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Jornal de Psicanálise

Print version ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.49 no.91 São Paulo Dec. 2016

 

SESSÃO DE CINEMA

 

O voyeurismo no cinema: uma análise de janela indiscreta

 

Voyeurism in movies: analysing rear window

 

El voyerismo en el cine: un análisis de la ventana indiscreta

 

Le voyeurisme au cinéma: une analyse de fenêtre sur cour

 

 

Janniny G. KierniewI; Amadeu de O. WeinmannII

IPsicóloga, especialista em Intervenções Psicanalíticas na Clínica da Infância e Adolescência e mestranda em Educação, UFRGS, Porto Alegre. janninyk@gmail.com
IIPsicanalista e professor do PPG em Psicanálise: Clínica e Cultura, UFRGS, Porto Alegre. weinmann.amadeu@gmail.com

 

 


RESUMO

Este artigo propõe-se a pensar o voyeurismo no cinema, tomando como modelo o filme Janela indiscreta, de Hitchcock. Nessa obra, um magistral movimento de câmera nos situa como voyeurs antes que apareça o personagem que assumirá esse lugar na narrativa. Com base na identificação do espectador com o protagonista, perguntamos: 1) a posição voyeur implica a supressão de outra expressão erótica?; 2) a posição voyeur é mortífera? Nossa hipótese, sustentada no uso da câmera como defesa pelo protagonista, é que a linguagem cinematográfica permite ao espectador resistir ao gozo da imagem e inscrever-se como sujeito.

Palavras-chave: psicanálise, cinema, pulsão escópica, voyeurismo


ABSTRACT

This paper proposes a reflection on voyeurism in movies by taking as model the movie Rear window, directed by Hitchcock. In this movie, a masterful camera movement puts us in the position of voyeurs even before the appearance of the character who is going to occupy that position in the narrative. Based on the audience's identification with the protagonist, we raise questions as follows, 1) Does the voyeur position imply the suppression of other erotic expression? 2) Is the voyeur position deadly? Our hypothesis, sustained by using the camera as the protagonist's defense, is that the film language enables the viewer to resist from enjoying the image, and allows him to inscribe himself as subject.

Keywords: Psychoanalysis, movies, scopic drive, voyeurism


RESUMEN

En este artículo se propone una reflexión acerca del voyeurismo en el cine, tomando como modelo la película La ventana indiscreta, de Hitchcock. En esa obra, un magistral movimiento de la cámara nos pone como voyeurs antes de que aparezca el personaje que tendrá ese lugar en la narrativa. A partir de la identificación del espectador con el protagonista, nos preguntamos: 1) la posición voyeur ¿implica la supresión de otra expresión erótica? 2) la posición voyeur ¿es mortífera? Nuestra hipótesis, apoyada en el uso de la cámara como defensa por parte del protagonista, es que el lenguaje cinematográfico permite al espectador resistir al goce de la imagen e inscribirse como sujeto.

Palabras clave: psicoanálisis, cine, pulsión escópica, voyeurismo


RÉSUMÉ

Cet article propose de penser le voyeurisme au cinéma, en prenant comme modèle le film Fenêtre sur cour, d'Hitchcock. Dans cette œuvre, un magistral mouvement de caméra nous situe comme voyeurs avant l'apparition du personnage qui va prendre cette place dans le récit. À partir de l'identification du spectateur avec le personnage principal, on se demande: 1) la position voyeur, implique-t-elle une suppression de l'autre expression érotique?; 2) la position voyeur, est-elle meurtrière? Notre hypothèse, appuyée sur l'usage de la caméra comme défense par le personnage principal, c'est que le langage cinématographique permet au spectateur de résister à la jouissance de l'image et de s'inscrire comme sujet.

Mots-clés: psychanalyse, cinéma, pulsion scopique, voyeurisme


 

 

 

Introdução

Janela indiscreta é um filme produzido em 1954, dirigido por Alfred Hitchcock e inspirado em um conto de Cornell Woolrich, de 1942. Com uma trama inteiramente atravessada pelo problema do voyeurismo, a primeira cena já nos envolve com maestria, capturando-nos e nos enlaçando ao enredo. É a janela hitchcockiana que, materializada pela tela, abre um mundo à disposição do olhar do espectador.

