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Jornal de Psicanálise

Print version ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.48 no.89 São Paulo Dec. 2015

 

RESENHAS

 

Os primeiros psicanalistas: Atas da Sociedade Psicanalítica de Viena 1906-1908

 

 

 

Fernanda ZacharewiczI; Maria Cláudia FormigoniII

IPsicanalista, doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da PUC-SP. Membro do Fórum do Campo Lacaniano/SP. fzacharewicz@yahoo.com
IIPsicanalista, mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da PUC-SP. Especialista em Psicologia Clínica também pela PUC-SP. Membro do Fórum do Campo Lacaniano/SP. mclaudiaformigoni@gmail.com

 

 

Editora: Scriptorium
Resenhado por: Fernanda Zacharewicz e Maria Cláudia Formigoni

 

A arqueologia de uma teoria

No momento em que pensamos sobre psicanálise, de imediato, nos lembramos de Freud. A imagem do pai da psicanálise atrás do divã, escutando seus pacientes, ou sentado pensativo a sua escrivaninha, refletindo sobre seus atendimentos e escrevendo algum de seus muitos textos, também é comum. Nessa imagem, o único diálogo que cabe é aquele que se deu por escrito entre Freud e alguns correspondentes, especialmente Wilhelm Fliess, por meio das cartas que trocaram. Costuma-se pensar num Freud que, basicamente sozinho, teria criado a teoria psicanalítica. Para, porém, melhor formular seu trabalho, fundamentá-lo e, até mesmo, transmiti-lo, outros diálogos e debates estabeleceram-se.

O volume I da obra "Os primeiros psicanalistas: Atas da Sociedade Psicanalítica de Viena 1906-1908", traduzido direto do alemão, por Marcella Marino, e recém-publicado no Brasil pela Editora Scriptorium, inaugura a Coleçãoatentado e lança luz exatamente sobre essas outras interlocuções de Freud, evidenciando como foi construído o conhecimento psicanalítico.

Com quem dialogava o pai da psicanálise? Quem eram os primeiros psicanalistas? Trata-se de um grupo de homens que, a convite de Freud, se reunia, inicialmente, em sua própria casa todas as quartas-feiras à noite. O grupo pioneiro não era formado somente por médicos, mas também por educadores e intelectuais da época, contando com um músico e também com escritores. Participavam das "noites psicológicas de quarta-feira" Otto Rank, responsável pela redação das atas, Alfred Adler, Max Graf, pai do pequeno Hans, entre outros.

A cada encontro, um dos membros da Sociedade era responsável por fazer uma conferência fosse a respeito de um caso clínico, de um artigo a ser publicado, de um livro, de uma peça de teatro ou de um artista. Enfim, os temas variavam em torno de qualquer produção cultural ou científica, própria ou de outrem, que pudesse ser relacionada aos estudos psicanalíticos. Depois da conferência, começava um debate, com o qual, até 1908, todos os presentes eram obrigados a contribuir. A leitura das atas permite perceber o quanto eram ricas e intensas tais discussões. Nota-se também com nitidez o início da elaboração de algumas noções ou conceitos próprios à psicanálise, bem como o surgimento de questões importantes e válidas ainda hoje.

Além disso, ao leitor, no decorrer do texto, evidencia-se que cada um dos membros dessa Sociedade contribuiu para a construção da teoria psicanalítica. Adler, por exemplo, em uma das reuniões, fala sobre aquilo que viria a ser o futuro conceito de sublimação:

Ele só vê uma maneira de conceber a substituição de um complexo por outro, a saber, criar uma outra solução para a configuração neurótica da vida pulsional (por exemplo: a pintura, a música, a psicologia). (p. 169)

Freud, como já era de se esperar, traz inúmeras contribuições. Citamos aqui uma delas:

Em primeiro lugar, seria necessário estabelecer que a pulsão é um conceito, um nome para a influência dinâmica ou perturbadora exercida pelas necessidades orgânicas (estruturais) no psiquismo. A pulsão conduz do orgânico ao psíquico. (p. 221)

Na ata 11, de 30 de janeiro de 1907, durante uma discussão sobre a constituição da neurose, há outra significativa contribuição de Freud. Ele fala sobre a importância da transferência, mais um dos conceitos fundamentais da psicanálise nitidamente abordados nesses encontros:

Só haveria um poder capaz de eliminar as resistências: a transferência. Nós compelimos o paciente a abandonar as resistências por amor a nós. Nossas curas são curas de amor. ... Pode-se curar na justa medida em que há transferência: salta aos olhos a analogia com a cura hipnótica. Na psicanálise, contudo, o poder da transferência é empregado para produzir mudanças permanentes, enquanto a hipnose é apenas um artifício. O destino da transferência decide o êxito do tratamento. (p. 177, itálicos no original)

Nas Atas também é possível encontrar alguns intentos de estruturação teórica e investigativa que foram posteriormente abandonados por Freud. Nas reuniões dos dias 15 e 22 de abril de 1908, por exemplo, veem-se os participantes, em conluio com Sigmund, elaborarem um "questionário para investigação da pulsão sexual", no qual fica evidente a importância que o aspecto orgânico tinha para os primeiros psicanalistas à época. Como sabemos, Freud, ao longo do tempo, minimiza o papel desse componente na formação psíquica.

