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Jornal de Psicanálise
Print version ISSN 0103-5835
J. psicanal. vol.52 no.96 São Paulo Jan./June 2019
THANATOS
O conceito de "homem sem inconsciente" de Massimo Recalcati1
The concept of "man without the unconscious" of Massimo Recalcati
El concepto de "hombre sin inconsciente" de Massimo Recalcati
Le concept de "l'homme sans l'inconscient" de Massimo Recalcati
Fabiano Veliq
Doutor em psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas). Doutorando em Filosofia pela UFMG. Belo Horizonte. veliqs@gmail.com
RESUMO
Este artigo se propõe a apresentar as ideias de Massimo Recalcati, psicanalista italiano da atualidade, que faz uma proposta baseada na teoria lacaniana e na metapsicologia freudiana do que seriam as patologias do homem da hipermodernidade.
Palavras-chave: pulsão de morte, releitura, antropologia, sociologia, Massimo Recalcati
ABSTRACT
The article proposes to present the ideas of Massimo Recalcati, current Italian psychoanalyst, who makes a proposal based on Lacanian theory and Freudian metapsychology, of what would be the pathologies of the man of hypermodernity.
Keywords: death drive, rereading, anthropology, sociology, Massimo Recalcati
RESUMEN
El artículo se propone presentar las ideas de Massimo Recalcati, psicoanalista italiano de la actualidad, que hace una propuesta basada en la teoría lacaniana y en la metapsicología freudiana, de lo que serían las patologías del hombre de la hipermodernidad.
Palabras clave: pulsión de muerte, relectura, antropología, sociología, Massimo Recalcati
RÉSUMÉ
L'article propose de présenter les idées de Massimo Recalcati, psychanalyste italien actuel, qui fait une proposition basée sur la théorie lacanienne et la métapsychologie freudienne, de ce que seraient les pathologies de l'homme d'hypermodernité.
Mots-clés: pulsion de mort, relecture, anthropologie, sociologie, Massimo Recalcati
Introdução
A obra de Massimo Recalcati é praticamente desconhecida no Brasil, e por isso este artigo visa ser uma apresentação desse importante psicanalista que tem trabalhado temas bastante pertinentes para a psicanálise contemporânea.
Massimo Recalcati é um psicanalista italiano nascido em 28 de novembro de 1959. Graduou-se em filosofia em 1985 na Universidade de Milão, defendendo sua monografia cujo título era Desir d'être e Todestrieb: ipotesi per un confronto tra Sartre e Freud.
Em 1989 se especializou em Psicologia na mesma universidade, defendendo seu trabalho cujo título era Analisi terminabile ed interminabile: note sul transfert. Entre 1988 e 2008 desenvolveu sua formação analítica em Milão com Carlo Viganó e em Paris com Jacques-Alain Miller e Eric Laurent.
Atualmente é membro analista da Associação Lacaniana de Psicanálise e leciona nas universidades de Padova, Urbino, Bergamo e Losanna. Também leciona a matéria de psicopatologia dos comportamentos alimentares na Universidade de Pávia. É também diretor da Escola de Especialização em Psicoterapia - Instituto de Pesquisa de Psicanálise Aplicada (irpa, em italiano). Em janeiro de 2003 fundou, junto com alguns colegas, a Jonas Onlus - centro de clínica psicanalítica para novos sintomas que promove diversos cursos e seminários ao longo do ano.
Autor de vários livros e artigos, Massimo Recalcati também escreve semanalmente no jornal La Repubblica sobre temas atuais sob a ótica psicanalítica.2 Massimo Recalcati é uma figura famosa no cenário psicanalítico italiano. Seus livros e sua forma mais clara de dizer as coisas têm chamado muito a atenção de quem se interessa por psicanálise. Além disso, suas colunas no jornal La Repubblica sempre procuram fazer a psicanálise dialogar com os problemas atuais, realizando leituras psicanalíticas de temas como política, violência doméstica etc.
Recalcati possui uma formação lacaniana, e todos os seus escritos partem de uma releitura de Lacan com algumas atualizações e acréscimos próprios. Em seu livro Jacques Lacan: Desiderio, godimento e soggettivazione (2012), ele procura fazer um testemunho do seu trabalho sobre esse autor, e não apenas um retrato imparcial da obra de Lacan. É um livro em que procura explicar a teoria lacaniana da forma que a compreende, tendo uma preocupação muito grande em elucidar os diversos conceitos e as diversas relações propostas por Lacan em seus trabalhos.
