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Jornal de Psicanálise
Print version ISSN 0103-5835
J. psicanal. vol.48 no.89 São Paulo Dec. 2015
SESSÃO DE CINEMA
O jardineiro fiel: comentários sobre o filme, baseado no livro de John Le Carré
Jeanne Magagna
Psicoterapeuta de crianças, adultos e famílias. Docente e supervisora na Tavistock Clinic por muitos anos, atualmente trabalha no Ellern Mede Centre for Eating Disorders de Londres. É uma das coordenadoras do programa de formação em psicoterapia infantil, modelo Tavistock no Centro Studi Martha Harris em Florença e Veneza. Autora de inúmeros artigos e livros. Londres. jm@hoping.demon.co.uk
Do bem público à voracidade privada
A energia que homens e mulheres dedicam à produção de bens materiais é quantificada em todos os nossos indicadores econômicos. Mas a energia que homens e mulheres investem em seus próprios lares com relação ao desenvolvimento de crianças felizes, saudáveis e seguras não aparece nas estatísticas. Nós criamos um mundo louco (John Bowlby, 1989)
Um sociólogo chileno, Luis Barros, afirma que, por definição, ser um homem bom é ser alguém bem-sucedido. Ele crê que atualmente o êxito é medido quase exclusivamente pela riqueza. Ser rico pressupõe ter certas habilidades como coragem, capacidade intelectual e dotes de negociação. As virtudes humanas, tais como amor, generosidade, consideração pelos outros, não parecem ser muito valorizadas. Sinagogas e igrejas vêm sendo esvaziadas de sua população, ao passo que as lojas e os consumidores se multiplicam dia a dia.
Como é que somos vistos e alcançamos um senso de identidade na sociedade? Para Barros, a resposta é dupla: ou alcançamos um senso de identidade sendo bem-sucedidos ganhando dinheiro ou alcançamos um senso de identidade tornando-nos violentos.
No passado, como nos anos 1960 e 1970, ser livre como indivíduo significava ser livre para se conhecer. Ousávamos ser poetas, um dançarino, um artista, músico ou escritor. Agora ser livre significa ter o privilégio da riqueza: a riqueza para comprar a casa de veraneio, a piscina, o segundo carro, as roupas novas, as férias.
Esse é o contexto no qual vimos O jardineiro fiel, o filme feito com base no livro com o mesmo título, de autoria de John Le Carré, o famoso novelista e ex-espião inglês.
A ganância por dinheiro
Vivenciamos no filme a sede voraz por dinheiro e poder refletida na Three Bees (As três abelhas), que faziam testes de novas drogas e não podiam esperar para completá-los antes de testar os medicamentos em suas vítimas: uma paciente do hospital, sem ter conhecimento disso, recebeu a droga que não a curou, e sim a matou. Outras 62 vítimas foram enterradas com ela.
O jardineiro fiel, um trabalho ficcional sobre o teste de medicamentos em áreas miseráveis do Quênia, retrata o ocultamento de testes que não dão sustentação ao uso benéfico de uma droga.
O ocultamento de dados que contradizem bons resultados de remédios era bastante comum quando John Le Carré escreveu o livro, e continua sendo assim até o presente. Por exemplo, nossas revistas e jornais médicos britânicos relatam o ocultamento corrente de resultados de testes secretos da paroxetina, droga usada para tratar depressão em adolescentes britânicos e americanos. Esses testes secretos da paroxetina mostraram que a droga empurra os adolescentes deprimidos de modo significativo ainda mais na direção de ideação suicida e suicídio!
No que diz respeito à paroxetina, a indústria farmacêutica Glaxo-Kline, que posteriormente mudou de nome, recebeu uma multa de 3 milhões de dólares, mas os pesquisadores e autores da Brown University, que faz parte da eminente Ivy League (grupo das mais conceituadas universidades americanas), pagos pela Brown, não tiveram que pagar nenhuma multa, nem perderam seus empregos. Vemos aqui como uma sociedade corrupta protege os acadêmicos.
Há cinco anos muitas pessoas nos Estados Unidos morreram de ataque cardíaco, facilitado por uma nova droga, ainda não completamente testada, que prometia alívio para alguns sintomas do diabetes.
Cito da edição do British Medical Journal de setembro de 2015. Ali se ilustra, mais uma vez, que ganância por dinheiro, poder, êxito é uma motivação incrivelmente potente para a corrupção de valores humanos básicos, de tal modo que:
As pessoas não importam, e ninguém se importa com elas.
