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Jornal de Psicanálise
Print version ISSN 0103-5835
J. psicanal. vol.52 no.97 São Paulo July/Dec. 2019
TEMA LIVRE
A mentira é mais interessante do que a verdade
The lie is more interesting than the truth
La mentira es más interesante que la verdad
Le mensonge est plus intéressant que la vérité
Estanislau Alves da Silva Filho
Psicanalista e tradutor em psicanálise, membro do Laboratório de Psicanálise, Sociedade e Política (IPUSP). São Paulo / stani-asf@hotmail.com
RESUMO
Refletindo acerca da transmissão, da comunicação e da escrita de um caso clínico, passando por elucubrações poéticas, pretende-se explorar as temáticas do contrassonho, da verdade e da mentira, enquanto elementos de trabalho no campo psicanalítico.
Palavras-chave: mentira, verdade, contrassonho
ABSTRACT
Reflecting on the transmission, communication and writing of a clinical case, through poetic elucubrations, we intend to explore the themes of counter-dream, truth and lies as elements of work in the psychoanalytic field.
Keywords: lie, truth, counter-dream
RESUMEN
Al reflexionar acerca de la transmisión, de la comunicación y de la escritura de un caso clínico, pasando por elucubraciones poéticas, se pretende explorar las temáticas del contra-sueño, de la verdad y de la mentira, como elementos de trabajo en el campo psicoanalítico.
Palabras clave: mentira, la verdad, contra-sueño
RÉSUMÉ
En réfléchissant sur la transmission, la communication et la rédaction d'un cas clinique, à travers des élucubrations poétiques, nous avons l'intention d'explorer les thèmes du contre-rêve, de la vérité et du mensonge en tant qu'éléments de travail dans le champ psychanalytique.
Mots-clés: mensonge, la vérité, contre-rêve
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
(“Autopsicografia”, Fernando Pessoa)
"Como pode alguém sentir uma dor que não tem? Que tipo de dor seria essa?", indaga instigantemente Silva Junior (2000) ante o poema acima destacado. E, eu, como posso transmitir o que sinto? Digo, como posso lhes evocar a minha experiência, por assim dizer, clínica? Haveria uma fórmula para tanto? Represento-o fidedignamente ou ficcionalizo-o efetivamente? Não foi sem maiores desassossegos que resolvi recorrer uma vez mais ao inigualável poeta de língua portuguesa Fernando Pessoa - agora, em seu emblemático escrito 260 do Livro do desassossego -, para aventar uma proposta-resposta:
A arte consiste em fazer os outros sentir o que nós sentimos, em os libertar deles mesmos, propondo-lhes a nossa personalidade para especial libertação. O que sinto, na verdadeira substância com que o sinto, é absolutamente incomunicável; e quanto mais profundamente o sinto, tanto mais incomunicável é. Para que eu, pois, possa transmitir a outrem o que sinto, tenho que traduzir os meus sentimentos na linguagem dele, isto é, que dizer tais coisas como sendo as que eu sinto, que ele, lendo-as, sinta exatamente o que eu senti. E como este outrem é, por hipótese de arte, não esta ou aquela pessoa, mas toda a gente, isto é, aquela pessoa que é comum a todas as pessoas, o que, afinal, tenho que fazer é converter os meus sentimentos num sentimento humano típico, ainda que pervertendo a verdadeira natureza daquilo que senti. (Pessoa, 1989, p. 390)
Sim, parece haver aí uma ideia. Uma não, várias ideias. Que a arte é o exercício da comunicação. Que o que sinto é incomunicável. Que comunicar é transpor para outro plano: plano este que tão somente pode conduzir o que lhe cabe de modo indireto. Perco algo? Ah, sim, o mais importante, creio. Refiro-me à parte do libertar os outros: "Aqui trata-se de efetivamente alterar o leitor, em promover nele uma diferença consigo mesmo, pois trata-se de liberá-lo de si mesmo" (Silva Junior, 2000, p. 127). Libertar alguém de si mesmo? Mas como assim? Talvez valha a pena ir mais devagar, seguindo o que diz o poeta em seu desassossegado escrito. Pessoa (1989, p. 390) diz que, se ele for traduzir uma certa emoção "por frases que de perto a cinjam, mais a dou como propriamente minha, menos, portanto, a comunico a outros. E [que], se não há comunicá-la a outros, é mais justo e mais fácil senti-la sem a escrever". Claro, o que sinto, só eu sinto. E, quanto mais colado no que sinto está o que enuncio, menos comunico. Quanto mais representa, menos apresenta e, consequentemente, menos representa. Porque preso em mim, pouco fala na linguagem que é não-mim. Não libero nem a mim e nem ao outro. Mas, "Suponha-se, porém, que desejo" comunicar uma tal emoção "a outros, isto é, fazer dela arte, pois a arte é a comunicação aos outros da nossa identidade íntima com eles; sem o que nem há comunicação nem necessidade de a fazer" (Pessoa, 1989, p. 391). Como é que devo fazer? Bem, Fernando Pessoa faz a sua descrição de como