Neste artigo proporemos analisar ideias importantes de Recalcati, como o "homem sem inconsciente" e sua leitura sobre a pulsão de morte. Para isso tomaremos por base o livro L'uomo senza inconscio (2010) e teremos em mente uma outra obra de Recalcati, que é o Elogio dell'inconscio: dodici argomenti in difesa dellapsicoanalisi (2007), com o intuito de apresentar a obra desse estudioso ao povo de língua portuguesa e ao mesmo tempo evidenciar as condições epistemológicas que permitem a Recalcati formular a noção de complexo de Telêmaco.3 Acreditamos que esse esforço seja necessário por permitir uma leitura ainda inédita no Brasil das obras desse autor, abrindo um campo de estudos para a Psicanálise no Brasil ainda pouco explorado.
L'uomo senza inconscio
L'uomo senza inconscio é uma obra de 2010 e, a nosso ver, marca um grande esforço teórico de Recalcati, tanto de oferecer um diálogo entre a psicanálise e a contemporaneidade quanto de fundamentar a clínica psicanalítica contemporânea.
O livro é dividido em duas grandes partes. A primeira é mais teórica, na qual Recalcati procurará definir o que entende pelo "homem sem inconsciente" e como se dá a relação deste homem com a sociedade atual. A segunda parte trata de aplicar a teoria psicanalítica ao tratamento dos chamados "novos sintomas", como bulimia, anorexia, toxicomania e depressão.
Dado o objetivo de nossa tese, concentraremo-nos na primeira parte desse livro, pois ela, a nosso ver, dá-nos, unida com os doze argumentos a favor do inconsciente, uma visão muito boa da proposta psicanalítica de Recalcati.
Em L'uomo senza inconscio (2010), Recalcati tentará mostrar que a sociedade contemporânea abandonou em grande parte a leitura da psicanálise sobre o homem, e para o autor isso se constituiria em um grande problema para a sociedade.
Se para Freud o sujeito do inconsciente era o artífice das manifestações que escapavam ao domínio da consciência (como os sonhos, os atos falhos etc.), as quais demandavam ser escutadas para revelar uma verdade escondida do sujeito, a atualidade da clínica psicanalítica mostra um sujeito que interrompeu todo contato com o inconsciente, de forma que tanto a psicanálise quanto o sujeito do inconsciente parecem morrer aos poucos.
Segundo Recalcati, os novos sintomas da clínica contemporânea nos mostram que o que está em jogo não é o desejo como manifestação do sujeito do inconsciente, mas uma espécie de anulação niilística do inconsciente, manifesta em duas direções fundamentais. A primeira seria o que ele chama de um "reforço narcísico do eu", que dá lugar a uma identificação sólida do sujeito, e a segunda seria uma exigência imperiosa do gozo, que rejeita todo tipo de mediação simbólica, tornando-se extremamente mortífera para o sujeito. Essas duas direções são o que caracterizaria a clínica contemporânea para Recalcati; de um lado, estaria a "clínica da identificação sólida", do outro lado a "clínica do poder excessivo do id". Enquanto a identificação sólida oferece a ilusão que promete salvar a vida do sujeito por meio de uma consistência imaginária, o poder excessivo do id arrasta o sujeito para uma devastação pulsional.
Recalcati deixa claro o objetivo do livro. Segundo ele:
Este livro interroga a época hipermoderna como a era da evaporação do Pai tentando enquadrar as chamadas novas formas de sintoma dentro dessa passagem temporal. A era hipermoderna é a era do individualismo atomizado que se impõe sobre a comunidade, é a era do culto narcísico do Eu e do impulso compulsivo ao gozo imediato que desviam o circuito sublimatório da pulsão, impondo-se na forma de um inédito princípio de competência que situa o gozo mesmo como um novo dever superegoico. Todas as formas contemporâneas de desconforto da civilização, toda a nova psicopatologia com a qual o psicanalista hoje deve se confrontar refletem essa dupla tendência: de parte um sujeito destacado da comunidade, atomizado, reduzido a pura máscara social, produto de uma identificação sólida, desinserido dos laços por um excesso de alienação aos semblantes sociais; por outro lado, o impulso da pulsão que rejeita a castração simbólica e sua necessária canalização sublimatória para estabelecer-se como impulso sadiano ao consumo do objeto, como exigência imperativa de obter um gozo sem passar pelo Outro. (2010, p. 11)
A evaporação do pai aparece aqui como um fator determinante para a análise de Recalcati sobre como pensar a psicanálise na chamada época hipermoderna. Essa evaporação leva o sujeito a produzir duas possíveis saídas para a falta que caracterizaria em grande parte as duas clínicas das quais fala Recalcati.
