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Jornal de Psicanálise

Print version ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.55 no.103 São Paulo July/Dec. 2022  Epub July 08, 2024

https://doi.org/10.5935/0103-5835.v55n103.07 

Tema: Psicanálise em (de)formação

Por uma atualização do conceito de castração1

Por una actualización del concepto de castración

For an update of the concept of castration

Pour une actualisation du concept de castration

Vanessa Chreim2 

2Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). São Paulo


Resumo

Este artigo propõe uma reformulação do conceito de castração, articulando-o com o conceito de limite formulado por Green - como campo de conexão e transformação, e não apenas de separação. Com base nas contribuições de Clavreul e Aulagnier-Spairani, revisitamos a obra freudiana interrogando o que significa admitir a castração e em que condições ela se torna inadmissível. São diversas as facetas da castração e dizem respeito a toda forma de ameaça ao narcisismo, tais como a incompletude, a alteridade, o desamor, o desamparo e a finitude. Este trabalho propõe reflexões sobre as noções de função paterna e função materna, à luz da psicanálise contemporânea, a fim de pensar no sofrimento psíquico com que deparamos atualmente na clínica e nos fenômenos culturais.

Palavras-chave: castração; recusa; limite; narcisismo; psicanálise contemporânea

Resumen

Este trabajo propone una reformulación del concepto de castración, articulándolo con el concepto de límite formulado por Green - como campo de conexión y transformación, y no solo de separación. A partir de los aportes de Clavreul y Aulagnier-Spairani, retomamos la obra de Freud cuestionando qué significa admitir la castración y en qué condiciones se vuelve inadmisible. Hay varias facetas de la castración y se refieren a todas las formas de amenaza al narcisismo, como la incompletitud, la alteridad, el desamor, la impotencia y la finitud. Este artículo propone reflexiones sobre las nociones de función paterna y función materna, a la luz del psicoanálisis contemporáneo, para pensar el sufrimiento psíquico que enfrentamos actualmente en la clínica y en los fenómenos culturales.

Palabras clave: castración; desmentida; límite; narcisismo; psicoanálisis contemporáneo

Abstract

This paper proposes a reformulation of the concept of castration, articulating it with the concept of limit formulated by Green - as a field of connection and transformation, and not just separation. Based on the contributions of Clavreul and Aulagnier-Spairani, we revisit Freud’s work questioning what it means to admit castration and under which circumstances it becomes inadmissible. There are several façades of castration, and they concern every form of threat to narcissism, such as incompleteness, otherness, lovelessness, helplessness and finitude. Finally, this article reflects on the notions of paternal function and maternal function, in the light of contemporary psychoanalysis, in order to think about the psychic suffering that we currently face in the clinic and in cultural phenomena.

Keywords: castration; disavowal; limit; narcissism; contemporary psychoanalysis

Résumé

Ce travail propose une reformulation du concept de castration, en l’articulant avec le concept de limite formulé par Green - comme champ de connexion et de transformation, et pas seulement de séparation. À partir des apports de Clavreul et d’Aulagnier-Spairani, nous revisitons l’œuvre de Freud en interrogeant que signifie admettre la castration et dans quelles conditions elle devient inadmissible. La castration a plusieurs facettes et elles concernent toutes les formes de menace au narcissisme, telles que l’incomplétude, l’altérité, le désamour, l’impuissance et la finitude. Cet article réfléchit sur les notions de fonction paternelle et de fonction maternelle, à la lumière de la psychanalyse contemporaine, afin de penser la souffrance psychique qui nous confronte actuellement dans la clinique et dans les phénomènes culturels.

Mots-clés castration; déni; limite; narcissisme; psychanalyse contemporaine

Introdução

Em um mundo dito “sem limite”, onde o sujeito se pretende onipotente e se torna intolerante, interrogamo-nos sobre as diversas formas de relação com a castração. Em nossa clínica, fenômenos ligados à impulsividade, às adicções e à precariedade das funções de simbolização têm nos inquietado. Nesse contexto, as questões teóricas e clínicas da recusa (Verleugnung)3 e da admissão da castração podem ser muito preciosas e potentes se forem atualizadas a partir das proposições da psicanálise contemporânea, que repensa a noção de limite como campo de conexão, e não apenas de separação ou interdição.