Não somente a construção da teoria psicanalítica freudiana é percebida no decorrer das páginas do livro em questão, mas também a apropriação e o posicionamento que cada um dos membros tem acerca dos assuntos discutidos. Muitas vezes não havia consenso, e conflitos instalavam-se. Isso certamente não foi sem consequências para o movimento psicanalítico, especialmente no que se refere às dissidências e ao surgimento de ramificações da teoria freudiana.

Até mesmo, podemos pensar que tal aspecto talvez tenha contribuído para que, na última reunião antes do recesso de verão de 1907, Freud anunciasse a dissolução da Sociedade e sua imediata refundação, com aqueles que manifestassem interesse. Em 22 de setembro do mesmo ano, envia uma carta aos membros, anexada à ata 25, de 9 de outubro de 1907, e da qual um trecho segue aqui transcrito:

Permita-me justificar esta medida aparentemente supérflua. Temos em vista levar em conta as mudanças naturais que se produzem nas relações humanas, quando supomos que para um ou outro membro de nosso grupo a participação em nossa Sociedade possa já não significar o mesmo que nos anos anteriores, seja porque se esgotou o interesse, ou porque seu tempo livre e forma de vida o impedem de participar de nossa Sociedade, ou ainda por razões pessoais que o apartam de nós. (p. 308)

A leitura desses documentos também nos mostra que o corpo teórico psicanalítico constrói-se, principalmente, fora do âmbito universitário formal. As reuniões de pessoas interessadas na psicanálise marcam o estilo da transmissão freudiana desde os primeiros tempos. Freud não somente escrevia ao grande público, como há tempos já sabemos, através de suas ObrasCompletas, mas também se punha a pensar e investigar junto com os colegas. Essa interlocução era importante para ele, como aponta Hermann Nunberg na introdução desse compêndio:

As discussões eram estimulantes para todos, até mesmo para Freud. Adler enfatiza desde cedo, por exemplo, a importância da agressividade na vida anímica; Freud acolhe essa ideia e passa, a partir de então, a lhe dar maior atenção. ... A troca de ideias era marca característica dessas discussões. ... Certamente havia um abismo entre o saber de Freud e o saber dos outros. Enquanto estes eram meros iniciantes, Freud já dispunha dos fundamentos de sua obra fundamental. Eles se sentavam em torno de uma mesa farta, mas nem todos podiam digerir o que lhes era oferecido. ... Ouviam Freud com muita atenção, buscavam se apropriar de cada uma de suas palavras e faziam sua a causa de Freud. (pp. 24-25)

Esse aspecto favorecia que Freud fosse posto por alguns membros da Sociedade no lugar de mestre. A partir da leitura das Atas, porém, é perceptível o esforço dele para não ocupar esse posto. Continuamente, propunha e instigava o debate entre todos os participantes e considerava seriamente cada uma de suas contribuições, contrapondo-as ou corroborando-as quando julgava necessário. Essa postura de Freud evidencia sua preocupação não só com a construção da psicanálise, mas também com a formação dos psicanalistas.

Destaca-se, ao longo da leitura dos documentos da Sociedade, outra relevante preocupação freudiana: a transmissão da psicanálise. A iniciativa de reunir diferentes interessados por sua ainda incipiente teoria, pelo comportamento humano e pelas diversas manifestações culturais é, por si só, um reflexo de tal preocupação. A postura e o comportamento de Freud ao logo das reuniões e na condução da Sociedade também têm marcas de seu interesse pela transmissão da psicanálise. Além disso, diversas pessoas, também de fora de Viena, foram convidadas a participar dessas reuniões. Em 23 de janeiro de 1907, por exemplo, Max Eitingon, interno de Bleuler no hospital de Burghölzli - como também o era Jung - foi a primeira pessoa do exterior a vir debater com Freud. Já Jung participou pela primeira vez, junto com Binswanger, na reunião de 6 de março de 1907. Assim, em pouco tempo, a psicanálise difundiu-se para além do Império Austro-Húngaro.

É justamente no âmbito da preocupação com a transmissão que pode ser elencada a brilhante iniciativa de Marcelo Checcia, Ronaldo Torres e Waldo Hoffmann de publicar as "Atas da Sociedade Psicanalítica de Viena". Pensada para facilitar a leitura, desde a fonte até a diagramação, que permite a tomada de notas de estudo nas páginas, esta é uma edição primorosa. O esforço ímpar dos organizadores pôde presentear, com essa obra fundamental para a história e transmissão da psicanálise, a cada um de nós, psicanalistas brasileiros, assim como o público leigo interessado por esse âmbito. Injusto é termos de esperar a publicação dos próximos volumes. Que venham sem demora!

 

 

Recebido em: 11/9/2015
Aceito em: 15/9/2015

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