Para ele, a época hipermoderna é a do discurso do capitalista, quando a máquina do gozo substitui a máquina do recalque. O culto desenfreado ao consumo faz o sujeito entrar em uma circularidade diabólica.
Ao fazer crer que o objeto que satisfará a falta do sujeito está acessível por meio do consumo, o discurso do capitalista acaba levando o sujeito a entrar em uma circularidade em que, a cada novo produto consumido, é necessário outro. Entra-se em um círculo vicioso, em que a busca incessante do objeto de gozo faz o sujeito se perder cada vez mais nesse processo.
Aqui o conceito de pulsão de morte aparece novamente. Essa pulsão de morte que visa apenas ao gozo mortífero é o que é colocado em movimento pelo discurso do capitalista, e, como a nossa época se caracteriza por esse discurso, a clínica contemporânea, para Recalcati, é muito mais uma clínica da pulsão de morte do que uma clínica do desejo. É a clínica do antiamor, significando que a dificuldade de hoje consiste em conseguir dar um sentido à própria vida, animar a própria existência, que várias vezes aparece impelida por uma busca acéfala de gozo.
As duas possibilidades de clínica citadas (a clínica da identificação sólida e a clínica do poder excessivo do id) caracterizam-se, para Recalcati, como a clínica do antiamor. A clínica do poder excessivo do id é caracterizada por ele como a do "id sem inconsciente" e nela domina a imprudência pulsional, a tendência à repetição de um gozo que prescinde do contato com o Outro, uma tendência a agir, a passar ao ato, à negação de toda mediação simbólica.
A clínica da identificação sólida é caraterizada como a do "eu sem inconsciente", ou seja, uma clínica da hiperidentificação, da armadura narcísica, do governo disciplinar do corpo, da rejeição da alteridade, da apatia etc. Ambas se apoiam no cancelamento do sujeito do inconsciente.
Por isso, para Recalcati, a nova clínica não deve ter a neurose como matriz para pensar os seus problemas, mas se assemelharia muito mais à clínica da psicose, do narcisismo, da perversão, clínica que não tem em seu centro a instância inconsciente do desejo, mas a sua negação na forma de um agir sem mediação simbólica, várias vezes ignorando a castração.
Recalcati define o homem sem inconsciente como "o homem reduzido à eficiência inumana da máquina, ao seu funcionamento automático, privado de desejo; seria um homem animado de um impulso pulsional acéfalo, imperativo, sem ancoragem na função simbólica da castração" (2010, p. 3). Para o autor, o homem sem inconsciente é fruto de uma mutação antropológica provocada pelo discurso do capitalista, uma vez que o sujeito do inconsciente resulta de uma experiência que é inassimilável a tal discurso. Esse novo sujeito dá origem àquilo que Recalcati chama de "clínica do vazio".
Para Recalcati (2010), a clínica do vazio se caracterizaria por uma tentativa de reduzir a falta de que fala a psicanálise (provocada pela entrada da linguagem no corpo pulsante) ao vazio. Segundo ele:
Se a "falta a ser" constitui para Lacan a realidade humana como tal e é produto de uma simbolização fundamental do vazio, a experiência do vazio é uma experiência de redução, de reificação, de ossificação, de congelamento da falta. (Recalcati, 2010, p. 12)
A falta reduzida ao vazio seria uma espécie de falta desconexa do desejo. A experiência do vazio seria de anulação e de petrificação do desejo. Isso caracterizaria, o autor, uma metamorfose antropológica: "o homem da clínica do vazio aparece como um homem sem inconsciente" (Recalcati, 2010, p. 12).Enquanto a clínica da neurose estaria centrada na tentativa de resolver o conflito entre o programa do desejo e o da civilização, a clínica do vazio põe o acento sobre a necessidade de conter a angústia do sujeito.
