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Jornal de Psicanálise

Print version ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.52 no.96 São Paulo Jan./June 2019

 

HISTÓRIA DA PSICANÁLISE

 

A mensagem de "Roda-viva"1

 

The message of "Roda-viva"

 

El mensaje de "Roda-viva"

 

Le message de "Roda-viva"

 

 

Virgínia Leone Bicudo

Diretora do Instituto de Psicanálise da Sociedade Brasileira de Psicanálise (1957 a 1958, 1963 a 1974). Professora da Escola de Sociologia e Política de São Paulo

 

 


RESUMO

A ignorância sobre a natureza humana coloca o homem e a humanidade sob os riscos da autodestruição. A dualidade entre o desejo de viver e o desejo de morrer, sempre presente na luta pela sobrevivência, depende da extensão em que o instinto de morte se acha neutralizado pela libido, isto é, pelos fins do instinto de vida. "Roda-Viva", como outras peças teatrais, põe em evidência alguns aspectos dos conflitos mentais e sociais operantes em nossa sociedade. Refere-se à engrenagem social do presente como uma roda-vida que culmina matando os anseios do ser humano. A sociedade de "Roda-viva" está organizada para desenvolver o culto ao triunfo da personalidade hipomaníaca, impedindo assim o desenvolvimento e a utilização do pensamento científico para a construção de uma sociedade humana. O conhecimento das causas determinantes da conduta humana é fator que contribui para o progresso na modificação do costume, na superação da tradição obsoleta, quando não mais concorre para a satisfação de necessidades vitais.


ABSTRACT

Ignorance referring to human nature as motivation of its actions is bringing humanity under the threaten of self destruction. The struggle for life is always influenced by the splitting between desire to live and desire to die, in so for as libido and death instinct are not fused. "Roda-viva" is a musical play which in São Paulo is arising different reactions among the youth and people from elder generations. The main theme of the play is designed to draw attention to the danger or a society developing and cultivating manic ideals from childhood to adolescence and throughout adult life. The play claims that society is responsible for the crises which has spread all over the world, in consequence of a culture based rather on the manic personality which prevents human beings of making use of scientific thinking in order to build up a human society,


RESUMEN

La ignorancia sobre la naturaleza humana pone el hombre y la humanidad bajo los riesgos de la autodestrucción. La dualidad entre el deseo de vivir y el deseo de morir, siempre presente en la lucha por la sobrevivencia, depende de la extensión en la que el instinto de muerte se encuentra neutralizado por la libido, es decir, por los fines del instinto de vida."Roda-viva", así como otras piezas teatrales, pone en evidencia algunos de los conflictos mentales y sociales operantes en nuestra sociedad. Se refiere a la engranaje social como una rueda viva, que termina por matar las ganas del ser humano. La sociedad del "Roda-viva" se organiza para desarrollar el culto al triunfo de la personalidad hipomaniaca, impidiendo/atrapando así el desarrollo y la utilización del pensamiento científico para la construcción de una sociedad humana. El conocimiento de las causas determinantes de la conducta humana es factor que contribuye para el progreso en la modificación de la costumbre, en la superación de la tradición obsoleta, cuando ya no más concurre a la satisfacción de necesidades vitales.


RÉSUMÉ

L'ignorance envers la nature humaine met l'homme et l'humanité sous le risque de s'autodétruire. La dualité entre le désir de vivre et le désir de mourir, toujours présente dans la lutte pour la survie, dépend de la mesure dans laquelle l'instinct de mort est neutralisé par la libido, c'est-à-dire par la fin de l'instinct de vie. "Roda-viva", à l'instar d'autres pièces de théâtre, met en lumière certains aspects des conflits mentaux et sociaux qui opèrent dans notre société. Il fait référence à la roue dentée sociale du présent comme à une vie de roue aboutissant à la mort des aspirations humaines. La société "Roda-viva" est organisée pour développer le culte du triomphe de la personnalité hypomaniaque, empêchant ainsi le développement et l'utilisation de la pensée scientifique pour la construction d'une société humaine. La connaissance des causes déterminantes du comportement humain est un facteur qui contribue à faire évoluer les coutumes, à dépasser la tradition obsolète, dès lors qu'elle ne contribue plus à la satisfaction des besoins vitaux.