busca uma vulgarização e generalização da sua própria emoção, "pervertendo a verdadeira natureza" daquilo que sentiu sozinho, para torná-la acessível a todos através de uma descrição indireta e universal. Quer dizer, ele procura uma emoção vulgar que tenha o tom, o tipo, a forma da emoção que sente. Em seu exemplo, ele considera a emoção de ser um "lisboeta aborrecido", e conclui que a emoção vulgar, que produz na alma vulgar, esta mesma emoção é a "saudade da infância perdida". Parte então para uma descrição precisa e minuciosa das suas vivências infantis, revela seu choro nostálgico, evoca a felicidade do que foi e não foi e, então, pondera que, caso tenha sido bem-sucedido em sua prosa, terá despertado exatamente o que sentia, ainda que o aborrecimento em questão nada tivesse, de fato, que ver com a sua infância. Quer dizer, se quero falar e suscitar em meu pai a raiva e o ultraje que sinto quando estou preso no trânsito de São Paulo, melhor poderia ser lhe falar sobre a Guerra do Vietnã e a violação dos direitos humanos, algo que, retirando-se os muitíssimos excessos e fazendo as devidas reparações, poderia melhor evocar o que sinto; ou, mais simplesmente, conhecendo-o como o conheço, poderia lhe descrever a partida de futebol em que seu querido time foi "roubado" pelo juiz em uma jogada crucial, o que levou o time à derrota, de modo que sua indignação vivida na ocasião se aproxima demais da minha sensação. "Menti?", pergunta-se o poeta. "Não, compreendi", diz ele, "que a mentira, salvo a que é infantil e espontânea, e nasce da vontade de estar a sonhar, é tão-somente a noção da existência real dos outros e da necessidade de conformar a essa existência a nossa, que se não pode conformar a ela" (Pessoa, 1989, p. 391). E ele arremata: "A mentira é simplesmente a linguagem ideal da alma ... nos servimos da mentira e da ficção para nos entendermos uns aos outros, o que com a verdade, própria e intransmissível, se nunca poderia fazer" (p. 391).
Uma verdade que é própria e intransmissível. Como no poema inicial, do poeta que finge a dor para podê-la transmitir. O poeta sente duas dores, e os leitores sentem, não as que o poeta sentiu, mas sim uma outra dor, uma terceira. O poeta tem que se fazer diferente de si, e fingir a própria, escrever-se enquanto outro. Quanto ao interlocutor:
O propósito de liberar o leitor de si pressupõe contudo que este está preso em si mesmo. Ele é alguém que se supõe sentir apenas uma das dores do poeta, aquela real, aquela que não é fingida. De maneira que fazê-lo sentir a dor que não sente só pode querer dizer fazê-lo sentir a dor fingida. Mas sentirá ele essa dor como real ou como fingida? Toda a questão da alteração do leitor está aqui. Com efeito, essa nova dor deve ser sentida enquanto fingida, só assim terá o leitor sofrido uma alteração radical na forma do seu sentir. Ao fingir sua própria dor, o leitor é projetado para fora de si. Finge para atingir um outro e transforma-se, a seu turno, em poeta. ... Se o leitor aprende a fingir a dor, concluímos que o poeta finge para poder transformar também os leitores em fingidores, e potencialmente, portanto, em poetas. (Silva Junior, 2000, p. 127)
Pessoa encerra seu texto dizendo que a arte mente porque é social e que fingir é amar, sendo que amamo-nos todos uns aos outros, e a mentira é o beijo que trocamos. Antes disso ele elenca duas formas de arte: uma que se dirige à nossa alma profunda e outra que se dirige à nossa alma atenta; a primeira sendo a poesia, e a segunda, o romance; a primeira começa a mentir na estrutura, enquanto a segunda mente na intenção: "Uma pretende dar-nos a verdade por meio de linhas variadamente regradas, que mentem à inerência da fala; outra pretende dar-nos a verdade por uma realidade que todos sabemos bem que nunca houve" (Pessoa, 1989, p. 392).
Mas seria possível dar uma verdade por meio de uma mentira? Dar uma verdade por meio de algo que nunca aconteceu? Uma verdade com base em algo que não existe? Ou, até mesmo, uma verdade que não existe? Uma verdade que não-é?
Não é à toa que aqui lembramos o maravilhoso poema de Jorge Luís Borges:
The unending gift
Um pintor nos prometeu um quadro.
Agora, em New England, sei que morreu. Senti, como outras vezes, a tristeza de
compreender que somos como um sonho. Pensei no homem e no quadro perdidos.
(Só os deuses podem prometer, porque são imortais.)
Pensei num lugar prefixado que a tela não ocupará.
Pensei depois: se estivesse aí, seria com o tempo uma coisa a mais, uma das vaidades
ou hábitos da casa; agora é ilimitada, incessante, capaz de qualquer forma
e qualquer cor e a ninguém vinculada.
Existe de algum modo. Viverá e crescerá como uma música e estará comigo até o
fim. Obrigado, Jorge Larco.
(Também os homens podem prometer, porque na promessa há algo imortal.)
