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Jornal de Psicanálise
Print version ISSN 0103-5835
J. psicanal. vol.49 no.90 São Paulo June 2016
DEPOIMENTOS DOS EDITORES
1985: Junqueira Filho / Philips
Luiz Carlos Uchôa Junqueira Filho
Membro efetivo da SBPSP. mr.junqueira@uol.com.br
Convidado para esta edição comemorativa do Jornal de Psicanálise, dei-me conta de que, passados 27 anos, minhas memórias daquela época já estavam nubladas. No entanto, deparando-me com o Editorial de despedida de nossa gestão, senti que ali está estampado o Zeitgeist que hoje gostaríamos de relembrar: daí, sua reprodução (Ano 21, nº 43-1988).
Selecionei também um artigo da seção "Ensino", escrito por Frank Philips com o enigmático título: "O analista espera seu paciente. Ele chega". Neste pequeno, mas profundo artigo, está condensada uma visão arrojada de como o vértice psicanalítico pode ajudar o analisando a defrontar-se com uma ilusão desconhecida em busca de uma "autoridade" salvadora. Ao mesmo tempo, somos brindados com a oferta de coordenadas básicas a orientar os analistas em formação na obtenção de estruturas psíquicas adequadas a enfrentar este desafio (Ano 19, nº 38-1986).
Frank Philips, é bom lembrar, foi um dos fundadores de nossa Sociedade, bem como o principal responsável pelas vindas de Bion ao Brasil, na década de 1970, após ter voltado de Londres, onde se analisou com Melanie Klein e Bion.
Boas lembranças e/ou surpresas.
O analista espera seu paciente. Ele chega1
Frank Philips2
Seria este o momento em que deveríamos supor que o analista; a despeito de seu trabalho profissional, consiga ter uma existência adulta normal, razoavelmente consciente e em contato com o mundo a seu redor. Isto lhe dá a possibilidade de manter um estado de espírito em que se sente emocionalmente confortável. Agora ele está de fato equipado com um estado de espírito diferente. É uma vantagem considerável ter podido aumentar sua capacidade intuitiva de observação e reflexão, obtendo assim um instrumento intuitivo aproveitável. Tanto quanto sabemos, nunca se conseguiu um meio tão científico para investigar a realidade psíquica quanto este instrumento psicanaliticamente disciplinado.
A essência desta possibilidade recentemente desenvolvida depende, para o analista de hoje em dia, da extensão da sua liberdade e da consciência dos sucessivos níveis pelos quais passou e psiquicamente sobreviveu desde o seu nascimento. Ele sentirá o benefício daí derivado à medida que sua experiência cresça com a prática. Um aspecto essencial de seu crescimento resultará, se puder estabelecer um senso de separação de sua própria análise, de seu estudo técnico, bem como dos seminários e supervisões. Sua cultura pessoal e natural se libertará, tornando-se portanto mais verdadeiramente disponível para uso próprio. Sua própria identidade estará garantida.
Bem, o paciente chega, entra e se deita no divã. Talvez diga bom-dia, talvez não. Alguma coisa da atmosfera emocional que dele transpira poderá ser sentida pelo analista. O choque inevitável do encontro dos dois ocorreu. Não obstante o número de sessões já havidas entre os dois, esse fato continuará a ocorrer no começo de cada sessão. A prática da análise possibilitou capturar o sentido do invisível e inaudível, e também, naturalmente, de dirigir atenção aos fatos que o paciente vai pondo à sua disposição para uso próprio durante a conversa. Ele está capacitado a acompanhar as muitas vicissitudes que o movimento nas conversas lhe proporciona. Surge evidência constante para definir a natureza da transferência dentro do escopo do movimento. É parte dos recursos de intuição do analista utilizar sua visão do que está ocorrendo para ajudá-lo a dizer a seu paciente aquilo que ele, o analista, acredita estar disponível para ser levado em conta.
A verdade do relacionamento analítico transferencial depende da liberdade e visão do analista para estabelecer claramente a diferença entre seu ponto de vista quanto ao que está ocorrendo e o do analisando. Por esse motivo as conversas entre os dois proporcionarão todas as oportunidades possíveis para que a análise prossiga. Como a análise está sendo conduzida pelo analista neste sentido, ela difere dos demais relacionamentos humanos. A responsabilidade do analista pela sua parte no trabalho dependerá de seu insight e habilidade para expressar suas opiniões de modo a poder ajudar seu paciente numa tarefa na qual o paciente não pode ter as mesmas opiniões sobre si mesmo que seu analista. Até o fim da análise a responsabilidade de cada um permanece constantemente separada.
