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Psicologia Clínica

Print version ISSN 0103-5665On-line version ISSN 1980-5438

Psicol. clin. vol.30 no.3 Rio de Janeiro Sept./Dec. 2018

https://doi.org/10.33208/PC1980-5438v0030n03A08 

SEÇÃO O LIVRE

 

A realidade da perda: considerações sobre o luto e o exame de realidade

 

The reality of loss: considerations on grief and reality testing

 

La realidad de la pérdida: consideraciones sobre el luto y el examen de la realidad

 

 

Leonardo CâmaraI; Regina HerzogII

IDoutorando do Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, Brasil. Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). lcpcamara@gmail.com
IIProfessora Associada do Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, Brasil. Bolsista de Produtividade em Pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq)

 

 


RESUMO

O objetivo deste ensaio é desdobrar a afirmação de Freud segundo a qual o trabalho psíquico do luto é iniciado a partir da constatação da realidade da perda objetal por meio da ação do exame (ou teste) de realidade. A discussão deste problema leva os autores a propor uma definição de "exame de atualidade", tendo em conta a formação da capacidade de distinguir a separação da perda. A reflexão a propósito desta distinção tem por consequência, ainda, a postulação de uma condição anterior à capacidade de vivenciar a perda objetal: o estado de perdição. Conclui-se que as construções desenvolvidas neste artigo podem auxiliar no entendimento: de certas características relacionais de pacientes que se enquadram nos chamados "estados-limites"; e do lugar que o luto ocupa na cultura contemporânea.

Palavras-chave: exame de realidade; exame de atualidade; luto; perda objetal; perdição.


ABSTRACT

This essay aims to unfold Freud's statement that the psychic elaboration of grief begins upon the realization of the loss of an object through the act of reality testing. While discussing this problem, the authors propose a definition of "immediacy testing" considering the development of the capacity to distinguish separation from loss. From this distinction, they postulate, also, a prior condition to the ability to experience an object's loss: the "state of perdition". It is concluded that the constructions undertaken in this article can help in the understanding of: certain relational characteristics of patients fitting so-called "borderline states"; and the place taken by the experience of grief in today's culture.

Keywords: reality testing; immediacy testing; grief; object loss; perdition.


RESUMEN

El objetivo de este ensayo es explorar la afirmación de Freud según la cual el trabajo psíquico del luto empieza con la constatación de la realidad de la pérdida objetal por medio de la acción del examen de la realidad. La discusión acerca de este problema lleva los autores a proponer una definición de "examen de la actualidad", llevando en cuenta la formación de la capacidad de distinguir entre la separación y la pérdida. Reflejar sobre esta distinción tiene por consecuencia, además, la postulación de una condición anterior a la capacidad de vivenciar la pérdida objetal: el "estado de perdición". Se concluye que las construcciones desarrolladas en este artículo pueden contribuir a la comprensión: de ciertas características relacionales de pacientes que se encajan en lo que se llama "estados-límites"; y del lugar que el luto ocupa en la cultura contemporánea.

Palabras clave: examen de la realidad; examen de la actualidad; luto; pérdida objetal; perdición.


 

 

Introdução

Refletir sobre o lugar do luto na clínica e na cultura contemporâneas é um tópico relevante, que dá ensejo a diversos modos de se abordar o problema. O luto não apenas expressa a nossa atitude perante a morte, mas também a maneira como lidamos com a perda. Ora, se toda morte é uma perda, nem toda perda se relaciona a uma morte. Com efeito, o término de um relacionamento amoroso pode acarretar para ambas as partes um sentimento de perda, ainda que a morte não tenha desempenhado papel algum aí. Pode-se também perder coisas, tão concretas como a casa ou o emprego, quanto abstratas, como a liberdade e a segurança; tão individuais como um modo de ser, quanto coletivos como certa forma de organização das relações sociais. Enfim, seja qual for o caso, o luto é um processo por meio do qual o sujeito busca lidar com o vazio esgarçado pela perda.

Em um importante escrito de 1917, Freud mostra que o caminho do luto não é preencher a qualquer custo o vazio, mas entrar em termos com ele para, aí sim, prepará-lo e arrumá-lo a fim de receber novos hóspedes. Na esteira dessa concepção, podemos pensar que o descaminho do luto, por sua vez, não é conviver com o vazio e transformá-lo num espaço de potenciais; pelo contrário, é preenchê-lo e estufá-lo imediatamente com qualquer coisa que ofereça ao sujeito a possibilidade de recusar a perda sofrida. Conforme aponta Silva (2015), a cultura contemporânea revela-se especialmente eficaz em permitir ou impelir o sujeito a recusar uma experiência de perda, logo, a prescindir do luto. À sua disposição são ofertadas, aos borbotões, coisas novas e substitutivas, com a única função de preencher e sedimentar o vazio - sejam essas coisas mercadorias, medicamentos, sensações, pessoas. Ora, isso não é tão surpreendente se levarmos em conta o fato de vivermos em uma cultura na qual impera, em primeiro lugar, o consumo do descartável, e, em segundo lugar, a redução de todas as formas de relação a uma única lógica, a do consumo.