(Borges, 1971, p. 15)
Como pode uma coisa que nunca houve produzir efeitos? Mentira? Promessa? Ficção? Ou seria, até mesmo, uma criação? E, então, um tal algo passaria a existir? Talvez o próprio autor em outro poema, "O outro tigre", nos dê pistas:
Penso num tigre. ... forte, inocente, ensanguentado e novo, ele irá por sua selva e sua manhã e deixará seu rastro na lodosa margem de um rio cujo nome ignora (seu mundo não tem nomes nem passado, nem há futuro, só um instante certo) ... Entre as riscas do bambu decifro suas riscas e pressinto a ossatura sob essa pele esplêndida que vibra. ... desta morada de um remoto porto da América do Sul, te sigo e sonho, oh, tigre das ribeiras do rio Ganges. Corre a tarde em minha alma e pondero que o tigre vocativo de meu verso é um tigre de símbolos e sombras, uma série de tropos literários e de memórias da enciclopédia, não o tigre fatal, joia nefasta que, sob o sol ou a diversa lua, vai cumprindo em Sumatra ou em Bengala sua rotina de amor, de ócio e de morte. A esse tigre dos símbolos opus o verdadeiro, o que tem sangue quente, ... mas só o fato de nomeá-lo e de conjecturar sua circunstância torna-o ficção da arte e não criatura animada das que andam pela terra. (Borges, 2008, pp. 97-98)
Há que desistir, Borges. Mas, "não!", diz ele:
Procuremos um terceiro tigre. Como os outros, também será uma forma de meu sonho, um sistema de palavras humanas, não o tigre vertebrado que, para além dessas mitologias, pisa a terra. Bem o sei, mas algo me impõe essa aventura indefinida, insensata e antiga, e persevero em procurar pelo tempo da tarde o outro tigre, o que não está no verso. (Borges, 2008, p. 98)
A falha em encontrar o objeto não o desanima, por mais que, no lugar, se lhe apresentem palavras ou conceitos. Ao contrário, persevera ante o inescapável fracasso. Algo lhe impõe o ofício que cria o semblante que, sem equívocos, não é sem efeitos. Fingir o tigre não é um problema. Tampouco o seria fingir que existe o resto do tigre do qual a psicanálise é apenas uma listra na pele. Quem sabe fingir um caso clínico também não o seja?
Uma história mentirosa
É muito impreciso dizer algo sobre o que é real ou fictício num conto de um analisante. E é ainda mais antianalítico querer forçar o estabelecimento ou a distinção entre o verdadeiro e o falso. A psicanálise não é uma cura pelo real, e menos ainda separa fantasia de realidade como elementos independentes. Outrossim, não são poucos os convites de clientes para visitar com eles seus "mundos reais". Um paciente, certa vez, propôs que eu atendesse separadamente também à sua esposa, pois assim eu saberia, por meio do contato real com ela, do que ele estava falando quando estivéssemos em sessão (e ele garantiu que ela também achava que essa era uma boa ideia). Outra cliente insistia em me convidar para ir até sua casa para conhecer seu pai, para saber de verdade quão difícil era conviver com ele. Houve até uma paciente que quis que eu ligasse para sua irmã durante uma sessão, para confirmar uma impressão que teve. Não é ilógico pensar que de posse de dados reais, poder-se-ia encaminhar mais corretamente um processo de cura. Ao contrário, faz todo o sentido. Acontece que em psicanálise, o que está em questão é a realidade psíquica da pessoa, e não o fato duro e concreto. É o como ela vivenciou aquilo, mais do que um suposto "aquilo em si". E, mais ainda, partindo-se da hipótese de que há o inconsciente, pouco importa se a pessoa fará uma descrição exata e precisa de um ocorrido, um retrato ou um símbolo eficiente, e mesmo é desimportante se ela está mentindo ou não, pura e simplesmente porque, se há inconsciente, algo sempre estará falando nela, falando através dela, falando nas entrelinhas da fala dela. Falar da infância, falar do jogo de futebol de ontem, ou do estudo da faculdade, tanto faz: sempre haverá um "lapso" por se esperar. Sempre se estará falando do que está a incomodar. E sempre terá que ser lateralmente, porque de frente, com o objeto capturado, nunca se poderá.
Um paciente sabidamente deprimido responde ao "como vai?" dizendo que está "tudo bem, tudo bem mesmo". Estaria ele mentindo? Estaria ele em negação? Haveria intenção de esconder algo? Seja o que for, brotará, se assim soubermos esperar, não uma verdade, mas algo que lhe venha no lugar. Aliás, nada pior do que a atitude de um analista que sabe demais, que adianta ou usa elementos que não foram trazidos pelo próprio paciente, obstruindo ou cerceando os caminhos próprios da associação pessoal.