No centro da clínica do vazio, não se encontraria o programa do desejo, mas o programa do narcinismo4 (narcisismo + cinismo) do gozo do um, autístico, sem o Outro que se opõe à mediação simbólica da Lei. Isso significa que, na nova clínica, a relação recalque-retorno do recalcado, central na clínica da neurose, não é mais operativa, mas em seu lugar vem a relação angústia-defesa como paradigma.
Tal mudança da clínica estaria ancorada em uma mudança de cunho social e, segundo Recalcati, guardaria uma modificação essencial no comando do supereu.
Enquanto o supereu freudiano se assemelharia mais a uma dinâmica kantiana - tanto que o próprio Freud afirmava que o supereu seria um herdeiro legítimo do imperativo categórico kantiano,5 pois sua voz exigia uma renúncia pulsional para conseguir viver em sociedade -, a época hipermoderna assiste a uma mudança drástica do supereu. A voz do supereu não remete mais a uma moralidade do tipo kantiana, mas à elevação do gozo a um novo imperativo social: o gozo se torna a Lei e assume a forma de um novo imperativo categórico que ordena o gozo e rejeita a castração. Deve gozar!
Se a questão se coloca dessa forma, percebe-se facilmente que a nova clínica tem um fundo muito mais psicótico que neurótico. Isso não quer dizer que os sujeitos deixaram de ser neuróticos e passaram a ser psicóticos, mas que a clínica da psicose se constitui como chave de leitura mais interessante para o mal-estar da sociedade hipermoderna.
Tanto Freud quanto Lacan sustentavam uma diferença estrutural entre a psicose e a neurose. Enquanto a psicose se caracteriza por uma rejeição do mal-estar da civilização, a neurose é uma doença do mal-estar da civilização. Segundo Recalcati, "O psicótico é, de fato, um sujeito que se quer desesperadamente livre e que, portanto, não tolera integrar-se em nenhum discurso já estabelecido" (2010, p. 16). A liberdade do psicótico visa ser absoluta, opondo-se a todo pacto simbólico entre os homens. É uma separação não subjetivada, não simbolizada, mas uma separação sem dialética.
Enquanto na neurose há um retorno simbólico do real recalcado através da formação do inconsciente, na psicose o que há é um colapso do simbólico e um retorno do real sem nenhum tipo de filtro simbólico. Isso é o que diferenciaria a alucinação de um sintoma.
A alucinação se impõe ao sujeito como um real que impede a mediação simbólica, enquanto o sintoma se caracteriza como uma mediação simbólica entre o real da exigência pulsional e a ação do recalque.
A clínica do vazio tem caráter tipicamente psicótico, pois os sintomas contemporâneos parecem se assemelhar muito mais à lógica da alucinação que à da formação sintomática. Na clínica do vazio, o que prevalece é a descarga, a passagem ao ato diante do colapso do simbólico. Segundo Recalcati, "Ao centro não está mais o sujeito do inconsciente, mas o poder excessivo do id, portanto um id que devemos colocar sem inconsciente, não estruturado como uma linguagem, sem relações com o sujeito do desejo" (2010, p. 16).
O id sem inconsciente seria a outra parte do inconsciente, fruto da divisão do inconsciente freudiano proposto em "Além do princípio do prazer" (1920/1976a). O inconsciente, a partir desse texto de Freud, passa a ser entendido de duas formas: como vontade de significação e como vontade de gozo (que Freud chamará de pulsão de morte). A vontade de significação conduz Freud à metamorfose do desejo inconsciente; a vontade de gozo conduz à repetição da pulsão de morte.
A primeira versão do inconsciente de Freud é aquela da vontade de significação, proposta em "A interpretação dos sonhos" (1900/2006a). Destaca a dimensão simbólica da existência humana e coloca os lapsos, os atos falhos etc. como tentativa de manifestar cifradamente uma verdade escondida do sujeito. O sujeito é habitado por um "querer dizer" que é impedido pela consciência. Um Freud hermeneuta visa desvendar o inconsciente por meio da prática da psicanálise.
