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Jornal de Psicanálise
Print version ISSN 0103-5835
J. psicanal. vol.53 no.99 São Paulo Jul./Dec. 2020
TEMAS LIVRES
Quando brincar não é possível: um debate acerca da transferência sobre o enquadre a partir da análise de uma criança de 5 anos1
When playing is not possible: a debate about transference to the setting from the analysis of a five-year-old child
Cuando no es posible jugar: un debate acerca de la transferencia sobre el encuadre a partir del análisis de un niño de cinco años
Quand jouer n'est pas possible : un débat sur le transfert du cadre à partir de l'analyse d'un enfant de cinq ans
Daniel SchorI; Nelson Ernesto Coelho JúniorII
IPós-doutorando do Departamento de Psicologia Experimental do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (PSE-IP-USP) e membro do Laboratório Interinstitucional de Estudos da Intersubjetividade e Psicanálise Contemporânea (LIPSIC), da usp e da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). São Paulo / danielschor@usp.br
IIProfessor Doutor do Departamento de Psicologia Experimental do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (PSE-IP-USP) e coordenador do Laboratório Interinstitucional de Estudos da Intersubjetividade e Psicanálise Contemporânea (LIPSIC), da usp e da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). São Paulo / ncoelho@usp.br
RESUMO
No presente trabalho, nos apoiamos na experiência da análise de uma criança para engendrar uma discussão sobre o funcionamento do enquadre analítico como veículo para a comunicação de angústias não simbolizadas do sujeito na situação clínica. Procuramos desenvolver a ideia de que os elementos concretos e espaçotemporais do dispositivo serão postos frequentemente a serviço da materialização de aspectos primários do psiquismo. A partir disso, compreendemos que o estabelecimento do enquadre, de algum modo, conforme a organização subjetiva do sujeito irá em muitas situações se apresentar como pré-condição da integração de elementos psíquicos que pressionam no sentido de sua apropriação subjetiva.
Palavras-chave: psicanálise, enquadre, simbolização, elasticidade da técnica
ABSTRACT
In the present work, we rely on the experience of analyzing a child to engender a discussion about the functioning of the analytical setting as a vehicle for communicating the subject's un-symbolized anxieties in the clinical practice. We seek to develop the idea that the concrete and spatiotemporal elements of the psychoanalytic device will often be put at the service of materializing primary aspects of the psyche. From this, we understand that the establishment of the setting, in some way, according to the subject's subjective organization will, in many situations, present itself as a precondition for the integration of psychic elements that pressure towards their subjective appropriation.
Keywords: psychoanalysis, setting, symbolization, elasticity of technique
RESUMEN
El presente trabajo se desprende de la experiencia de análisis de un niño para generar una discusión sobre el funcionamiento del encuadre analítico como vehículo para la comunicación de angustias del sujeto que carecen de simbolización en la situación clínica. Buscamos desarrollar la idea de que tanto los elementos concretos como los espaciales y temporales del dispositivo a menudo se pondrán al servicio de materializar aspectos primarios de la psique. Con esto, entendemos que, de alguna manera, el establecimiento del encuadre de acuerdo con la organización subjetiva del sujeto se presentará, en muchas situaciones, como condición previa para la integración de elementos psíquicos que presionan hacia su apropiación subjetiva.
Palabras clave: psicoanálisis, encuadre, simbolización, elasticidad de la técnica
RÉSUMÉ
Dans le présent travail, nous nous appuyons sur l'expérience de l'analyse d'un enfant pour démarrer une discussion sur le fonctionnement du cadre de la relation analytique comme un moyen de communication des angoisses non symbolisées par le sujet en situation clinique. Nous cherchons à développer l'idée que les éléments concrets, de l'espace et du temps du dispositif seront fréquemment mis au service de matérialiser des aspects primaires de la psyché. Par conséquent, nous comprenons comprend que, en quelque sorte, l'établissement du cadre selon l'organisation subjective du sujet se présentera, dans des nombreuses situations, comme une condition préalable à l'intégration des éléments psychés qui poussent à leur appropriation subjective.
