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Jornal de Psicanálise
Print version ISSN 0103-5835
J. psicanal. vol.52 no.96 São Paulo Jan./June 2019
THANATOS
A decadência do amor: a clínica da crueldade
The decadence of love: the clinic of cruelty
La decadencia del amor: la clínica de la crueldad
La decadence de l'amour: la clinique de la cruauté
Valton de Miranda Leitão
Membro efetivo da Sociedade Psicanalítica de Fortaleza (SPFOR). Fortaleza. valtonmiranda@gmail.com
RESUMO
O presente trabalho tenta articular várias manifestações da crueldade, colocando-as sob um princípio comum. Freud afirmou que seu pessimismo sociopolítico era o resultado da sua investigação sobre as ilusões da humanidade. O processo sublimatório - que, por meio da literatura, da poesia e do teatro, constitui a arte, que integra a cultura - é atacado, enquanto a solução perversa é estabelecida. A traição, cuja existência Viktor Frankl mostra no campo de concentração de Auschwitz, apresentando o capo como algoz do seu próprio povo, é aqui estendida para todas as culturas como emergência da tirania inconsciente. A figura do inimigo é apresentada na consciência social como aparecimento da divisão egoica e narcisista entre Nós e Eles. A tática política dos partidários do sistema de crença e destruição é criar um abismo, em que o narcisismo da diferença estimula a paranoia do inimigo. O horror é banalizado para que a tolerância e o contraditório da vida democrática sejam enfraquecidos.
Palavras-chave: narcisismo, diferença, perversão, sublimação, tortura
ABSTRACT
The present work tries to articulate several manifestations of the cruelty, placing them under a common principle. Freud stated that his sociopolitical pessimism was the result of his research into the illusions of humanity. The sublimatory process that through literature, poetry and theater constitute the art that integrates the culture is attacked, while the perverse solution is established. The betrayal, whose existence Viktor Frankl shows in the Auschwitz concentration camp, presenting the capo as an executioner of his own people is here extended to all cultures as the emergence of unconscious tyranny. The figure of the enemy is presented in the social consciousness as the appearance of the egoic and narcissistic division between Us and Them. The political tactics of supporters of the system of belief and destruction is to create an abyss, in which the narcissism of difference stimulates the enemy's paranoia. Horror is trivialized so that tolerance and contradiction of democratic life are weakened.
Keywords: narcissism, difference, perversion, sublimation, torture
RESUMEN
El presente trabajo intenta articular varias manifestaciones de la crueldad, colocándolas bajo un principio común. Freud afirmó que su pesimismo sociopolítico era el resultado de su investigación sobre las ilusiones de la humanidad. El proceso sublimatorio, que a través de la literatura, de la poesía y del teatro constituye el arte que integra la cultura, es atacado, mientras que la solución perversa es establecida. La traición, cuya existencia Viktor Frankl muestra en el campo de concentración de Auschwitz, presentando el capo como verdugo de su propio pueblo, es aquí extendida para todas las culturas como emergencia de la tiranía inconsciente. La figura del enemigo es presentada en la conciencia social como aparición de la división egoica y narcisista entre Nosotros y Ellos. La táctica política de los partidarios del sistema de creencia y destrucción es crear un abismo, en que el narcisismo de la diferencia estimula la paranoia del enemigo. El horror es banalizado para que la tolerancia y el contradictorio de la vida democrática sean debilitados.
Palabras clave: narcisismo, diferencia, perversión, sublimación, tortura
RÉSUMÉ
Le présent ouvrage tente d'articuler plusieurs manifestations de la cruauté en les plaçant sous un principe commun. Freud a déclaré que son pessimisme socio-politique était le résultat de ses recherches sur les illusions de l'humanité. Le processus sublimatoire qui, à travers la littérature, la poésie et le théâtre, constitue l'art qui intègre la culture est attaqué, tandis que la solution perverse est établie. La trahison, dont Viktor Frankl témoigne dans le camp de concentration d'Auschwitz, et qui présente le capo comme un bourreau de son propre peuple s'étend à toutes les cultures comme l'émergence d'une tyrannie inconsciente. La figure de l'ennemi est présentée dans la conscience sociale comme l'apparition de la division égoïque et narcissique entre Nous et Eux. La tactique politique des partisans du système de croyance et de destruction est de créer un abîme dans lequel le narcissisme de la différence stimule la paranoïa de l'ennemi. L'horreur est banalisée, ce qui affaiblit la tolérance et la contradiction de la vie démocratique.
Mots-clés: narcissisme, différence, perversion, sublimation, torture
A primeira exigência da civilização, portanto, é a de justiça,
ou seja, a garantia de que uma lei, uma vez criada,
não será violada em favor de um indivíduo.