Pessoas assinam documentos que elas não podem ler.
Pessoas morrem pelo uso de drogas mal testadas.
O assassinato ocorre para proteger o conhecimento de fatos que prejudicariam perspectivas de ganhos de governos e de companhias privadas.
O que estimula a ganância por dinheiro, poder e êxito a qualquer custo?
Voracidade e corrupção sempre existiram, mas talvez, de algum modo, com a comunicação de massas elas são mais facilmente identificadas e pode ser que atualmente a voracidade e a corrupção sejam mais ferozes. Para responder a essa questão da causa da ganância por sucesso material e poder hoje em dia, poderíamos pensar sobre:
A sociedade como um todo,
As instituições dentro da sociedade,
O sistema familiar no qual o indivíduo é criado,
A psique individual.
A corrupção da capacidade de intimidade na tenra infância
Como psicoterapeuta de crianças e de famílias, vou apresentar-lhes duas observações de crianças pequenas para descrever a corrupção da intimidade na infância que estimula a voracidade. Primeiro vem a observação de uma criança de 1 ano para ilustrar dois fatores familiares bastante típicos que promovem a confusão emocional e a voracidade subsequente por bens materiais e corrupção.
Pedro, 11 meses
A mãe pega o bebê no colo enquanto ele balbucia "ta-ta-ta". Aí a mãe lhe dá o seio direito, e ele imediatamente começa a mamar. Ele coloca sua mão direita em cima do seio, bem perto da boca. Depois de uns minutos, ele toca o pescoço da mãe e, a seguir, a boca desta e, aí, com o dedo indicador, o médio e o anular toca a ponta dos dentes da mãe e seu lábio inferior. É uma cena muito terna, na qual a mãe, em retribuição, diz que adorava o fato de que ele também estava "acariciando sua cintura" com a outra mão. Este é um momento bonito de sintonia empática com holding e um pensamento nutriente sobre o amor de um pelo outro.
A beleza desse momento terno e esteticamente agradável se rompe quando a mãe pega o celular e manda uma mensagem. O bebê começa a mover o tronco para a frente e para trás e escorrega para o chão entre as pernas da mãe. Logo em seguida a empregada lhe dá um pião, que, ao ser premido, gira, fazendo diferentes sons musicais. Aí a campainha toca, e chega uma visita. Ao mesmo tempo o irmão mais velho de Pedro, de 3 anos, Max, acorda, e a mãe vai pegá-lo.
Pedro se agarra nas pernas da mãe e diz: "aah... aah... aah", não obtém resposta e, então, morde o joelho da mãe. A mãe diz "ai, não me morda". Pedro se afasta, pega uma bola de pano, a morde e a lança longe. Pedro ainda não está tendo nenhuma resposta de nenhum dos três adultos presentes e, assim, ele se dirige à janela e fica de pé, olhando pelo vidro, sem um foco aparente. A mãe dá a Pedro um grissini, no qual ele dá uma mordidinha, mastiga e engole e, em seguida, dá mais três mordidas e engole.
Limites com a pessoa que se ama
Pedro tem 11 meses de idade. Para ele, a mãe e o pai são "o seu mundo". Ele acabou de ter um momento bonito de intensa intimidade com a mãe e aí se sentiu abandonado à medida que "a vida da mãe com outras pessoas" se impôs. A mãe foi chamada pelo celular, pela pessoa que tocou a campainha e pelo irmão mais velho, Max. Pedro se sentiu largado no momento em que ele escorrega do colo da mãe e se volta para morder o joelho dela. Quando a mãe diz "ai, isso dói", Pedro para e mais tarde morde uma bola e a lança longe. Pedro vivencia um profundo sentimento de perda da intensa proximidade com a mãe e, em seguida, um sentimento de raiva, quando ele a morde e morde a bola, representando a mãe. Logo em seguida a empregada dá a Pedro um pião que gira com música, capturando, momentaneamente, sua atenção, e o desvia das emoções que estava sentindo. Através do ataque à mãe com a mordida, contudo, a sala se enche de objetos persecutórios e se estraga. Pedro fica claustrofóbico e vai para a janela, ficando a olhar, sem foco. Aí lhe dão um grissini, que ele morde três vezes.