A partir da clínica dos pacientes chamados fronteiriços, Green (1976/2017b) usa o termo “limite” para cunhar um conceito central em sua concepção de aparelho psíquico. O autor considera o limite como um espaço de fronteira - e não como uma linha divisória estanque -, onde ocorrem processos de transição e transformação na relação entre eu e o outro, entre corpo e psique, entre instâncias psíquicas, entre realidade e fantasia, entre interno e externo. Em sua formulação, Green se apoia nas proposições de Winnicott (1951) a respeito dos fenômenos transicionais e da zona intermediária, que nos remete não apenas à separação, mas também a ligação, encontro e conjunção. Esta perspectiva considera que, para estar separado é preciso ter estado junto, ou seja, para tolerar a ausência e a diferença é preciso contar com uma presença viva e com a confiabilidade do vínculo.

A partir deste paradigma dos limites propomos pensar que a recusa da castração não se dá apenas por falta de interdição, proibições e barreiras no laço entre eu e o outro, mas sobretudo pela dificuldade de estabelecer conexões que enlaçam o sujeito no vínculo afetivo. Tendo isto em vista, é fundamental pensar que esse tal “mundo sem limites” é também um mundo sem pontes, o que traz implicações teóricas, clínicas e éticas.

O conceito de castração continua sendo valioso para pensar no funcionamento psíquico e nos processos de subjetivação, entretanto, quando se restringe apenas à admissão da diferença anatômica entre os sexos, a reflexão se torna obsoleta e empobrecida. Certamente, não podemos tomar a obra de Freud como atemporal, mas nem por isso precisamos invalidar toda sua contribuição.

No que se refere às indagações a respeito da feminilidade e da masculinidade, não concordamos com Freud quando ele afirma que “a anatomia é o destino” (1924/2011c). A clínica nos revela que a lógica infantil que organiza o mundo entre fálicos e castrados pode persistir mesmo na vida adulta, mas não se restringe à diferença entre os sexos. O sujeito atribui o caráter fálico a qualquer traço que aos olhos de si ou dos outros esteja imbuído de maior valor narcísico, o que envolve aspectos culturais, históricos e transmissões inconscientes transgeracionais. A questão da maternidade, por exemplo, é considerada um atributo potente da mulher em alguns círculos sociais, nos quais a infertilidade pode ser um sinal de vergonha e inferioridade. No contexto histórico em que Freud escreveu seus textos, a equação entre pênis, falo e bebês encontrava respaldo nos valores culturais da época. Porém, na contemporaneidade, especialmente no mercado de trabalho, ser mãe pode ser encarado como uma menos valia no momento da contratação e até ser motivo de desprezo de outras colegas mulheres que optaram por não ter filhos.

No âmbito social e cultural, pode-se temporariamente ocupar o lugar fálico, ou seja, uma posição de valor, de sedução, de encantamento, de prestígio e de poder. Uma mulher, uma criança ou mesmo um idoso pode ser fálico quando tem uma grande influência sobre o desejo dos demais. O que define este atributo imaginário é o campo dos relacionamentos onde o sujeito está inserido, e abrange diversas características diferentes, muito além da anatomia ou da fisionomia, e é um constructo em transformação constante.

Por sua vez, no âmbito da perversão, pensar na recusa como não admissão da diferença entre os sexos também não é suficiente para esclarecer os diversos fenômenos com que nos deparamos. Se assim fosse, a perversão não seria um tema tão inquietante, porque se expressaria na esfera privada da vida erótica do sujeito, e não como forma de laço social violento e ao mesmo tempo tão frágil.

Portanto, é necessário formular novas respostas às seguintes questões: o que significa admitir a castração, por que ela é importante para o funcionamento psíquico e em que condições ela se torna inadmissível?

Jean Clavreul (1990) nos permitirá um olhar renovado ao texto freudiano: para o autor, o centro do Complexo de Castração não é o objeto da descoberta - a ausência de pênis nas mulheres -, mas a mudança de posição subjetiva perante o saber e a sexualidade, entre tantas outras dimensões da alteridade e incompletude, que ferem o narcisismo e sua pretensa onipotência, mas que também são organizadoras do psiquismo. As facetas da castração são múltiplas e nos atravessam desde o início da vida, a partir do psiquismo de nossos pais e mesmo para o bebê recém-nascido, que não está livre de viver experiências de frustração, ainda que possa contar com a consistência do ambiente e com cuidados suficientemente bons.