As cortinas se abrem em Greenwich Village. A câmera avança de dentro do apartamento e desliza lentamente pelas janelas abertas, conduzindo a visão do espectador para dentro das residências do condomínio, cujos habitantes despertam para mais um dia. De uma das casas, a música ecoa, marcando o ritmo rotineiro da cidade grande. Nossos olhos e ouvidos ficam envolvidos pela atmosfera que embriaga os sentidos. A câmera retorna vagarosamente para o lugar de onde partiu e passeia pelo cômodo apresentando um universo. O personagem principal - Jeffries (James Stewart) - está colocado ali, de olhos fechados, imóvel em uma cadeira de rodas, onde os ossos quebrados de uma de suas pernas jazem sob o gesso. Há máquinas fotográficas, prêmios, revistas, fotos. Está feito. Somos jogados dentro da trama por meio do olhar da câmera.

Janela indiscreta começa exatamente como uma grande janela. Janelatela que põe o espectador dentro de todos os acontecimentos. A cena inicial é reveladora: o personagem, de olhos fechados, nada vê. Os únicos a observar o mundo são os espectadores. A dança que a câmera executa do apartamento ao pátio e do pátio de volta ao apartamento fixa o olhar. Hitchcock enfeitiça nossos olhos e os aprisiona de modo bastante peculiar, situando-nos na posição voyeur antes mesmo de o protagonista transformar-se em um.

Com base na premissa lacaniana de que a pulsão escópica constitui-se a partir de um olhar Outro, este artigo tem seus alicerces sustentados por duas abordagens complementares, ambas referidas ao voyeurismo do espectador: 1) a posição voyeur implica a supressão de outra expressão erótica? 2) a posição voyeur é mortífera? A hipótese assumida neste trabalho, apoiada no uso da câmera como instrumento de defesa pelo protagonista de Janela indiscreta, é que a linguagem cinematográfica permite ao espectador resistir ao gozo da imagem e inscrever-se como sujeito. É com base no jogo visual orquestrado como uma dança de imagens por Hitchcock que formulamos a seguinte questão: como se constitui o olhar do espectador no cinema?

 

O espectador na cena

Em Lacan, a pulsão escópica constitui-se com base em um olhar Outro. Um olhar inapreensível, invisível, que incide sobre o sujeito. Essa tese é apresentada no seminário Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, em que o autor afirma: "o que me determina fundamentalmente no visível é o olhar que está do lado de fora. É pelo olhar que entro na luz, e é do olhar que recebo seu efeito" (Lacan, 1964/2008, p. 107). O psicanalista constrói a ideia de que, no campo do olhar, há uma função antecipatória capaz de engendrar a primeira organização do eu, o eu especular, alienado no Outro: "o que se trata de discernir [...] é a preexistência de um olhar - eu só vejo de um ponto, mas em minha existência sou olhado de toda parte" (pp. 75-6). Isto significa que, em se tratando do olhar, temos uma relação que está muito além da esfera orgânica, no medida em que

o olhar não se situa simplesmente no nível dos olhos. Os olhos podem muito bem não aparecer, estar mascarados. O olhar não é forçosamente a face do nosso semelhante, mas também a janela atrás da qual supomos que ele nos espia. É um x, o objeto diante do qual o sujeito se torna objeto. (Lacan, 1953-54/2009, p. 286)

Em Um olhar a mais: ver e ser visto em psicanálise, Quinet (2002) retoma essa reflexão e argumenta que o olhar em questão na psicanálise não é um olhar do sujeito, mas um olhar que incide sobre o sujeito. Esse "olhar é um objeto apagado do mundo de nossa percepção, que não deixa, no entanto, de nos afetar: a visão predomina sobre o olhar, excluindo-o do campo do visível" (p. 41). Ao articular as esferas do visível e do invisível, o autor introduz as concepções de Merleau-Ponty, as quais Lacan utiliza como pressuposto para sua teoria do campo visual: há uma preexistência do olhar no espetáculo do mundo. Nesse mundo que vejo sou, antes de tudo, visto. O olhar não está no nível dos olhos.