Uma paciente vivia dizendo, a cada sessão, que havia mentido um dado no encontro anterior. Sempre chegava dizendo: então, sabe aquilo que falei? Na verdade, é assim, não assado. Geralmente era um complemento ou uma omissão. Outras vezes era um dado mais cabal, como "Ah, sabe aquele filho que eu mencionei? Então, ele é filho do meu primeiro casamento, não do segundo, como são os outros filhos. O pai dele é outro, não o que você ficou pensando que fosse". Eu achava esse movimento particularmente curioso e, certamente, não o considerava como uma mentira. Esta paciente também trazia descrições bastante intensas ou dificílimas de sua vida em casa. Contava como a sua mãe era bravíssima com ela, como a irmã dava broncas nela, como mesmo as filhas lhe direcionavam imposições. E eram sempre descrições em que havia muita agressividade, muita violência da parte dos familiares, seja em agressões verbais, seja em imposições radicais. De fato, ela chegou até mesmo a relatar uma agressão física por parte de uma filha, que lhe deu uma cabeçada e ainda a proibiu de gastar dinheiro. E, devo dizer, uma única vez em que encontrei com essa filha na sala de espera, tendo conversado um pouquinho com ela, tive a impressão de ser uma pessoa completamente diferente da descrita, doce e preocupada: foi a própria filha que quis vir falar comigo, preocupada com a situação da mãe, que estava sempre deprimida e chorosa.
Certo dia, essa paciente relatou uma terrível situação em que bandidos invadiram a sua casa, a renderam e a mantiveram em "sequestro" durante algumas horas - horas estas, aliás, exatamente anteriores à nossa sessão. Quer dizer, ela teria sido liberada, por sorte, exatamente na hora de nossa sessão. O relato incluía precisões de como os bandidos estavam armados e eram agressivos, exigindo dinheiro e coisas que estavam por ali, tendo-a prendido no banheiro junto com a empregada enquanto vasculhavam tudo e gritavam com ela a todo momento. E, como ela não tinha muito dinheiro na casa, os bandidos disseram que voltariam nos próximos dias, para buscar mais coisas, mais dinheiro - e nem era muito, seria algo em torno de 2 mil reais -, e que se ela não tivesse a quantia, eles matariam pessoas de sua família, que simplesmente desapareceriam, não voltariam para casa. Também disseram que, se ela contasse para a polícia, algo semelhante aconteceria, e até mesmo ela seria morta.
De pronto, ouvir aquilo enquanto analista foi dificílimo. Pois era tudo muito forte e violento: um verdadeiro caso de polícia. Realmente fiquei sem saber o que fazer, o quanto e como devia me comprometer.
Mas o dilema dela era interessante: se ela devia contar ou não a outros familiares sobre o ocorrido. Porque o dinheiro ela certamente conseguiria juntar para entregar aos bandidos. O que ela não sabia se faria era contar ao marido, pois este, se soubesse, ficaria muito angustiado, ficaria perdido. Talvez ficasse mesmo desesperado. Não preciso dizer que tais descrições cabiam precisamente a mim naquele momento. Quanto à paciente, ela também se dizia sem saber o que fazer, mas não se mostrava desesperada, embora dissesse que, sim, estava aflita.
A sessão foi passando, e as condições não mudaram muito. De minha parte, mantendo em suspensão a factualidade do ocorrido, fui pedindo para que ela contasse como estava se sentindo, como se sentiu em cada momento, no intuito de que ao menos ela (e, quem sabe, eu) pudesse ir se acalmando, mas também com a esperança de que algo diverso pudesse surgir, no sentido de que alguma específica contraparte emocional se fizesse mais abertamente presente. Também considerava, naquele momento, que não havia muito o que fazer, a não ser ajudá-la ou acompanhá-la no processo de decisão dela, ponderando e especulando sobre os prós e os contras de se contar o que houve ao marido - era assim que ela trazia. Certamente isso foi servindo como certo acolhimento, e ela foi mesmo se acalmando no decorrer do período. O dado curioso, poderíamos dizer, bizarro, que sucedeu, apareceu logo após o término da sessão, quando ela estava indo embora e acompanhei-a até a porta. Parece mesmo incrível, e como golpe de destino, deparamos com sua empregada de casa voltando do mercado. E, mais incrivelmente ainda, ela virou-se para mim e disse algo do tipo "você viu o que aconteceu?" Ela não parecia nervosa ou desesperada, mas demonstrava, sim, que algo tenso tinha acontecido - aparentemente algo sério, mas não tão "extremo" assim. Cheguei mesmo a replicar "Foi mesmo?", ao que ela devolveu, "Sim, a patroa já deve ter lhe contado". Depois dessa, eu tive certeza de que não caberia uma "investigação" para além do relatado pela paciente, que era dela e com ela que eu deveria estar e buscar mais coisas, na próxima sessão e não em nenhum outro lugar. Nos despedimos e fiquei ansiosamente aguardando o próximo encontro, certamente com inseguranças que iam e vinham momento aqui, momento ali, pensando se não devia ir atrás, buscar outra ajuda, ou não: a certeza e a segurança da decisão de ficar a sós com a fala da cliente às vezes vacilam. Mas, sem ceder, aguardei pelo próximo encontro.
O que diria do caso dessa paciente é que sempre foi bastante difícil acompanhá-la em suas paranoias ou relatos de agressividades. O mundo para ela parecia realmente um lugar muitíssimo hostil. Todos, quase sem exceção, pareciam ser ofensivos com ela, exigentes e impositivos. Conseguia mesmo imaginar que o relato que ela fazia de mim a outras pessoas deveria ser algo parecido com o modo com que ela descrevia os outros para mim. Nesse sentido, alguma insegurança, de outra forma, também me acossava, e apostava que a sensação de insegurança dela fosse muitíssimo pior. Tentava juntar e entender de onde vinham e como se articulavam todos aqueles violentos relatos. Até o momento, ainda não sei precisar muito, e a paciente continua vindo, imagino que, no mínimo, porque neste espaço ela pode sentir, organizar e viver certos elementos tão difíceis de suas experiências, bem como reaver cartas e efeitos de suas falas.