Mots-clés: psychanalyse, cadre, symbolisation, élasticité de la technique psychanalytique
A forma de Sabrina
Estávamos no início de 2019 quando um de nós foi procurado pelos pais de Sabrina,2 pouco após a entrada do ano letivo. Preocupado, o casal buscava um terapeuta para sua única filha, relatando a ocorrência de episódios de agressividade desta junto a colegas de escola, além de tiques nervosos, entre outros sinais de ansiedade.
Um dos sintomas que os pais expunham como recorrente era um piscar de olhos muito repetitivo da menina, que contava então 5 anos de idade, o qual parecia indicar um incômodo importante. Em razão disso, Sabrina foi levada a mais de um oftalmologista, a partir do que um conjunto de exames descartou a hipótese de problemas de natureza orgânica.
Curioso foi que, cerca de uma semana após a primeira entrevista realizada, o casal decide se separar. Nossa impressão foi a de que procurar um psicólogo se apresentava, ali, como uma das condições para que o pai, de quem partiu o pedido de separação, se sentisse minimamente seguro para fazê-lo, como se dissesse: "Agora, ao menos, tudo irá acontecer sob o olhar de um especialista." De fato, o pai de Sabrina se mostrava claramente inseguro como pai, e tanto ele quanto a mãe evidenciavam uma genuína preocupação com a filha.
Em uma das primeiras sessões de Sabrina, que, desde o princípio, havia topado a proposta da terapia, ela decide brincar com um barbante. Primeiramente, pede ajuda para colar o fio numa folha sulfite. Em seguida, faz dois desenhos, emaranhados de rabiscos, com muitas cores em ambas as pontas, parecendo representar de alguma maneira cada uma das extremidades. Feito isso, resolve cortar mais um pedaço do rolo de barbante, e pede ao analista: "Segura na outra ponta." Pelo atendimento ao pedido, ambos passam a encenar uma espécie de cabo de guerra, quando a criança, então, enuncia a regra do jogo: "Quem piscar primeiro perde."
Naquele instante, o terapeuta se recorda de que, nessa mesma semana, ou uma semana antes, a mãe de Sabrina havia lhe comunicado que seu pai vinha, nos últimos dias, organizando sua mudança para um apartamento próprio.
O piscar e o jogo como um todo representavam, em nosso entendimento, a situação de uma criança visivelmente tensa e sem saída. "Quem piscar primeiro, perde". Leia-se: se eu relaxar, a corda se solta e o objeto se vai. Terminado o jogo, o analista arrisca, então, sua primeira interpretação: "Você está me comunicando o quanto seu pai é importante pra você, e o quanto você não quer se desprender dele, apesar de ele ir embora da sua casa..." A isso, a garotinha respondeu, naquele momento, com seu silêncio.
Cerca de duas semanas depois, o analista aguardava Sabrina em seu consultório, no horário definido para sua sessão, que acontecia aos sábados de manhã. Naquele dia, ela chega animada, se pendurando no portão diante das represálias da mãe, como já era de seu costume. Vestindo uma fantasia de festa - de joaninha -, tagarelava como sempre sobre mil assuntos à entrada da sala de espera.
Como ela e sua mãe tinham chegado minutos antes do horário, a sala de atendimento ainda estava sendo preparada para recebê-la. O terapeuta se via ocupado cobrindo o chão para uso das tintas, trazendo a caixa do armário em que ficava guardada etc. Como já era sabido, quando isso acontecia, Sabrina, ansiosa, não aguentava aguardar passiva a preparação do mise en place de seu atendimento e, rapidamente, subia as escadas, "auxiliando" e participando de tudo na arrumação da sala.
Com finalmente tudo pronto, Sabrina chama sua mãe para entrar na sala, como vinha acontecendo havia algumas semanas, com pleno consentimento do analista. Este, então, se movimenta no sentido de entrar com elas, quando, para sua enorme surpresa, tanto quanto da mãe de Sabrina, a menina se coloca entre ele e a porta, declarando: "Você não vai!". A mãe, estarrecida e constrangida, como se estivesse diante de um episódio de má educação, observa: "Sabrina, o que é isso?! Nós viemos aqui para conversar com ele!".