Aliás, na clínica atual faz-se notar, em determinadas narrativas, justamente a recusa em digerir uma perda sofrida. O luto exige um tempo de recolhimento, o que acarreta não apenas o contato do sujeito com sentimentos penosos, como também uma inibição que limita sua margem de ação (Câmara, 2015). Ora, tanto a introspecção quanto a tristeza e, finalmente, a dificuldade de agir são experiências que não encontram lugar em nossa cultura, salvo quando isoladas naquele espaço de coisas que não devemos sentir e que, quando sentimos, devem ser medicalizadas a fim de serem devidamente suprimidas (Ehrenberg, 1998). Vale dizer ainda que, se o luto reivindica tempo para se desdobrar, tempo é o que parece não se ter na atualidade: quem está disposto a "perder" seu tempo para elaborar uma perda, quando esse bem escasso deve ser investido na direção do ganho, do lucro?

Acrescente-se que, ao lado da leitura acima esboçada, alguns autores, como André Green (1988/2010), indicam que certos quadros clínicos - designados como "estados limites" - apresentam como um de seus elementos centrais uma questão específica em relação ao luto. Haveria, nesses sujeitos, uma perigosa indistinção entre separação e perda: a ausência temporária do outro - e mesmo suas mudanças ou descontinuidades, como alterações de humor - seriam vivenciadas de uma maneira catastrófica, como se isso marcasse uma perda definitiva do objeto que deve, por sua vez e a todo custo, ser evitada (Cardoso, 2010). Em tais casos, o sujeito vive uma ameaça constante de perder o objeto, levando-o a lançar mão de diversos modos de não se separar dele e, portanto, de não perdê-lo. O masoquismo seria uma dessas formas (Buchaúl, 2015).

Levando em consideração os descaminhos do luto na contemporaneidade apresentados acima - quer dizer, a recusa da experiência de perda, seja no sentido de se lançar incessantemente a novos objetos, seja fazendo o possível para manter o mesmo objeto (mesmo que isso signifique anular-se a si próprio), bem como a indistinção entre separação e perda que certos quadros clínicos apresentam - enfim, tendo em conta a questão central da recusa da perda do objeto, fomos remetidos a um problema anterior a ela. Em Luto e melancolia (1917), Freud declara que seria apenas a partir da constatação da "realidade" da perda do objeto - efetuada pelo exame de realidade - que o processo de metabolização dessa perda - o luto - se iniciaria (Freud, 1917[1915]/2006f). Ora, longe de ser inédita, podemos afirmar que essa formulação já havia sido postulada ao menos vinte anos antes. Com efeito, desde seus manuscritos dirigidos a Fliess, Freud fazia uma relação entre o luto e o problema da realidade: referindo-se à amência alucinatória, uma forma de psicose, dizia ele que o afeto contra o qual ela luta é, justamente, o luto. Por ser intolerável a perda do objeto, o sujeito rompe sua relação com a realidade e produz, em forma de alucinações, um novo mundo onde aquele objeto e, principalmente, sua relação com ele sobrevivem incólumes (Freud, 1950[1895]/2006a).

Nota-se apenas uma diferença entre as duas formulações: em 1895, época em que Freud dialoga com Fliess, o conceito de exame de realidade ainda não havia aparecido, ao passo que, em 1917, ele já havia sido forjado (Freud, 1911/2006c; 1917[1915]/2006f). Ora, o exame de realidade foi um conceito elaborado para dar conta do movimento de reencontro, na realidade atual, de um objeto ansiado pelo sujeito e que, ademais, está representado em sua memória (Freud, 1925/2006g). O que, por sua vez, chama a atenção no postulado sobre sua relação com o luto, é o exame de realidade aparecer agora como um processo por meio do qual o aparelho psíquico, pelo contrário, procura ativamente, e com muita dificuldade, confirmar a não mais existência do objeto ansiado. Em outras palavras, se comumente o exame de realidade dirige-se no sentido de reencontrar um objeto na realidade externa, no caso do luto, o exame tem por objetivo atestar a realidade da perda daquele objeto. O processo de luto inicia-se somente quando cumprida essa condição preliminar.

Essas considerações são, a nosso ver, suficientes para justificar uma investigação acerca dos entrelaçamentos entre o exame de realidade, a experiência de perda e o trabalho do luto. É por esta via que abordaremos o problema dos caminhos e descaminhos do luto no presente ensaio.

 

A relação do luto com o exame de realidade

O luto é, acima de tudo, um trabalho psíquico. Ele começa com uma constatação e termina com uma renúncia. O ato que o inicia refere-se à constatação de que o objeto em questão não existe mais. Entre o desejo de recuperar o que foi perdido e de aceitar que o que foi perdido não pode ser recuperado, situa-se o sujeito. Processo doloroso, que demanda tempo e elevados custos emocionais, o luto consome-se em si mesmo e termina com um novo ato: a renúncia a continuar mantendo cativo aquele ou aquilo que se foi (Freud, 1916/2006e). Longe de promover o aniquilamento ou o completo esquecimento do objeto perdido, o luto consiste em deixá-lo "descansar em paz" em algum lugar do psiquismo.