A experiência à luz do conceito de "contrassonho"
O verdadeiro início da atividade científica está na descrição de fenômenos, que depois são agrupados, ordenados e relacionados entre si. [Mas] Já na descrição é inevitável que apliquemos ao material manipulado certas ideias abstratas, ideias provenientes de algum outro lugar que não apenas da nossa nova experiência observada. [Tais ideias] Devem, de início, possuir necessariamente certo grau de indefinição ... Enquanto estão nesse estado, devemos chegar a um acordo acerca do seu significado pela remissão repetida ao material empírico do qual parecem ter sido extraídas, mas que, na realidade, está submetido a elas. Em rigor, possuem o caráter de convenções. ... Um conceito básico convencional desta índole, por ora bastante obscuro, mas do qual em psicologia não podemos prescindir, é o de "pulsão [Trieb]". (Freud, 1915/2010, pp. 39-40)
Freud entendia que a observação descritiva não era neutra. Que mesmo ela continha elementos que não só não eram oriundos da experiência, como também, tais elementos subordinavam a experiência - isto é dizer que uma experiência pode estar inteiramente determinada por uma ideia abstrata que a antecede. Como ressalta Goldenberg (2018, p. 129), "cabe notar que a noção de pulsão não apenas não sai da experiência, como esta última está submetida ao conceito". Não existe experiência de Trieb, e tampouco de pulsão de morte. São tais conceitos que nos abrem o campo para a "experiência", ou a "observação", de tais coisas - que, por si só, não são experienciáveis. O inconsciente mesmo, tal como a psicanálise o concebe, é um desses "incorporais", uma realidade que não está simplesmente lá. Bion, de fato, passou muitos dos seus últimos trabalhos se questionando acerca de o que seria um fato em psicanálise, uma vez que ele não seria da mesma natureza que um fato em outras ciências, como na medicina. "O que seria, aqui, uma evidência?", se perguntava Bion (2008, p. 313) em artigo homônimo. "Qual era a evidência que o paciente estava me dando, e qual era a evidência que vi, ou pensei ter visto, para a interpretação?" Em sua décima conferência em São Paulo, no ano de 1978, Bion (1992, p. 243) chega mesmo a sugerir que um "Grid" poderia ser "útil para capacitar um analista praticante a considerar como "emerge um padrão'", que a coisa - aquilo que num primeiro momento é uma impressão ensombrecida e depois pode se tornar mais sólida, "tridimensional" -, enfim, que a ideia, ou o fato, provavelmente passará pelos estágios de apresentação: primeiro como uma conjectura imaginativa, depois como uma conjectura racional e por fim como uma imagem pictórica - o que pode ser uma pintura verbal. Mas será que se poderia produzir uma visão por meio da audição? Seja como for, Bion (2005, p. 18) quer mesmo que possamos dar asas à nossa imaginação, para que ela não seja "estéril", ou mesmo esterilizante, e para que, de algum modo, isso possibilite a introdução de intuições em conceitos e de conceitos em intuições (ainda que, desse modo, deixe intocada a questão da distinção dessas "substâncias" heterogêneas, bem como o problema de "como é que tal heterogenia permitiria interdeterminação recíproca").
Mas o ponto é esse: como um conceito pode fecundar uma experiência? Ou, de outro modo, que tipo de experiência a ideia de um "contrassonho" nos viabiliza? Ou mais, qual campo é criado por um tal conceito?