Dali, algumas tentativas foram realizadas pelo analista no sentido "negociar" sua entrada, sem, entretanto, nenhum sucesso. Diante destas, a menina "empacou", entortou a boca e cruzou os braços. Não bastasse isso, pôde-se perceber, em meio ao impasse, que um princípio de choro angustiado se anunciava... Atordoado, o terapeuta leva alguns instantes para se organizar, decidindo, por fim, perguntar à menina: "Pois bem, Sabrina. Como você gostaria de fazer?". Ao que ela responde: "Você tem que ficar aqui na porta, numa cadeira." A mãe, naturalmente, permanecia confusa ao observar o que se passava. O clínico, então, lançando a ela um olhar já mais sereno e confiante, diz a ambas: "Façamos assim, então. Vou buscar uma cadeira e ficar aqui na porta. Qualquer coisa, Sabrina, é só você me chamar."
Àquela altura, concatenando algumas ideias, o analista já havia sido capaz de ponderar que a criança certamente não iria até seu consultório após considerável produção - fantasia de joaninha e afins -, num sábado de manhã, e seguiria interessada o rito de preparação do espaço de atendimento, para simplesmente brincar com a mãe, tendo isto o mesmo sentido que teria em qualquer um dos outros espaços em que poderia se realizar, incluindo a sala da casa em que ambas moravam juntas.
Desse momento em diante, da porta da sala, murmúrios de diálogos e risadas puderam ser ouvidos. Mãe e filha pareciam entretidas em histórias envolvendo bonecos, recortes e desenhos, sendo que, vez por outra, o terapeuta era solicitado por Sabrina em função de "suporte" ao que transcorria lá dentro. De tempos em tempos, por exemplo, era demandado no sentido de buscar um copinho plástico que se fez necessário, água para encher a bacia etc.
Pelas próprias características da posição em que se viu, o analista foi levado a refletir ali sobre a situação que se colocava, digamos, tanto pelo "cantinho do castigo" a que fora relegado, quanto por seu caráter absolutamente inesperado, que demandava entendimento e interpretação.
A primeira reflexão que se fez possível naquele contexto foi de que a forma estabelecida por Sabrina para a sessão daquele dia comunicava que alguém não estava na posição em que deveria estar, ou, ao menos, na posição que lhe era suposta. Nada casual era a circunstância de que, tal como exposto, seu pai estava, naquele momento, saindo de sua casa.
Seria o analista, então, naquele cenário, um representante deslocado da figura do pai? Talvez. Mas, se era assim, por que as questões a esse respeito não estavam sendo veiculadas nos desenhos, nas brincadeiras, ou a partir de tantos recursos de que o universo simbólico de Sabrina era plenamente capaz de lançar mão, como, até mesmo, vinha acontecendo nas últimas sessões? Por que, afinal, uma medida tão "radical" quanto excluir seu terapeuta da sala?
Avançando um pouco na reflexão, foi possível ponderar se (em que medida) o analista seria ali um representante do pai e em que medida teria, na verdade, "se tornado" o pai, por (em) uma modalidade de transferência que organizava a situação clínica segundo elementos muito mais primários do psiquismo da criança.
Foi então que se chegou ao entendimento de que as dúvidas que assim ocorriam expunham, elas próprias, mais do que tudo, a verdadeira natureza do processo em curso. Se, de um lado, a análise da situação torna pertinente a interpretação de que o analista representava naquela cena o pai ausente, bem como as diversas questões subjetivas implicadas no afastamento de Sabrina em relação a ele, por outro, a criança não deixa dúvidas sobre colocar sua saída da sala naquele momento como uma condição para a encenação/simbolização das angústias e tensões que ali precisariam se apresentar. Como dissemos, seria diferente se ela decidisse, por exemplo, dramatizar por meio do uso dos bonequinhos a partida de casa de um membro da família. Mais do que - ou antes de - um representante, o clínico parecia se colocar ali como um dos elementos que estavam sendo utilizados na construção/criação de um quadro que, este sim, começava a ajudar a menina a representar para si mesma a realidade por ela vivenciada frente à saída de seu pai de casa.
Interessa destacar aí, portanto, o caráter transicional da organização da cena. Evidentemente, ela poderia ser interpretada, e foi, mas o sentido da interpretação só poderia advir depois que o dispositivo ajudou a estruturar para a criança o que a sua cabeça, sem a ajuda dos elementos concretos do enquadre e da cena assim montada, não podia organizar sozinha. Quem "diz" isso é Sabrina, por meio de seus movimentos e de seus esforços para configurar a situação de modo, aliás, bastante detalhado, com determinações rigorosas: fantasiar-se, ir ao consultório com sua mãe, acompanhar a montagem do "palco" para simbolização das questões que para lá seriam trazidas, proibir a entrada do terapeuta, empacando diante da porta, e posicionando o pai/analista num lugar específico, fixo, fornecendo os recursos e garantindo de longe, ou de fora, o suporte necessário à manutenção do universo simbólico e imaginativo da filha.