O evento psíquico que convoca o trabalho do luto, designado aqui como a constatação de que o objeto foi perdido, é deflagrado pelo exame de realidade, que "exige categoricamente da pessoa desolada que ela própria deva separar-se do objeto, visto que ele não mais existe" (Freud, 1926/2006h, p. 167). A separação aludida por Freud nessa citação é o desligamento do investimento libidinal do objeto, movimento que caracteriza o trabalho do luto em sua especificidade. Antes de nos debruçarmos sobre esse ponto, é importante entender o papel do exame de realidade em tal processo. Não é à toa, aliás, que utilizamos o termo "processo" tanto com relação ao luto quanto ao papel do exame de realidade que a ele se articula. Isso porque não é de uma vez e nem de maneira definitiva que se dá a constatação quanto à perda do objeto: o "veredicto da realidade" da perda é convocado a se reafirmar a cada momento que o sujeito esbarra com experiências que trazem à tona, em seu psiquismo, a vida daquele que se foi (Freud, 1917[1915]/2006f).

Somente quando o trabalho de retirada do investimento do objeto perdido percorreu uma grande extensão, o sujeito passa a se sentir em condições de realizar o ato de renúncia àquele objeto. Aqui, compreendemos a renúncia em uma dimensão ética, na qual o sujeito consegue enunciar a perda - assunção essa que só é alcançada, vale reforçar, mediante o exame de realidade. Nesse ponto, a realidade da perda torna-se soberana, posto que o sujeito se depara com a impossibilidade de manter o objeto na mesma condição de outrora. Dito de outra maneira, a experiência da perda de um objeto significativamente investido demanda a reação, por parte do psiquismo, de um trabalho consistindo em convencer-se continuamente que tal objeto não pode mais ser reencontrado na realidade. A partir dessa perspectiva, na metapsicologia do luto somos surpreendidos tanto com a dificuldade do exame de realidade empreender sua função quanto com a configuração específica que tal exame ganhará nesse processo.

Antes de prosseguir o estudo do exame de realidade no luto, consideremo-lo em registro desarticulado desse trabalho psíquico específico, de modo que possamos entendê-lo em sua singularidade. Para tanto, é necessário precisarmos três observações acerca do conceito em pauta visando a esclarecer a perspectiva pela qual efetuamos nossa leitura dele. Em primeiro lugar, como o leitor já deve ter observado, adotamos aqui a tradução "exame de realidade" em detrimento de "teste de realidade" ou "prova de realidade", todas remetendo, não obstante, a um único termo original, "Realitätsprüfung". Em segundo lugar, é importante ressaltar que o termo aparece pela primeira vez em Freud no pequeno artigo Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental (1911) e é empregado até o final de seus escritos: de fato, encontra-se em algumas páginas de Esboço de psicanálise (1938) uma curta discussão a respeito do conceito (Freud, 1911/2006c; 1940[1938]/2006j). Entretanto, não obstante aparecer somente em 1911, Porchat (2005) argumenta que o mecanismo que será posteriormente designado como Realitätsprüfung aparece desde o início da obra freudiana. Com efeito, desde o Projeto (passando por A interpretação dos sonhos), encontramos os "rudimentos" do que virá a ser designado mais tarde como exame de realidade - mais especificamente, sobre o modo como o aparelho psíquico busca distinguir representação de percepção. Para terminar, uma terceira observação: enfatizamos que não é nosso propósito traçar uma investigação exaustiva sobre o conceito de exame de realidade; pelo contrário, realizaremos um recorte dele na justa medida em que tal recorte atenda ao problema que nos colocamos: a relação deste mecanismo psíquico com o luto. Por conseguinte, privilegiaremos alguns textos em detrimento de outros para a discussão deste conceito, a saber: o Projeto (1895), A negação (1925) e Inibição, sintoma e angústia (1926).

Colocadas as três referências que delimitam e introduzem o campo do presente estudo, passemos agora a designar a função primordial do exame de realidade: o seu mecanismo consiste em produzir uma relação de "identidade" entre percepção e representação; isto é, em desenhar uma correlação entre a percepção de um objeto no mundo externo e a representação de um objeto, permitindo assim dizer que a percepção corresponde à representação (Freud, 1925/2006g). Esse processo comporta uma intencionalidade: a representação pressupõe os parâmetros e as qualidades nas quais a percepção deve se enquadrar para que esta seja identificada com aquela especificamente. Dessa observação derivam duas perguntas: qual a finalidade desse processo? E por que a representação encontra-se em um fator de anterioridade em relação à percepção?

Com respeito à primeira questão, cabe ressaltar que a finalidade do exame de realidade é a de convencer-se da existência1 do objeto no mundo externo, assegurando assim - principalmente no começo da vida - uma eficiência econômica do aparelho psíquico quando da repetição das ações necessárias para o apaziguamento das exigências pulsionais. Em outras palavras, é apenas com a confirmação da existência "real" do objeto que o aparelho psíquico autoriza a execução da ação específica (Freud, 1950[1895]/1995). Em 1925, no texto que trata da relação genética dos processos de pensamento com as pulsões, A negação, Freud designará o exame de realidade como uma função de julgamento com o objetivo de decidir a "existência" de uma coisa (Freud, 1925/2006g). O referido texto serve de base para nossas especulações, na medida em que ele se situa em um momento-chave da teorização do discurso freudiano. Com efeito, a questão da realidade, da percepção, de suas intrincadas relações e seus respectivos impactos no psiquismo será um problema significativo em diversos textos do período.

