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Jornal de Psicanálise

Print version ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.53 no.99 São Paulo Jul./Dec. 2020

 

INTERFACE COM A CULTURA

 

Incluir a inclusão: psicanálise na escola1

 

Include inclusion: psychoanalysis at school

 

Incluir la inclusión: psicoanálisis en la escuela

 

Inclure l'inclusion : psychanalyse à l'école

 

 

Helga de Souza Machado QuagliattoI; Elisa A. Rodrigues de FreitasII; Karollyne Kerol de SousaIII; Ludmilla de Sousa ChavesIV; Regiana Lamartine RodriguesV; Tassiana Machado QuagliattoVI

IMembro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Coordenadora do Núcleo de Investigação Psicanalítica da Infância (NIPI). Membro do Núcleo de Psicanálise de (NPU). Membro do Centro de Estudos e Eventos Psicanalíticos de (CEEPU). Uberlândia / hquagliatto@yahoo.com.br
IINIPI e CEEPU. Uberlândia / elisafreitas2702@hotmail.com
IIINIPI e CEEPU. Uberlândia / karollyne_sousa@hotmail.com
IVNIPI e CEEPU. Uberlândia / lud_chaves@hotmail.com
VNIPI. Uberlândia / regiana.lamartine@gmail.com
VINIPI e CEEPU. Uberlândia / tassianaquagliatto@hotmail.com

 

 


RESUMO

O presente artigo relata a experiência do projeto Incluir a Inclusão, que desenvolveu uma intervenção psicanalítica em uma escola pública, a partir de uma situação-problema revelada através do acting de um aluno da proposta inclusiva. Na busca da constituição de um espaço grupal para o pensar, no ambiente vivo da sala de aula, construíram-se modelos estéticos, incluindo expressões gráficas, imagens e palavras. Estes se apresentaram como uma tentativa de realizar a tessitura representacional, oferecendo elementos para o trabalho psíquico em sua multiplicidade vincular. Apreende-se, nessa dimensão, que a escola poderá se constituir como um espaço de subjetivação, à medida que desenvolver um invólucro psíquico, frente aos excessos pulsionais das tramas relacionais, incluindo-se como promotora de saúde mental.

Palavras-chave: psicanálise, escola, inclusão, agentes de saúde mental, grupo de trabalho


ABSTRACT

This article reports the experience of the Include Inclusion project, which developed a psychoanalytic intervention in a public school, starting from a problem situation raised through the acting of a student of the inclusive program. In order to create a collective space for thinking within the living environment of the classroom, aesthetic models were built, including graphic expressions, images and words. These presented themselves as an attempt to carry out the representational narrative, offering elements for the psychic work in its linking multiplicity. It is comprehensible, in this dimension, that the school can be developed as a space of subjectivation, as a psychic envelope is developed, considering the excessive impulses of relational plots, including itself as a promoter of mental health.

Keywords: psychoanalysis, school, inclusion, mental health agents, work group


RESUMEN

Este artículo informa sobre la experiencia del proyecto Incluir Inclusión, que desarrolló una intervención psicoanalítica en una escuela pública, basada en una situación problemática revelada a través del acting de un estudiante de la propuesta inclusiva. En la búsqueda de constituir un espacio grupal para el pensamiento, en el espacio vivo de la clase, se construyeron modelos estéticos, incluyendo expresiones gráficas, imágenes y palabras. Estos se presentaron como un intento de realizar el tejido representacional, ofreciendo elementos para el trabajo psíquico en su multiplicidad vinculante. Se aprende, en esta dimensión, que la escuela puede constituirse como un espacio de subjetivación, en la medida que desarrolla una envoltura psíquica, ante los excesos pulsantes de las tramas relacionales, incluyéndose como promotora de la salud mental.

Palabras clave: psicoanálisis, escuela, inclusión, agentes de salud mental, grupo de trabajo


RÉSUMÉ

Cet article rapporte l'expérience du projet Inclure I'inclusion, qui a développé une intervention psychanalytique dans une école publique, à partir d'une situation-probléme révélée par le acting d'un élève de la proposition inclusive. Dans la recherche de la constitution d'un espace grouppal pour le penser, dans l'environnement vivant de la salle de classe, on a construit des modèles esthétiques y compris des expressions graphiques, des images et des mots. Ceux-ci se sont présentées comme une tentative de réaliser la tessiture représentative, offrant des éléments pour le travail psychique dans sa multiplicité lier. On perçoit, dans cette dimension, que l'école peut se constituer comme un espace de subjectivation, dans la mesure où elle développe une enveloppe psychique, face aux excès pulsionnels des trames relationnelles, y compris comme promotrice de la santé mentale.