Parece-nos fundamental, portanto, capturar a dimensão processual do trabalho de simbolização que aí se realizava, e que teve no enquadre um elemento central e transicional determinante da sua possibilidade.
Transferência e enquadramento clínico
Enquanto psicanalistas, temos como pressuposto de nossa prática a perspectiva de que os aspectos pouco ou nada simbolizados do sofrimento do sujeito possam se transferir para o seio do encontro clínico. As parcelas da realidade psíquica que pressionam no sentido de uma apropriação subjetiva definem formas variadas de "apelo" transferencial, com vistas a algum tipo de mediação que se possa estabelecer entre o sujeito e seu inconsciente, seu negativo.
Frente a isso, é preciso considerar antes de tudo que a proposição do dispositivo, do enquadre clínico, é a primeira resposta que será oferecida a esse apelo. Ela comporta uma mensagem, que se refere a uma transferência potencialmente sugerida na forma do enquadre (Roussillon, 2019). Isto significa que o dispositivo irá manifestar em ato, em coisa, aquilo que a regra diz em palavra e, mais do que isso: que ele é acompanhado de um projeto de transformação do funcionamento psíquico do sujeito, comportando aspectos de sedução e mesmo de sugestão.
Por exemplo. A regra clássica de Freud: "diga-me o que lhe vier à cabeça, evitando filtrar o que lhe ocorrer conforme o que sua educação sugere" (1913/2010) é uma regra que "diz sem dizer" que, se duas ideias ou associações se seguem, é porque elas possuem um vínculo, e que, daí, alguma consequência ou informação será tirada. O dispositivo "fala", convida, por meio do que facilita ou interdita (Roussillon, 2019) e, nessa medida, é inevitavelmente interpretado pelo sujeito como carregando uma mensagem. Isso é parte de um contrato simbólico, do qual o dispositivo faz uma primeira comunicação, pois, que fique claro: não estamos falando da regra em si - esta pode e deve ser logo de início enunciada -, mas daquilo que ela carrega na sua própria estrutura, por assim dizer, no seu próprio "dna".
Assim, quando oferecemos um método em resposta ao endereçamento transferencial que nos é feito, isto já significa um primeiro movimento de transformação dos dados trazidos para o encontro. O clínico propõe uma determinada forma para acolher o enigma em sofrimento, para receber a questão que ele carrega. O dispositivo, então, precisará ser organizado e pensado de modo a tentar positivar a negatividade que se mostra em ato pelo paciente, sem palavras, para torná-la captável, para que ela produza signos e significantes apreensíveis pelo terapeuta e pelo sujeito.
Em discussões anteriores (Coelho Júnior, 2019; Schor, 2017), chamamos a atenção para o fato de que a matéria-prima psíquica, isto é, a experiência bruta, não metabolizada, não categorizada nem localizada pelo psiquismo, não pode, por essas próprias razões, ser diretamente integrada por ele. Nessa medida, ela permanece, como dissemos, em busca de um mediador para sua elaboração. Podemos considerar como uma das formulações mais diretas acerca dessa problemática o conceito de função alfa, de Bion (1967), pensado como condição de transformação dos elementos beta, impensáveis e inassimiláveis pelo psiquismo, em elementos alfa, capazes de se tornar experiência psíquica por meio dos recursos de contenção e de sonho do psiquismo materno.
Temos, daí, que a organização da realidade psíquica depende, desde seus níveis mais fundamentais, da transferência de seus conteúdos para um objeto externo, e isso é tão mais verdadeiro quanto menos "digeridos" forem esses conteúdos. Nesse mesmo sentido, a transferência de elementos do psiquismo para situação clínica aparece como um processo necessário ao trabalho de simbolização que poderá ser realizado por meio do dispositivo, como condição de metabolização da realidade psíquica do sujeito.