Retendo a função essencial do exame de realidade, passemos à segunda pergunta levantada, que concerne à ordem dos fatores na relação da representação para com a percepção. Antes de tudo, é preciso esclarecer que, ao indicar a anterioridade da representação com relação à percepção, não estamos nos referindo a uma hipótese genética, segundo a qual o aparelho psíquico já teria, de antemão, uma representação a qual busca encontrar no mundo externo. Trata-se, aqui, de apontar a ordem temporal que está em jogo especificamente no funcionamento do exame de realidade. Nesse caso, a condição necessária para que o exame de realidade possa operar é a existência da representação de um objeto que foi adquirida previamente ao momento de seu funcionamento, não importando de que maneira essa representação foi inserida no sistema de memória do aparelho psíquico. Além disso, a representação do objeto deve estar investida, de modo que o aparelho busca travar contato novamente com esse objeto. Por exemplo, após repetidas experiências de satisfação, o aparelho construiu uma representação do objeto que ofereceu tais experiências. A partir do momento em que ele busca satisfazer novamente um desejo, ele procurará aquele objeto, agora representado. Assim, somente com o investimento da representação do objeto (o desejo de seu reencontro) é que o aparelho buscará posteriormente no mundo externo uma percepção que se identifique com aquela representação. O exame de realidade terá como função realizar essa identificação (entre a representação e a percepção), decidindo se ela é real ou fruto de um investimento alucinatório.

Em outras palavras, a "intenção" do aparelho psíquico, ao buscar traçar uma correlação entre representação e percepção, é de encontrar especificamente aquela representação no mundo externo, uma vez que tal representação encontra-se psiquicamente investida. É como se o aparelho esperasse, ou melhor, ansiasse que tal representação pudesse ser encontrada no mundo externo pela percepção. E por que motivo, por sua vez, essa representação encontra-se investida? Porque o objeto que ela representa propiciou, em um momento anterior, experiências importantes de satisfação, que devem ser replicadas para promover o escoamento da energia libidinal represada. Dessa forma, uma percepção só adquire um estatuto de "realidade" para o psiquismo - isto é, só se adquire uma crença da existência atual daquilo que se busca - se ela, a percepção, corresponde, de maneira suficiente, a uma representação que a precede. Nestes termos, segundo Freud, o exame de realidade consiste não em "encontrar na percepção real um objeto que corresponda ao representado, mas [em] reencontrar tal objeto, convencer-se de que ele está lá" (Freud, 1925/2006g, p. 267, grifo no texto original).

Aproveitando tal afirmação, retomemos a articulação do exame de realidade com o trabalho do luto. Este subentende que aquele deva operar de uma maneira negativa: isto é, com o mesmo conjunto de linhas de forças, mas, no entanto, com seus conteúdos invertidos. Expressando-nos com maior clareza, o exame de realidade no luto consiste em efetivamente não reencontrar, na percepção real, um objeto que corresponda ao representado, e assim se convencer de que ele não está mais lá, apesar de se ansiar que ele lá esteja. O investimento psíquico maciço na representação produz a ânsia de reencontrá-lo no campo perceptivo; a não mais existência do objeto, em contrapartida, nega tal reencontro de forma inexorável. Assim, o remanejamento da libido torna-se imperioso.

O desligamento substancial do investimento no objeto perdido deve trazer como consequência a redução da ânsia de reencontrá-lo no mundo. Tal redução traz, por sua vez, maiores condições para o exame de realidade se consolidar, na medida em que o sujeito pode renunciar a manter o objeto na mesma posição libidinal de outrora. Portanto, da constatação da perda do objeto à renúncia do desejo de recuperá-lo, o luto, sob o ponto de vista do exame de realidade, é um trabalho de convencimento da realidade efetiva da perda.

Vimos como Freud, em sua correspondência a Fliess, compreendera a amência alucinatória aguda como uma "aberração patológica" do "estado afetivo normal do luto" (Freud, 1950[1895]/2006a). Podemos intuir que, nesse quadro clínico, o exame de realidade falha ou não é convocado, de tal maneira que se pode manter o objeto perdido vivo por meio da alucinação. Situação mais complexa aparece quando se coteja não mais a amência, mas o luto patológico e, principalmente, a melancolia. Em ambos os casos, verifica-se na história do sujeito uma experiência de perda seguida de uma falha relativa do exame de realidade. No luto patológico, o paciente pode passar anos vivendo como se um ente querido que morreu - e que ele sabe que morreu - ainda estivesse, não obstante, vivo: vide o caso do homem dos ratos, que dez anos após o óbito do pai ainda falava como se seu pai estivesse vivo. Não à toa, Freud relata espanto ao descobrir que o pai de seu paciente não estava vivo, mas morto há mais de uma década (Freud, 1909/2006b). O melancólico, por sua vez, apesar de perder de alguma forma a relação com alguém, não reconhece essa perda, passando a identificar uma parte do seu eu com esse objeto perdido, a fim de não precisar elaborar a perda (Freud, 1917[1915]/2006f). Neste caso, isso ocorre devido a uma experiência de perda que não passa pela consciência e que é, ademais, agravada por uma forte ambivalência relacionada ao objeto do qual proveio o sentimento de perda; no luto patológico, por sua vez, entra em cena apenas o segundo fator, a ambivalência (Freud, 1917[1915]/2006f). A nosso ver, o que merece relevo nesses três casos é: não importa de que forma o sujeito tente se defender da realidade (ou do real) da perda: ela, ainda assim, produz efeitos sobre ele, quer tenha o luto sido engendrado ou não.