(Sigmund Freud)
A perplexidade, o medo e a insegurança que percorrem, pelas infovias robóticas, as sociedades do planeta em diferentes níveis de desenvolvimento são evidenciados tanto pelo desnorteamento político quanto pelo afrouxamento dos laços afetivos, que se traduzem objetivamente na ambivalência em relação à Lei.
A evidente descaracterização das democracias ocidentais tem sua contrapartida no uso político que os estados nacionais vêm fazendo do Direito. O modus operandi é a confluência do Estado de Exceção com um sistema jurídico que atua mais pela decisão do juiz do que pela positividade da Lei. É disso que fala Freud em "O futuro de uma ilusão" (1927/1974a), quando alude à parcialidade na aplicação da justiça.
Quando Antígona enfrenta a Lei da Cidade representada por Creonte para dar ao irmão morto Polinices o direito sagrado ao enterro justo, faz justiça e aponta o caminho da ética. O desejo, que se manifesta pelo afeto amoroso, impede que a violência da coerção estatal, baseada no Direito, cometa injustiça em nome da Lei. Se tomarmos o exemplo de Antígona como paradigma representacional dos oprimidos, estaremos diante do que acontece em várias partes do mundo informacional globalizado.
A inteligência brasileira assiste com espanto ao desprezo institucional por mulheres, negros, indígenas e homossexuais, levado a cabo com o apoio de setores da classe média coadjuvados pelos sistemas militar, parlamentar e jurídico. A força destrutiva pulsional saída do seu depósito no Id aparece, na sociedade dividida, como ódio irracional encoberto pelo novelesco midiático estimulado pelo fanatismo político-religioso.
O Muro que Sartre tematizou genialmente no romance ressurge na intolerância crescente do narcisismo da diferença de uma coletividade que, fundada no atavismo inconsciente da hostilidade ao diferente, ataca o inimigo que supõe pretender invadir seu território.
A tática política dos partidários do sistema de crença e destruição é criar um abismo entre Nós e Eles, em que o narcisismo da diferença estimula a paranoia do inimigo. O patriarcalismo e o virilismo são absolutamente intolerantes com o que consideram fraqueza, seja de raça ou de gênero. O líder desse processo, seja nos eua, na Hungria ou no Brasil, não é, necessariamente, uma mente brilhante ou estadista, mas sugestiona e hipnotiza pela violência de um discurso vazio.
Não entraremos aqui em detalhes da análise política, visto que não é o objetivo deste artigo e os sistemas partidários parecem pulverizados diante da avalanche passional. O ponto de partida desta reflexão é o magistral texto de Freud "Psicologia de grupo e análise do ego" (1921/1976), de notável atualidade e já prefigurado, cuja análise será enriquecida por outras referências.
Evidentemente, sabemos das limitações da aplicação da teoria do inconsciente à práxis sociopolítica, mas, como Green (1994) demonstrou, sua validade é, atualmente, justificada.
A propósito dessa resistência contra interpretações psicanalíticas, Volkan (2007, p. 511) afirma: "Assim, eles podem, de modo inconsciente, preferir explicar situações complicadas por meio de intelectualização, racionalização, deslocamento, projeção e outros mecanismos mentais".
Portanto, pensamos com Bion (1973) que o grupo narcísico tem formas afetivas inconscientes muito primitivas: os pressupostos de luta-fuga, dependência e acasalamento. Essas ideias que nortearam os trabalhos sobre dinâmica de grupos podem ser aplicadas a uma coletividade tornada narcisista com a preponderância do pressuposto luta-fuga, sendo o nascimento do herói salvador a base para a constituição de uma mitologia.
Além disso, os indivíduos atrelados a tal dispositivo ficam dependentes de uma soberania nebulosa que os torna vassalos inconsequentes, presos às suas paixões irracionais.
As culturas humanas habitualmente exaltam suas glórias e seus mitos históricos, buscando consolidar a identidade nacional de seu povo. Assim, por exemplo, Lincoln nos eua, Mao na China, Lenin na Rússia e Tiradentes no Brasil são simultaneamente mitos e glórias históricos. Dessa maneira, quando um grupo político assume o poder, tenta construir sua própria mitologia, nem sempre conseguindo, pela fragilidade da confiança depositada no líder. O choque inevitável contra o inimigo representado por Eles aciona suposição básica paranoica de luta-fuga.