Desde Freud, sabemos que a transferência se define como um fenômeno em que elementos inconscientes retornam tomando emprestada sua forma atual da situação na qual ela se produz. No entanto, essa tendência constante do psiquismo à atualização dos seus próprios impasses, que está na origem do fenômeno transferencial, é, como bem nos mostra Freud, tanto uma maneira de possibilitar a apropriação subjetiva quanto de evitá-la. É tanto um impulsionamento da simbolização quanto uma evitação desta. Isto porque, ao mesmo tempo em que almeja uma "melhor solução" para o recalque ou para a clivagem que precisou operar no sentido de assegurar a integridade de sua estrutura, o eu vive ansioso, por vezes aterrorizado, pelo temor de um novo mergulho no estado traumático que os produziu. Isto porá em ação um conjunto de defesas, mobilizadas na tentativa de proteger a subjetividade do retorno do estado agonístico inerente ao contexto traumático. Caberá, então, ao trabalho clínico fazer a balança pender para o lado da simbolização e da apropriação subjetiva.
Desde a clássica teorização de Bleger (1985), é fato notório que, apesar de ser necessária uma distinção entre processo e não processo para que se possa configurar um campo de trabalho analítico, são justamente nos elementos não dinâmicos do enquadre que tendem a estar depositados os aspectos mais primitivos, menos simbolizados, do psiquismo do paciente. Se, inegavelmente, a condução do tratamento depende da imobilização de certas variáveis para delimitar o campo dentro do qual um jogo possa se dar, é igualmente verdadeiro que, para a análise prosseguir além de certo ponto, o próprio enquadre, não raro, precisará ser tomado em questão para que dali possam ser desalojados e analisados aspectos nele escondidos, mantidos em estado de latência.
O que assim se torna patente é que as mesmas forças necessárias para sustentar e impulsionar o processo analítico são capazes de bloqueá-lo quando se convertem em resistências compartilhadas pela dupla, fixando-se numa compulsão à repetição, devido à ausência da margem de trabalho necessária à simbolização dos aspectos depositados no enquadre. Encontramos aí uma concepção dialética do enquadre analítico, que repousa sobre um paradoxo: ele é não só condição da análise, como, em vez disso, uma resistência a ela (Figueiredo, 2014).
Isto se apoia na realidade que encontramos na clínica, em que a transferência para o campo analítico do que precisa ser simbolizado depende frequentemente, e paradoxalmente, de que os próprios parâmetros, regras e limites que condicionam sua comunicação sejam colocados em xeque, e mesmo, em certos casos, subvertidos.
A noção de situação analisante, trazida por Jean-Luc Donnet (2005), enfatiza a vitalidade operante que deve sempre caracterizar o arranjo clínico. O dinamismo nele implicado é o que o leva a se transformar não somente ao longo da história da psicanálise, mas também ao longo da história de um tratamento.
Dessa forma, a noção de elasticidade da técnica, tão largamente explorada por Ferenczi (1928/2011), deve ser estendida para se referir à elasticidade da situação analisante como um todo (suas regras e limites), e não apenas ao atendimento dos assim chamados "casos difíceis", para que nela caibam e possam ser elaboradas as tensões que a caracterizam em sua dialética operativa.
Como bem ilustra o caso de Sabrina, é, por vezes, pela reconstrução do que se encena da história traumática ao redor da situação clínica, e pela explicitação das questões simbolizantes do dispositivo, que se pode esperar manter ou restabelecer as condições do trabalho. Ocorre que, com isso, o atravessamento de situações-limite se torna inevitável. Trata-se de "colocações à prova" que, quando da comunicação dos níveis mais primários do processo de simbolização, se tornam inerentes ao processo transferencial.
Ora, evidentemente, a reação mais natural e imediata de um clínico perante a recusa de um paciente em permitir que ele entre na sala seria ver-se diante de um impasse. Não existe consulta sem médico, nem análise sem analista, podemos dizer. Pois, justamente: na cabeça de Sabrina, não existe família sem pai, e o que a criança traz para sua análise naquele momento é o enorme problema de como se organizar diante da ausência de alguém num contexto que até ontem era definido por sua presença! Digamos que, se a problemática enfrentada por Sabrina nesse ponto de sua história pudesse ser traduzida em seu psiquismo em um nível consciente, muito provavelmente, ao presenciar a perplexidade de seu analista ante a sua exclusão da sala, ela teria dito algo como: "Está vendo?! É disso que eu estou falando!". Dessa forma, podemos assumir que, no momento em que se via, o melhor uso que a menina pôde realizar de seu espaço de análise se fez, justamente, por meio do "entrave" que lhe impôs.