Mots-clés: psychanalyse, école, inclusion, agents de santé mentale, groupe de travail


 

 

Pode-se ver que aquilo que um indivíduo diz ou faz num grupo ilumina tanto sua própria personalidade quanto a sua opinião do grupo, às vezes, sua contribuição ilumina um ou mais que a outra.

(Bion, 1961/1970, p. 42)

 

Nu e cru

Quinta-feira chegou! Oba! Teremos aula de educação física para a nossa turma do 6.º ano. Nem o sinal do recreio é tão bom quanto a hora de irmos para a quadra. Saímos correndo. A disputa é para quem pega a bola primeiro. Eu estava escolhendo a bola, a mais nova. Mas percebo que ninguém estava se importando com elas. Achei estranho. Escutei as meninas gritando, os meninos cochichando e rindo, e todo mundo começou a correr. Pensei: hoje a educação física vai ser animada! Mas a gritaria ficou maior. Até o professor começou a falar mais alto. Resolvi olhar o que estava acontecendo. Também levei um susto: o que era aquilo? Só podia ser o esquisito do Jorge. Ele corria completamente nu pela quadra! Finalmente o professor conseguiu segurá-lo. A turma estava agitada e tivemos que voltar para a sala. O Jorge foi suspenso por uma semana. Aff...2

A escola é um espaço social e cultural potencialmente favorável a inúmeras experiências e aprendizagens, as quais estão entrelaçadas à dinâmica pulsional e conflitiva das tramas relacionais presentes na comunidade escolar. Nesse contexto, observamos que os fenômenos de maior impacto, reveladores de sofrimento psíquico e da precariedade de um meio que favoreça o desenvolvimento do processo do pensar (Bion, 1962/1994b), tendem a ocorrer em situações nas quais os alunos da proposta inclusiva tornam-se protagonistas.

A inclusão no ensino regular (Lei n. 13.005/2014 - Plano Nacional de Educação [pne ]) foi fortalecida, em 2015, com a lei que assegura que as crianças e adolescentes com deficiência, transtornos globais de desenvolvimento e altas habilidades/superdotação tenham a possibilidade de uma formação integral (Lei n. 13.146):

O desafio que se desenha, para os profissionais de saúde mental e da educação especial é o de sustentar uma prática com essas crianças na tensão do paradoxo entre o universal e o singular, entre o ideal da "escola para todos" e a particularidade do caso a caso. (Ribeiro & Bastos, 2007, p. 29)

O que comumente se vê é a escola realizando diversos esforços para cumprir os "protocolos de inclusão", previstos na legislação: adequação do espaço físico com acessibilidade e tecnologias assistidas; ensino de linguagens, códigos de comunicação e sinalização; ampliação dos currículos, métodos, materiais e recursos pedagógicos; contratação de professores de apoio etc.

Entretanto, como afirma Carvalho, é "oportuno também, enfatizar que a educação inclusiva deve ser entendida como um processo e não como uma providência a ser tomada" (2001, p. 42), o que inclui considerar tanto as particularidades de cada aluno da proposta inclusiva, por exemplo as possíveis falhas na constituição da subjetividade, quanto os conflitos latentes, individuais e grupais, presentes na comunidade escolar, os quais suscitam, comumente, uma inquietante estranheza:

A inclusão, enquanto problema que é, provoca a escola o tempo todo a re-pensar o que fazer para que de fato não ocorra uma pseudoforma de si mesma. Ela incomoda, pois não é homo ou anômala, porém híbrida, uma vez que ela coexiste encerrada nos espaços que a princípio a rechaçam. Visto que não há por que invocar a inclusão onde não há excluídos. (Orrú, 2017, p. 47, grifo nosso)