Assumindo a teorização lacaniana de que somos constituídos com base em um olhar Outro, adotamos a noção de dispositivo cinematográfico, cunhada por Baudry (2008), para discutir os elementos e operações que se produzem na sala escura e que favorecem a identificação do espectador com o olhar da câmera, resultando em um efeito-sujeito que simula uma consciência que transcende e descortina o mundo. Para Baudry, o dispositivo cinematográfico é a comunhão entre o aparato técnico necessário ao registro das imagens e aquele exigido pela projeção destas, com todos os procedimentos de continuidade que envolvem a constituição de uma narrativa fílmica. Dessa forma, a história contada na tela conduz o olhar do espectador, que assume o ponto de vista da câmera. Portanto, a alienação primordial do espectador não é com a história que acontece na tela, mas com o olhar da câmera. Para o autor, essa identificação do espectador decorre de um processo anterior de constituição subjetiva, no qual a percepção do reflexo especular de seu corpo, avalizada por um olhar Outro - o parental -, produz a imagem de um eu ideal com o qual o sujeito estabelece identificações primárias. Nesse sentido, a assimilação por parte do espectador do ponto de vista da câmera estimula processos profundos de identificação narcísica, fazendo da tela do cinema um grande espelho.

Tendo essa ideia como base, Xavier (1988, pp. 369-370) afirma que, no cinema,

a imagem que recebo compõe um mundo filtrado por um olhar exterior a mim, que me organiza uma aparência das coisas ... Trata-se de um olhar anterior ao meu, cuja circunstância não se confunde com a minha na sala de projeção.

Para o autor, antes mesmo do encontro escópico que ocorre na sala escura, há um processo em que se estabelecem as circunstâncias capazes de produzir o que esse pesquisador denomina "olhar sem corpo do cinema".

De acordo com Xavier (1988), essa expressão remete a duas acepções complementares: a primeira versa sobre a organização própria do cinema e sua capacidade de produzir imagens. Numa outra formulação, diz respeito àquilo que o cinema oferece aos espectadores como produto de um olhar sustentado em um aparato técnico, no qual "as possibilidades abertas pela temporalidade própria da imagem são infinitas: há o movimento do mundo observado e o movimento do olhar do aparato que observa" (p. 370). A segunda refere-se à posição do olhar em relação aos limites do corpo, uma vez que o cinema possibilita o aparecimento de espaços invisíveis que nos convidam a saltar "com velocidade infinita de um ponto a outro, de um tempo a outro", ou ainda a "escrutinar reações e gestos, explorar ambientes, de longe, de perto", enfim, "estou em toda parte e em nenhum lugar" (p. 370).

Ao observar que o cinema é dotado de um olhar sem corpo, Xavier (1988) propõe uma anterioridade produzida pelo dispositivo cinematográfico, a qual abre infinitas possibilidades ao espectador. As imagens que pulsam, que reservam surpresas, que dissimulam fatos, são verdadeiras orquestrações que nos transportam a um lugar de prazer. Para o autor, na ficção cinematográfica o espectador identifica-se com o olhar da câmera, o que permite estar em todos os espaços, sem preencher lugar algum. Da poltrona confortável recebemos um mundo e nos misturamos a ele. Essa ubiquidade um tanto onividente proporciona "o prazer do olhar que não está situado, não está ancorado" (p. 370).

No livro O sujeito na tela, Arlindo Machado (2007) convoca-nos a pensar sobre os pontos de vista na narrativa cinematográfica. Ao abordar as origens renascentistas da organização do olhar no cinema narrativo clássico, o autor situa o espectador em um ponto de vista que coincide com a perspectiva da câmera: por mais que seja "um lugar invisível para o espectador, o ponto de vista está inscrito na tela através do afunilamento dos planos em direção ao ponto de fuga" (p. 22). Em outras palavras, o autor sustenta que o espectador, embora ausente da cena montada pelo artista, participa de um quadro organizado por um ponto originário, um olho único e imóvel que dá coerência aos objetos:

O mundo visível passa então a ser exposto sob o prisma incontornável da subjetividade: ele não é apenas uma paisagem que se abre ao nosso olhar, mas uma paisagem já olhada e dominada por um outro olho que dirige o nosso. (p. 22)

No entanto, ao chamar a atenção para esse lugar de fixação do olhar em que o espectador é lançado, Machado (2007) também nos mostra que as dimensões do olhar comunicam-se por uma via de mão dupla: a percepção daquele que olha não é somente do que é mostrado, mas depende também do que cada um supõe na percepção do outro:

O mesmo campo escópico que constitui o sujeito é também o local onde o sujeito fracassa como fonte originária, como foco, como "ponto de vista", porque, malgrado esteja no ponto privilegiado de vidência, ele não é o único vidente da cena. (p. 97)

A contraposição de olhares por meio da técnica de campo e contracampo é frequente no cinema narrativo clássico. A duplicidade de olhares envolvida na trama marca um jogo cujos movimentos nos seduzem. É o tipo de efeito que permite tornar perceptível a cadeia de ações e reações que move os agentes da intriga, tornando-os simultaneamente sujeitos e objetos dos olhares uns dos outros. Em Janela indiscreta, temos a todo instante a representação de diferentes perspectivas: ora o espectador tem seu olhar focado na figura de Jeffries, ora vislumbramos o que está do outro lado, no panorama do objeto olhado. O movimento pendular da câmera oferece ao espectador a possibilidade de circular na trama, situando as identificações e operando diferentes posições.

Ao comentar os diversos pontos de vista do espectador, Machado (2007) estabelece um plano comparativo entre imagem cinematográfica e figuras pictóricas. Embora o cinema não seja análogo a um quadro, o autor destaca a cena visível da pintura figurativa para dizer que aquilo que se vê no campo do visível não se esgota em um único sentido, isto é, o que está no quadro não se define efetivamente por aquilo que está representado:

de um lado, há o visível, o motivo que é encenado dentro do quadro; de outro, há a instância que olha para ele, que não aparece no quadro, mas sem ela o arranjo topográfico deste último se tornaria absurdo. (p. 72)

Por conseguinte, o autor ressalta que a presença do sujeito diante da imagem é considerada sempre incompleta, marcada na cena fundamentalmente sob a forma de uma ausência, algo de um vazio, uma lacuna, que será preenchida por aquele que vai se postar diante do quadro para olhá-lo: o espectador. Esse espaço é entendido por Machado (2007) como campo ausente ou campo imaginário, que, em articulação com o campo fílmico, produz um jogo de planos, um "[...] sistema de trocas entre os campos presente e ausente, um jogo de espelhos em que sujeito e objeto da visão se alternam dos dois lados do olhar" (p. 74). Esse dispositivo é conhecido na teoria cinematográfica como sistema de sutura e tem suas raízes teóricas nas formulações de Jean-Pierre Oudart (1977).

No seminário Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, ao abordar a esquize entre o olho e o olhar, Lacan (1964/2008) se vale dos pintores para argumentar que o artista sempre busca "a seleção de um certo modo de olhar" (p. 102) e propõe refletir sobre a manifestação do quadro enquanto um dar a ver: "na pintura há dompte-regard, quer dizer que aquele que olha é sempre levado pela pintura a depor seu olhar" (p. 110). Para o psicanalista, o artista estaria capturando o olho do espectador e solicitando algo de um além, um ponto outro do olhar, uma marca em que o olhar do Outro - inscrito no quadro - interroga a visão e incorpora a polissemia do significante presente na obra.

O quadro, por ser uma espécie de armadilha para o olhar, transluz a esquize: para apreender a imagem, o sujeito posiciona-se a uma distância da tela, a qual permite reconstruir o caminho da perspectiva proposto pelo quadro. As imagens ganham forma, o espaço organiza-se segundo uma geometria que possibilita incluir o ponto de vista do pintor. Essa relação também existe no teatro. Ismail Xavier (2003) pensa o dispositivo geométrico da representação (a plateia de um lado, a ação teatral de outro e a "quarta parede" - invisível - entre ambos) em correlação com o quadro-tela do cinema e com a pintura renascentista. Segundo ele, a moldura do espetáculo teatral funciona como uma janela que se abre para um mundo, ficando à disposição do olhar do espectador. Olhar que, pelo fato de ser conduzido através de diferentes enquadramentos, pode ser potencializado por distintos pontos de vista.