Ora, isto nos leva a considerar uma característica dinâmica universal em todos os seres humanos que pode ser usada com grande proveito em análise. Refiro-me às razões de qualquer paciente que procura nossa ajuda. Suas razões conscientes podem ser muitas, mas a razão básica que infalivelmente aparecerá é que o analista ou é uma autoridade no assunto de sua vida, ou deveria sê-lo. Naturalmente, se o paciente tem suas dúvidas a este respeito, ou uma necessidade aparente de criticar ou atacar a falha do analista em representar adequadamente uma "autoridade" a fim de testá-lo, a crença à qual me refiro existirá em sentido negativo. O que deve nos interessar é o caráter absolutamente inevitável desta necessidade em nossos pacientes. Este fenômeno vigora em todo e qualquer setor do conhecimento humano, tanto no mundo antigo quanto no moderno. A meu ver, somente numa psicanálise conduzida por um analista profundamente conscientizado deste assunto é que o analisando terá a oportunidade única em sua vida de aprender a respeito da profundidade e persistência da ilusão psíquica humana sobre autoridade. Esta ilusão não deixará de existir consciente ou inconscientemente em quase todos nós.
Dependendo, no entanto, do grau em que sua qualidade ilusória possa ser experimentada numa psicanálise, isto contribuirá em muito para a maturidade. Dependendo de nossa estrutura mental individual, nós só podemos nos tornar conscientes do desconhecido como algo indistinto, ocupando um espaço ilimitado e com um conteúdo desconhecido. Isto pode nos parecer esmagador, mas ao mesmo tempo é preciso manter uma visão, a mais clara possível, daquilo que surge em nossos consultórios. Para simplificar o que digo, sugiro uma imagem baseada na situação edípica existente em nós, acrescida da visão da realidade psíquica que está à disposição do analista. A imagem é a seguinte: a "maquinaria" da vida, a necessidade tanto da mulher quanto do homem de sobreviver neste mundo com toda a carga de ansiedade, inveja, avidez e culpa implícita neste fato, corresponde àquilo que a criança desde os seus primórdios sente como representando o seio e a mãe dentro de si mesma. Tudo isso nos foi esclarecido por Freud, Melanie Klein e Bion, cada um à sua maneira. A questão é como nos valer disto quando o paciente está deitado no divã e sem dúvida frequentemente num estado de ansiedade quanto ao que pensar, sentir ou fazer a respeito do assunto. Como esse fato diz respeito também ao analista, ele naturalmente se estende até o desconhecido. Não adianta tentar preencher o vazio com alguma interpretação que nada tenha a ver com o problema da investigação da realidade psíquica.
Portanto, o fato de o analista ter sentido a ânsia por parte do paciente de que ele, analista, seja uma autoridade a respeito de sua mente, talvez o ponha na perigosa posição de ter que defender a psicanálise. Isto por sua vez nos faz lembrar que nosso objetivo no trabalho é o desconhecido, isto é, o desconhecido na relação do paciente consigo mesmo. Por esse motivo, o clima em que trabalhamos é automaticamente abastecido através de uma reserva de energia psíquica, a qual, como sabemos, é inesgotável em sua resistência e determinação para existir. A transferência fica portanto permeada com a ansiedade do paciente, com seu sentimento de culpa, com seus sentimentos de depressão e desespero, e com sua inveja, ódio, avidez, e assim por diante. É de se supor que nós não só tenhamos passado por tudo isto durante nossa formação, mas também, espera-se, tenhamos chegado a uma consciência tão plena quanto possível disto em nossos pacientes. Não há limite quanto à iluminação destas dinâmicas no trabalho diário de análise. Associado a tudo isto, é essencial para a abordagem do analista que ele mantenha uma visão total o mais firme possível da extensão e profundidade de sua tarefa, e se lembre, quando lhe parecer necessário, de que a psicanálise ainda está em seus primórdios. Talvez aquilo que chamo de "separação" seja algo temido e odiado por ser doloroso sentirmo-nos às vezes vulneráveis àquilo que não conhecemos. Além disso, naturalmente, há o perpétuo senso de perda resultante de "separação", já que toda mudança real envolve um sentido do catastrófico em relação ao ocorrido anteriormente, já que aquilo não mais existe da mesma forma.
Hoje em dia dispomos de uma analogia útil a partir do que os astrônomos têm nos relatado a respeito de quantidades astronômicas de energia, que emergem do espaço astronômico e que são denominadas "buracos negros". A energia é consequência da desintegração de estrelas, há incalculáveis milhões de anos. No local onde elas um dia existiram já não há mais nada. a não ser um espaço imenso preenchido com uma energia até agora incalculável. Nós, pequenas criaturas modestas, podemos observar a energia psíquica que tanto afeta nossas mentes. Ela é perceptível em psicanálise - pensem, por exemplo, nos estados de espírito da infância, aparentemente há muito tempo desaparecidos, e que são reativados na análise de um adulto. Isto pode revelar, de modos e em graus manifestos, a violência emocional e a perturbação de comportamento e pensamento numa extensão alarmante, condenando as pessoas a um estado de espírito extremamente infeliz.