A segunda versão do inconsciente de Freud virá quando ele já estiver mais velho, nos anos 20 do século passado. Em "O mal-estar da civilização" (1929/1976b), Freud coloca sua tese clássica de que a vida na civilização necessita de uma grande renúncia pulsional da parte do sujeito. Esta sempre produz um resíduo pulsional que não sucumbe ao programa civilizatório. Esse resto pulsional caracterizará a chamada pulsão de morte (Todestrieb), que se coloca como uma forma diferente de definir o inconsciente, não mais pelo viés simbólico, mas por meio de uma força quantitativa que desencadeia uma compulsão mortífera à repetição. Esse passo de Freud nos mostra que o inconsciente não pode ser entendido apenas como um "querer dizer", mas também deve ser pensado como id enquanto pura pulsão de morte, como uma tendência hedonista, como uma busca de um gozo acéfalo, como uma tendência à autodestruição. Segundo Recalcati, "O inconsciente como id é o inconsciente sem palavras, mudo, silencioso, é o inconsciente que não se exprime por meio de símbolos, mas que age como força indomável, impulso, compulsão a repetir" (2010, p. 20).
O sujeito então se encontra privado de centro, cindido entre uma dimensão consciente e outra inconsciente, mas ainda se encontra contra si, com um ódio contra si, animado por uma vontade de gozo que o arrasta para a sua própria destruição.
Os diversos fenômenos de tendências suicidas, experiências de angústia sem nome, violência, agressividade, comportamentos que atentam contra a própria vida, desinvestimento libídico, apatia narcisista, indiferença diante da vida mostram-se todos como índices de uma ação destrutiva da pulsão de morte que a clínica da psicose acaba por mostrar. Segundo Recalcati,
O id se impõe sobre o sujeito do inconsciente; o gozo se dissocia do desejo e se afirma como uma vontade tirânica. Estamos diante do id sem inconsciente, do poder excessivo do id como pressuposto metapsicológico fundamental da nova clínica. Enquanto a clínica clássica da neurose permanece uma clínica do sujeito do inconsciente, a nova clínica se afirma como uma clínica do id e do seu poder mortífero. Aquilo que na nova forma do sintoma retorna e se repete, não retorna e se repete pela via simbólica da formação do inconsciente, mas pela via maldita da pulsão de morte que quebra todo esquema linguístico. (2010, p. 21)
Como afirmamos anteriormente, há duas clínicas caracterizadas como clínica do antiamor, ou clínica do vazio. A primeira, que acabamos de mostrar, é a chamada clínica do poder excessivo do id; a outra, que passaremos a mostrar agora, caracteriza-se pela clínica da identificação sólida.
Segundo Recalcati, um grande capítulo na nova clínica contemporânea é a chamada patologia da identificação, que se caracteriza por uma excessiva identificação com o semblante social, gerando uma hiperindentificação do sujeito com o meio onde vive, impedindo sua subjetivação.
Para tratar da identificação sólida, Recalcati retoma a ideia de Winnicott desenvolvida em O brincar e a realidade (1975), em que Winnicott caracteriza dois tipos de psicose.
O primeiro é a psicose schrebiana, caracterizada por uma perda da realidade, por uma dissolução delirante do mundo comum, em que o sujeito se perde diante da realidade. O outro tipo é a psicose que provocaria um novo gênero de separação, não da coisa externa, mas de si, do seu próprio inconsciente. O sujeito está tão ancorado à realidade externa que perde o contato consigo, com a sua realidade subjetiva, com o seu inconsciente. O excesso de mundo objetivo acaba por matar o mundo subjetivo. A psicose, aqui, aparece como um excesso de alienação, de conformidade com o discurso comum. Tal adesão ao discurso comum é pensada por Recalcati com base no conceito marcusiano de "princípio de desempenho",6 que afirma uma espécie de hegemonia da adequação conformística do sujeito ao semblante social, o que gera uma pseudoidentidade narcísica extremamente frágil.
Marcuse (1975) define tal princípio de desempenho como uma subsunção do princípio de realidade proposto por Freud. Isso caracterizaria uma mudança antropológica gerada pelo discurso do capitalista, que, no lugar do princípio de realidade proposto por Freud, coloca o princípio de desempenho como espécie de dever superegoico.