O pressuposto luta-fuga foi abordado por Leitão (2000) em A paranoia do soberano: uma incursão na alma política, enquanto as questões referentes ao delírio grupal que sobrenadam tais cisões coletivas foram apresentadas no livro O inimigo necessário (Leitão, 2015), aproximando o conceito de alucinose de Sandler (2001) da divisão resultante da paranoia coletiva.
A complexidade dos elementos envolvidos nesse tipo de trabalho exige para o seu desenvolvimento que tenhamos um ponto de partida fundante para designar a crueldade humana, ou seja, o inumano contido no humano. Desse modo, escolhemos como modelo para o início desta reflexão o horror que as vítimas dos campos de concentração relatam terem sentido diante do atroz destino que as esperavam.
Há muitas formas, na atualidade, de fazer nascer o horror sem necessariamente penetrar no barbarismo dos campos poloneses. A consequência será naturalmente a desmentida inconsciente de que a negação do recalcado poderá tornar palatável a tortura sob suas múltiplas formas.
A mentira que Bion mostrou existir potencialmente no inconsciente individual e coletivo completará o ajuste com os objetivos da supremacia, seja ela da raciologia branca, da analidade do dinheiro ou da paranoia de um coletivismo compulsivo. As articulações conceituais que realizaremos ficariam menos consistentes se não acrescentássemos a fetichização que acontece, não simplesmente como negação da castração, mas como espetáculo que espetaculariza o horror.
O mal-estar diante desse processo contracivilizatório a que Freud teria dado o nome inicial de "infelicidade na cultura" agora surge como indiferença, apatia e desespero das pessoas em face de uma dominação cuja objetividade não conseguem reconhecer.
Desenvolvimento
A seguinte citação, retirada do livro do psiquiatra e filósofo existencialista Viktor Frankl, Em busca de sentido: um psicólogo no campo de concentração (2017), mostra de modo contundente como o inumano está contido no humano. O prisioneiro judeu transformado em carrasco de sua própria gente não deixa nenhuma dúvida de que o tirano dormita no inconsciente de cada ser humano.
É necessário partir desse ponto para refletir não somente sobre o holocausto judeu, mas, principalmente, sobre o horror de que o homem é capaz:
Não vamos nos ocupar com aquilo que o capo,1 nem este ou aquele prisioneiro renomado sofreu ou tem para contar, mas vamos tratar da paixão do prisioneiro comum e desconhecido. Este último não usava o distintivo em forma de braçadeira e era desprezado pelos capos. Enquanto ele passava fome até morrer de inanição, os capos não passavam mal. Houve até alguns que nunca se alimentaram tão bem em sua vida. Do ponto de vista psicológico e caracterológico, esse tipo de pessoas deve ser encarado antes como os SS ou os guardas do campo de concentração. Os capos tinham se assemelhado a esses, psicológica e sociologicamente, e com eles colaboravam. Muitas vezes, eram mais rigorosos que a guarda do campo de concentração, e eram os piores algozes do prisioneiro comum, chegando, por exemplo, a bater com mais violência que a própria SS. Afinal, de antemão somente eram escolhidos para capos aqueles prisioneiros que se prestavam a esse tipo de procedimento; e caso não fizessem jus ao que deles se esperava, eram imediatamente depostos. (Frankl, 2017, pp. 15-16)
A narrativa de Frankl, prisioneiro 119.104, pode ser tomada como chocante caso clínico de crueldade e horror. Escrevi em Crime e tortura na vida nua (2016) o processo de identificação do torturado com o torturador:
A tortura trabalha com a dor que pode levar a mente até a psicose. É o caso de Frei Tito de Alencar, que recebeu as mais cruéis torturas, desenvolvendo posteriormente um delírio psicótico. O torturador sabe que, para isso, é necessário reduzir sua vítima à invalidez física e ao completo abandono moral. Nesta solidão inexorável, o torturador, seviciando um corpo nu e indefeso, produz no ser humilhado uma total submissão, levando à perda da bússola interior que aponta o caminho-sentido pela desqualificação da palavra-discurso, fazendo assim submergir a identidade no caos da dor e do sofrimento psíquico. (Leitão, 2016, pp. 154-155)
E ainda:
O torturador sabe intuitivamente que sua vítima acabará por se identificar com sua abominação, pois a dor física e mental anula até a identidade mais profunda que reside no pré-consciente; então Tito dirá: Fleury é meu soberano, meu senhor e eu agora me chamo também Fleury (Leitão, 2016, pp. 154-155).
A pulsão de morte que nutre a crueldade se expressa tanto pelo afeto quanto pela representação na tortura e no horror que o psiquismo precisa elaborar... O horror tomava conta de mim, e isto era bom: segundo a segundo e passo a passo precisávamos nos defrontar com o horror (Frankl, 2017, p. 23).