Essa problemática remete-nos à Freud, que desde 1913 já afirmava o quanto seria fecunda a parceria entre psicanálise e educação:

quando os educadores se familiarizarem com as descobertas da Psicanálise, será mais fácil se reconciliarem com certas fases do desenvolvimento infantil e, entre outras coisas, não correrão o risco de superestimar a importância dos impulsos instintivos socialmente imprestáveis ou perversos que surgem nas crianças. Pelo contrário, vão se abster de qualquer tentativa de suprimir esses impulsos pela força, quando apreenderem que esforços desse tipo com frequência produzem resultados não menos indesejáveis que a alternativa, tão temida pelos educadores, de dar livre trânsito às travessuras das crianças. (1913/1976b, p. 225)

Abrão (2006), ao estudar as influências da psicanálise na educação brasileira no início do século XX, apontou que esta foi reconhecida como uma ferramenta para ajuste de conduta. Hoje, analisa que os educadores passaram a valorizar as contribuições psicanalíticas ao perceberem a importância da dimensão emocional na relação com os seus alunos.

Nesse sentido, a função dos educadores, além de pedagógica, precisa ser a de observar, concomitantemente, os fluxos intersubjetivos presentes nas psicodinâmicas grupais, como também analisar o que é próprio de cada um. Assim, abre-se a possibilidade de conciliar uma imprescindível função promotora de saúde mental. Em consonância com a proposta de Dorado de Lisondo:

Um professor deveria ser um agente de saúde mental. Ele é também um modelo de identificação, assim como também está num lugar privilegiado para observar. Se ele não for um agente de saúde mental, deixará de fazer algo fundamental na sua profissão, porque estará se esquivando da formação de seres humanos. (2003, p. 22)

Todos os alunos podem apresentar, em diferentes intensidades e de acordo com as angústias suscitadas nas diversas situações, dentro e fora do ambiente escolar, inúmeros comportamentos que revelam sua vulnerabilidade psíquica, seja em ações regressivas, agressivas ou de isolamento, ora revelando a sua presença de forma intrusiva, violenta ou mesmo exibicionista, ora manifestando a sua presença pela ausência, por meio de apatia, desinteresse ou retraimento.

Por sua vez, a sala de aula é um lugar de produção de intercorrências psíquicas devido ao interjogo de forças pulsionais que variam de intensidade e modulação na comunidade escolar. Considerar essa dinâmica é incluir os alunos na possível percepção de si mesmos, das próprias diferenças e dificuldades, frente ao ciclo de projeções em que o diferente, o indesejável, o agressivo, esteja apenas no outro e, por vezes, recaindo sobre o aluno que compõe a normativa de inclusão:

A inclusão escolar está para além do direito e do cumprimento da lei que ordena que todas as crianças estejam na escola. Quando pensamos na entrada de alguma criança na escola, não é só porque ela precisa ser socializada, nem tampouco só porque precisa manter as "ilhas de inteligência" preservadas. Certamente é mais que isso. Pensamos na escola como lugar subjetivante das crianças que, por algum motivo, encontraram um obstáculo no processo de subjetivação. (Freitas, citado por Colli & Kupfer, 2005, p. 12)

 

Incluir a inclusão

Ser, é ser percebido

(Berkeley, 1710, citado por Zimerman, 2010, p. 193)

A escola regular, enquanto um espaço plural de subjetivação, precisa continuamente abrigar e expandir a percepção das manifestações de dores psíquicas e dos fenômenos que irrompem do inconsciente para incluir o vértice estético proposto por Freud (1919/1976a), ou seja, das qualidades do sentir.

O enredo que envolveu a cena de nudez denominada "Nu e cru" foi protagonizado por um aluno da proposta inclusiva e gerou o convite da escola3 para a parceria com o Núcleo de Investigação Psicanalítica da Infância (nipi, Uberlândia, mg). O desafio lançado foi o de tentarmos desenvolver ferramentas de inclusão, com singularidades estéticas, e pensarmos em intervenções que pudessem qualificar e legitimar o trabalho psíquico possível frente às inquietações que desarticularam a "ordem das coisas" e que foram nomeadas, pela comunidade escolar, como "estranho/bizarro", desvelando estados de mente primitivos, "crus".