 

 

 

I. Introdução

A ignorância sobre a natureza humana, como fator de motivação de reações e atos, coloca o homem e a humanidade sob os riscos da autodestruição. A dualidade entre desejo de viver e desejo de morrer está presente na luta pela sobrevivência, luta que acompanha o ser humano em toda a carreira de sua existência. Apenas na medida em que os objetivos de vida predominam sobre os fins de morte é que o indivíduo e os grupos humanos têm possibilidade de sobrevivência. Em última instância, portanto, as lutas individuais ou grupais se resumem em luta entre instinto de vida e instinto de morte. Instinto de vida e instinto de morte são, pois, os instintos fundamentais, que basicamente influenciam a natureza humana.

Os conhecimentos referentes à natureza humana são instrumento indispensável para a ação, no sentido de promover a solução de conflitos mental e grupal. As lutas desencadeadas pelo determinismo do inconsciente, e portanto por motivações desconhecidas, implicam em lastimável desperdício, porque são lutas que se processam dentro do caos, como se a humanidade fosse constituída unicamente de cegos e surdos dotados de linguagem com significado somente individual. Egoísmo, narcisismo, voracidade ou ambição insaciável e inveja destrutiva são qualidades que fazem parte da natureza original do homem, as quais, através do processo de socialização, são restringidas e parcialmente modificadas em altruísmo, amor ao próximo, capacidade para saciedade, admiração e gratidão. A percepção de que a própria sobrevivência depende da sobrevivência do próximo atua como força propulsora da limitação do individualismo primitivo que existe em cada ser.

As soluções que tornam possível ao homem a vida gregária são de início encontradas empiricamente e, quando aceitas e adotadas pelo grupo, são institucionalizadas, passando a fazer parte dos níveis inconscientes da personalidade. Constituem-se em expectativas de comportamento, em função das quais o grupo social se integra. Ilustrando esse processo de socialização e reintegração do ego durante uma hora analítica, um doente mental se expressa nos seguintes termos. "Desde criança, sempre me obrigaram a lavar as mãos antes de sair do banheiro; isto sempre me revoltou, porque não tenho nojo de mim mesmo; mas agora estou pensando que, se eu não lavar as mãos, os outros também não vão fazê-lo, e não quero que peguem em mim, porque tenho nojo das mãos sujas deles. Então, agora, vou lavar sempre minhas mãos; assim, eles também se lavam." Quando os componentes de uma sociedade perdem suas expectativas de comportamento e seus objetivos comuns, o grupo social entra em processo de desintegração e, se seus componentes não têm capacidade para perceber e entender o que se passa, são envolvidos pela avalanche dos impulsos destrutivos e reativados pelo aumento de sentimentos de frustração.

"Roda-Viva", como outras peças teatrais, põe em evidência alguns aspectos dos conflitos mentais e sociais operantes em nossa sociedade. Refere-se à engrenagem social do presente como uma roda-viva, cujo fim é matar os anseios do ser humano.

Dotado de sensibilidade e talento incomuns, o artista se antecipa ao que posteriormente é percebido pelo homem comum e sofre mais agudamente, na forma de conflito mental e de distúrbios da personalidade, o processo de mudança social. Consciente ou inconscientemente, desejando ou sem o querer, o artista sempre transmite uma mensagem através da sua obra.

Possuindo talentos especiais, o artista é geralmente uma pessoa fora do seu tempo, incapaz de compreender sua gente e incompreendido em sua época. Artistas de um lado e espectadores de outro, em períodos de intenso processo de transição cultural, frequentemente se acham distanciados pela incompreensão e ausência de linguagem com significados comuns, renovando-se assim o ambiente da torre de Babel.