Ninguém se dá conta de que Pedro tem um sentimento de perda desse lindo momento com a mãe. Quando ele morde o joelho da mãe e morde a bola, está sentindo que não teve o suficiente da mãe que ele tanto deseja. Nesse momento poderíamos concordar com Winnicott (1986, p. 213), que diz: "A voracidade é amor em uma forma primitiva". Percebemos que todos nascemos com voracidade e com a necessidade de domar nosso ódio aos limites. Os limites, a função paterna nas mentes da mãe e do pai, são impostos ao nosso desejo de tomar posse completa da mãe, do pai, da pessoa ou pessoas que amamos. Nosso ódio pelo limite imposto pela função paterna e nosso sentimento de perda subjacente quando existe um limite exigem uma mitigação por meio de mais compreensão compassiva e amor parentais. Por meio do amor e da continência de nossas experiências emocionais, nós nos domamos para nos tornarmos seres humanos capazes de ter intimidade com os outros e preocupados com o bem-estar deles. O bem público é alcançado através desse processo de socialização.
Voltando para Pedro, parece que ele, com o olhar perdido na janela, perdeu de vista "a mãe boa". Um pião que gira e um grissini são substitutos para a companhia da mãe.
Pelo menos Pedro teve um bom momento com a mãe, assim, o seu ódio por ela tê-lo largado pode potencialmente ser mitigado pelo amor que sentiu por ela naquele bom momento; ele, contudo, não foi compreendido e estava sendo "treinado" para sentir que não pensar pode ser a melhor maneira de lidar com perdas. "Não pensar a respeito de uma perda e mais um pião que gira e comida" é sinônimo do começo da voracidade por bens materiais e a perda de um senso de que o que queremos mesmo é a intimidade com "o outro".
Temos, assim, a corrupção da intimidade com a pessoa amada. Você pode ganhar mais brinquedos, mais comida e, como adulto, mais carros, mais casas e dinheiro. A partir daí, o impulso para bens materiais é alimentado proporcionalmente à quantidade de ódio com relação à perda da intimidade com figuras ou parceiros primários. O problema é que você nunca consegue ter posses materiais suficientes. Mesmo com o controle possessivo do objeto material, não há nunca o suficiente!!! Essa é a definição de voracidade: uma falta de satisfação em obter aquilo que se quer. Para aquelas crianças privadas de compreensão, nutrição e intimidade, tem-se o sentimento de que:
1. Se não existe um "outro emocionalmente sintonizado", precisamos nos voltar para o controle onipotente e conseguir o que queremos por nós mesmos. Isto se chama onipotência primitiva.
2. De modo diferente do que acontece com a figura primária amada, as coisas estão sempre disponíveis; assim sendo, parece muito mais seguro, menos frustrante e doloroso desejar:
Brinquedos, comida, outros bens, marcas de grife, conquistas e dinheiro que você consegue por si mesmo.
Desse modo não é preciso depender de outros e se confrontar com as necessidades não satisfeitas.
Voracidade por algo que nem sabemos o que é
Nunca ter tido uma mãe em sintonia como Pedro teve leva a um outro tipo de voracidade, uma voracidade por aquilo que nunca se conheceu ou se teve. Esta é a voracidade das crianças muito privadas. Deixem-me dar um exemplo de "A ponte quebrada" de nosso livro El niño en silencio (Magagna; Saba, p. 2015).
O bebê Jon, nos seus primeiros 5 meses, tem uma mãe deprimida que trabalha. Ela aprendeu que você estraga os bebês, se vai até eles quando eles choram. Quando Jon chora de noite, a mãe o deixa chorar. Seus gritos são os de um bebê muito desesperado que não tem qualquer ideia de que haverá algum alívio do seu sofrimento. Aos 3 meses, Jon observa a mãe com um ar indiferente. A tristeza emana do seu rosto e do seu corpo. Seus braços já não se estendem convidativos, acenando, excitados e agitados dizendo "me pegue nos braços", movimentos característicos das semanas anteriores. Agora Jon não parece sinalizar com frequência pedidos de ajuda ou atenção da mãe, quando seria bom que o fizesse. Ele apenas se agarra ao polegar entre o indicador e o dedo do meio. Jon tem uma ponte quebrada com a mãe; ele conscientemente espera pouco dos pais e se agarra tenazmente a objetos físicos, como uma maneira de se autorregular emocionalmente e de se autoconfortar. Jon aos poucos se dissociou do seu self vulnerável, indefeso e choroso.