Propomos repensar a fantasia de castração articulando-a à formulação de Green sobre a noção de ausência: A ausência não comporta nem perda nem morte. A ausência é um estado intermediário, a meio caminho entre a presença e a perda. Um excesso de presença e temos a intrusão, um excesso de ausência e temos a perda” (Green, 1976/2017b, p. 134).

Como veremos, a admissão da castração envolve uma elaboração entre o medo da perda e a reinterpretação da ausência: é a admissão de que sentimos falta de algo que na verdade nunca existiu - o falo. Nesse processo de simbolização, o campo do desejo articula a falta e a fantasia, e então é possível admitir que nunca existirá nada capaz de nos satisfazer completamente, desde que sobreviva um campo de ilusão onde se pode almejar e fazer de conta que é possível recuperar a plenitude. É isso que permeia o campo do sonhar e do brincar, da amizade e do apaixonamento, da criatividade, do trabalho, da cultura, das crenças, dos ideais e mesmo das projeções narcísicas sobre o passado e o futuro. Por isso, para Pinheiro (1999), a castração será sempre admitida entre aspas.

A castração como fantasia

Segundo Freud (1925/2011a), quando o menino vislumbra o genital feminino pela primeira vez, ele é tomado por uma tempestade de afetos, despertados pela fantasia de castração. Ela deriva de uma outra fantasia, a do primado do falo, ou seja, a crença de que todos os seres humanos têm o mesmo tipo de genital e, portanto, se a menina não tem um pênis, é porque foi castrada. Quando o menino olha para o genital feminino e não encontra o que esperava - um genital como o seu -, ele infere que a mulher foi punida, como se pensasse “tinha algo aí que foi tirado”. Esta é a fantasia de castração: uma interpretação a respeito da ausência de pênis nas mulheres.

Assim, a partir deste encadeamento de percepções e fantasias, o menino inferiu que a castração da mulher é resultado de um castigo, o que desperta o medo de que ele também possa vir a perder seu genital. Para Freud (1925/2011a), a reação infantil inicial frente a essa terrível conclusão é a recusa (Verleugnung) e o descrédito a essa ameaça; a criança ainda não questiona suas próprias teorias a respeito da sexualidade e preserva a crença de que as mulheres têm pênis, mas algumas o perderam.

Mas por qual motivo a criança resiste a se questionar? Clavreul (1990) destaca que o fato de fazer uma descoberta defronta a criança com o não-saber, com sua própria ignorância a respeito da vida e de si mesmo. Eis aqui uma importante ferida narcísica: a impermanência de nossas teorias sobre o mundo, a admissão de que as verdades são sempre provisórias e de que nossas crenças podem estar equivocadas. Contudo, é isso o que permite o processo de conhecimento.

Há ainda outro motivo que leva a criança a preservar a crença no primado do falo: como afirma Freud (1923/2011b, p. 174), “Já é um obstáculo para isso a sua suposição de que a ausência de pênis na mulher seria uma consequência do castigo de castração”. Isso significa que, por si só, já é muito custoso imaginar que se possa perder o tão estimado falo, quanto mais supor que todas as mulheres o perderam. Neste primeiro momento, a ausência de pênis remete apenas ao horror, à privação e à punição, e por isso é intolerável; a recusa então, como mecanismo de defesa, vem ao socorro do psiquismo impactado.

Laplanche e Pontalis (2001) enfatizam que a castração não é parte da realidade material - uma vez que à mulher não falta um genital - mas sim uma fantasia. O importante não é a criança acreditar que a mulher tenha ou não um pênis, mas admitir a hipótese de que possa faltar algo à mãe; portanto, trata-se de desconstruir a ilusão da mãe fálica. É assustador pensar que a mãe não se basta sozinha, não pode tudo, não resolve tudo, não é “perfeita e invencível” contra o desamparo, a doença, a morte, a violência e a qualquer outro dos problemas e perigos do mundo.

