colocam em xeque a sua condição de "mãe suficientemente boa" remetem a uma deficiência na maternagem, que é transgeracionalmente extensiva na família. Tanto Mariana quanto Fátima parecem buscar a figura de uma mãe capaz de apoiá-las e sustentá-las por meio da oferta de um holding reparador de suas dificuldades.

Mariana demonstra que sofreu uma perda emocional da mãe, configurando um quadro de de-privação e a busca por holding como tentativa de reparação. Fátima parece nunca ter conseguido encontrar um holding que realmente a satisfizesse, ocasionando uma privação presente desde a infância, mas intensificada após a depressão de Aparecida. Fátima pareceu capaz de superar suas dificuldades infantis, mas de modo apenas relativo, o que lhe permitiu, até certo momento, oferecer um holding de qualidade para seus filhos. Porém ela não pode prosseguir essa experiência, ocasionando a continuidade da de-privação da criança.

A avaliação de Aparecida mostrou que os temas centrais de suas preocupações são a separação (perda do objeto), revelando que esse temor repousa na percepção de que o holding que recebeu de sua mãe na infância foi incapaz de auxiliá-la a realizar uma introjeção sólida do bom objeto, fazendo com que Aparecida ainda apresente uma dependência em relação à mãe real. Todavia, o estado de privação se mantém, pois sua mãe, nesse momento, não pode oferecer aquilo de que Aparecida necessita.

A relação de dependência materna de Aparecida parece ter sido posteriormente deslocada para o marido, mas, após o divórcio, essa dependência não pôde ser novamente deslocada para a mãe. Aparecida revela arrependimento pela separação conjugal, o que a faz se sentir desamparada e convicta de que não poderá contar com o auxílio do outro quando precisar. Isso a faz tentar se reinserir na família desempenhando o papel de filha, o que impede que ela assuma com convicção o papel de mãe de Fátima.

Assim, Fátima e Aparecida sofreram, ao longo da vida, privações que interferem no desenvolvimento emocional delas próprias e no de Mariana. Essas privações estão relacionadas à procura por holding, aquisição de autonomia e introjeção de uma figura materna boa. Mariana pode ser vista como depositária de necessidades inconscientes de ambas, legadas no encadeamento transgeracional, o que gera como reação o seu comportamento impulsivo e agitado (Pichon-Rivière, 1980/1994).     Nessa dinâmica familiar, Mariana parece ser o membro da família que, pelo menos aparentemente, mais se distancia do quadro depressivo, apresentando sua busca por holding a partir de condutas relacionadas à tendência antissocial. Seu comportamento pode ser visto como uma estratégia para ser cuidada até que consiga realizar reparações autênticas dos sofrimentos por que passou (Barbieri & Pavelqueires, 2012). Enquanto não encontra o que procura e necessita para prosseguir o seu desenvolvimento, a criança vivencia sentimentos de vulnerabilidade, desproteção e desconfiança em relação ao meio externo, sustentados pela incompreensão dos limites de seu self que se origina da impossibilidade de introjetar solidamente uma figura materna boa e forte que sustentaria sua autonomia pessoal e seu viver criativo.

As falhas na introjeção da figura materna são expressas também pelos problemas alimentares presentes desde a primeira infância da menina. Há sinais de que a criança apresenta dificuldade para receber o que é oferecido pela mãe, sendo que os percalços vivenciados na relação mãe-filha parecem ter se ampliado com a ausência paterna (Winnicott, 1958/1999).

No caso da família investigada, tanto a origem como a manutenção dos sintomas da criança estão ligadas à maneira como as relações são vivenciadas e a como os psicodinamismos de seus ancestrais estão interligados. Estendendo a formulação teórica, proposta por Winnicott (1956/1993), de que a criança com tendência antissocial busca por algo que foi vivenciado em algum momento, mas que foi perdido e esquecido, compreende-se que essa família transmite a busca por um objeto perdido e que isso de alguma maneira mantém os vínculos familiares, na esperança de que os sintomas de Mariana possam ter a função de elaborar as perdas e interromper esse processo de transmissão (Käes, 1998).