Retomamos Freud, em seu texto "O estranho" (1919/1976a), que nos ensina que nem tudo que é assustador evoca o sentimento do estranho, mas somente aquelas situações em que há uma subversão da lei do recalque. Aquilo que deveria permanecer secreto e oculto vem à tona, revelando o paradoxo de que o sentimento de estranho é também familiar.

Consideramos os actings como uma manifestação do "estranho/familiar" que nos habita e revelam os conflitos intrapsíquicos e interpsíquicos de uma pessoa ou mesmo de todo o grupo. Portanto, os actings, enquanto movimentos inconscientes endereçados a outros, buscam por simbolização. Essa premissa direcionou o projeto para um trabalho grupal, com toda a turma de colegas desse aluno da proposta inclusiva, durante o horário de aulas. Além disso, também consideramos importante a presença de ao menos um professor, ao longo dos oito meses dos encontros, pois assim ele poderia ser despertado para a função de promotor de saúde mental.

" [D ]eve ficar estabelecido o fato de que não estamos interessados em fornecer tratamento individual em público, mas sim em chamar atenção para as experiências reais do grupo" (Bion, 1961/1970, p. 71).

 

Na cena "Nu e cru", percebemos que os alunos vivenciaram a experiência de "colapso" entre o que é familiar/estranho e que deveria permanecer recalcado. Uma onda de angústia emergiu no grupo e cada um tentou se defender do mal-estar da maneira que pôde. Quando o retorno do recalcado provoca uma ambiguidade de sentimentos, se desfaz a clara distinção do que eu reconheço e o que eu não reconheço em mim. Tanto pelo próprio conteúdo recalcado, que é um material não mais reconhecido conscientemente, quanto pelo movimento de retorno, que é disruptivo.

Identificamos que as projeções manifestadas através de atitudes de preconceito, segregação, crítica e repulsa excluíam a continência, a compaixão e a empatia. Tais aspectos defensivos pertencem a outra lógica, distinta do cotidiano. A lógica do inconsciente está associada à definição do irrepresentável para Horn: "o que não pode se transformar em psíquico daria origem a um excedente de energia que busca necessariamente se descarregar. Essas descargas no corpo, no ato, e também no polo perceptivo (alucinatório), mostrariam cadeias do irrepresentável" (2015, p. 33).

Bion (1957/1994a) expande esse tema ao discutir que a mente, frente à realidade interna e externa, pode reagir cindindo e fragmentando os objetos. A parte psicótica da personalidade se manifesta como um núcleo primitivo onipotente e permeado por identificações projetivas presentes no psiquismo de qualquer sujeito, indissociado da parte não psicótica da personalidade.

O objetivo do projeto era buscar dar representação àquilo que foi vivenciado sensorialmente, acolhendo as angústias frente ao que foi nomeado de "estranho/bizarro", percebendo o clima emocional do encontro, e observando como os alunos, professores e os profissionais do nipi reagiam aos estímulos, na direção de construção ou obstrução da tarefa:

A mentalidade de grupo é a expressão unânime da vontade do grupo, à qual o indivíduo contribui por maneiras de que não se dá conta, influenciando-o desagradavelmente sempre que ele pensa ou se comporta de um modo que varie de acordo com as suposições básicas. (Bion, 1961/1970, p. 57)

Compreendemos que a emoção "nua e crua" permearia as manifestações das suposições básicas do grupo, ou seja, as manifestações das fantasias primitivas, qualificando a mentalidade grupal. Os alunos envolvidos nessa experiência emocional indicariam como realizariam as transformações operativas de suas ideias, tanto do interesse no coletivo quanto nas diferenças, oportunizando a inclusão do individual no grupo e do grupo como representante de angústias particulares de cada um. Nasceu, assim, o projeto Incluir a Inclusão.

 

Compartilhando a experiência

Depois de entendermos melhor,
a beleza comparece.

(Mãe, 2018, p. 14)

No primeiro encontro com o grupo de alunos, na tentativa de compreender e de se aproximar da cena "Nu e cru", propomos que eles desenhassem situações e experiências que considerassem "bizarras", possibilitando a construção de um espaço de escuta sobre a percepção do ocorrido. A proposta dessa atividade seria a de construir/identificar hipóteses e significados do que ocorreu no ambiente escolar, "subjetivando, assim, a experiência vivida, ou seja, criar estratégias de pensamento para significar uma vivência" (Cerezer, 2005, p. 69).