Fenômeno semelhante ocorre entre os jovens e as gerações mais velhas. Os jovens têm mais possibilidades de perceber o anacronismo das leis sociais, quando confrontados com a tendência das gerações mais velhas empenhadas na defesa e na luta tenaz e emocional pela preservação da tradição, do costume e da lei. É, pois, compreensível que, quanto maior o hiato entre as gerações, tanto mais violento será o conflito entre elas. Como, porém, violência gera violência, e violência é fruto de paixão e de ausência de pensamento objetivo para orientar a ação, a possibilidade de quebrar o círculo-vicioso, formado pela violência para obtenção de mudanças sociais e culturais, fica no recurso ao pensamento científico, baseado no princípio da realidade atual. Nem os jovens podem desfazer-se destrutivamente de toda a herança social que receberam, como também não podem os mais velhos impunemente rejeitar toda a contribuição dos mais jovens e dos artistas.

A intensidade do conflito entre as gerações dá indicação sobre a extensão em que as diferentes gerações mantêm conflitos mentais e socioculturais não-solucionados, como aqueles referentes ao mito edipiano. A rivalidade e a competição aguda entre pais e filhos são deflagradas pela excessiva autoridade dos primeiros, que temem ser ultrapassados, e pela exagerada reação dos segundos, por causa do temor de serem mantidos submissos e castrados.

A pesquisa sobre o conhecimento de assuntos referentes à personalidade, à psicologia social e à organização social pode usar como material de estudo a psicanálise do indivíduos, a história de vida, a análise das expressões de arte de um povo. "Roda-viva", peça teatral de Chico Buarque de Holanda, dirigida por José Celso Martinez Corrêa, se presta para ilustrar o conflito entre as gerações e o papel do artista, dos jovens, e dos mais velhos, como participantes de conflitos mentais e sociais. Por que razão "Roda-Viva" tem sido destacada por debates apaixonados e, recentemente, por atos de violência e perversão? Uma análise sucinta do conteúdo e da encenação da peça poderá ser fonte de alguma informação esclarecedora da pergunta proposta. Entretanto, para a análise da peça, faz-se mister a definição de um esquema de referência sobre a natureza humana e o desenvolvimento do costume e das instituições sociais.

 

II. Natureza humana

O ser humano distingue-se dos outros animais da escala biológica por sua capacidade de desenvolver cultura. Esta consiste em um conjunto de significados e de equipamento tecnológico que se tornam, ao mesmo tempo, meio e fim para a realização dos objetivos pelos quais o homem vive e morre. Portanto, o estudo da cultura dos povos fornece à ciência elementos para o conhecimento da natureza humana. Por outro lado, a pesquisa sobre os fatores psicológicos busca o conhecimento da natureza do ser humano.

Segundo pesquisas realizadas pela técnica da psicanálise, a atividade do ser humano é determinada pelo equilíbrio entre dois instintos fundamentais: o instinto de vida e o instinto de morte. Originando-se e expressando-se fisiologicamente através dos processos de anabolismo e catabolismo, ao atingir o nível mental, os instintos de vida e de morte assumem, segundo a contribuição do psicanalista inglês Bion, a forma de preconcepção, isto é, de expectativa de encontrar no mundo exterior os meios para a sua descarga e concomitante satisfação. A "defusão" entre os dois instintos caracteriza o psiquismo infantil, período em que a mente se acha cindida e solicitada simultaneamente pelos dois impulsos. Consequentemente, durante o processo de crescimento, as reações da criança se caracterizam por forte atitude de ambivalência, quando o mesmo objeto pode ser desejado e amado ou rejeitado e odiado, de acordo com a predominância momentânea de um ou de outro instinto.

Sob o domínio dos impulsos instintivos, a vida mental primitiva é regida pelo princípio do prazer-dor, que leva o indivíduo - de forma narcísica, egoística e onipotente - a procurar prazer e fugir da dor. O princípio do prazer-dor, dominante durante o desenvolvimento da criança, e como tal persistindo no adulto psiquicamente perturbado, é alcançado somente pela satisfação incondicional do instinto posto em movimento, seja de vida ou de morte, motivando, portanto, a frustração de um ou de outro impulso instintivo, acompanhada de angústia intolerável.