Sartre disse que as palavras produzem sentido, enquanto a linguagem busca significado, mas acrescentaríamos que, suprimidas as duas vertentes da comunicação, somente resta o silêncio. É o silêncio tumular que atinge o sujeito torturado e ataca a cultura quando o animal prevalece sobre o intercâmbio afetivo produtor da Razão.
O autoritarismo e a tirania, em vários momentos históricos e nos mais diversos pontos do planeta, com intensidade maior ou menor, atacam o Saber para que o Poder reine absoluto. É esta engrenagem turbinada pelo ódio que se alimenta do combustível sádico-anal que prevalece nos Estados de Exceção. Nessas circunstâncias, quando o intercâmbio afetivo-amoroso é pulverizado, o que avulta nas relações sociopolíticas é o interesse egoístico e o dinheiro:
Duas observações de Freud nos vão servir de ponto de partida: primeiro, a criança passa inevitavelmente, no decorrer de sua existência, por uma fase de libido anal; segundo: tanto nos sonhos como nos mitos, o ouro sempre constitui um símbolo ou um substituto das matérias fecais. Até hoje, quando pisamos em sujeiras, há sempre alguém que nos garante que isto nos trará sorte e que ganharemos dinheiro. Uma frase também muito conhecida afirma que o dinheiro não tem cheiro. (Bastide, 1974, p. 108)
Assim, chegamos à divinização do mercado, cujo avanço acontece na contramão da cultura e da pensabilidade. O pensar que Bion situa na confluência entre o pré-verbal e a linguagem torna-se irrisório para o sujeito da cultura narcísica.
Aristófanes, apoiado na mitologia grega, apresenta Pluto como deus do dinheiro, e seu criado Crêmilo bajula-o, dizendo que sua condição torna-o maior do que a divindade suprema do Olimpo, Zeus. Nas condições planetárias históricas atuais não se pode desconhecer a divinização do mercado e suas consequências para a formatação do poder, tornando a economia política mais importante do que a vida mental.
Dessa forma, a tortura pode assumir a forma do uso indiscriminado dos opioides nos medicamentos para viciar o usuário e, naturalmente, incrementar o lucro infinito. A forma de tortura praticada diretamente no corpo anatômico é, entretanto, a mais visível e abjeta.
Liana Albernaz, em seu artigo "Tortura nunca mais" (1998), fala do horror e da angústia de que foi tomada ao ler o artigo de Jean-Claude Rolland, psiquiatra e psicanalista parisiense que acompanhou o religioso dominicano Frei Tito de Alencar. Tito, na sua poesia, fala do fim da abstração poética do torturado. O rio que tem na sua foz o desaguadouro comum de tantos afluentes mostra no vermelho sanguíneo da água o sinal da tortura. O torturador quer o silêncio, mas o sangue fala, exige reparação e punição. "O que a tortura não suporta é a diferença. É a diferença que ela busca destruir como representante do mal" (Albernaz, 1998, p. 166).
A representação do mal precisa ser silenciada para que o silêncio expresse a absoluta submissão do corpo destruído. O torturador é o tirano que atormenta em nome de uma causa supostamente divina. A tirania religiosa, no seu fanatismo maniqueísta, considera-se portadora do bem para justificar a destruição do mal. É a banalização conforme Hannah Arendt, mas também uso político da paixão.
Algumas manifestações políticas que surgiram no Brasil a partir da deposição de Dilma Rousseff podem ser encontradas em Volkan (2007), como na citação que segue:
Os psicanalistas identificaram alguns sinais e sintomas dessa regressão, tais como cega associação em torno de um líder, perda da identidade individual dos membros do grupo, desenvolvimento de uma nova "moralidade compartilhada" que permite destruir ou matar os "outros" sem muitos sentimentos de culpa e um sistema de crenças cada vez mais primitivo e absolutista mantido pelo grupo. (Volkan, 2007, p. 517)
Volkan é um psicanalista e diplomata que estudou o narcisismo da diferença em vários lugares do mundo e trouxe excelente colaboração para a compreensão dos grandes coletivos. Criou a metáfora de que, dentro de um mesmo país, um grupo se abriga debaixo de uma tenda gigantesca na qual o mastro que sustenta a lona representa o líder, enquanto esta última envolve os liderados que lhe dão suporte acrítico.
Também sustentou que as coletividades humanas escolhem traumas e glórias para reforçar sua identidade. Os paulistas, por exemplo, acreditam ser descendentes dos bandeirantes e pioneiros, desenvolvendo na literatura e na arte em geral certos traços que consideram parte do seu caráter paulistano. Os nordestinos, por seu turno, afirmam sua resistência ao invasor holandês, exaltam a rebeldia de poetas como o baiano Gregório de Matos Guerra, do líder de Canudos Antônio Conselheiro, da heroína cearense Bárbara de Alencar na luta contra a monarquia e aplaudem a literatura de Graciliano Ramos.