Os alunos, a partir de suas expressões gráficas, relataram seus aspectos vulneráveis, em várias situações de suas vidas, expandindo o tema para além da genitalidade e não fixando o "bizarro" somente na cena ocorrida na escola. Compreendemos que o que era "nu e cru" não era apenas a nudez, mas a manifestação de algo ainda não simbolizado no grupo, e que carecia de uma inscrição psíquica. Segundo Kupfer, "isso amplia o campo de ação do psicanalista, que passa a incluir a instituição escolar como lugar de escuta" (2000, citado por Cerezer, 2005, p. 34).

Observamos que essa experiência em grupo tocou em aspectos muito particulares de cada um dos alunos, e propusemos sustentar um pouco mais a angústia evocada pela situação-problema. Sabemos que, na constituição psíquica, as primeiras representações acontecem em forma de imagens, para depois adquirirem o estatuto de palavras. Nesse sentido, usamos as imagens expressas nos desenhos para iniciar o percurso com os alunos. Ao longo dos encontros, fomos introduzindo recursos audiovisuais, mesclando imagens e palavras, à medida que novos temas foram sendo revelados em cadeias associativas e com possibilidade de serem ressignificados.

Dessa forma, do primeiro encontro emergiram como tema as diferenças existentes entre as pessoas, e selecionamos o curta-metragem Cuerdas (Garcia, 2013) como estímulo à roda de conversas. No curta, uma criança impactada pela deficiência física e cognitiva de outra se dispõe a estar com ela e desenvolve, criativamente, uma forma possível de relação. Contudo, no final do vídeo, a criança com necessidades especiais morre.

A inquietação frente à impotência da morte muda o clima emocional do encontro. Os alunos se emocionaram, as diferenças ficaram como pano de fundo e eles começaram a conversar sobre experiências de perdas reais e simbólicas. Observamos evidenciar-se o suposto básico de acasalamento (sba), no qual surge a esperança de que no futuro um fato ou uma pessoa traria a solução desse conflito. Esse suposto se evidenciou na repetida ideia entre o grupo de que teria sido melhor a protagonista do curta não ter se aproximado da criança com necessidades especiais. Compreendemos que estas são as formas que o grupo foi encontrando de lidar com as suas limitações, e teríamos de nos atentar a esse funcionamento para não respondermos a essas expectativas.

Apesar das tentativas onipotentes de acobertar a angústia, emergiram também novos questionamentos, dentre eles destacamos: o que fazer quando o outro é tão diferente de mim? Se o investimento libidinal que faço para me aproximar do outro também é fonte de sofrimento, é melhor me afastar?

Exibimos o curta-metragem For the birds (Eggleston, 2000), em que um grupo de pequenos pássaros está reunido num cabo de telefone, quando um pássaro maior e diferente pousa no fio. A reação dos pequenos pássaros é de reclamar e insultar o maior, rejeitando-o. Contudo, este permanece no fio tentando ganhar a amizade dos outros, até que os pequenos se organizam bolando uma forma de expulsar o pássaro maior.

O grupo de alunos, demonstrando maior envolvimento com o projeto, narrou situações em que os membros desse grupo se decepcionaram nas suas relações e momentos em que se sentiram excluídos, uns no grupo familiar e outros no ambiente escolar. O diálogo foi na busca de sentidos para a questão do que pode ser feito quando sentimos raiva, já que a frustração aciona espaços mentais primitivos que, na tentativa de criar defesas contra o sofrimento, buscam a destruição como uma forma de alívio. Como agir quando não gostamos de alguém ou de uma situação: brigar seria uma saída?

Estados emocionais de desamparo, frente às lembranças de frustrações vivenciadas, evidenciaram um maior contato com a dor e a realidade, demandando dos coordenadores notação e atenção a esse fenômeno para não tentar apaziguar ou gratificar os alunos, que mobilizavam a busca de uma figura já conhecida de proteção, indicando um movimento característico do suposto básico de dependência (sbd).