A fantasia de castração não se restringe à experiência de ver o genital feminino nem à vivência de ser ameaçado de perda de alguma parte do corpo: o que importa é a experiência de se defrontar com a vulnerabilidade e a incompletude, dimensões que nos atravessam desde o início da vida. No entanto, para que esses aspectos inerentes à condição humana possam ser admitidos, é preciso que eles não remetam apenas à falta, mas também à presença: o genital feminino só deixará de estar associado à mutilação quando puder ser articulado com a dimensão do desejo e da alteridade.

A triangulação e o campo do desejo

Segundo Clavreul (1990), a descoberta infantil sobre a diferença entre os sexos não é acidental, mas guiada pelo desejo epistemofílico, ou seja, a criança quer saber sobre a sexualidade. Ao destacar esse aspecto, o autor nos sugere que há um impacto emocional na criança ao flagrar a si mesma como um sujeito desejante, como alguém que busca prazeres, mas depara com frustrações. Essa é uma das facetas da castração com que todos nós temos de lidar: ser atravessado pelo desejo, que será sempre pulsante, e nunca plenamente satisfeito. Da mesma forma, a descoberta da ausência do pênis materno leva a criança a encarar que sua mãe também está inserida no campo do desejo e que não há objeto algum no mundo que a fará se sentir completa, nem mesmo o próprio filho. A criança é desbancada de sua ilusão de ser o falo da mãe, de ser o único objeto de desejo dela, e contra isso todos nós nos defendemos inicialmente.

A criança, curiosa e ignorante quanto à sexualidade da mãe, logo se dá conta de que seu pai já tem um conhecimento sobre isso, e, mais, ele tem um lugar privilegiado no campo dos interesses da mãe. Como propõe Aulagnier - Spairani (2003), o sujeito descobre que “existe um mundo do gozo do qual ele está excluído e ao qual a mãe tem acesso somente através do pai” (p. 49). Essas palavras da autora nos permitem vislumbrar o desenho da triangulação que se forma com base nas revelações acerca do desejo da mãe. É essa articulação que dá sustentação a que a vagina seja interpretada pela criança como presença que causa desejo do pai, como um outro órgão genital que também está investido de valor narcísico. Assim, o genital feminino passa a ser algo que atrai, e não mais algo que gera repulsa e medo - como era inicialmente na fantasia de castração, em que a ausência de pênis era sinônimo de privação, punição ou depreciação.

Aulagnier-Spairani (2003) afirma que a lei do desejo e a lei da filiação são organizadoras de uma dinâmica familiar e dos laços narcísicos. A lei do desejo diz respeito à dimensão fálica no âmbito dos relacionamentos e estabelece que ninguém é o falo ou tem o falo que restitui a plenitude, mas no encontro com o outro podemos reviver alguma experiência similar a ela. Nesse campo de fantasia, que recobre todos os relacionamentos e mobiliza as trocas afetivas com os outros, desenha-se um vínculo de interdependência narcísica, em que o processo de subjetivação se dá entre o desejo de ser amado e a possibilidade de ser fiel ao próprio desejo.

Nos relacionamentos, contudo, também deparamos com a impotência, pois nunca sabemos o que somos para o outro: ciúmes, conflitos, agressividade, infidelidade, decepção e, até mesmo, a doença podem nos separar. Por isso, é imprescindível uma dose de recusa para seguirmos dispostos a investir em novos laços, mesmo sabendo que ser objeto do desejo do outro é uma dimensão evanescente e transitória, como uma dança das cadeiras, em que ora estamos dentro, ora fora; senta-se aqui, numa outra vez ali.

O processo de luto só é possível quando reconhecemos que aquilo que foi perdido nunca será recuperado, mas que são possíveis reencontros na memória, na fantasia ou mesmo em novas experiências de vida que remetam às boas vivências que tivemos anteriormente, ainda que nunca exatamente iguais. Persistimos investindo em novos objetos, apesar das diversas facetas da castração, da inevitabilidade da morte, dos desencontros amorosos, das despedidas e perdas, e até mesmo da possibilidade de insucesso de sonhos e projetos tão ansiados.