Em sintonia com essas formulações, em O que vemos, o que nos olha Didi-Huberman (2010) arquiteta uma fábula filosófica da experiência visual, encetando a dialética do olhar como axioma central de sua tese. O autor parte de duas premissas básicas para explorar o campo visual: 1) as imagens, por serem ambivalentes, suscitam inquietações; 2) o ato de ver evidencia um vazio que nos olha:

O que vemos só vale - só vive - em nossos olhos pelo que nos olha. Inelutável, porém, é a cisão que separa dentro de nós o que vemos daquilo que nos olha. ... o ato de ver só se manifesta ao abrir-se em dois. (p. 29)

Entre aquele que olha e aquilo que é olhado há um espaço, uma distância que permite criar um lugar inerente ao encontro. É preciso um vazio que seja o não lugar, pois "devemos fechar os olhos para ver quando o ato de ver nos remete, nos abre um vazio que nos olha, nos concerne e, em certo sentido, nos constitui" (p. 31).

No filme, Hitchcock usa os recursos cinematográficos sabiamente. Ele joga com os pontos de vista e incita o espectador a olhar. O magistral movimento de câmera da cena de abertura situa-nos como voyeurs antes que apareça o personagem que assumirá esse lugar na narrativa. A janela abrindo, a câmera escorregando entre os apartamentos, a vida acontecendo, e o espectador olhando. A sonoridade e o ritmo lento das situações produzem um efeito de fascínio. Esse olhar Outro, o olhar sem corpo do cinema, conduz o espectador nesse campo de visíveis. Diante do aparato montado para capturar as diversas dimensões do olhar, avançamos um passo mais: como se constitui o olhar do espectador, em Janela indiscreta?

 

Lisa Carol Fremont

A cena já foi montada e as pistas, dadas. Hitchcock usa a linguagem cinematográfica para situar-nos dentro da trama. Os movimentos de câmera e a técnica do campo e contracampo proporcionam um efeito excitante do olhar no espectador. Sentimo-nos incitados a ver cada vez mais.

Em "Três ensaios sobre a teoria da sexualidade", Freud (1905/1980) isola o ato de olhar - escopofilia - como uma pulsão específica, exemplificando-o nas atividades voyeuristas das crianças, que desejam desvendar os enigmas do sexual. É uma manifestação espontânea que concerne fundamentalmente à pulsão de saber: "não há a 'fase escópica', o escopismo está sempre presente; ele é atemporal" (p. 168). Ainda nesse texto, ao abordar as funções de tocar e olhar, Freud afirma: "a impressão visual continua a ser o caminho mais frequente pelo qual se desperta a excitação libidinosa" (p. 95). Mais especificamente sobre os casos de escopofilia, o psicanalista elenca três critérios nos quais o prazer de ver torna-se perversão: quando se restringe exclusivamente à genitália, quando se liga à superação do asco (o espectador das funções excretórias), ou quando suplanta o alvo sexual normal, em vez de ser preparatório a ele. "Este último é marcantemente o caso dos exibicionistas, que, se posso deduzi-lo após diversas análises, exibem seus genitais para conseguir ver, em contrapartida, a genitália do outro" (p. 95). Dessa forma, Freud confere ao campo escópico uma função constituinte da própria sexualidade, reconhecendo o olho não apenas como fonte da visão, mas também como investido por libido.

Em 1910, o pai da psicanálise volta sua atenção para a cegueira histérica e elabora o texto Perturbações psicogênicas da visão, enfatizando as fronteiras entre as funções biológica e sexual do olho. Nesse texto, já é possível identificar o conflito pulsional gerado pelo ato de ver. O olho que vê também sente prazer em ver - Schaulust -, o que interfere na função biológica, modificando o funcionamento fisiológico do olho. Desse modo, Freud (1910/1996) situa a pulsão escópica em relação à pulsão oral e diz que os olhos têm as mesmas funções que a boca, na medida em que ambos precisam obedecer a dois senhores: a alimentação e o beijo, a visão e o olhar, autoconservação e sexualidade.