Na sequência, foi trabalhado o curta-metragem de animação Day & Night (Newton, 2010), em que ocorre o encontro de dois seres: Dia e Noite. Pelas diferenças entre eles, esse encontro gera uma enorme briga, mas no crepúsculo há a possibilidade do reconhecimento das qualidades mútuas e a percepção de que ambas são duas facetas de um mesmo mundo. Os alunos puderam associar que se colocar no lugar do outro é uma possibilidade para lidar e viver as diferenças, encontrando alternativas não violentas para os conflitos. Nesse momento, o clima emocional do encontro, revelado inclusive pela fala dos alunos, era de acolhimento e compreensão.

Acreditamos que os vínculos, como propõe Bion (1962/1991b), vivenciados na experiência do grupo possibilitaram um primeiro insight, enquanto produção grupal, sobre a empatia. Entretanto, sabemos que toda ideia nova ameaça a estrutura do grupo e, nessa etapa, fomos comunicados que o aluno motivador do projeto, que havia participado de todas as atividades propostas até então, demonstrando tolerância e bom humor, agrediu fisicamente a professora de apoio4 na sala de aula e foi suspenso da escola.

Inicialmente, sugerimos para os gestores da escola uma reunião com a família, na qual poderiam novamente articular o encaminhamento para atendimento individual psicanalítico desse aluno e para uma nova avaliação médica, já que ele fazia uso de psicotrópicos.

Além disso, na tentativa de identificar mais elementos da situação para um melhor manejo, investigamos a função do ato agressivo, a relação professor-aluno e a resposta da escola. Questionamos se a suspensão do aluno das atividades em sala de aula visava negar o problema, afastando-o, e eximindo a professora e a equipe escolar de pensar a situação, mantendo, portanto, um círculo vicioso contraproducente. Entretanto, se a função da suspensão fosse com o propósito de colocar um marco civilizatório legal, ou seja, apresentar um código de conduta e suas consequências, com uma posterior função de compreender o sentido dessa atuação, no retorno do aluno às aulas, vislumbramos uma maior possibilidade de ampliar o vértice rumo ao contínuo desenvolvimento de todos os componentes da cena.

Contudo, observamos que as instituições, muitas vezes, apesar de manifestarem desejos de mudança, reproduzem ações para manter modelos de funcionamento conhecidos, por exemplo evitar falar dos fatos pelo receio de excitar novas agressões. Este se apresentou também como um dos caminhos deste projeto: incluir outros vértices de conduta para os gestores escolares, frente aos desafios da construção de subjetividades, para além da ideia de comportamentos socialmente aceitos.

Seguimos compreendendo que a questão da violência vivida poderia ser acolhida e trabalhada no grupo. No encontro seguinte, foram exibidos dois filmes: Partly cloudy (Sohn, 2009) e O príncipe sapo (Os Amiguinhos, 2017). O primeiro conta a história de Gus, uma nuvem cinza, solitária e insegura, mestre em criar bebês animais perigosos. Suas adoradas criações são verdadeiras obras de arte, mas também dão trabalho à leal cegonha que faz a entrega dos bebês aos seus pais. Com esse estímulo, os alunos conversaram de como por vezes julga-se um amigo e fica-se chateado com ele por não compreender sua atitude, ou aqueles que parecem amigos, mas os fazem sofrer. O segundo filme narra a vivência de uma princesa que perdeu dentro de uma lagoa sua linda bola de ouro, presente de seu pai, e quem a ajudou na recuperação foi um sapo. Como pagamento pelo favor, o sapo pediu a ela que se tornasse sua amiga, mas a princesa não cumpriu sua parte no trato. Curiosamente, o vídeo abordou a possibilidade de se realizar acordos/combinados como forma de resolução de conflitos. Os alunos discutiram sobre as diferentes condições de amizade, quando há parceria e quando não há, possibilitando diferenciar uma pessoa que está mal-intencionada de outra que não possui os recursos necessários para sustentar o combinado.

Nesse ponto, a questão do episódio da agressão do colega à professora pôde ser conversada, revelando um pensamento majoritário de que ele poderia ter descontado nela algo que havia sofrido passivamente. Discutiu-se que, frente a um problema, todos têm suas razões e é preciso encontrar soluções, com a ajuda coletiva. Após essa vivência, o tema para o próximo encontro foi definido pelo questionamento: quais recursos podemos desenvolver para enfrentar situações difíceis?