Por sua vez, a lei da filiação (Aulagnier-Spairani, 2003) articula-se à lei do desejo, organizando o campo dos relacionamentos familiares. Ela também implica renúncias e desilusões, porém, confere uma possibilidade de inserção no laço social: a lei da filiação estabelece que a criança é fruto da sexualidade dos pais, e não a causa. O filho ficará de fora da cama do casal parental, mas é necessário dar-lhe um outro lugar, ainda circunscrito ao campo de desejo de seus genitores. As projeções do próprio narcisismo dos pais é que constroem esse solo fundador da identidade da criança.

Nesse contexto, a triangulação não deflagra apenas a interdição do incesto, como um marco de exclusão e de falta, mas também deve ser asseguradora para o sujeito de que, em troca de sua renúncia, ele fará parte do núcleo desses relacionamentos, recebendo amor, carinho, proteção, reconhecimento, e muito mais. Assim, a lei da filiação estabelece um elo simbólico entre as gerações, que envolve separação, mas também conexão.

A grande limitação de algumas perspetivas teóricas sobre a castração, no âmbito do complexo de Édipo, é enfatizar apenas o caráter de exclusão da criança perante o casal parental, menosprezando a importância da inclusão no eixo narcísico da família. É fundamental compreender a filiação com base nessa dupla dimensão, pensando em um laço social em que a exogamia não se confunda com isolamento e pertencimento não se torne radicalismo.

Há, entretanto, situações em que os três polos da relação de filiação não triangularizam, como se os filhos estivessem incluídos na cena primária, participando da vida dos adultos sem proteção nem restrição. Isto se dá quando as intensidades do relacionamento do casal extravasam, intoxicando a dinâmica familiar, como quando a criança presencia agressões físicas ou verbais entre os pais. Nessa dinâmica, a criança está incluída onde não deve e, ao mesmo tempo, abandonada em suas próprias necessidades, tentando sozinha digerir esses excessos. Como se estivessem todos em pé de igualdade, a diferença entre gerações é suprimida, e forma-se uma linha achatada, e não um espaço potencial (Winnicott, 1951/1975).

Por sua vez, há situações em que a dupla parental não se conecta com a criança, seja por desinteresse ou dificuldade de acessar o mundo infantil, por não se reconhecerem nos filhos, ou ainda por se reconhecerem demais e se assustarem com o despertar de suas próprias inseguranças infantis e feridas narcísicas. A conexão entre pais e filhos muitas vezes é perdida, não tanto pela distância física, mas pela distância emocional.

Cada família é atravessada por diferentes formas de transmissão psíquica, por vezes permeadas por não ditos, fantasias inadmissíveis, traumas não representados. Por exemplo, histórias de violência, de guerra, de miséria, de abandono, de perigo, desterro, discriminação e perseguição, influenciam a forma como uma família lida com a alteridade e incompletude. Tais elementos impensáveis ou “ainda não pensados” são indigestos para o psiquismo, que se defende por meio da recusa, blindando-se de aspectos potencialmente traumáticos.

Frequentemente, é isso o que subjaz aos casos de desfiliação radical em famílias rígidas, que apresentam a seus filhos a difícil escolha: ficar e não questionar a transmissão familiar, submetendo-se ao modo de pensar ancestral, ou ousarem pensar diferente e serem expulsos do clã, acusados de traição. São grupos que têm dificuldade de lidar com o não saber, o estrangeiro e a incerteza, e, portanto, sentem-se ameaçados quando seu sistema de crenças é posto em xeque. Por isso, a mudança é combatida com radicalismo e violência, ainda que venha de um de seus próprios filhos.

Declínio da função paterna?

Grande parte do mal-estar contemporâneo tem sido atribuído ao tal “declínio da função paterna”, termo usado com frequência para se referir à dificuldade do sujeito de lidar com os impeditivos que a vida impõe ao seu desejo. A psicanálise contemporânea redesenhou a compreensão sobre a função do pai na família, até mesmo formulando que essas funções ditas “paternas” podem e devem ser exercidas por todos os adultos da família, independentemente do gênero. Ou seja, uma avó, ou a própria mãe da criança, faz aquilo que se chamou “função paterna”. Ainda assim, parece-nos que é insuficiente considerar que a função do pai é apenas ser o castrador, que proíbe a relação incestuosa entre mãe e filho. Precisamos repensar o que é a função paterna e, da mesma forma, o que é a função materna, e como se articulam com o sofrimento psíquico com que deparamos na clínica psicanalítica e nos fenômenos culturais. A dificuldade de lidar com a castração, com a frustração, com a alteridade, com os limites, não está ligada especificamente à falha de função paterna ou materna, mas à relação entre elas.