Está implícito em minha referência quanto à inexorável procura de autoridade, ou o que poderíamos chamar de ânsia por "alguma coisa ou alguém a que se agarrar" e que parece não estar disponível internamente, o papel humano de onipotência em contraposição àquele de desamparo absoluto (em análise eles deveriam ser considerados como intimamente relacionados um ao outro). Isto nos revela na prática da análise uma situação séria, pois a ausência de autoridade ameaça aquilo a que o paciente sempre recorreu em sua vida como parte de reasseguramento. Para nos ajudar a tratar deste assunto, vou me valer de uma abordagem tendente a estabelecer um critério gradual para observar e transformar tudo o que está transpirando na sessão analítica. Isto requererá individualmente do analista considerável experiência e expansão no decurso do tempo, mas mesmo assim vale a pena considerar agora este aspecto.
Podemos observar constantemente em nosso trabalho, uma distinção entre tudo aquilo que o paciente está expressando, de modo a diferenciar o sensual e o não sensual. O uso de nossos cinco sentidos tem sido necessário, na medida em que somos animais humanos, para nossa sobrevivência, crescimento, e grande parte de nossa capacidade de lidar com a realidade depende de como usarmos este fato universal. No entanto, ninguém poderia pretender ir além na vida se este fosse o único fato psíquico envolvido. Na psicanálise, no entanto, o fato de podermos distinguir a realidade psíquica não sensual nos fornece uma abertura ao desconhecido do paciente, ao real desconhecido, porquanto refere-se àquilo que permaneceu fora de sua personalidade conhecida. Isto, por conseguinte, constitui a essência central da psicanálise.
O aparecimento do não sensual durante a análise evoca sentimentos de medo com uma qualidade que precisa ser observada com cuidado pelo analista. Trata-se de um medo com uma conotação diferente daquela que surge a partir da ansiedade em face da realidade sensual. Esta última está predominantemente inundada com estímulo à ação propiciadora de satisfação em processos de prazer e dor, ou seja aquilo que é conhecido e que está facilmente disponível. Esta ação no entanto anula o pensamento e a reflexão que podem associar-se à ação caso necessário. Para citar um exemplo possível da qualidade psíquica do não sensual, poderíamos pensar num casal que se ama genuinamente e que esteja, separada mas também conjuntamente, aguardando o nascimento de seu primeiro filho. Outro exemplo poderia ser uma crise profunda sofrida na vida de uma pessoa e que lhe suscita pensamento e reflexão que ultrapassa qualquer outra coisa previamente vivida. Talvez a realização de qualquer coisa na vida seja forçosamente não sensual: o nosso assunto é a própria psicanálise.
Estou me referindo à diferença entre o sensual e o não sensual na mente do paciente, e à análise que daí resulta. A familiaridade com o material que vai se desvelando, revelará progressivamente seu valor. No homem comum que conhecemos, e que não se deu conta através do pensamento de quão livre do sensual ele poderia ser, no sentido de tornar-se independente de sua necessidade, esta familiaridade gradualmente o ajudará a descobrir o crescimento do que é essencialmente psíquico nele mesmo. O que a experiência revelará é o grau de extração do não sensual do sensual, isto é, em quanto o valor da experiência de vida será realçado e, não menos importante, em quanto será realçado o valor da análise. É uma tarefa a ser experimentada constantemente; não pode ser aprendida. Um pequeno exemplo poderia ser a observação do choque inicial que mencionei como ocorrendo no início de cada sessão. O que significa este encontro? Seria talvez diferente cada vez? Quanto mais longe levamos a indagação mais o paciente poderia tornar-se consciente daquilo de que ela trata e do qual ele nada sabia. Não há limite ao trabalho quanto a este ponto.
Fica-se constrangido de escrever sobre psicanálise, pelo menos este é o meu caso. Quanto à experiência. só se pode tê-la sendo paciente; quanto à condição analítica só podemos obtê-la através da prática. Qualquer tentativa de escrever ou falar a seu respeito é frustradora. Evoca-nos o bloqueio com o qualo adolescente se defronta quando, no curso do seu desenvolvimento, emerge da infância e adentra o estado de mente que chamamos condição adulta. Um adolescente analisado possivelmente será ajudado a superar o pior dos estágios pelos quais tem de passar. Assim, o paciente que foi recebido pelo analista no começo deste pequeno artigo, agora vai embora. Talvez ele se despeça, talvez não. Um intervalo e depois a próxima sessão; cada uma dessas situações trará maturidade, sinônimo de separação.
1 Tradução de Alba Philips. Revisão de Luiz Carlos Junqueira Filho.
2 Frank Philips faleceu em 2004.