De minha parte, entendo que o contrassonho de Meltzer,1 que é um equivalente à reverie de Bion, se superpõe à atenção flutuante de Freud, e se refere ao estado de espírito "receptivo" necessário ao trabalho analítico. Meltzer enfatiza a paradoxal observação de alta vigilância que é executada em um estado de repouso, bem como a comunicação recíproca e a formação simbólica; Freud o dizia em termos de suspensão das motivações que dirigem normalmente a atenção, para que as "conexões" inconscientes no discurso do paciente sejam observadas - para que padrões emerjam -, com base em uma comunicação inconsciente. Acrescenta-se a isso toda a descrição que Meltzer faz da vigilância noturna à espera de um cervo, algo da ordem de uma capacidade negativa, uma condição rica em suspense e necessariamente fatigante, repleta de ansiedade, que pode ou não funcionar. Meltzer se preocupa com a menção de uma captura de um significado incipiente, talvez algo como um pensamento sem pensador. Daria ele valor de verdade a um elemento que talvez ainda seja pré-pensado? Talvez a escala progressiva simbólica aí considerada seja equiparável ao "processo de verdade" proposto pelo filósofo Alain Badiou (1994), pois nada garante que um significado incipiente alcançará a condição de símbolo; Badiou descreve como a verdade é sempre uma novidade, e como ela se origina em um evento que, por si só, é um indecidível. Se fosse calculável desde dentro da situação, não estaria fora de toda regra do saber estabelecido, não seria novo, e receberia simplesmente um selo de verdadeiro ou falso desde um tal saber:
Nenhuma regra permite decidir que um evento é um evento. Nada permite dizer: aqui começa uma verdade. Será preciso fazer uma aposta. É por isso que uma verdade começa por um axioma de verdade. Ela começa por uma decisão. A decisão de dizer que um evento teve lugar. O fato de que o evento seja indecidível faz com que apareça um sujeito do evento. Tal sujeito é constituído por um enunciado em forma de aposta. Enunciado que é o seguinte: "Isso teve lugar, não o posso calcular nem mostrar, mas lhe serei fiel". Um sujeito é primeiramente aquilo que fixa um evento indecidível, porque assume o risco de decidi-lo. (Badiou, 1994, p. 45)
Se ninguém sustentar e der abrigo àquele pensamento, ele talvez nunca venha a ser reconhecido. É nesse sentido que Badiou descreve o processo de construção de uma verdade, o seu trajeto. A verdade é novidade porque interrompe a repetição, e nada mais é igual. E um sujeito, nesse caso, bem pode ser uma obra artística, como a obra de Sófocles, que sustenta uma verdade artística que é a tragédia grega - verdade esta começada pelo evento Ésquilo. "Essa obra é criação: escolha pura naquilo que, antes dela, é indiscernível. E ela é uma obra finita. No entanto, a própria tragédia, como verdade artística, prossegue até o infinito" (Badiou, 1994, p. 46) - eis por que "a obra de Sófocles é um sujeito finito dessa verdade infinita".
Afora isso, há o interessante incremento que Meg Harris (2016) ressalta quanto ao contrassonho não se aplicar somente àquilo que ocorre no interior de uma sessão analítica, mas também à supervisão. Ela cita Meltzer:
É muito exatamente no espírito psicanalítico que ela se destina a ser uma situação de nutrição - não o de uma alimentação forçada, mas uma situação alimentar na qual o que você tem para oferecer é colocado diante do estudante ou do supervisionando para que ele escolha o que lhe convém. Considero que se deve deixar que a riqueza e o poder das suas ideias a respeito do material clínico atuem, de modo que a coisa torne-se palatável à pessoa que está sendo supervisionada, e, também, que você deve tentar evitar qualquer tipo de imposição das suas ideias. (Williams, 2016, p. 13)
A conversa que aqui se estabelece encarna a fundação da veracidade que reside na qualidade da observação, de modo que a observação acurada decorre do estado de espírito do contrassonho. Nas palavras de Bion:
Freud ressaltou quão importante é não ceder à sua imaginação, para ser fiel aos fatos. Concordo inteiramente com isso - e estou constantemente contradizendo isso. Eu digo para as pessoas numa supervisão: "Olhe - quando você está com um paciente você tem que ser cuidadoso com o que você diz. Tenho certeza de que você deve dar as interpretações corretas, mas não aqui - aqui, eu gostaria que você exercitasse um pouco a sua imaginação. Então, diga qualquer coisa, não importa quão boba, idiota, estúpida, injustificada seja. Em seguida, após ter dito isso, nós chegaremos em outro ponto - "qual é a evidência?" -, e assim por diante. Mas, nesse ínterim, deixe tudo isso de lado e se concentre no que você imagina - na sua imaginação especulativa, numa razão especulativa". ... Em outras palavras ..., dê a si a oportunidade de observar o crescimento de um germe de um pensamento. Germe que pode parecer muito estranho na verdade, até que tome uma forma como a de uma ideia que pode ser articulada. (2005, p. 18)
O contrassonho aqui está nessa possibilidade de relaxar e se atrever a falar, para trocar e tocar, sem medo de errar, conjugando-se o pensar, sem haver que teorizar. Meltzer compararia isso ao estar em uma orquestra, sem se colocar na posição de condutor. E é nesse espírito que tento abrir aqui o que a mim se passou, colocando-me em posição de analisante perante os leitores-supervisores. Vejamos se algum germe de pensamento diverso poderá florescer.