Muitas vezes, na psicanálise, faz-se referência ao terceiro como o lugar do excluído, em que a criança fica de fora da relação sexual entre os pais. Outras vezes fala-se do terceiro que proíbe, no qual o pai faz o papel de separar mãe e filho. Resgatando as contribuições de Winnicott (1951/1975), podemos conceber o terceiro em sua função de conexão, diferenciação e criação, como no objeto transicional, que não é nem a mãe nem o bebê, mas algo novo criado no encontro entre eles.

Por sua vez, quando Green nos fala de processos terciários, do terceiro analítico e mesmo do pai como terceiro presente na relação entre mãe e filho, ele nos permite retomar essa dimensão essencial na triangulação que circula nos laços sociais e que confere tridimensionalidade à função de simbolização. Sobre a relação mãe-bebê, Green (1974/2017a) afirma: “É verdade que o pai encontra-se ausente dessa relação, mas dizer que ele está ausente significa que ele não está nem presente, nem é inexistente, mas que possui uma realidade potencial” (p. 92). Por realidade potencial compreende-se que não é preciso haver uma terceira pessoa na dupla mãe-bebê, mas que todo o movimento de presença e ausência é atribuído, no psiquismo da criança, à existência de outro interesse da mãe. É a sombra desse terceiro que permite uma separação saudável entre ela e seu filho, para que a presença não se torne uma intrusão, e a ausência não se torne abandono.

Da mesma forma, Winnicott (1963/1983b) enfatiza que nos primeiros meses de vida é fundamental que o pai possa oferecer sustentação para a saúde mental da mãe, para que ela possa desempenhar suas funções no cuidado com o bebê. Nesta perspectiva, o pai facilita os encontros suficientemente bons da dupla mãe-bebê; é um terceiro que cuida, conecta e oferece sustentação. É ele que vai oferecer o colo para seu filho para que a mãe possa ir tomar banho; é verdade que ele não é a mamãe, mas ele é um substituto suficientemente bom quando oferece cuidados similares aos que a mãe dispensa. Assim, a alteridade é vivida num pano de fundo de continuidade.

A falha dessas dimensões da função paterna impacta o psiquismo da criança, pois, se a mãe não pode vivenciar a regressão à dependência com seu próprio ambiente emocional, ela não terá condições de identificar-se com seu bebê e atender às necessidades dele (Winnicott, 1963/1983b). Assim, concordamos com Winnicott quando afirma que não podemos olhar um bebê sem a sua mãe, mas também não é possível olhar para a mãe sem olhar para seu entorno. Segundo o autor: “Isso é terrivelmente óbvio, mas, apesar disso, precisa ser dito” (1963/1983b, p. 81). Repensar a função paterna nos permite sermos mais justos com as mães, aquelas que mais frequentemente são acusadas e responsabilizadas por adoecer seus filhos.

Nesta reflexão sobre a função paterna na atualidade, a cultura e o Estado também devem ser incluídos. É essencial considerar as questões de filiação também em nível social, sobretudo em um país como Brasil, em que a maior parte das famílias é monoparental e chefiada por mulheres, que frequentemente estão sozinhas na criação de seus filhos, têm de enfrentar um mercado de trabalho que dificilmente as acolhe após a licença-maternidade, e em que o acesso a creches e outras instituições educacionais não é tão simples.