 

A função secundária do exame de realidade

Há uma questão que não pode mais ser adiada: o exame de realidade tem a função de avaliar que um objeto existe a partir da comparação entre uma representação e uma percepção. A percepção é um dado captado no momento presente, e é nesse tempo presente que se exige do aparelho psíquico uma resposta. Indaga-se: poderíamos então dizer que o exame de realidade concerne apenas a um momentum, isto é, que somente em um momento pontual o sujeito pode testar a existência do objeto? Se assim for, outra questão se torna lícita: por que o exame de realidade não desencadeia o trabalho de luto quando o objeto se ausenta, ao passo que ele assim o faz quando da perda do objeto, se, igualmente em ambas as situações, não é possível encontrá-lo no momento presente? No que segue, propomos abordar esta questão procurando entender a maneira pela qual o sujeito diferencia a experiência de separação da experiência de perda.

Ligada à função de decisão quanto à existência do objeto no mundo externo, há outra disposição conferida por Freud ao exame de realidade (Freud, 1925/2006g). Trata-se de processar os dados advindos da percepção de certo objeto que se apresenta apenas parcialmente - mas significativamente - semelhante à representação buscada (Freud, 1950[1895]/1995). Isso se dá porque há uma impossibilidade de a percepção se apresentar de maneira absolutamente fiel à representação (Freud, 1925/2006g). A esse propósito, Freud invoca como exemplo a situação do lactente que se depara com o seio da mãe em uma posição distinta daquela da qual se "lembra" quando de sua experiência primária de satisfação (Freud, 1950[1895]/1995).

O mecanismo em questão dispõe da decomposição do elemento (perceptivo) que se encontra sob o processamento do exame de realidade em dois fatores: (1) o primeiro fator, designado "a coisa", é invariável e inexorável para a identificação do objeto em questão; (2) o segundo fator, designado como "predicado", é o fator variável, cujas alterações em relação à representação original podem atingir até determinado limite sem comprometer o movimento de correlação entre representação e percepção (Freud, 1950[1895]/1995). Supondo que 'a' é coisa e 'b' e 'c' são atributos que compõem o predicado: em um primeiro tempo (t1), 'a' apresenta-se como 'a + b'. Em um segundo momento, t2, o investimento na representação 'a + b' exige que seja encontrado, no mundo externo, uma percepção 'a + b'. Contudo, o que se percebe não é 'a + b', mas 'a + c'. Por meio do processamento do exame de realidade, o aparelho psíquico consegue determinar que 'a + c', que se apresenta em t2, é o mesmo 'a + b' que aparecera em t1 e que está sendo presentemente investido como representação ansiada: se, por um lado, o predicado de ambos os elementos entra em contradição ('c' é diferente de 'b'), por outro lado o fator 'coisa' determina uma relação de identidade ('a' é igual a 'a'). Por conseguinte, o aparelho psíquico decide que 'a + c' é semelhante a 'a + b' e, portanto, que 'a' existe. Assim, o exame de realidade prova a existência de um mesmo objeto, mesmo que este se apresente de alguma maneira notoriamente distinta em relação à correlata representação inicial. Essa função não pode ser negligenciada, dada a irreconciliável diferença que sempre haverá entre representação e percepção. Ademais, disso derivam duas consequências importantes.

A primeira coloca o registro da temporalidade no cerne mesmo do processo de pensamento do aparelho psíquico (o mesmo objeto é identificado em tempos diferentes, isto é, em t1 e depois em t2). A segunda consequência, articulada com a primeira, confere ao sujeito as condições de suportar as mudanças do objeto, sejam elas quais forem - desde que circunscritas dentro de certos limites. Tais mudanças são suportadas no sentido de o objeto continuar a ser reconhecido enquanto tal. Ainda que, por exemplo, a mãe mude suas roupas ou esteja com uma disposição emocional distinta de outrora, a criança continuará entendendo que essa à sua frente é o objeto que propicia a satisfação de suas necessidades e desejos - em suma, que continua sendo sua mãe. O exame de realidade possibilita assim a concepção de sobrevivência do objeto e, por conseguinte, de sua continuidade no tempo, respeitando-se, evidentemente, a condição de que tal objeto assim se apresente e se disponha ao sujeito.

Depreendemos que a função secundária do exame de realidade estabelece outro parâmetro para o sentido dado por Freud à ideia de existência do objeto, quer dizer, de sua realidade. Tal ideia não concerne apenas à presença imediata do objeto ansiado no mundo externo - correlação entre representação investida e percepção atual - mas também que o objeto continua existindo, mesmo se sua presença no campo perceptivo não estiver imediatamente colocada. Neste caso, a ausência perceptiva (e portanto atual) do objeto caracteriza ainda assim sua existência, quando correlacionada às experiências em que da ausência sucedeu-se a presença. Em outras palavras, distingue-se separação - mera ausência perceptiva do objeto - de perda - extinção da possibilidade de seu reencontro.