Ao aprofundar o conceito de pulsão, em A pulsão e seus destinos, Freud (1915/2013) assinala o caráter fronteiriço da pulsão e a especifica como um conceito-limite "entre o anímico e o somático, como representante psíquico dos estímulos oriundos do interior do corpo que alcançam a alma" (p. 25). Apresentando uma força constante, a pulsão é descrita por Freud com base em quatro componentes: fonte, pressão, finalidade e objeto. E também quatro destinos possíveis: reversão em seu contrário, retorno ao próprio sujeito, recalque e sublimação. Especificamente sobre os dois primeiros, o pai da psicanálise exemplifica-os com os pares sadismo-masoquismo e voyeurismo-exibicionismo. Assim, ser atormentado e ser olhado consistem no retorno sobre o sujeito daquilo que foi produzido no outro: atormentar e olhar.

Ao descrever a pulsão escópica, seguindo a lógica da transformação de atividade em passividade, Freud (1915/2013) assinala que as pulsões que têm por meta o ato de olhar e de mostrar-se (voyeur e exibicionista) poderiam ser consideradas com base em etapas, que são formadas por: 1) o ato de olhar como atividade voltada para um objeto estranho; 2) renúncia ao objeto e reorientação da pulsão de olhar para uma parte do próprio corpo; 3) introdução de um novo sujeito, ao qual nos mostramos para sermos contemplados por ele. Portanto, teríamos três tempos do movimento da pulsão: olhar, olhar-se, ser olhado. Freud observa, entretanto, que, no que concerne à pulsão escópica, os momentos ativo (voyeurismo) e passivo (exibicionismo) são concomitantes e que o tempo reflexivo os antecede: "a pulsão de olhar é autoerótica no início de sua atividade, ou seja, ainda que tendo um objeto, ela o encontra no próprio corpo" (p. 41). Há um momento inicial, uma fase "preliminar da pulsão de olhar, na qual o prazer de olhar tem o próprio corpo como objeto" (p. 45).

Mesmo situando três momentos da pulsão escópica - autoerotismo, voyeurismo, exibicionismo -, Freud (1915/2013) lembra:

a única afirmação correta a ser feita quanto à pulsão de olhar deveria ser a de que todas as fases de seu desenvolvimento, tanto sua fase preliminar autoerótica quanto a configuração ativa e passiva final, coexistem lado a lado. (p. 43)

Nessa perspectiva, ver e ser visto são concomitantes. Esse movimento configura a estrutura circular da pulsão, que em Lacan (1964/2008) é marcada pela dialética do arco e flecha, na qual o aspecto crucial de cada pulsão é a característica do vai e vem percorrido pelas bordas do corpo. Nesse sentido, o psicanalista alude à imagem de uma flecha (Drang/força) que atravessa a superfície do corpo (Quelle, fonte, zona erógena) - aquilo que está na fronteira entre o interno e o externo e se presta à função sexual -, fazendo uma curva que parte e retorna à borda, fechando-se sobre si mesma. Mais precisamente, ao refletir sobre o que se passa no voyeurismo, Lacan situa o objeto da pulsão como sendo o olhar, "olhar que é o sujeito, que o atinge, que faz mosca no tiro ao alvo" (p. 179), olhar que também é "objeto perdido, e repentinamente reencontrado" (p. 179). Com base nisso, Lacan menciona que o voyeur procura apenas "uma sombra detrás da cortina" (p. 179), que possibilite gozar na fantasia, afirmando que o voyeur olha aquilo que não se pode ver. O que ele busca não é o falo, mas sua ausência.

Da janela de seu apartamento, Jeffries espia. Seu interesse está no outro lado. Mas no quê, exatamente? Durante o filme, deixamo-nos guiar por seu olhar. Orbitamos de uma janela a outra conduzidos pelos olhos do protagonista, em prolongados planos subjetivos que transitam vagarosamente pelo desconhecido. É noite quando Lisa Fremont, a personagem de Grace Kelly, entra em cena. Em um close magnífico, a câmera detém-se no rosto da atriz mais desejada da época. Deslumbrante, ela se aproxima de Jeffries, que está dormindo, e beija-o nos lábios. A reação do protagonista não condiz, porém, com os encantos da bela Lisa. Ela é certamente muito mais atraente ao espectador do que ao próprio Jeffries.