Função materna e a presença viva

Quando vemos uma criança fazendo um uso excessivo da tecnologia, ou mesmo fazendo birra, por vezes tendemos a dizer que ela não sabe lidar com a frustração. Mas será que ela sabe brincar de outra coisa? Sabe ficar sozinha consigo mesma, na presença dos outros, como propõe Winnicott (1958/1983a)? Sabe conversar e interagir socialmente? Precisamos nos perguntar se houve um adulto ou meio cultural que se dedicou a alfabetizá-la na linguagem dos afetos - e não apenas a ler e escrever - e ajudá-la a desenvolver recursos para lidar com as facetas da castração: perdas, faltas, privações, impotência, decepções amorosas e até a mortalidade. No “mundo sem limites”, a advertência, a proibição, a punição ou a privação não bastam para reeditar a relação do sujeito com o mundo: é preciso conexão. Portanto, indagamos se a dificuldade do sujeito de lidar com a frustração e a espera se dá também porque lhe falta o senso de continuidade do ser e a confiabilidade no vínculo com o outro. Para compreendermos as dificuldades de lidar com a castração, temos de levar em conta que é no campo dos encontros e desencontros da relação entre mãe e bebê que primeiramente se põe o jogo de presença e ausência, que envolve a possibilidade de separar-se, de ser si mesmo e de reconhecer a existência do outro.

Podemos considerar que há uma dimensão dos adoecimentos psíquicos da clínica contemporânea que poderiam estar ligados às falhas da dita “função materna”,4 termo que tem se referido ao investimento libidinal, à formação do solo narcísico e identitário, e ao cuidado tanto do corpo quanto do psiquismo do bebê, indispensáveis para a constituição psíquica. Na clínica, constatamos que pacientes impulsivos, imediatistas, pretensamente onipotentes, possuem um psiquismo esburacado, malformado ou assolado pelo trauma. São sujeitos de um narcisismo tão ferido e vulnerável, que se defendem radicalmente contra as facetas da castração.

As dificuldades de triangulação não são restritas ao campo da perversão, mas permeiam outros quadros clínicos, como nas relações fusionais e mesmo nos casos-limite. Green (1974/2017a) propõe que tais pacientes se organizam com base em uma bitriangulação, e neles o triângulo não é formado pela mãe e pelo pai como dois objetos distintos, mas pela cisão de um mesmo objeto entre bom e mau, em relacionamentos permeados por idealização e ao mesmo tempo por objetos que aterrorizam. A angústia é simultaneamente de invasão e de abandono, num abismo entre duas cenas psíquicas terríveis: “Mamãe não está, me abandonou, mas, se ela voltar brava e enlouquecida, pode ser ainda pior”. Assim, quando a ausência remete a uma perda da ordem do irrecuperável e insubstituível, e a presença é violenta, tanto as separações como os encontros têm gosto de trauma. O psiquismo fica tomado pelo potencial de catástrofe, de repetição do desastre e, por vezes, pelo sentimento desesperador de vazio.

Em nível cultural, identificamos também a desarticulação no jogo presença e ausência, como no que Bauman (2004) chamou de amor líquido, em que os laços sociais têm uma fluidez excessiva, caracterizados por rupturas, descontinuidade e descartabilidade. Os pacientes nos relatam vivências de constante desinvestimento de seus relacionamentos, em que eles rapidamente abandonam ou se sentem abandonados. A sensação de futilidade, vazio ou irrealidade é reforçada por esses desencontros traumáticos e pela dificuldade de estabelecer vínculos confiáveis e trocas afetivas significativas. Este mal-estar parece permear diversas dimensões do viver: nos relacionamentos amorosos, familiares, profissionais e mesmo na relação com o próprio corpo, em que tudo logo se torna irrelevante, insuficiente e entediante.

Assim, nessa inconstância, a velocidade da impermanência impele o sujeito ao consumo e comprime o tempo de se deixar transformar pela experiência. Ele é facilmente seduzido pelas miragens ofertadas pela cultura contemporânea, que prometem um futuro em que será invencível, um mundo vindouro de satisfações plenas e imediatas, onde não haverá mais castração. Como um adicto correndo atrás de um paraíso que nunca chega, torna-se cada vez mais intolerante e não consegue saborear os pequenos oásis que a vida oferece.

Do terceiro ao terciário

Encarar a transitoriedade e as mais duras faces da castração são desafios para a vida inteira, e, por vezes, precisamos da ajuda dos outros para lidar com o frio na espinha que pode vir a nos congelar. Mesmo com um ambiente suficientemente bom, nunca estamos blindados de dores, sofrimentos, tragédias, perdas e catástrofes que a vida pode nos apresentar. No entanto, quando o arrimo narcísico é falho e as funções de representação estão prejudicadas, a castração se torna inadmissível, pois remete a uma perda irrecuperável, inelutável e insubstituível, uma punição, uma mutilação, uma ferida aberta.