No psiquismo infantil, os anseios de vida coexistem com os anseios de morte. Entretanto, na extensão em que o instinto de vida predomina sobre o instinto de morte, o mecanismo psíquico de defesa denominado "projeção" protege a criança de se autodestruir. Por meio desse mecanismo, a criança passa a atacar tudo quanto a molesta como não pertencendo ao seu ego corporal e, concomitantemente, pelo mecanismo da introjeção, incorpora a si tudo quanto lhe traz satisfação e conforto. Pesquisas realizadas na Inglaterra e nos Estados Unidos dão evidência de que há crianças que morrem precocemente pela dominância da atividade de impulsos de morte não-projetados que as mantêm inertes e impedidas de desenvolver as atividades que presidem à vida, como mamar e assimilar o alimento.

À medida que progridem o crescimento mental e a maturidade emocional, a fusão entre instinto de vida e instinto de morte vai substituindo a "defusão", isto é, a condição em que o prazer direto da satisfação puramente instintiva não leva em conta nenhum princípio de realidade e de moral. Como decorrência da fusão dos dois instintos fundamentais, os impulsos instintivos destrutivos passam a subordinar-se aos fins dos impulsos construtivos. A neutralização dos impulsos destrutivos (instinto de morte ) pela libido (instinto de vida) assegura cada vez mais a sobrevivência do indivíduo e o possibilita a utilizar-se de suas capacidades criadoras e de inteligência. Assim garantida em sua integridade, a criança encontra desde logo condições para incorporar, aos poucos, o senso de realidade, de moral e de religião contra a disposição inata e instintiva que prescinde de aprendizagem. O sentimento infantil de ser o centro de gravitação do Universo, o anseio pelo absoluto, e pela perfeição, e o pensamento mágico cedem, em primeiro lugar, aos sentimentos de moral e de sentimento de culpa. O desejo egoístico modifica-se parcialmente nos códigos de moral e do religião, os quais incluem consideração e amor ao próximo, quando então o indivíduo percebe que sua sobrevivência e o seu conforto dependem do conforto e da preservação da vida de terceiros. Posteriormente, desenvolvem-se as capacidades de discriminar, julgar e pensar cientificamente.

Todavia, os fatos que ocorrem hodiernamente são comprovantes clamorosos de que a civilização ocidental está longe de ter alcançado condições socioculturais satisfatórias para o desenvolvimento da natureza humana em sua plenitude. Enquanto o homem civilizado se aprimorou no desenvolvimento tecnológico para sobrepor-se aos insultos do seu "habitat" ecológico e geográfico, ficou atrasado no que se refere ao conhecimento de si mesmo e, consequentemente, ao relacionamento entre os seres humanos. A fome e a pobreza, derivadas de inadequada distribuição e exploração dos recursos materiais e culturais, são fatores evidentes de frustração intolerável. A habilidade desenvolvida para a produção de armamento bélico - em última análise, expressão do instinto de morte, suficientemente poderoso para ameaçar a sobrevivência de toda a humanidade - é fator para desenvolver um estado universal e contínuo de angústia e insegurança. E por último - porém o fator mais importante - consiste no desconhecimento de si mesmo pelo homem, o que o leva a enganos. Assim, sob o engano frequente de estar agindo para os fins de vida, trabalha para a morte; pois, sob condições de contínua frustração, regride para a "defusão" dos instintos e retorna à busca pura e simples do prazer incondicional e irresponsável, seja no viver, seja no matar.