Em Prazer visual e cinema narrativo, a teórica feminista Laura Mulvey (2008) propõe que, no cinema hollywoodiano clássico, a mulher é delineada como um objeto do olhar masculino, ao passo que o homem consiste no construtor da narrativa. Especificamente sobre Janela indiscreta, Mulvey sugere que Lisa é oferecida como um fetiche para o espectador e que é somente quando a personagem de Grace Kelly desloca-se para o domínio de objetos de Jeffries que ela se torna atraente a seus olhos. Em As mulheres que sabiam demais, Tânia Modleski (2005) endossa as teses de Mulvey, com uma ressalva. A autora assinala que Jeffries passa a notar sua mulher quando ela começa a compartilhar de seu campo visual. No que concerne a este trabalho, quer Lisa esteja no campo dos objetos do protagonista, como sugere Mulvey, quer esteja mirando seu domínio de objetos, como propõe Modleski, o notável é que Jeffries não tem olhos para a exuberante sensualidade de sua namorada. Do que decorre a pergunta: a posição voyeur implica a supressão de outra expressão erótica? Dito de outro modo, o espectador está destinado a ser um puro objeto de gozo diante da imagem cinematográfica?

 

O voyeurismo é mortífero?

Em Janela indiscreta, quando Thorwald - o assassino - sai do domínio dos objetos olhados e entra no campo do voyeur, ele chega com a função de exterminar Jeffries. O telefone toca, o protagonista atende. A última frase dita por Jeffries, antes de perceber que cometeu um equívoco, é: "não vejo..." Pois, de fato, não vê mais. Passa a ser visto. Logo em seguida, seus olhos se arregalam, escutamos o som de passos, e Jeffries prepara-se para o pior. O que se passa nesse momento?

Em psicanálise, o circuito da pulsão escópica fecha-se quando o sujeito do olhar passa a ser olhado. Aquilo que o sujeito não poderia ver retorna, olhando. Trata-se, para o voyeur, de um arremate disparado pelo olhar de outrem. Nas palavras de Quinet (2002, p. 84): "nesse se fazer olhar, ele se torna puro olhar. Ao se completar a volta da pulsão, produz-se uma dessubjetivação à medida que o sujeito desaparece e seu status de objeto comparece". Assim, temos a estrutura circular da pulsão, calcada na atividade de se fazer olhar, ou no dar a ver, de modo que o objeto no qual a pulsão dá a volta não está do lado do sujeito, mas situa-se do lado do Outro:

o "dar a ver" do desejo escópico é correlato à posição de ser olhado da pulsão escópica; o dar a ver ao Outro é fazer-se olhar ... Estratégia ambígua, pois ... o olhar que ele atrai pode tornar-se o olhar que o fere. (p. 88)

Com Lacan (1964/2008), sabemos que o que se procura com os olhos é justamente o que não se pode ver. E é pela via do Outro que se dá a montagem pulsional, a qual só se completa quando retorna sobre si própria: "não é apenas a vítima que está envolvida no exibicionismo, é a vítima enquanto referida a algum outro que a olha" (p. 179). No voyeurismo, ao ser convocado a olhar, o voyeur fecha o circuito. E, ao término do circuito, o que se realiza é o gozo do Outro, que vem como algo mortífero: "o gozo escópico é também mortífero, trágico, angustiante. É o olhar da morte" (Quinet, 2002, p. 86). Ou, ainda:

O gozo escópico, a Schaulust que essa pulsão provê, é o gozo dos espetáculos e também o gozo do horror, pois o olhar não pode se ver, a não ser ao preço da cegueira ou do desaparecimento do sujeito, o que indica que toda pulsão é também pulsão de morte. (p. 49)

Para fazer frente a isso, é preciso haver um corte, uma cisão dada com base no significante. Dito de outro modo, é por meio da inscrição significante que se torna possível operar uma defesa, uma barragem à voracidade do olhar do Outro.