Enquanto o princípio de realidade proposto por Freud só pode ser pensado em uma relação dialética com o princípio de prazer, o princípio de desempenho como proposto por Marcuse assume uma face sádica, pois se torna uma espécie de princípio normativo que não se opõe mais ao princípio de prazer, mas age como imperativo superegoico que exige a anulação do desejo, em vez de alimentar a dialética entre princípio de prazer e princípio de realidade. A constante busca da adequação do sujeito à norma social, à dinâmica da eficiência, acaba por sobrepor-se ao desejo subjetivo. Impõe-se um culto social do desempenho que pressiona a subjetividade a se adequar ao contexto social. Uma vez que a sociedade hipermoderna se caracteriza por uma busca incessante do gozo, o princípio de desempenho se torna uma prestação de gozo. Segundo Recalcati,
Nesse sentido, o princípio de desempenho não é apenas a obediência passiva ao princípio normativo da realidade, mas é aquilo que afasta o sujeito do seu desejo e o liga à obediência prescritiva da prestação, sobretudo enquanto a prestação não é simplesmente antitética ao gozo, mas tende, ao contrário, a realizá-lo compulsivamente. (2010, p. 25)
Conclusão
Este artigo teve como intuito apresentar um panorama da obra de Massimo Recalcati com base na análise de duas obras importantes do referido autor. Tivemos a oportunidade de evidenciar, ao mesmo tempo, alguns traços importantes sobre como Recalcati entende o papel da psicanálise na hipermodernidade e a clínica analítica contemporânea, que se caracterizaria mais por uma clínica do vazio de fundo psicótico do que por uma clínica da falta típica da neurose. Tal proposta de Recalcati tem um alcance muito grande para pensar a prática psicanalítica na hipermodernidade, e o nosso intuito neste artigo foi explicitar o aspecto teórico do pensamento desse estudioso sem nos ater à direção do tratamento advindo dessa nova formulação.
Referências
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Freud, S. (2006a). A interpretação dos sonhos. In S. Freud, Obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 4, pp. 1-352). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1900) [ Links ]
Freud, S. (2006b). O problema econômico do masoquismo. In S. Freud, Obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 19, pp. 255-68). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1924) [ Links ]
Marcuse, H. (1975). Eros e civilização: uma interpretação filosófica do pensamento de Freud (6a ed.). Rio de Janeiro: LTC. [ Links ]
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Winnicott, D. W. (1975). O brincar e a realidade. (Coleção Psicologia Psicanalítica). Rio de Janeiro: Imago. [ Links ]
Recebido em: 17/8/2018
Aceito em: 10/11/2018
1 Como não há tradução para o português das obras em italiano utilizadas na elaboração deste artigo, todas as traduções do italiano foram feitas pelo autor deste trabalho.
2 A biografia mais detalhada do autor pode ser acessada em <http://massimorecalcati.it/biografia-recalcati-2018>. A bibliografia completa pode ser acessada em <http://www.massimorecalcati.it/images/pdf/bibliografia-recalcati-20140211.pdf>. Recuperado em 4 de março de 2014.
3 O complexo de Telêmaco é um conceito formulado em um livro de 2013 que leva o mesmo nome. A intenção de Recalcati é propor uma nova forma de ver a relação entre pai e filho na contemporaneidade, baseando-se na psicanálise. Segundo Recalcati, o complexo de Telêmaco pode ser visto como um inverso do complexo de Édipo, uma vez que Telêmaco não vê o pai como um rival no acesso à lei, mas é alguém que aguarda o pai para trazer a lei à cidade devastada pelos pretendentes de Penélope. Para um detalhamento do complexo de Telêmaco, consultar Veliq (2016).
4 Termo cunhado por Colette Soler em Declinaciones de la angustia (2000).
5 "O superego - a consciência em ação no ego - pode então tornar-se dura, cruel e inexorável contra o ego que está a seu cargo. O Imperativo Categórico de Kant é, assim, o herdeiro direto do complexo de Édipo" (Freud, 1924/2006b, p. 64). Sobre a construção freudiana da vinculação entre o superego e o imperativo kantiano, remetemos o leitor ao trabalho citado.
6 Cf. Marcuse, H. Eros e civilização (1975).