O caso clínico em intento de contrassonho
Uma parte fantástica das costumeiras descrições dessa cliente incluía devaneios com mulheres mais "poderosas" se dando mal. De fato, mesmo naquele relato do assalto em especial, ela chegou a mencionar como a proprietária do imóvel que ela alugava também fora rendida - os aposentos desta proprietária ficavam ao lado dos de minha cliente. Contou-me até com certo escárnio como tal proprietária ficara morrendo de medo. Mas que lugar é esse que ocupo no imaginário dela? Quem é esse "eu" a que ela se dirige? Um observador anulado, incapaz de tomar qualquer ação numa série de acontecimentos tão próximos e recentes, mas tão inacessíveis em termos de sensação direta. Ela não me exige um cuidado maior, nem quer um salvamento, mas aprecia uma posição de ouvinte incerto. Como disse anteriormente, fico a questionar as minhas impressões e até a estar confuso quanto a como proceder. Talvez o acaso de eu ser homem facilite uma troca sem maiores disputas de poder, supondo que uma autoridade mulher pudesse instigar rivalidades outras; isso não quer dizer que, enquanto homem, o lugar reservado seja de melhor destaque: ao contrário, parece ser sempre um lugar de pequenez, de pouco raio de ação. É como um pedido, mais ou menos inconsciente, não muito incomum de clientes mais sofridos: "Peço que você me acompanhe, mas que acompanhe como eu decido. Você tem que permitir e aceitar que eu tome as rédeas, para que nada do que você disser e fizer seja imprevisível a mim ou que altere muito as coisas". No caso dela, talvez o pedido fosse mais algo como "fique aí quietinho, deixe que eu vá contando tudo isso; e suporte a confusão". Bem, em termos de estratégia, como Freud bem nos ensinou, vale ser dócil a uma demanda, para que desse modo possa haver uma análise - Ferenczi teria dito que "não há trabalho analítico se o analista se recusar, no momento oportuno, a participar do cenário montado pelo inconsciente do analisando". E mesmo H. Rosenfeld disse que "o analista não deve ter medo de assumir as projeções do paciente" -, para que possa surgir uma parceria-sintomática ("eu" enquanto parceiro-sintoma analista), para que, pouco a pouco, estando incluído na economia libidinal da paciente, se possam operar mudanças de posições. Lacanianamente, "o sujeito situa no analista, em ato na transferência, o objeto que ele é para o Outro", de modo que "a localização da demanda do sujeito indica a que Outro o sujeito se dirige"; então, recebendo ativa e atenciosamente algo que talvez se possa chamar de contrassonhar, considerando-se um estado de espírito necessário para isso que é um acomodar e hospedar - mais que um trocar ou um elaborar -, para dar lugar à construção de um campo e de um enredo (que de fato não sabemos se realmente advirá, terá de haver capacidade negativa para sustentar o suspense e o inconveniente angustiante), por meio do qual se pudesse desfazer pela palavra o que se faz pela palavra.
Que a história que a cliente contava, verdadeira ou não, refletia sentimentos de angústia e confusão, disso não havia dúvidas. Verdadeira ou falsa - ou mentirosa -, o que importa é se produz efeitos.2 Que eu sentia-me imobilizado ou incapaz de ajudá-la mais diretamente também era algo perceptível. Mas havia mesmo esse dilema, sobre contar ou não contar, e sobre a possibilidade de algo que já está ruim poder piorar. Ela estava mesmo tão presa e incapaz de decidir ou fazer algo a respeito de tudo, impossibilitada pela ameaça dos bandidos. Naquele momento, configurar e organizar esses sentimentos já poderia ser considerado um importante trabalho. O reconhecimento dos lugares ocupados transferencialmente haveria de ser um trabalho mais longo e detido. Haveria que ver o que se repetiria nisso tudo, não pela precisa observação de um padrão a ser revelado ou simbolizado, mas para a construção de uma abertura a uma novidade, para que o necessário possa dar lugar ao contingente, e para que se tornem vazios os lugares ocupados facilmente por qualquer conhecível prêt-à-porter. Bem, o caso ainda segue em construção, e sempre uma nova esquina virada pode virar todo o jogo de cabeça para baixo, seja por um colorido diverso que o velho preto e branco possa tomar, seja por um singelo experimento de nada significar - vamos ver como essa análise há de terminar. E por que caminhos tudo isso poderá se arrastar.
À guisa de conclusão
Houve contrassonho nesse material? Pude me conectar ao que era não-eu para outrar-me e sentir o que antes não sentiria? E aí houve contrassonho do que senti? Pode-se ouvir o que eu ouvi e, especialmente, o que eu não ouvi? Posso transmitir a minha surdez e o material dela? Ofereço base para que se possa outrar-se e mesmo outrar-me no que escrevi? Não se deve poder saber, nem saber-poder. Mas há que ser suficientemente amistoso e tolerante para se sentir capaz de pôr as afirmações de alguém em contato com a própria audição. É disso que se trata o counter-dream.
Quanto à mentira, ou, mais precisamente, à fala, o importante é que fala, não o que fala. Pois que a fala é estruturada em ficção. Já é velha a reflexão, como a de Francis Bacon, de que, se uma verdade se nos impõem ao pensamento, é à mentira que devemos agradecer os favores, por nos permitir descanso. Uma das últimas escolas dos gregos examinava a questão, pensando no que levava o homem a amar as mentiras, quando não por prazer, como os poetas, ou por utilidade, como os mercadores. Talvez Bion pudesse ter ido mais à frente de sua frequente menção de Bacon:
Não sei como dizê-lo, mas a verdade é uma luz nua e crua que não mostra as máscaras, as cegadas e os cortejos do mundo com metade da altivez e da graciosidade com que aparecem iluminados pelos candelabros. A verdade pode, talvez, atingir o preço da pérola que mais brilha durante o dia, mas não alcança o preço do diamante ou do carbúnculo que tanto mais brilham quanto mais variadas forem as luzes. Com a mistura da mentira mais se acresce o prazer. Haverá alguém para duvidar que, tirando ao espírito humano as opiniões vãs, as esperanças lisonjeiras, as falsas valorações, as imaginações pessoais, etc., para a maior parte da gente tudo o mais não seria senão uma espécie de pobres coisas contraídas, cheias de melancolia e de indisposição, enfim, desagradáveis? (Bion, 2005, p. 69)
Quando uma criança pode mentir um mundo, sabemos que ela enfim poderá seguir seu próprio caminho, mais próximo à sua escolha.