Quando tais dispositivos são ativados por um grupo em detrimento do outro, o fenômeno da negação inconsciente e da desmentida de práticas desumanas é acionado para justificar a dominação. Assim, a psicanálise contribui para, mediante a teoria do inconsciente, explicar a vida política.
Considerações finais
Freud afirmou que seu pessimismo sociopolítico era o resultado da sua investigação sobre as ilusões da humanidade. Naturalmente o criador da psicanálise se referia a uma espécie de princípio da maldade contido na pulsão de morte e que tornava o homem um destruidor implacável.
Quando Tanatos se descola e se autonomiza na relação com Eros, a guerra hobbesiana de todos contra todos se intensifica. O processo sublimatório que por meio da literatura, da poesia e do teatro constituem a arte integradora da cultura é atacado, enquanto a solução perversa é estabelecida. O dispositivo sociopolítico que torna um setor minoritário da sociedade dominante na economia esmaga o conjunto maior da população de uma nação.
A exclusão das maiorias desprotegidas vai tomando o lugar da inclusão, enquanto a perversão substitui a sublimação. O afeto de consideração e amor pelo outro semelhante é recalcado e substituído por jogos de interesse, prestígio e dinheiro com a marca do fetiche. O fetichismo passa a ser produzido em escala pelo algoritmo que a mídia corporativa comandada pelo mercado do capital produz com avassaladora velocidade.
A angústia do desamparo leva o homem a se agarrar à imagem fugidia e ao discurso vazio. Tal combinação diabólica dá suporte à crença raciológica em povos superiores e autoriza a matança implícita ou explícita daqueles que não integram a comunidade dos privilegiados.
O inconsciente individual e coletivo é estimulado para que o ódio derivado da pulsão de morte se presentifique no ego individual e na sociedade divididos. O narcisismo da diferença entra em cena dividindo a população do país entre Nós e Eles. O processo esquizoparanoide constrói o muro que separa aqueles que se consideram superiores dos supostos inferiores moral e cognitivamente.
O virilismo falocentrista ataca o sexo feminino com a arma do tradicionalismo da educação caseira dos filhos enquanto aponta o símbolo fálico dos dedos indicador e médio, tentando disfarçar a violência no lúdico do riso. Desse modo, há uma regressão para processos inconscientes individuais e grupais primitivos que são justificados por crenças pseudocientíficas e crenças religiosas fanáticas numa suposta batalha do bem contra o mal.
O maniqueísmo exprime a regressão histórico-política que apela para uma mitologia, por exemplo, a de considerar o patrono da educação brasileira, Paulo Freire, um representante do mal, enquanto os supostos seguidores do bem trazem no semióforo das cores azul e rosa o esquematismo rígido da divisão entre homens e mulheres.
Enquanto isso, a justiça se cala e a força coercitiva das armas é apontada para que o pensamento universal e crítico sejam silenciados. O silêncio tumular da pulsão de morte se manifesta por meio do que, seguindo Weiss, afirmamos ser a ação do destruído.
A pulsão de morte pretende afirmar o seu triunfo na tentativa constante de enfraquecer a vida democrática. A expressão livre das ideias e dos valores humanos, que o psicanalista vê no gesto grandioso do desejo de Antígona de dar enterro digno ao irmão contrariando a Lei de Creonte, é atacada, anulando os fundamentos da ética.
Os capos referidos por Frankl, judeus traidores dos campos de concentração, estão em todas as culturas e, quando emergem do inconsciente coletivo, manifestam-se no preconceito selvagem. A selvageria anticivilizatória enfraquece os vínculos amorosos entre as pessoas, e o narcisismo individualizante prevalece sobre o social-ismo.
A convivência democrática da tolerância e do respeito ao contraditório cede lugar ao passionalismo superficial das intrigas pelas redes sociais. O intelecto crítico horrorizado tenta se acostumar ao horror de um quadro político aberrante. A democracia busca refúgio na arte, tentando estimular uma resistência que desfaça a apatia diante da violência naturalizada. O psicanalista então se dá conta de que o inconsciente não é uma hipótese, mas um fato que explica a tirania destruidora da democracia.
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Recebido em: 5/5/2019
Aceito em: 5/6/2019
1 Judeu escolhido como ordenança ou ajudante de oficial da SS no campo de concentração. No original, grafado Kapo.