Admitindo, segundo a psicanálise, que os mecanismos psíquicos mais primitivos de comunicação entre o indivíduo e o ambiente são a projeção e a introjeção, o costume e as instituições são o resultado da elaboração sócio-cultural dos elementos projetados. Toda ação sobre o ambiente pressupõe a projeção psicológica de uma necessidade a ser satisfeita. Quando tal ação é aceita, passa a ser adotada pelo grupo como forma certa, justa e indiscutivelmente adequada de obter a satisfação de uma necessidade individual e social. Desde que aceita, é institucionalizada e tenazmente defendida pelo grupo, então evoluindo do costume para a lei verbal, e desta para a lei escrita. Na base dessas soluções empiricamente encontradas para a vida do indivíduo dentro da comunidade, definem-se os papéis, a divisão de trabalho o "status" de cada um, assim se organizando a estrutura do grupo. E, portanto, evidente que o costume e as instituições provêm e padronizam as expectativas de comportamento de cada um e os meios de satisfação de necessidades primitivas referentes à vida e à morte. Todo povo define suas atividades de vida estruturando as instituições de família, de trabalho e de recreação, bem como seu modo de relacionar-se com a "morte", através de instituições religiosas e filosóficas. Quanto mais primitiva a cultura de um povo, tanto mais estará marcada pelos característicos das qualidades instintivas, que ainda correspondem à busca do prazer absoluto, do prazer narcísico, das fantasias de onipotência e onisciência, de gula voraz e insaciável, da inveja que não admite a existência do bom em si ou em qualquer outro semelhante e do instinto de morte projetado contra toda minoria ou grupo alienígena. A civilização atual apresenta traços inegáveis de estar alicerçada sobre pilares inconscientes e míticos do absolutismo, na crença, na indústria bélica, no poder econômico e no político - que se sobrepõem ao pensamento científico na educação informal ou sistematizada. A prova dessa asserção está nos conflitos entre as gerações, eclodidos em todo o mundo. Não é por acaso que o movimento de reforma social se caracteriza por sua universalidade e tem na vanguarda os jovens e os artistas. Em consequência do desenvolvimento dos meios de comunicação, o mundo está se integrando, cada vez, mais em um só modo de pensar, sentir e reagir. Por outro lado, como o processo de transmissão da herança social é ativo, as gerações novas não recebem passivamente o que lhes é transmitido, fato que, entre outros, possibilita as mudanças socioculturais. E, quanto mais dotado o indivíduo em suas capacidades criadoras, de inteligência e de produzir pensamento artístico e científico, tanto maior sensibilidade e percepção terá para reagir contra o obsoletismo do costume e das instituições, que definiram o modo de ser, a filosofia de vida adequadas para um mundo do passado. Todavia, quaisquer que sejam e uma vez adotadas as novas formas de viver e de morrer em que o processo de mudança social se concretize, passarão elas a ser defendidas com tenacidade pelo mesmo grupo social que ora clama contra a mentalidade do "quadradão". Assim como não se pode conceber saúde mental sem recalcamento, também não é ainda concebível a existência de uma organização social sem equipamento repressor.

A arte é o resultado da utilização de talentos especiais na produção de uma obra, possibilitando ao autor o prazer de criá-la e ao espectador o prazer da estesia. A estética e o belo, porém, não estão delimitados somente às formas geométricas ou à cor, mas exprimem também uma mensagem de outra dimensão, a qual poderá ser ou não conscientemente captada. Por ser dotado de talentos especiais, o artista encontra na arte o meio de diminuir angústias consequentes de intenso conflito mental, ao não encontrar no mundo em que vive melhores condições de vida para o ser humano.

 

III. Mensagem de "Roda-viva"

A análise do tema central da peça teatral sugere que o autor se refere a um povo que sofre fome e falta de liberdade para expressar seu voto (isto é, seus desejos e pensamentos) e tenta minorar seu sentimento de frustração pela fabricação de um ídolo. Considerando-se as qualidades atribuídas ao ídolo, a peça nos dá a conhecer o que o povo da peça enganosamente valoriza: a personalidade de um "ser humano boneco", explorada em seus traços infantis de narcisismo, de mania de grandeza, de anseio pelo absolutismo, para obter autoafirmação. Os valores consagrados pelo povo e com os quais o ídolo deve identificar-se, fornecem as característicos da estrutura social do povo em questão: o comercial e o aparato proporcionado pela riqueza econômica, definida por vestes prateado-douradas, posse de um mordomo e de um "carrão". O povo valoriza também a devoção a um santo e a um time de futebol. As qualidades pessoais, que o ídolo deve reunir para agradar a todos, põem em evidência o ideal de personalidade definido pelo povo e ambicionado pelos adultos, pelos adolescentes e pelas crianças.

Sob o ponto de vista da personalidade relacionada com a estrutura social, a mensagem explícita ou implícita de "Roda-Viva" através da produção de um ídolo evidencia os falsos valores que são apresentados à criança, ao adolescente a ao adulto como ideais. A criança deve idealizar-se como assexuada e com "cara adocicada", porém capaz de matar "gente e meninada". Ao chegar à adolescência, deve mudar a negação da sexualidade em atitudes de cinismo, descrença, sensualidade, e a agressão em violência; deve valorizar-se como neurótico e temer a bomba atômica. Tornando-se adulto, deve valorizar o nacionalismo, a valentia e o mistério.