Assim, não estamos tratando aqui de qualquer tipo de recusa ou negação da importância do pai dentro do quadro familiar. Muito pelo contrário: Sabrina e seu analista trabalhavam, naquele momento, exatamente para que seu psiquismo não precisasse chegar a uma tal organização defensiva. Tratava-se, ali, da árdua tentativa da criança em encontrar uma solução para um problema que vinha lhe custando doses altíssimas de ansiedade.
Isso tem uma importância crucial, também, na medida em que conhecemos muitos vértices teóricos e interpretativos que tenderiam a atribuir ao gesto de Sabrina um significado sintomático, ou mesmo de ataque ao enquadre. Em nosso entendimento, esse seria um equívoco grave, que a colocaria em uma situação profundamente angustiante e sem saída do ponto de vista simbólico. Considerando o plano simbólico e transferencial em que tudo se dava naquele momento, não acolher a demanda da menina seria mais ou menos como dizer a ela: "Ou você aceita o desmentido de que seu pai está onde você sabe que ele não está, ou carrega a culpa por tê-lo deixado, ou o que dele esteja sendo representado nesse contexto, fora de sua família." Entendemos que a recusa em participar desse teatro inusitado e com ele ajudar Sabrina a encontrar uma solução para seu dilema significaria deixar tudo em seu colo, atribuindo a ela uma condição de onipotência e mesmo de responsabilidade absolutamente incompatível com sua realidade psíquica, o que iria no sentido, não da simbolização, mas da cisão e enquistamento das questões, que, dessa maneira, permaneceriam sem possibilidade de movimentação psíquica.
A questão clínica enfrentada por Marion Milner (1952/1991) quando da formulação da noção de meio dobrável, aliás, não foi outra que não essa. A partir dos entraves e insucessos que a autora viveu ao tratar como agressividade manifesta as tentativas de seu pequeno paciente de reencontrar uma via simbólica para o estabelecimento de trocas com o mundo externo, Milner passou a apontar com muita ênfase o grave risco de se interpretar precipitadamente como tirania as exigências de um paciente no contexto de análise, questão que se tornou central em seu debate com Melanie Klein na década de cinquenta.
Embora se trate de uma conjuntura que, como tudo em se tratando do encontro clínico, é imprevista, a situação com que nos deparamos em meio ao tratamento de Sabrina não pode ser pensada como dissociada da postura do analista, e do modo com que o enquadre é proposto. A disponibilidade e abertura para uma identificação de base com as questões do sujeito, bem como a organização de um enquadre que de muitas maneiras manifeste essa disposição, convidam a isso. Por suas propriedades, o enquadre convoca o psiquismo para condensar ali seu processo simbolizante, em razão do que tudo ali se torna mensagem, tudo pode ser entendido como sofrimento à espera de simbolização.
Cassorla (2016) chama nossa atenção para o fato de que, quando o vínculo transferencial é capaz de garantir a tais processos seu devido suporte, a tendência que frequentemente se observa é de que o paciente vá "forçando" gradativamente os limites da função continente do espaço analítico, no sentido de trazer cada vez mais elementos de suas experiências traumáticas para dentro do campo transferencial.
Anzieu (1975) já havia proposto a hipótese de que a tópica psíquica se projetava sobre o espaço analisante. De modo semelhante, Erikson (1972) considerava o jogo da criança como um desenvolvimento analógico de seus processos psíquicos. Trabalhos como esses concorrem na estruturação de uma teoria da transferência do funcionamento do aparelho psíquico para o dispositivo clínico, para os diferentes componentes concretos e espaçotemporais desse dispositivo. Essa transferência se define pela utilização do dispositivo como algo que serve à materialização dos processos psíquicos do sujeito. Isso vai diretamente ao encontro dos fundamentos que definem o conceito de meio maleável, lançado por Milner e largamente desenvolvido por Roussillon (2006, 2011, 2019).