Aos 6 meses, Jon se afasta da experiência dolorosa de depender da mãe, ele não a reconhece quando ela entra no quarto, não se dirige a ela para ser confortado e se volta para suas próprias coisas em busca de segurança. O uso de um encapsulamento cístico quase impenetrável das "lágrimas escondidas do pesar" (S. Klein, 1980) agora se faz presente. Jon repetidamente usa mecanismos primitivos protetores, tais como manter a boca fechada e segurar objetos duros como chaves, um bloco e uma chave de fenda. Agora Jon é agitado, está sempre em movimento, nada o satisfaz realmente. Ele quer "coisas", porque abertamente perdeu interesse na mãe. Ele só pode agarrar-se a "objetos duros", e não à mãe, para ter segurança.
De modo semelhante, com crianças mais velhas e com adultos, "objetos duros" como ouro, dinheiro, casas, carros dão um sentimento de falsa segurança, à medida que você tem algo concreto que não vai desaparecer de sua vista. Esses objetos estão sob o seu controle. Isto é a onipotência primitiva. O problema é que o desejo de controlar, de ter poder, de ter objetos materiais é insaciável, pois os objetos nunca fornecem o sentimento de intimidade com um outro ser humano que nós desejamos inatamente.
A voracidade por ser bem-sucedido, de alcançar, de ganhar e ganhar de novo "a luz dos olhos da mãe": a onipotência primitiva do êxito
Um estudo americano de mulheres muito exitosas mostrou que essas mulheres haviam se sentido rejeitadas e desvalorizadas pelas mães. Ao custo de amizades, saúde física, de serem mães adequadas, elas foram levadas a ter as melhores notas na classe, mais altas que as de todos os demais e a ter carreiras muito bem-sucedidas. Subjacente a isso, havia o desejo de estar "sob a luz dos olhos da mãe" que promoveu a voracidade delas por êxito, mas corrompeu suas possibilidades de intimidade emocional consigo mesmas, seus parceiros e seus filhos.
Tessa e o que ela representa
O que esse filme está dizendo, através das imagens, sobre as mulheres, a maternidade e as conquistas?
Tessa é uma mulher de 24 anos. Sabemos pelo livro que ela acabou de perder o pai, e Justin, o homem mais velho, parece oferecer alguma segurança. Eles têm uma relação afetuosa e sensual, mas há pouca sensação de intimidade emocional entre eles. Justin nunca está certo de ser amado ou de ter sido amado por Tessa. Ele parece ter dificuldade de ser íntimo tanto com ela quanto consigo mesmo. Ele cuida com toda a dedicação de suas plantas, que ele poda, protege de insetos e água com cuidado amoroso. Ele pode projetar nas plantas o seu próprio desejo de receber cuidado e atenção diários e toma conta disso ele mesmo. As plantas estão sempre sob o seu controle.
Tessa é vorazmente levada a conseguir processar a companhia farmacêutica Three Bees pela matança de mais de 62 mulheres quenianas por meio dos testes medicamentosos falhos, com suas drogas defeituosas que não foram corretamente testadas.
O papel de Tessa, a meus olhos, seu impulso para o poder, o sucesso, tem um êxito tão grande, que:
1. Ela se afasta de conseguir uma relação íntima com o marido, Justin. Ela não partilha nada da sua investigação com o marido.
2. Ela negligencia o marido quando nem mesmo diz muita coisa sobre a natureza de seu relacionamento com Arnold Blum, o médico, com quem ela frequentemente está longe, por dias e semanas investigando a história do "Dypraxa". E, também, quando se faz conhecida por ter relações de flerte, talvez mesmo casos, com outros homens, aparentemente em função da sua investigação; ela parece ficar excitada ao "conquistar os homens" com seus flertes. Talvez colecionar homens faça parte da sua voracidade de compensar uma sensação de incapacidade ou de perda da intimidade consigo mesma e com Justin.
3. O self necessitado da própria Tessa é projetado nas crianças negras quenianas abandonadas e miseráveis. Ela pode lutar pelas vidas de "mulheres e crianças necessitadas" que precisam de proteção em relação aos testes fatais dos medicamentos, mas lhe falta interesse ou capacidade de se proteger e ao seu bebê no útero.
4. A necessidade de brilhar por parte de Tessa, realizando uma missão exemplar, supera qualquer senso de identidade como uma mãe recentemente grávida, com o bebê no útero? Arnold Blum, o atraente médico negro, diz que ele "a amarraria em casa" nesses últimos meses de gravidez; no entanto, Tessa insiste em se expor a todo tipo de doenças e sujeiras enquanto continua sua missão de salvar "as incontáveis pessoas abandonadas do Quênia". Será que Le Carré está salientando a corrupção do conceito de ser uma "mãe suficientemente boa", enquanto atribuímos grande glória a um sucesso profissional notável e recompensas monetárias visíveis e exageradas?