O Anjo e o Capeta são componentes da estrutura social, com "status" aparentemente diferente, porém movidos pelo mesmo objetivo econômico de parasitas do ídolo. Enquanto o Anjo tem a função de auscultar os anseios do povo para promover seus ídolos, o Capeta tem o papel de perseguir o ídolo para acusá-lo em suas falhas, como descobrir que é casado, que tem vida própria e bebe.

A entrada da mulher em cena se faz como esposa tratada pelo Anjo como intrusa, indesejável, não-merecedora de respeito. Ela encontra o marido transformado em nova personalidade, a ela estranha, à qual qualifica de homossexual. "Roda-Viva" focaliza, portanto, a esposa deixada de lado e traída em seus anseios de mulher pelo marido seduzido pela perspectiva do prazer no triunfo hipomaníaco, que anula seu interesse sexual pela esposa.

O amigo de outrora, debruçado sobre a mesa com garrafa e copo, é outra personagem que compõe a estrutura social do grupo e que não aceita seu amigo transformado em Ídolo, mas o despreza e ridiculariza. Enquanto o Ídolo, cheio de alegria hipomaníaca e narcísica, se vangloria na volúpia de sentir-se o tal, no alto, o maior, com todos aos seus pés, com muitas mulheres e muitos talheres, o amigo que "fica vegetando a vida inteira" só tem para ele uma expressão de desprezo. A sociedade de "Roda-Viva" está, portanto, organizada para desenvolver o culto ao triunfo da personalidade megalomaníaca. Para realizar seus fins, possui um equipamento técnico e infalível, a televisão e a instituição ibope, como dirigentes do destino do Ídolo e do povo, julgando pelos critérios maníacos e pela onipotência. Julgados por critérios onipotentes, o Ídolo só pode sentir-se perseguido por milhões de olhos. Na estrutura social da peça, a esposa é apresentada com mais realismo e maturidade, com temor à onipotência enganadora e infantil do marido. Maternalmente compreensiva, ela o chama para junto de si.

Após garantidas ao Anjo e ao Capeta suas comissões, o resultado da atuação do Ídolo é prometer pão ao povo, distribuição de trocados entre os artistas inválidos e pílulas anticoncepcionais para a esposa. O povo, porém, está ávido de receber e vorazmente o desnuda, arrancando-lhe as vestes prateadas. Mas o triunfo é sempre decepcionante. Ninguém tolera ficar pisado indefinidamente; e, após desnudado e vencido em suas lutas contra o rei e nas discussões com o Ídolo, este procura refúgio na mulher-amor, que o recebe como a uma criança desvalida.

O grupo social surge interferindo na vida íntima do casal amoroso, que considera ao Ídolo um traidor das esperanças do povo, tendo-se casado à revelia de todos. E, para calar a verdade e manter o engano da ilusão, a sociedade usa o recurso da força do dinheiro, que tudo compra.

Somente após ter alcançado o ponto mais alto de sua carreira sob angústias, o ídolo percebe que nele o povo acreditou e dele exige poderes que não possui. Todos esperam a verdade, que ele vai melhorar as coisas e que não tem excreta para eliminar.