Na relação analítica, é possível ajudar o paciente a reinterpretar a castração e conviver com ela, apesar dos lutos anunciados que permeiam o viver. Assim como na triangulação entre pai, mãe e filho, a relação com o analista é marcada pela exclusividade e também pela exclusão. Exclusividade porque vive um vínculo que é único, e do qual outras pessoas não fazem parte; exclusão porque, quando termina o horário da sessão, o analista se volta para outros interesses, dos quais o paciente não faz parte. Quando há confiabilidade no vínculo, essa exclusividade é vivida como presença - e não intrusão ou fusão - e a exclusão é vivida como ausência - e não como abandono ou ruptura.

Nesse contexto, o enquadre interno do analista e os aspectos objetivos do setting - horários, honorários, local de atendimento - fazem a função do terceiro que une e ao mesmo tempo distingue analista e paciente. No psiquismo do analista, o enquadre interno é uma alteridade simbólica e simbolizadora, que permite a metabolização do encontro analítico para que ele não se torne uma folie à deux. Este é um dos atravessamentos da castração que perpassam o psiquismo do analista e permitem uma baliza ética para que ele desenvolva seu trabalho entre os limites e as possibilidades do encontro analítico.

Além disso, o enquadre cria um espaço que recupera os processos terciários (Green, 1979/2017c), que conectam os processos primários e secundários, e possibilitam a metabolização dos elementos psíquicos em um processo de ligação e separação, de conexão e distinção entre impressões, percepções, representações, memórias, fantasias e outros. São os processos terciários que preservam o bom funcionamento dos limites, mas com base em um movimento dinâmico, em que as defesas operam como reguladoras das fronteiras do psiquismo, e, desta forma, permitem a transformação das intensidades e dos excessos potencialmente traumáticos em recursos e reservas antitraumáticos.

No entanto, quando as diversas dimensões da castração são insuportáveis para o paciente, os aspectos da relação analítica que conjugam presença e ausência podem ser vividos como ameaças. Pois, se o encontro com a alteridade é traumático, as mudanças implicam rupturas violentas e a perda do sentimento de si mesmo, e, então, a recusa se interpõe ao processo de transformação e muitas vezes leva à paralisação da análise. Para proteger-se dessas angústias, a defesa pode promover uma blindagem, em que o paciente não admite a intensidade do vínculo criado com o analista e não se deixa afetar por suas intervenções. Essa é uma das formas de se defender do terceiro e do terciário, ou seja, do enquadre e dos efeitos da relação analítica, da diferença e da diferenciação. Nesse funcionamento psíquico, o campo entre os elementos forma um limbo em que não é possível trânsito nem pertencimento aos territórios vizinhos. E, então, o analista precisa ser um diplomata para fazer face a essa defesa sem abolir as estruturas.

Desse modo, o trabalho analítico deve se dedicar a restaurar as funções psíquicas para que a relação com a realidade seja enriquecedora, e não apenas tóxica. O objetivo da análise não pode ser o de abolir a defesa, mas o de reconfigurar seu modo de operar, para que sua ação antitraumática não se converta em asfixia. Não se trata de exercer a função paterna ou materna: trata-se de recuperar os processos terciários e a triangulação, o espaço potencial e a criatividade, sem os quais a castração significa apenas falta, e o terceiro é apenas um intruso que ameaça. Sem isso, a castração se torna inadmissível.

3 Para um aprofundamento sobre o conceito de recusa (Verleugnung), ver o livro Dimensões da Recusa (Chreim, 2021).

4 Recordemos que, segundo Winnicott (1956/1983a), essas funções não precisam ser desempenhadas pela própria mãe do bebê, mas por qualquer pessoa que seja capaz dessa devoção, mesmo alguém de fora da família, como um educador numa instituição de acolhimento.

Referências

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Recebido: 21 de Agosto de 2022; Aceito: 21 de Setembro de 2022

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Este trabalho reproduz algumas ideias apresentadas no livro Dimensões da Recusa (Chreim, 2021) e no trabalho exposto no 28º Congresso Brasileiro de Psicanálise, da Febrapsi, que teve como tema Laços: o Eu e o Mundo e foi realizado virtualmente em 2022.

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