 

Shot

Ao deparar com o assassino, o protagonista afasta-se e pega sua principal arma: o equipamento fotográfico. É pela luz do flash que Jeffries consegue barrar o olhar mortífero do Outro. A cada intervalo de tempo, a lâmpada que dispara é recolocada, como uma bala no revólver. Os disparos são contínuos. Um, dois, três, quatro vezes, até que o protagonista consegue chamar ajuda. A sequência é bastante escura, e o que o espectador acompanha é o efeito perturbador que a luminosidade desfocada proporciona. A confluência de olhares governa a cena: somos o voyeur, o assassino, o espectador. Olhando somos olhados. A luz pulsante na tela, que outrora era condição de visibilidade, en-contra seu oposto, ofuscando quem fica exposto a ela. É nesse momento que a análise do significante shot adquire contornos relevantes.

Ao servir-se da linguística, Lacan propõe novas reflexões para a psicanálise, reconduzindo a experiência da fala. Para ele, uma das funções da linguagem é possibilitar o laço com o Outro. Por meio da linguagem, instaura-se certo número de relações, no interior das quais pode inscrever-se algo diferente das enunciações efetivas: as marcas do sujeito do enunciado. Em A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud, o psicanalista francês, ao mesmo tempo em que se apropria do conceito de significante, formalizado por Saussure, subverte-o, de modo que se privilegie a função do significante em detrimento da ordem do significado. A ordem do significado é efeito da cadeia significante, e, justamente por isto, Lacan (1957/1998, p. 506) afirma: "[...] é na cadeia do significante que o sentido insiste [grifo do autor]". Já a significação não está em nenhum elemento dessa cadeia, o que interessa é o deslizamento incessante do significado sob o significante, por ação inconsciente. Diante disso, Lacan pontua que é um erro "pensar que a significação reina irrestritamente para-além ... Pois o significante, por sua natureza, sempre se antecipa ao sentido, desdobrando como que adiante dele sua dimensão" (p. 505).

Na cena final, vimos o modo com que Jeffries escapa da morte. É pela luz do flash que ele barra o olhar do assassino. Não é por acaso que Hitchcock faz uso desse recurso. O significante shot, que no cinema também é utilizada no sentido de plano, é carregado de polissemia. Dependendo do contexto, ele pode ser compreendido como uma tentativa, uma tomada de decisão, uma bala de arma de fogo, uma distância de tiro, ou até mesmo uma sequência de fotos. Aliás, ele é traduzido, sobretudo, como tiro ou fotografia. Dessa maneira, temos um Jeffries que não faz uma simples foto, ele faz uma foto-tiro, disparo que barra o olhar mortífero do Outro. A bala-foto, entendida como metáfora da palavra, também é tentativa de sobrevivência. A linguagem cinematográfica permite ao espectador resistir ao puro gozo da imagem, por meio do significante.

 

Tempo de concluir

Janela indiscreta é um filme que convoca o olhar. A cena inicial já nos põe dentro da trama: somos voyeurs antes mesmo que apareça o personagem que assumirá esse lugar na narrativa. Hitchcock faz do filme uma grande metáfora da tela, evidenciando a capacidade do cinema de mobilizar a pulsão escópica. É pelo movimento inicial de câmera que somos conduzidos a olhar. Olhar que se instaura com base em um olhar Outro, olhar sem corpo que circunscreve um lugar no qual cada espectador situa-se com um gozo que lhe é constitutivo. Os conceitos elaborados pela psicanálise auxiliam a compreender o cinema como uma linguagem própria. É pelo olhar da câmera que nos identificamos com o voyeurismo de Jeffries. É por meio de seu olhar que o circuito pulsional se fecha. A última cena do discurso fílmico hitchcockiano permite um desenlace: a câmera usada como defesa contra a alienação ao olhar do Outro provoca um efeito de corte, proporcionando ao espectador resistir ao gozo da imagem e inscrever-se como sujeito nas tramas da linguagem cinematográfica.

 

Referências

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Recebido em: 21/7/2016
Aceito em: 17/11/2016

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