O ideal de onipotência é contrastado com o olhar de desprezo de um homem simples, que percebe a falsidade do prateado-dourado, que acusa o Ídolo de roubar e destituir o valor da verdade e da fé no real. Acusado, o Ídolo se defende de ser o responsável, ao mesmo tempo que o povo também se sente vítima da roda-viva. A organização social e seus valores, definidos em ideais de onipotência, fazem da sociedade de "Roda-viva" uma vida de "roda moinho e roda pião", assim colocando a morte trituradora dentro da vida e criando objetivos falsos, que destroem os fins de uma vida construtiva. O clamor contra essa roda-viva é inútil, como é inútil remar contra a corrente vigente para cultivar a vida. Em outras palavras, a roda-viva social trabalha a serviço da morte dentro da vida. Nessa sociedade, os indivíduos têm tempo curto para tomar conhecimento sobre as coisas da vida, sobre os fatos cotidianos como casamentos, mortes, prisões, política, trabalho, escola. Sob a dor de pesaroso sentimento de desalento, o Ídolo e seu amigo agridem o povo, a sociedade anônima, porém responsabilizada. Todavia, através de seu emissário, o Capeta, a sociedade responsabiliza o Ídolo pela infelicidade do povo. A embriaguez do Ídolo é apontada pelo Capeta como causa de todos os males, pois ameaça seus lucros e escandaliza as senhoras beatas. O Anjo, sentindo-se também ameaçado de perdas, e porta-voz dos falsos valores morais reconhecidos pela sociedade, consegue recuperar o prestígio do Ídolo, acenando com a panaceia social da caridade em benefício de órfãos, de liga antialcoólica, de senhoras católicas e de escoteiros. Dessa forma, o Ídolo é salvo em seu prestígio, porém, mais uma vez, assassinada sua individualidade real.

A fim de corresponder à hegemonia de seu povo, o Ídolo tem de adquirir novas características, bastando para tanto mudar sua exterioridade na transpiração do sentimento de nacionalismo, na dedicação à música de protesto, para mexer com o povo, desenvolver a polêmica e o pânico. Nesse sentido, é feita uma tentativa para mobilizar a participação da plateia contra os agitadores, ou contra os homens fardados que tentam conter o movimento. O Ídolo é agora transformado em Herói guerreiro, que desafia o mundo traiçoeiro a mudar por bem ou por mal, preocupando-se em proteger, de tais sofrimentos, as gerações vindouras, e, para valorizar-se, viaja para o estrangeiro. Mas é novamente acusado, pelo Capeta, de trair a nação com o estrangeiro, movido por interesses pessoais. É ainda acusado de bêbado, casado, entreguista e homossexual. Os jovens estudantes se identificam com o Herói, como vítimas da sociedade e de si mesmos, pedindo à plateia que o defenda, sendo porém impedidos, pela polícia, de manifestar-se.

A morte é apresentada como recurso final da carreira da vida do herói. Para todo herói social, só existe um fim - a morte - através do suicídio. Ninguém, porém, deve saber que a sociedade o forçou a matar-se e que foi um morto-vivo durante toda a sua carreira. Todos devem pensar que morreu em um acidente, e os meios antiquados de suicídio são rejeitados, tais como a forca, os barbitúricos, o viaduto, a crucificação. Não foi lembrada a forma de morte pela doença psicossomática, como por exemplo o enfarte.

A sociedade de "Roda-Viva" tem, como eixo da carreira social dos que triunfam, a formação de ídolos, os quais são transformados em heróis, que acabam como mártires e párias. Contra a voz da mulher, que gera com amor e por isso clama que "ele não quis ser herói, só quis cantar", o Capeta mais fortemente acusa o homem-herói de corrupto, ladrão e enganoso, e que por isso tem de morrer. Depois de morto, ainda serve de alimento para o povo, assim significando que na sociedade de "Roda-viva" a voracidade insaciável é ilimitadamente cultivada. Para dar continuidade à vida do grupo, ligando o vivo ao morto, "Roda-viva" cria novo ídolo, na divinização da viúva. Ela deve representar o novo prestígio "à moda hippie'', isto é, esvaziando de significados todos os valores tradicionais, na esperança de assim haver lugar para um só valor no universo, valor consagrado na idealização da paz, do amor e das flores, simbolizando a vida simples do nascer, crescer, florir e morrer, em oposição àqueles que cultivam a guerra, o terror e a morte dentro da vida. Atirando flores à plateia, a mensagem final da peça teatral, porém ainda idealizada, é uma solicitação para que a plateia participe do "ideal das flores".

Em síntese, "Roda-viva" é uma crítica à organização social vigente, advertindo a todos sobre o perigo do falso prestígio por meio do triunfo, promovido pelo valor enganoso da potência do ouro, do prazer hipomaníaco constituinte da personalidade do ídolo, do herói, do mártir e do pária.