 

A gênese da noção de separação

O exame de realidade requer, como condição essencial para seu funcionamento, a presença de uma representação (que se anseia reencontrar na realidade) e de uma percepção (que efetivamente é encontrada no mundo externo). Fica aí estabelecida uma relação de intencionalidade - unicamente tornada possível pela ação do afeto - na qual a representação imprime a forma como a percepção deve ser para que o objeto em questão seja considerado real. Enfatizemos o papel e a potência da representação que, em decorrência de sua consistência e relativa autonomia, constitui até mesmo um entrave à afirmação imediata e definitiva do exame de realidade quando da experiência de perda: conforme vimos, o luto é um processo de lento convencimento quanto ao fato de o objeto não existir mais, partindo-se da constatação incessantemente renovada de que ele não se apresenta mais à percepção. Isso mostra o quanto o exame de realidade está, no fundo, a serviço do desejo - e não poderia ser diferente, dado que "o aparelho anímico é tudo isso (aparelho de pensar, descarregar, alucinar) embora cada um de tudo isso seja muito diferente dos demais" (Herzog & Gondar, 2011, p. 29). O exame de realidade, tal como foi trabalhado aqui, testemunha, portanto, uma forma de subjetivação na qual a interioridade é um fato e a tessitura representacional um paradigma. E mais: tal dispositivo supõe a consolidação do objeto ansiado na vida psíquica do sujeito e a construção de um regime de temporalidade no qual esse objeto é reconhecido não obstante a diversidade de suas manifestações perceptivas e os intervalos de tempo que separam tais manifestações.

A menos que se naturalize o exame de realidade, entendendo-o, destarte, como algo com o qual já se nasce equipado, torna-se desejável investigar de que forma esse mecanismo é constituído historicamente. Para tanto, cabe agora descrever a maneira como a função secundária do exame de realidade é desenvolvida; em outras palavras, o modo como a criança se torna capaz de suportar e representar a experiência de ausência perceptiva do objeto (separação), sem que com isso a tome como uma perda definitiva. Encontramos indicações preciosas a esse respeito em Inibição, sintoma e angústia - mais precisamente, no apêndice C, em que as questões do luto e da dor são rediscutidas à luz das novas teorizações sobre angústia e perda objetal (Freud, 1926/2006h).

Ao traçar o percurso ontogenético da capacidade do sujeito em creditar a existência do objeto prescindindo de sua presença perceptiva, Freud (1926/2006h) compreende que a criança de colo, primordialmente, vive a separação como uma perda permanente - isto é, "logo que perde a mãe de vista comporta-se como se nunca mais fosse vê-la novamente" (p. 164). A partir de "experiências consoladoras" com o ambiente (o objeto que exerce a função materna), a separação começa a ser distinguida da perda: em outras palavras, a criança gradativamente aprende "que o desaparecimento da mãe é, em geral, seguido pelo seu reaparecimento" (Freud, 1926/2006h, p. 164-165). Deixemos isso claro: as experiências consoladoras referidas por Freud são as que compõem o delicado jogo de ausência e retorno do objeto, principalmente em momentos nos quais a criança, por não estar sob urgência de suas necessidades, consegue suportar o desaparecimento da mãe. Uma vez adquirida essa confiança em relação ao meio, a criança conquista igualmente (mas jamais completamente) a noção de separação em relação ao objeto e, mais que isso, a noção de que o objeto existe para além de sua presença perceptiva.

 

Perda e perdição

Parece-nos lícito colocar uma questão: a separação é concebida como uma diferenciação, uma derivação da experiência de perda. A perda, no caso, é entendida como uma experiência mais primordial e basal. Mas que sentido tem a perda em tal contexto? Seria ela uma experiência originária? Freud (1926/2006h) faz uma matização a esse respeito. Segundo ele, a perda objetal pode ser vivida de dois modos pela criança, de acordo com a intensidade de suas exigências pulsionais no momento da ausência do objeto. Comecemos pelo caso em que a criança não está em um estado de urgência: ela reage à separação (à ausência da mãe) com angústia: desencadeia-se este afeto na medida em que antecipa a possibilidade de perda efetiva do objeto, sendo logo arrefecido quando de seu retorno (Freud, 1926/2006h). Portanto, é mais preciso afirmar que, nesse primeiro cenário, por perda entende-se a expectativa de perda condicionada pela ausência perceptiva imediata do objeto. Havendo o reencontro com ele, essa expectativa acaba por não se concretizar e a angústia dá lugar ao alento. Conforme depreendemos, havendo o reencontro repetidas vezes, a criança desenvolve o sentido de separação e, também, o sentido de existência do objeto para além de sua presença perceptiva imediata. Acrescente-se que, quando mais crescida, a criança poderá, por meio de brincadeiras, tornar-se agente no processo de fazer aparecer e desaparecer o objeto e assim suportar sua ausência: tal é o sentido do jogo do fort-da (Freud, 1920/2010).