O aluno que fora suspenso por agressão já retornara às suas atividades. Estava presente e interagindo com colegas e com a coordenadora do encontro. Apresentamos o curta-metragem Juntos fazemos mais e melhor! (Lisboa Jr., 2013), que retrata diferentes situações em que um grupo de animais, como estratégia frente ao perigo, unem-se para se defenderem. Muitos alunos queriam contar experiências reais em que foram ajudados ou ajudaram outras pessoas, histórias de fragilidades ou de heroísmo, que revelavam o desejo de serem vistos, ouvidos e considerados. Nesse momento, o grupo já estava cada vez mais cooperativo, o que contribuiu para um clima cada vez maior de confiança.

Um jogo de quebra-cabeças foi introduzido no grupo. Começamos entregando apenas uma peça e questionamos que figura formaria. O grupo foi se dando conta de que com uma peça não seria possível saber do todo. Os alunos associaram que as pessoas assim como as peças são diferentes. O quebra-cabeça de cada pessoa é infinito, porque é montado ao longo da vida, pessoas podem ser acrescentadas e quanto mais histórias se têm, mais o quebra-cabeça cresce. Green contribui: "Para que haja o insight é preciso antes que haja o representável" (citado por Berger, 1989, p. 44).

Com a aproximação do fim do projeto, alinhavamos as discussões e experiências, tendo em vista toda a trajetória do grupo. Partimos do "bizarro no outro" para o "bizarro em si"; estimulamos o contato com as próprias emoções, reconhecendo os estranhamentos internos, questionamentos e experiências de vida, aproximando-os da linguagem dos fenômenos psíquicos e dos vínculos.

Assim, dando continuidade a esse processo e tendo como estímulo a música "De toda cor/poema O inexato" (Luciano, 2017), realizamos atividades de expressão gráfica na qual foram projetadas algumas figuras: estranhamentos com o próprio corpo, "manias", ideias nomeadas de malucas, sentimentos como o medo do olhar dos outros, revelando a vergonha e o desconforto desse processo de se mostrar nas próprias "esquisitices". Essa atividade contribuiu para a quebra de preconceitos, à medida que os alunos foram mostrando para o grupo os desenhos, superando em parte o desconforto da exposição e o medo de serem criticados, promovendo uma relação de maior intimidade, tanto consigo mesmos como em suas inserções no grupo. Aquilo que precisava ser escondido ou exposto passa a ser pensado, quando o espaço vai sendo tecido e expandido no trabalho coletivo. Como aponta Outeiral, "pensar é algo que resulta de uma longa elaboração e construção" (2003, p. 138).

Nessa etapa, foram coexistindo, gradualmente, movimentos indicativos de um caminho para vir a se constituir um grupo de trabalho (Bion, 1961/1970). Observamos uma maior capacidade de cooperação empática do grupo, acompanhada de narrativas espontâneas das experiências, em um esforço coletivo na execução e participação nas tarefas. Recebemos feedbacks da coordenação pedagógica de que o aluno da proposta inclusiva estava inserido em grupos de atividades de Português e Matemática, além de estar interagindo nas aulas de Educação Física.

Para o fechamento das atividades foi proposto um último encontro pautado pela produção grupal. Neste foi solicitado que cada aluno escrevesse em uma das peças de um grande quebra-cabeça uma palavra que definisse a experiência vivenciada ao longo do ano. O quebra-cabeça foi coletivamente montado propiciando uma visibilidade da construção conjunta e seus elos. Posteriormente, para elaborar e avaliar o sentido pessoal e grupal da experiência, cada um descreveu suas considerações sobre o percurso do projeto.

No decorrer dos encontros, observamos a construção de relações empáticas entre os membros do grupo e vivenciamos o que propõe Zimerman (2010) sobre o desenvolvimento dos vínculos, que ao se reconhecerem, ou melhor, ao voltarem a conhecer aquilo que já preexistia dentro de si, é possível se aproximar do outro, possibilitando, assim, um maior enfrentamento das angústias, como escreveu um dos alunos da turma:

Amei passar esse tempo com vocês. Espero ver vocês de novo em breve. E agora, vou cantar aquela minha música, vocês se lembram? Eu sou o V., muitos me acham chato, mais irritante e tudo mais..., mas eu, particularmente, me acho engraçado.