Tudo o que está sendo colocado aqui implica que, uma vez instaurado, o dispositivo também será objeto de significação e simbolização - conforme vai sendo apresentado, escutado ou interpretado - de diferentes maneiras. Pensamos que um dos modelos que bem expressa a lógica aí subjacente é o do jogo do rabisco winnicottiano (Winnicott, 1971/1984), pois o significado de nosso gesto/proposta frente ao paciente só irá advir segundo a forma com que ele puder "completar" o rabisco que lhe oferecemos.
Uma das consequências do que estamos apontando é que o lugar do encontro clínico tende a se tornar "sagrado", já que fragmentos do psiquismo vão se mesclando a objetos ou particularidades do dispositivo que, com isso, passam a representá-los no decorrer dos encontros, o que ajudaria a explicar certas vivências "catastróficas" quando acontecem modificações concretas no espaço de atendimento. O mesmo princípio nos impõe a abertura à comunicação de ansiedades primárias que se manifestam, como dissemos, estruturando os elementos materiais, temporais e espaciais do enquadre clínico segundo sua forma própria.
Certa vez, um rapaz em seus trinta e poucos anos, em análise havia mais ou menos um ano, tem com um de nós uma primeira sessão após o retorno das férias. Entre os conteúdos logo de início trazidos para a conversa, resolve comentar: "Esse vaso não estava aí antes", com uma expressão nítida de desconfiança e estranhamento, se referindo a uma cerâmica que permanecia sobre a escrivaninha do consultório fazia anos. Frente a isso, o analista observa: "Puxa, Álvaro, vejo como a desconexão é difícil para você. É como se, de repente, você se pegasse em dúvida sobre se eu sou a mesma pessoa de quem você se despediu antes das férias." A isso, seguiu-se um choro copioso, e inédito até aquele ponto da análise.
O que queremos apontar com isso é, principalmente, a modalidade de transferência que ali se realizava. Tudo indica que não estamos aí diante de um fenômeno neurótico, em que uma ansiedade de separação inconsciente se desloca para a representação do objeto-vaso, sobre a qual uma insegurança se projeta, disfarçada em relação aos representantes reprimidos a que se ligava inicialmente. Tudo indica que a alucinação negativa que se faz sobre a presença do vaso é uma das primeiras formas de apresentação de uma ansiedade primária que se manifesta estruturando os elementos materiais, temporais e espaciais do enquadre clínico segundo sua forma própria. Seria diferente se o paciente houvesse se referido aos elementos do setting desde um plano simbólico, a partir de representações de sua experiência que se reconhecem como tais, declarando, por exemplo: "Nossa, que estranho voltar aqui depois das férias!"; ou: "Senti falta de nossas sessões nesse período!". Mas não. O que ele diz é: "Esse vaso [concreto ] não estava aí [espaço ] antes [tempo ]." Nesse momento, é como se o psiquismo do analisando se desenhasse no encontro a partir do que ele faz com os elementos concretos do enquadre, como um ímã posto sob uma tela com pó de ferro. Esse "desenho" se torna representação para o sujeito sobre si mesmo, com a qual ele se surpreende e se emociona, graças à interpretação do analista, que completa o rabisco, transformando-o em signo da comunicação entre os dois.
Tal como fica expresso em nossa discussão do caso de Sabrina, a relação que o paciente mantém com o dispositivo pode e deve ser considerada como um analisador da história que ele vive ou viveu com o processo de simbolização de suas experiências mais significativas, mais do que como um símbolo ou uma fantasia inconsciente específica.
Nessa direção, o que Roussillon (2019) tem denominado transferência sobre o enquadre aponta que a relação com o dispositivo carrega as marcas da história do sujeito com a simbolização e com seus traumas específicos. A transferência que se faz sobre o enquadre é compreendida, por isso, a partir daquilo que fica impresso nas condições que o sujeito cria para comunicar a si mesmo.
Tudo isso faz do trabalho clínico, como bem sabemos, algo difícil e custoso. Nesse sentido, não desconsideramos, de modo algum, que a atenção clínica requer que um certo número de variáveis seja "imobilizado" o quanto possível para que a nossa escuta e nosso olhar possam se concentrar no processo transferencial.