Quando, pelo contrário, a criança entra em um estado de urgência e a mãe está ausente ou se revela não responsiva, Freud qualifica essa nova situação como "traumática": o anseio pelo objeto que nunca chega intensifica-se, resultando em um distúrbio econômico do qual emerge uma crescente dor psíquica cujo paroxismo é o estado de desamparo (Freud, 1926/2006h). Ora, nesse caso, a criança não dispõe mais de garantias quanto ao retorno do objeto e, sequer, que este continue existindo. Pelo contrário, ela é "lançada ao léu": apenas o acaso "rege", em sua indeterminação radical, o reencontro ou não com o objeto ansiado. Experiência fundamental de passividade, a criança está subitamente entregue a uma abertura absoluta ao mundo (Herzog, 1999a); o máximo de atividade de que ela dispõe, no cerne mesmo de sua impotência, é o espasmo de seus reflexos que, por meio de movimentos motores e vocais descoordenados, chora e lança gritos ao seu entorno (Freud, 1950[1895]/1995). Nessas circunstâncias, não importa se e até que ponto a criança conseguiu construir, mediante experiências de satisfação e de reencontro pretéritos, o objeto em sua vida psíquica: quando tal estado é atingido, perdem-se as referências que garantiriam o retorno e a existência do objeto. O esvanecimento deste mostra, no final das contas, o quão frágil e precário ainda era sua presença na vida psíquica do infante.

Estaríamos lidando aí com uma situação de perda? Seguindo a direção proposta por Herzog (1999a), identificamos esse caso não tanto a uma situação de perda quanto a um "estado de perdição" - definido, em suas palavras, como a "ausência de qualquer referência sobre a qual seria possível se apoiar" (p. 69). Na medida em que a experiência de perdição correlaciona-se a um estado de dispersão pulsional, ela está referida ao desamparo, é certo - mas também ao "registro" de um além do princípio do prazer. Sua lógica não é, pois, a falta, mas a ausência e o excesso - a ausência de referências prévias que organizem o tempo e o mundo, articulada ao excesso pulsional, cujo aparelho psíquico se encontra dificultado de fazer frente e dominar (Herzog, 1999b). Com efeito, longe de haver uma ordenação temporal e, com isso, a expectativa de que o objeto seja reencontrado, o que há é somente uma profusão de acontecimentos que não se interligam ou interpenetram (Rosset, 1971/1989). Sem passado e sem futuro, a criança está situada apenas em um tempo atual - em um eterno presente - no qual os acontecimentos que emergem são pontuais e desvanecem sem deixar rastro.

Herzog (1999b) aproxima esse registro de temporalidade ao Aion, isto é, a um acaso que antecede qualquer tipo de ordem ou desordem - a um acaso constituinte, portanto - e que é "pertinente à esfera pulsional e fora da ordem psíquica, determinista" (Herzog, 1999b, p. 706). Assim, verifica-se um paradoxo no estado de perdição: a perda não é - e nem pode ser - vivida enquanto perda, uma vez que a criança não dispõe de nenhuma matriz de referência em que se basear. A consequência clara disso é que nem o exame de realidade, e muito menos o trabalho do luto, entram em jogo nessa situação. O que se tem é algo da ordem do traumático que demandará, por parte da criança, a invenção de novas formas de defesa.

 

Exame de atualidade

Entre o estado de perdição e o sentido de existência do objeto para além de sua presença perceptiva há uma zona intermediária. Nela, a criança, sem ser assolada por exigências pulsionais imperativas, consegue participar do jogo de ausência e reencontro do objeto, de forma que constrói, progressivamente, a distinção entre separação e perda. Conforme anteriormente indicado, nesse momento o infante reage a toda situação de ausência objetal com o desencadeamento de angústia, sinalizando assim a ameaça de perda do objeto em questão. O reencontro com ele propicia não apenas um alento em relação àquele afeto e à experiência de satisfação das necessidades atuais, como também contribui para a constituição do sentido de existência desse objeto para além de sua ausência: é como se a criança progressivamente confiasse que, apesar de não se apresentar à percepção imediatamente, o objeto ansiado sempre fosse retornar em um momento futuro.

Focalizemos agora a situação na qual a criança não está em estado de perdição, mas também em que seu sentimento de confiança quanto ao retorno do objeto ainda não foi estabelecido. Ainda que a criança já tenha construído algumas referências que a situem no mundo e no tempo, ainda que ela não esteja premida pela urgência, ainda, por fim, que tenha passado por experiências de reencontro com o objeto - ela não possui garantias quanto ao seu retorno: tanto é assim que, quando o objeto se ausenta, a ausência é sentida como uma ameaça muito real de perda (Freud, 1926/2006h). Vimos que, quando o exame de realidade já está plenamente constituído, o sujeito, em uma situação de perda objetal, deve convencer-se da realidade desta perda. No caso em que estamos nos ocupando agora acontece o contrário: o que o infante se esforça por afiançar é a realidade do reencontro com o objeto e, mais ainda, a "crença" de que ele retornará no futuro em situações semelhantes. Em outras palavras, ele deve convencer-se não da perda, mas da sobrevivência do objeto. Por conseguinte, depreendemos que a criança, nesse momento de sua organização psíquica, só é capaz de avaliar a existência do objeto se assim ele se apresenta à sua percepção e, portanto, somente no momentum atual. Neste caso, o "exame de realidade" está desprovido de sua função secundária e, destarte, só é capaz de realizar testagens em momentos atuais, em intervalos pontuais.