Quanto a minha paciente, não sei se ela estava simplesmente mentindo na história contada. Nesse sentido, nem sequer poderia considerar com base nisso a mentira como "melhor" do que a verdade. Mas não era esse o intuito, senão o de esperar experimentar algum contrassonho, à luz de uma verdadeira impossibilidade de "resolução". Que ela tenha intenção de mentir, omitir ou enganar, é pouco diante da inescapável ficcionalização que deverá executar. Sempre será, seja onde for, uma reconstituição fictícia, uma história reformulada. O exemplo é uma covardia, dizia Fernando Pessoa. E, em paralelo, "Esteticamente, o fracasso é mais interessante que o sucesso. Sou um homem de fracassos", dizia o inigualável diretor de teatro Antonio Abujamra, que complementava: "Tive mais de cem fracassos. E, pra mim, não tem a mínima importância. Para um artista, o fracasso e o sucesso são iguais. Os dois são impostores". Pois bem, é bem nessa linha que um mentir pode interessar, porque, sim, mesmo por meio dele se poderá chegar a outro lugar.
Curto último pós-texto
Se pode enunciar o falso sem torná-lo verdadeiro? Não é que o falso não seja falso, mas, muito simplesmente, que, falso ou não, ele "é". Não haveria falsidade. Como o dizer "Estou mentindo agora". Se for mentira, estou falando a verdade; se for verdade, estaria mentindo. Dizer é dizer algo; dizer algo é dizer o ser; dizer o ser é dizer a verdade; dizer é, portanto, dizer a verdade. Todos os discursos como todas as sensações se valem e se equivalem, sem que nenhum tenha de triunfar sobre o outro. A palavra "não-ente" [não-ser], não se pode encontrar "sobre o que colocá-la", "onde aplicá-la", não se pode "colocá-la em cena": eis por que "é preciso afirmar que aquele que tentasse pronunciar 'não-ente' nem mesmo falaria". Com efeito, a visão não chega a conhecer os sons da voz, da mesma forma que o ouvido também não ouve as cores, mas sons; e aquele que diz diz, mas não uma cor, nem uma coisa. As percepções em um mesmo tempo já são diferentes para o ouvido e para a vista, e para nós mesmos bastante distintas no instante presente e no instante passado. De qualquer jeito, o ser terá sido efeito do que foi decidido dito, restando inaudito, entre o silêncio e a palavra, o menos que nada. Produzamos o sujeito do inconsciente.
Referências
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Silva Filho, E. A. (2017). Do sonho de Bion ao contra-sonho de Lacan? Boletim Formação em Psicanálise, v. 25, n. 1, 25-56. [ Links ]
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Williams, M. H. (2016). An introduction to the work and thinking of Donald Meltzer. Recuperado em 10 mai 2016, de http://www.artlit.info/pdfs/MeltzerIntro.pdf. [ Links ]
Zimerman, D. E. (2008). Bion: da teoria à prática: uma leitura didática (2.ª Ed.). Porto Alegre: Artmed. [ Links ]
Recebido em: 9/7/2018
Aceito em: 5/11/2019
1 Um tratamento mais detido na definição do conceito de contrassonho já foi realizado (Silva Filho, 2017, pp. 25-56). E, na obra de Meltzer, uma descrição mais pontual pode ser encontrada (Meltzer, 2005). Mas é certo que a ideia de um "sonho contratransferencial" está desenvolvida ao longo de toda a obra do autor, referida a "um teatro onírico de geração de significados" estabelecido via "uma conversa entre os objetos internos de analista e analisando".
2 Numa breve elucubração marginal, ressaltam-se ponderações de Bion, no livro Atenção e interpretação: "As afirmações do paciente são mentirosas? É mentira o termo mais apropriado? Se não, qual é a formulação correta? Por que o paciente inventa, e o que ele transforma em invenção? A invenção difere do mito? Como as afirmações do paciente diferem de outras falsas afirmações?" (Bion, 1991, p. 70). Mais adiante, no capítulo em que consta a pergunta quanto a "poder um mentiroso ser psicanalisado", constará também a ideia de que "a não-verdade é face da verdade" (Bion, 1991, p. 108). Pois Bion oscilava em conceber a mentira como uma patologia (de desconexão com a realidade), por um lado, e como uma forma de criatividade, por outro. Aliás, ele conferia aos mentirosos o importante papel de uma contracultura, por vezes capaz de proteger-nos de confrontos letais com certas verdades, dizendo, com humor britânico: "a humanidade deveria reverenciar o túmulo do mentiroso desconhecido" (Zimerman, 2008, p. 228). E, mais que isso, sobre a verdade: "será que algum ser humano pode validar aquilo que ele pensa ser verdade? ... será que qualquer humano que aspire à verdade estará engajado em um papel que não o de bobo? ... Não se pode praticar psicanálise sem se tornar consciente deste problema" Bion, 1992, p. 81). A distinção "realidade-verdade" e "falsidade-mentira" não (se) resolve.