 

IV. Fatores de progressão e de regressão

O processo de transmissão de herança social (constituída pelo modo de sentir, reagir, pensar, e pelo equipamento técnico) de uma geração para as gerações mais novas se inicia na família, através da educação da criança, e tem seu término nas instituições destinadas ao ensino sistematizado e com fins profissionais. Os adultos na sociedade de "Roda-viva" são vítimas da permanência de traços infantis em sua personalidade. Dois traços foram destacados: a busca da satisfação das fantasias de onipotência e de voracidade insaciável. Erros educacionais se focalizaram na transmissão à criança da ideia de que deve ser assexuada, adocicada, porém deve ter a habilidade de um cowboy adestrado para matar. Tal educação deu origem, segundo a peça, ao ideal homossexual do adolescente, isto é, tão narcisicamente autossuficiente que encontra em si as qualidades de ambos os sexos, só podendo admirar o companheiro do mesmo sexo e assumindo para com a mulher uma atitude de desprezo ou de "super sensualidade". No adulto, cultivado o ideal de ser "onipotente" dá origem à luta pelo prestígio social à custa de tudo quanto vale e, portanto, com sacrifício da própria vida.

O conhecimento das causas determinantes da conduta humana é fator que contribui para o progresso na modificação do costume, na superação da tradição obsoleta, quando não mais concorre para a satisfação de necessidades vitais. Entretanto, todo conhecimento novo esbarra com intensas resistências emocionais, pelo temor ante a imprevisibilidade de suas consequências. O temor à aquisição de novos conhecimentos está arraigado nas profundezas do psíquico, milenarmente traduzido pelo mito da árvore da sabedoria do Paraíso, do Éden, proibitiva da aquisição de conhecimento, ou no mito da Esfinge, colocada nos portais de Tebas e ameaçadora para todo aquele que não lhe decifrasse os enigmas. Apesar de todos os obstáculos, o anseio pela Verdade, característico da natureza humana, conduz o ser humano a investigar incessantemente e por todos os meios, através de movimentos de progressão e regressão.

Se o conteúdo da peça "Roda-Viva" focalizou a atenção sobre a personalidade do adulto fixada em traços infantis, que impedem o crescimento mental e social, a encenação pôs ênfase nesses aspectos e, dessa forma, exacerbou em muitos o medo de uma regressão social aos níveis infantis pré-genitais, quando o palavrão e o sujo são os meios de expressão de agressividade sádica mais combatidos pela educação. Os gestos e palavrões da peça podem excitar os núcleos recalcados e levar os indivíduos mentalmente à busca de tais prazeres, como parece ter ocorrido, em certa extensão, com a agressão perversa de que foram vítimas os artistas.

Uma das funções do teatro é instruir e recrear, e assim possibilitar ao espectador um reajustamento emocional, por meio de catarse e de identificações com as personagens vividas durante o espetáculo. Acontece que, para alcançar seu fim, a peça deve ter equilíbrio entre as personagens, de modo a solicitar dos espectadores uma identificação com os aspectos positivos e construtivos, e reforçar a rejeição da identificação com os aspectos negativos. Por outro lado, e em última análise, a personalidade de cada um determinará com que personagem da peça se identificará.

A encenação, dando mais ênfase ao palavrão e aos gestos do que a encontrada no script, estaria chamando a atenção para os aspectos de prazeres regressivos que, oculta ou secretamente, os indivíduos se permitem. Como o desmascaramento da hipocrisia só pode resultar em consequências benéficas, a reação contrária é fundamentada no medo de que o retorno do que esteve recalcado no inconsciente produza malefícios e não progresso. Tão forte reação de censura dirigida contra o palavrão, que não passa de uma forma de agressão verbalizada, não ocorre quando a agressão se exprime contra a honestidade, a moralidade ou o "não matarás", como forma de indicar falhas de organização social e econômica. Tudo parece indicar que o adulto ainda se sente às voltas com prazeres recalcados de natureza oral, lembrando o escolar que, na classe, apela para professora e acusa um colega: Professora, ele xingou a mãe!

 

 

Virgínia Leone Bicudo (1910-2003)
1 Artigo publicado em 1968 na Revista Brasileira de Psicanálise, 2(2).

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