Ao dizer isso, lembro-me de uma psicoterapeuta de crianças muito respeitada pedindo ao dr. Donald Meltzer que tomasse sua filha em análise. O dr. Meltzer respondeu que ele tinha uma psicoterapeuta muito boa para sua filha e recomendou que a filha daria muito valor à mãe, a terapeuta de crianças, se esta conversasse uma hora com ela todos os dias!!! Seria essa psicoterapeuta como Tessa? Teria a terapeuta, por algum motivo, vivido uma corrupção da intimidade com sua própria mãe, consigo mesma e com a filha? Será que os valores da sociedade foram corrompidos a um tal grau, que é muito valorizado ser uma terapeuta de crianças, mas não nos sentimos suficientemente valorizadas se formos simplesmente mãe para o nosso próprio filho?
Finalmente, em relação a Tessa, podemos tomar em consideração a pergunta que ela faz: Os fins justificam os meios? Tessa faz essa pergunta a si mesma depois de ter falsamente seduzido Sandy, levando-o a acreditar que ela teria sexo com ele, se ele lhe entregasse a documentação dos testes do remédio que resultaram na morte de 62 pessoas por causa do "Dypraxa". Sandy sente-se feito de bobo quando Tessa não topa, depois que ele lhe entrega o documento de Pellegrin.
Isso leva a uma imagem mais complexa de ser humano. Estaria Tessa justificada em, buscando um substituto para o pai, casar com Justin, usando desse modo as conexões que ele tinha, negligenciando-o e arriscando sua vida e, de fato, morrendo a serviço dessa missão de salvar vidas pelas quais ela se sente levada a ter êxito?
Podemos nos perguntar: sua missão é exemplar ou é uma forma de voracidade encoberta? Há talvez uma voracidade de ser bem-sucedida em vencer o "mal" da ganância dos materialistas por dinheiro obtido com a venda, e uso, de drogas nocivas a esses povos africanos.
Justin e a busca da verdade, levando ao nascimento da intimidade com o self e com o outro
Justin, o marido de Tessa, dando a sua "palestra chata", que tanto ele quanto Tessa concordavam que era chata mesmo, e não abordando questões importantes, é uma figura que representa O Establishment. Podia ser qualquer establishment de homens de ternos cinza em conformidade com a política do establishment, perdendo suas próprias identidades, seus próprios pontos de vista à medida que eles sustentam o ponto de vista do establishment. Aqui se trata do establishment britânico, a Embaixada Britânica no Quênia, investindo muito dinheiro nos testes de medicamentos, temendo perder dinheiro se os resultados forem maus.
Le Carré, em O jardineiro fiel, usa "os homens de cinza" cuidando de seus próprios jardins, protegendo-os de qualquer infortúnio, não pensando no "bem comum". Esses são homens de classe média ou de classe média alta da embaixada que desenvolveram o seu "nariz empinado" em relação a questões emocionais em suas mentes; "os negros não contam" e podem ser usados para servir aos propósitos e ganhos dos britânicos. Matar pode ser feito em segredo para preservar os interesses britânicos. Dar informação sabendo que, se a localização das pessoas ficar conhecida, ela será usada para localizá-las e matá-las, não importa. Mentir, encobrir, a negação dos nossos direitos humanos... nada disso importa.
Lágrimas congeladas, negação e redenção
A corrupção da intimidade com o self e com o outro é mostrada no relacionamento de Justin com Tessa. Ele não se mantém conectado com o que está movendo Tessa politicamente. Em vez disso, ele fecha sua mente enquanto cuida de suas plantas, e Tessa, ao não compartilhar suas atividades com ele, alimenta a manutenção que ele faz do status quo. Cuidar das plantas é seguro, envolver-se com o que interessa a Tessa é inseguro. Na superfície, o deles parece com um relacionamento aplacatório, sensualmente íntimo entre o casal, desde que Justin não fique sabendo nem de seu próprio coração nem do de Tessa. Esta não é apenas a história de Tessa e Justin, é a história de muitos casais, cuja capacidade para a intimidade foi corrompida por babás, pais que não se envolveram suficientemente com eles, internatos e que, subsequentemente, agarraram-se adesivamente a um casamento com a corporação ou a atividade política ou a profissão, em vez de com a mulher ou o marido.