Retomamos Bleger mais uma vez, que formulou isso em termos de uma distinção entre as dimensões processual e não processual a partir das quais o trabalho se realiza. O enquadre - não processo - seria aquilo que torna o processo psíquico "observável", pois, evidentemente, se tudo varia junto e o tempo todo, torna-se muito mais difícil, quase impossível, a observação do que é significante dentro do propósito definido. Se tudo é figura e nada é fundo, nenhum contraste é produzido para que algo se torne observável.
Nada disso será um problema a não ser que nos esqueçamos de que decidir pelo bloqueio ou imobilização de certas variáveis no e pelo enquadre faz parte da estratégia do encontro clínico, que busca facilitar ou mesmo viabilizar a transferência. Em outras palavras, não podemos perder de vista que o não processo é um processo que optamos por imobilizar, e não um "em si".
O enquadre resulta, portanto, na verdade, de um processo de enquadre. É apenas progressivamente, à medida que uma vinculação vai tornando a transferência organizável e tolerável, que o esboço de um dispositivo estável torna-se possível. Não seria errado afirmar até mesmo que é a estabilidade do vínculo que possibilita progressivamente a organização de um dispositivo estável. E aí nos encontramos numa conjuntura em que a proposição de Bleger precisaria ser invertida, manifestando claramente seu caráter dialético: é o processo do encontro clínico que possibilita o dispositivo se estabelecer como um "não processo", progressivamente conquistado.
Se a transferência é um fenômeno que se situa na intersecção ou na articulação entre a história pessoal e os dados estruturais da situação presente, isto significa que ela irá se alojar, por assim dizer, ali onde uma realidade psíquica particular encontra as condições para sua própria simbolização. A questão não é, portanto, a atualização transferencial - existe atualização transferencial em quase todos os setores da vida. A questão é saber como se pode criar e conservar uma conjuntura relacional na qual o afeto produzido possa ser utilizado no seio da prática clínica.
O encaminhamento desse problema tem diretamente a ver com a necessidade de se manter a diferença entre as primeiras apresentações do afeto na história do paciente, e a re-apresentação que ele encontra na situação clínica, dentro de uma distância e de uma tensão ótimas, suficientes para o trabalho de simbolização. Isso traz a questão do enquadre novamente para o centro da discussão, já que será necessário permitir ao sujeito "arrumar um pouco a casa" de um jeito que lhe faça sentido, e lhe pareça suficientemente familiar. Em termos winnicottianos, falamos da necessidade de não impor ao paciente a diferença entre o seio encontrado e o criado de forma demasiado rápida e abrupta.
A partir do momento em que deixamos de considerar pressuposta, autoevidente, a relação entre o enquadre e aquilo de que é portador no fenômeno transferencial, passamos a enxergar o enquadre cada vez mais como sendo ele mesmo a resultante de um processo. Com isso, elevamos à terceira potência nossa capacidade de analisar o que nele tende a se alojar, se confundir, da história do relacionamento do sujeito com seus objetos. A relação com o enquadre, queremos enfatizar novamente, porta a história dos êxitos e reveses do caminho percorrido pela atividade de simbolização, no qual essa história ganhou, ela também, forma e sentido.
Dessa maneira, o enquadre se torna condição e, ao mesmo tempo, objeto de trabalho. Não uma coisa ou outra, mas uma coisa e outra. Ao enquadre que possibilita o desenvolvimento da transferência subjaz uma transferência com o enquadre, vinculada à "teoria pessoal" do sujeito sobre a simbolização e sobre as formas que esta pôde assumir.
Referências
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Recebido em: 2/11/2020
Aceito em: 13/12/2020
1 O presente artigo faz parte dos resultados da pesquisa de pós-doutorado intitulada O meio maleável como fundamento da simbolização primária: a elasticidade da técnica psicanalítica no atendimento aos sofrimentos narcísico identitários, realizado no Departamento de Psicologia Experimental do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (PSE-IP-USP), no Laboratório Interinstitucional de Estudos da Intersubjetividade e Psicanálise Contemporânea (LIPSIC), com a colaboração direta do Grupo de pesquisa "Psicanálise Experimental", a quem prestamos nossos sinceros agradecimentos.
2 Os nomes dos indivíduos em que se baseiam as vinhetas clínicas deste trabalho foram alterados a fim de resguardar suas identidades. Com o mesmo propósito, foram modificados ou omitidos, ao longo das narrativas apresentadas, quaisquer dados que pudessem permitir a identificação deles.