Ou mesmo nas considerações do pai da criança que motivou o projeto:

A escola entrou com todo o aparato para ele e para mim, com psicólogos e brincadeiras... Quando chegou aqui não queria ficar na escola. Hoje, antes dele dormir, já arruma todo o material e a roupa para vir na escola no outro dia. Coisa que eu jamais poderia imaginar.

Essas representações em palavras nos remetem ao modelo continente-conteúdo proposto por Bion (1963/1991a), que na sua pluridimensionalidade abriga a possibilidade de um grupo conter um indivíduo, e vice-versa.

 

Considerações finais

A gente não gostava de explicar as imagens porque explicar afasta as falas da imaginação.

(Barros, 2015, p. 16)

Nos caminhos históricos da clínica da infância, os psicanalistas ampliaram a tessitura do trabalho analítico também realizando o trânsito entre o espaço privado da sala de análise de crianças e os espaços públicos, como a escola, na busca de uma compreensão da polissemia do sofrimento psíquico, além de uma interlocução interdisciplinar (Quagliatto et al., 2017). Simultaneamente, a comunidade tem nos convocado a realizar intervenções diretamente nesses espaços, devido às dificuldades em acolherem e compreenderem os excessos pulsionais nas tramas relacionais.

Apesar de psicanalistas se debruçarem sobre a prática nos espaços públicos, o desafio de se despojarem do seu setting habitual e o encontro com uma multiplicidade de fenômenos psíquicos podem gerar importantes transformações.

Inicialmente, o convite da escola despertou duas importantes fontes de resistência em nós: o enfrentamento do desconhecido, para além da clínica, e o trânsito teórico e técnico com a educação. Acolhemos nossa angústia, sustentadas por uma invariante fundamental e potente: o método psicanalítico.

Expandimos nossa função analítica, compreendendo que havia um processo de comunicação, via identificação projetiva, em que nos sentíamos também "estranhos" a esse lugar. Entendemos que a experiência emocional era o que nos permitiria criar ferramentas na construção de um modelo estético, na tentativa de que surgisse material simbolizante, para sustentar os diversos sentidos do desejo individual e coletivo de ser visto e reconhecido.

Incluímos aquilo que se apresentou incognoscível e irrepresentável, através do acting do aluno, ao expor sua genitália púbere, transformando essa experiência na porta-voz das sensações de desconhecimento e estranhamento, de todos os componentes da cena: gestores, professores, alunos, pais, psicanalistas e psicólogos.

Compreendemos que a permanência e o desenvolvimento de alunos da proposta inclusiva na escola, na medida em que as suas posições subjetivas podem revelar impasses na constituição do si mesmo, dependem de um grupo que possa desenvolver condições para ser um invólucro psíquico para as angústias próprias que são despertadas nessas relações e para aquele que é o protagonista do estranhamento.

Contudo, sabemos que num ambiente escolar, como na vida, haverá sempre a expressão de elementos brutos, "crus", que dificilmente encontrarão sentidos, mas nessa experiência foi possível simbolizar parte desses elementos e experimentar uma construção coletiva, predominantemente colaborativa.

Com isso, sonhamos a possibilidade de pensar a psicanálise como uma parceira contínua da educação, e a escola, efetivamente, como um local de promoção de saúde mental, tendo como modelo a escuta para o sofrimento psíquico e a disposição em suportar as tensões frente ao desconhecido, encontrando aliados em equipes multidisciplinares.

Realizamos a nossa inclusão na educação e nos sentimos estimuladas em termos a psicanálise como fonte de possibilidades criativas e insaturadas, sem excluirmos os desafios do processo de incluir as diferenças epistemológicas entre essas ciências.

 

Referências

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Recebido em: 11/9/2020
Aceito em: 6/12/2020

 

 

1 Este projeto foi vice-campeão no "Community Award in Education" da International Psychoanalytical Association (ipa), 51º Congresso Internacional de Psicanálise, Londres, julho de 2019.
2 Cena ficcional que aborda a conflitiva que inspirou o projeto "Incluir a Inclusão".
3 Escola pública da cidade de Uberlândia, MG.
4 Como previsto na legislação, uma professora de apoio foi solicitada à Secretaria de Educação para assessoria pedagógica a esse aluno, como parte do protocolo de inclusão.

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