O berço do casal para a intimidade um com o outro é necessário para manter "o bebê no útero": o bebê de cada um de seus corações e o bebê dentro de Tessa. O berço não está suficientemente formado, e disso resulta "um bebê morto". Sinto que este é um comentário sobre como a ganância por dinheiro, sucesso e conquistas corrompeu o trabalho de construção do berço para o crescimento emocional do coração, a intimidade do casal e as crianças de hoje.
Tessa flerta com os homens, talvez tenha casos com eles, e se lança à sua "missão de atacar a corrupção", e Justin mantém-se quieto, como se ele não pudesse entender o que está se passando na vida da esposa. Tessa, então, é morta, e Justin, vendo o seu cadáver, permanece quieto, como se suas lágrimas ainda estivessem congeladas dos anos de internato, quando ele tinha que negar a perda das figuras íntimas da família durante tantas semanas do ano. Este é fenômeno do Menino da Escola Privada Britânica1 que faz com que os funcionários do governo se agarrem à conformidade com a Política Britânica da Embaixada, não ousando entrar em conflito. Este é Justin, incapaz de permitir que seu coração se desassossegue com a morte de Tessa.
No entanto, essa corrupção da capacidade de intimidade é transformada à medida que Justin começa a conhecer, admirar e amar Tessa e seu trabalho. Ele começa uma missão de luto e a conhecer sua mulher morta. No processo, suas lágrimas se descongelam, e ele desperta para a dor da intimidade, a dor da perda. Justin, como parte do processo de luto, identifica-se com a mulher morta e persegue a missão dela de revelar os assassinatos e a corrupção do negócio dos remédios. Justin é morto no processo, pelo mesmo governo britânico corrupto que quer preservar o status quo, a ganância pelo dinheiro, o desejo de não ter nenhuma imagem pública destruída. Justin também é morto, do mesmo modo que Tessa e Arnold Blum foram marcados para ser mortos pelos "negros".
Mas quem poderia imaginar que "os britânicos, dentre todos os povos", poderiam estar envolvidos em mortes para acobertar a verdade? Certamente isso deve acontecer com as outras nações, mas não, Le Carré, um antigo espião britânico, sugere que mentir, que a negação da importância de uma vida humana e o assassinato subsequente de Justin, um de seus funcionários, é apenas "o que é feito" em prol da nação britânica também.
Essa é a história do establishment em muitos países, sustentada por pessoas incapazes de sentir-se livres para pôr em risco seus empregos, quando têm um ponto de vista reflexivo individual.
No funeral de Justin, temos mais uma pessoa aberta à verdade: Sandy tem a coragem de libertar-se do seu agarramento adesivo à Embaixada Britânica corrupta, por mais certa ou errada que ela seja. No funeral de Justin ele revela a corrupção na Embaixada: Justin foi assassinado com muitos tiros por homens negros contratados para matar pela Embaixada Britânica. Podemos imaginar que Sandy, como consequência, vai perder a carreira na Embaixada. Falar a verdade significa arriscar a carreira, não apenas na Embaixada Britânica ou no Serviço de Saúde Britânico, mas em muitos establishments pelo mundo. Mentir, ocultar a verdade, agarrar-se à corporação para manter o dinheiro seguro mantém a força corruptora que sustenta a voracidade dentro do establishment de todas as nações. Pois hoje ser bem-sucedido é "ser rico". Este é o valor político dominante em nosso mundo perverso.
Leituras complementares
Akhtar, S. (2015). Greed. Londres: Karnac. [ Links ]
Bowlby, J. (1989). Una base segura:aplicaciones clínicas de una teoría del ego. Barcelona: Paidós Ibérica. [ Links ]
Klein, S. (1980). Autistic phenomena in neurotic patients. International Journal of Psychoanalysis, 61,395-402. [ Links ]
Le Carré, J. (2001). The Constant Gardener. Londres: Hodder. [ Links ]
Long, S. (2008). The Perverse Organisation and its Deadly Sins. Londres: Karnac. [ Links ]
Magagna, J.; Saba, M. (2015). El niño en silencio. Londres: Karnac. [ Links ]
Rustin, M. (2014). Belonging to oneself alone. Psychoanalysis, Culture and Society, 19(2),145-160. [ Links ]
Winnicott, D. W. (1986). Home is Where We Start from: Essays by a Psychoanalyst. Nova York: W. W. Norton. [ Links ]
Recebido em: 3/11/2015
Aceito em: 7/11/2015
Tradução de Liana Pinto Chaves
1 British Public Schools são escolas particulares, aristocráticas, muito seletivas, de altíssimo padrão e de disciplina severa.