Devido a isso, indagamos se não seria mais pertinente referir-se a essa configuração particular do exame de realidade de outro modo. A sugestão de outra designação para ela pode ser encontrada no próprio texto freudiano. Com efeito, em uma tímida nota de rodapé ao Suplemento metapsicológico à teoria dos sonhos (1916), Freud distingue exame de realidade (Realitätsprüfung) de exame de atualidade (Aktualitätsprüfung), sem explicar esta distinção e prometendo elucidá-la em momento oportuno (Freud, 1916[1915]/2006d). O momento oportuno nunca chegou, e James Strachey cogita que, provavelmente, Freud estivesse remetendo o leitor a um de seus artigos metapsicológicos extraviados. Propomos, de acordo com as reflexões tecidas neste ensaio, que o dispositivo que só é capaz de avaliar a existência do objeto no momento atual seja chamado de Aktualitätsprüfung, de "exame de atualidade" e possa ser, desta forma, distinguido do exame de realidade.

A diferença maior entre o exame de atualidade e o exame de realidade está em estreita relação com a possibilidade de o sujeito distinguir a separação da perda. O exame de atualidade se limita, como vimos, a testar a existência do objeto no momento presente, ao passo que o exame de realidade avalia não apenas isso, mas também a existência do objeto para além da ausência imediata - o que supõe uma complexificação na relação do sujeito com o tempo: se o exame de atualidade consiste na avaliação de acontecimentos pontuais, o exame de realidade supõe a interpenetração de tais acontecimentos, formando uma noção de sucessão de eventos ao longo do tempo e de duração de uma coisa para além de seu presente imediato. O exame de atualidade seria, neste sentido, o rudimento do exame de realidade e estaria em vigência em um período no qual a divisão entre separação e perda ainda não é clara. O exame de realidade, em contrapartida, se tornaria dominante quando tal divisão se consolida devido ao jogo de presença-ausência do objeto, e teria, como seu núcleo (ainda atuante), o antigo exame de atualidade.

Julgamos proveitosa a distinção entre exame de realidade e exame de atualidade na medida em que a partir dela se pode cotejar e realçar características da dinâmica relacional de determinados quadros clínicos. Temos em mente, por exemplo, os chamados estados-limites: conforme apontado no começo deste artigo, tais pacientes padecem de intensa angústia quando submetidos a uma experiência de separação em relação ao outro, haja vista a separação ser sentida não como uma ausência revogável, mas como uma perda efetiva. É como se, para ter certeza da existência do objeto, fosse necessário que o mesmo comparecesse ininterruptamente à percepção do sujeito (Kapsambelis, 2011). Nos termos aqui propostos, o exame de atualidade seria um conceito mais próximo da realidade clínica desses pacientes, possibilitando-nos intuir a maneira como eles lidam com o outro, ou melhor, com sua ausência: para continuar existindo (sobrevivendo), o objeto precisa ser mantido em seu campo perceptivo. É digno de nota acrescentar que, segundo Kapsambelis (2011), pode ser essencial para o analista ter em conta essa dinâmica para propiciar um manejo clínico adequado desses pacientes. Não obstante, é importante frisar que, mesmo parecendo adequada a correlação entre exame de atualidade e o quadro dos estados-limites, ainda assim trata-se somente de uma indicação: deixamos em aberto se possui valor heurístico para as teorizações pertinentes.

Deixamos igualmente em aberto se é plausível conceber que certos sujeitos podem simplesmente "recusar" afiançar-se no exame de realidade quando em situações de perda: quer dizer, em vez de convencer-se da realidade da perda, o sujeito simplesmente a recusa, munindo-se de outros objetos para sustentar tal recusa e, principalmente, para passar ao largo da experiência de perda. A consequência disso seria, conforme aludido no início do artigo, a recusa em propriamente desempenhar o trabalho do luto, haja vista este necessitar, como condição preliminar, a constatação da perda. Empregamos aqui o termo "recusa" tendo em mente precisamente o conceito de Verleugnung (Freud, 1927/2006i). Se o seu uso é adequado, se exige adaptações ou simplesmente é inadequado para lidar com o problema em pauta, apenas investigações ulteriores poderão responder. Seja como for, concluímos este trabalho convencidos de que levar em conta a relação entre o exame de realidade e o trabalho psíquico do luto na experiência de perda é um ponto de partida possível para vislumbrar e cotejar alguns descaminhos do luto na contemporaneidade.

 

Referências

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Recebido em 08 de julho de 2016
Aceito para publicação em 11 de outubro de 2017

 

 

1 Temos ciência da dificuldade de usar categorias tão problemáticas como "realidade" e "existência". Contudo, julgamos necessário utilizá-las em nossa discussão. Especificamente a propósito da questão da realidade no pensamento freudiano, remetemos o leitor a Herzog e Gondar (2011), em que se faz uma distinção entre dois sentidos para a noção de realidade: um mais atrelado à realidade do mundo externo (Realität) e outro à realidade do inconsciente (Wirklichkeit).

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