Os sintomas de Mariana se enquadram na vertente da destrutividade proposta por Winnicott (1958/1999): há uma busca no ambiente por estabilidade e limites claros, que não foram encontrados no lar para que ela pudesse conter a impulsividade, pois a criança não recebe limites dos pais e de outras pessoas da família. Essa ausência de moldura faz com que a criança aja de maneira livre, mas desprotegida, buscando pelo enquadre que não foi recebido até o momento (Winnicott, 1956/1993; 1958/1999).

Mariana parece ter recebido valores e crenças por meio da transmissão de conteúdos inconscientes e não elaborados que estiveram presentes em seus familiares (Falcke, & Wagner, 2005). Esses conteúdos se referem a perdas concretas e emocionais, depressão, ausência de apoio, elevadas exigências e sentimentos de insuficiência para fazer frente aos desafios da vida. A recepção desses conteúdos tem sido desorganizadora para a criança, levando-a a uma sobrecarga transgeracional que a faz reagir de uma maneira diferente daquela já instaurada na família, o que ocasiona conflitos familiares que contribuem para o recrudescimento dos sintomas (Eiguer, 1997).

Por isso, destaca-se a necessidade de intervenções, de forma que seria importante que os participantes pudessem passar por um processo terapêutico familiar, que auxiliasse na ressignificação da posição de cada membro envolvido (Eiguer, 2006), o que exige que o terapeuta apresente uma escuta atenta àquilo que é proveniente de outras gerações e que ainda não pôde ser elaborado (Gomes, & Zanetti, 2009).

 

Considerações finais

A aplicação do referencial teórico da transmissão psíquica transgeracional proporcionou a articulação entre os níveis individual e familiar. O estudo realizado revela que a família se encontra aprisionada em uma dinâmica complexa em que todos os envolvidos necessitam de ajuda e carecem de recursos emocionais para auxiliar a criança a prosseguir em seu processo de desenvolvimento. Ressalta-se a necessidade de promover intervenções familiares que possibilitem avaliar e atuar face às dificuldades apresentadas a partir de uma perspectiva ampla e integradora.

Com as avaliações psicológicas realizadas ao longo da investigação, foi possível entender que as manifestações da tendência antissocial de Mariana estão intimamente relacionadas à maneira como ela está inserida na dinâmica familiar e às angústias, sofrimentos e incertezas de seus ancestrais. Os psicodinamismos de cada participante estruturam e definem o funcionamento afetivo do grupo familiar, de modo que Mariana recebe, a partir da transmissão transgeracional, conteúdos não elaborados de vários dos membros da família.

A carga emocional legada pelos pais e avós inclui perdas sofridas, depressão, holding deficitário, sentimentos de inutilidade e de ser exigida além de suas possibilidades. Frente a essa situação emocional, as manifestações da tendência antissocial de Mariana consistem em defesas perante as dores e sofrimentos de toda a família. É uma tentativa, mesmo que malsucedida, de elaborar os conteúdos recebidos e ressignificar as relações familiares.

Este estudo tem algumas limitações, como a delimitação da amostra e a impossibilidade de generalização dos dados. No entanto, os resultados revelam a importância de realizar estudos de caso envolvendo todo o grupo familiar para que se conheça a problemática individual a partir de uma dimensão integrada. Nesse contexto, um tratamento isolado, como a psicoterapia dirigida apenas à criança, seria forçosamente incompleto e com poucas chances de ser bem-sucedido. Destaca-se a necessidade de novas pesquisas que investiguem as melhores estratégias de intervenção para as famílias que apresentam uma criança com tendência antissocial, ressaltando que não foram encontrados estudos que aprofundem essa temática.

 

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Recebido em 15 de outubro de 2015
Aceito para publicação em 02 de março de 2017

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