SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.31 issue95Family and autism: literature review in national databasesApresentação e programação do III Simpósio Nacional de Psicopedagogia da ABPp - 2014 author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Services on Demand

article

Indicators

Share


Revista Psicopedagogia

Print version ISSN 0103-8486

Rev. psicopedag. vol.31 no.95 São Paulo  2014

 

RELATO DE CASO

 

Funções executivas em crianças com paralisia cerebral: relato de caso

 

Executive functions in children with cerebral palsy: case report

 

 

Leila Costa dos SantosI; Marselle Montanha Castro de BrittoII

IPsicopedagoga Clínica e Institucional; Especialista em Educação Inclusiva e Pós-Graduanda do Curso de Especialização Avançada em Neuropsicologia, do Departamento de Psicologia da Universidade Federal da Bahia, Salvador, BA, Brasil
IIPsicopedagoga Clínica e Institucional; Especialista em Educação Especial e Pós-Graduanda do Curso de Especialização Avançada em Neuropsicologia, do Departamento de Psicologia da Universidade Federal da Bahia, Salvador, BA, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

OBJETIVO: O presente estudo tem como objetivo verificar e analisar, por meio de uma bateria de testes neuropsicológicos, alterações de funções executivas em duas crianças com paralisia cerebral.
MÉTODO: A atenção e a memória foram avaliadas com medidas neuropsicológicas padronizadas em duas crianças com paralisia cerebral, do sexo feminino, com idades de 9 e 11 anos. Foram utilizados os seguintes testes: Boston Naming Test (Teste de Boston), a fim de avaliar a compreensão da linguagem; Matrizes Coloridas de Raven e Columbia Mental Maturity Scale (Escala de Maturidade Mental Columbia), para a obtenção da medida de funcionamento intelectivo; Blocos de Corsi, para medir a memória visuoespacial e memória operacional; o TAVIS-3, para a atenção visual; e o Trail Making Test (Teste das Trilhas), para verificar flexibilidade cognitiva e atenção.
RESULTADOS: Os achados comprovaram déficits similares de função executiva nas duas crianças com paralisia cerebral, observando-se maiores comprometimentos quanto à percepção visuoespacial, em sustentação de foco atencional e no controle motor, por estar relacionada à condição neurológica da paralisia cerebral. A avaliação neuropsicológica apontou déficits de funções executivas como um dos comprometimentos mais significativos em se tratando de crianças com paralisia cerebral. É bastante comum encontrar déficit cognitivo na maioria dos casos, no entanto, poucos estudos têm delimitado áreas de dificuldades específicas nesses indivíduos.
CONCLUSÕES: Este estudo pode trazer benefícios para um criterioso plano de reabilitação, pois possibilita uma compreensão mais dos déficits de funções executivas, uma vez que é extremamente difícil avaliar o funcionamento cognitivo dessas crianças.

Unitermos: Paralisia cerebral. Neuropsicologia. Funções executivas.


SUMMARY

OBJECTIVE: This study aims to determine and analyze, through a great quantity of neuropsychological tests, changes in executive functions in two children with Cerebral Palsy.
METHODS: Attention and memory were assessed with standardized neuropsychological measures in two children with CP, female, aged 9 and 11 years. The following tests were used: Boston Naming Test to evaluate comprehension of speech; Raven Colored Matrices and Columbia Mental Maturity Scale for obtaining the measure of intellective functioning; Corsi Blocks to measure visuospatial memory and working memory; TAVIS-3 for the visual attention and the Trail Making Test to verify cognitive flexibility and attention.
RESULTS: The findings have shown similar deficits in executive function in both children with CP, observing the greatest impairment as visuospatial perception in support of attentional focus and motor control as it related to the neurological condition of the PC. Neuropsychological assessment showed deficits in executive functions as one of the most significant in the case of children with CP commitments. It is quite common to find cognitive deficits in most cases, however, few studies have defined specific areas of difficulty in these individuals.
CONCLUSIONS: The relevance of this study can benefit a careful rehabilitation plan, since it enables a more detailed understanding of deficits in executive functions, since it is extremely difficult to assess the cognitive functioning of these children.

Key words: Cerebral Palsy. Neuropsychology. Executive Functions.


 

 

INTRODUÇÃO

A paralisia cerebral (PC), também denominada encefalopatia crônica não progressiva da infância, é consequência de uma lesão estática, ocorrida no período pré, peri ou pós-natal, que afeta o sistema nervoso central em fase de maturação estrutural e funcional. Constitui um grupo heterogêneo, tanto no que se refere à etiologia quanto em relação ao quadro clínico, tendo em comum apresentação do comprometimento motor, o qual se junta a outros sinais e sintomas1.

A associação de asfixia pré e perinatal, responsável pelo grande contingente de comprometimento cerebral do recém-nascido, é a principal causa de morbidade neurológica neonatal, que leva à PC, sendo uma das principais causas de morte nesse período.

Apesar da prevenção dos fatores de risco que predispõem à asfixia fetal ou neonatal, a prevalência da PC se encontra aproximadamente entre 2 e 3 por cada 1000 nascidos vivos, embora alguns estudos demonstrem 1,5 por cada 10002.

A expressão PC ainda é bastante utilizada para diferenciar as encefalopatias crônicas progressivas, que provêm de doenças com degeneração contínua. Além disso, a natureza não progressiva define os transtornos causadores da PC, especificando a ocorrência no cérebro em desenvolvimento, o que distingue a PC de outras doenças similares que podem ocorrer em crianças mais velhas ou em adultos decorrentes de lesões adquiridas tardiamente.

Embora a PC seja caracterizada pela disfunção motora, outras alterações podem estar relacionadas a esse transtorno, associado em diferentes combinações a uma série de outros sintomas, tais como deficiência mental, epilepsia, transtornos de linguagem, auditivos, visuais e de conduta1. Assim sendo, apresentam variados padrões de funcionamento intelectivo. Nessa perspectiva, um número significativamente alto de crianças com PC apresenta nível inferior de coeficiente intelectual (QI<50), representado entre 14% a 59% dos casos descritos na maioria dos estudos.

A correlação entre inteligência fluida e as funções executivas reside nos processos cognitivos relacionados à memória de trabalho, definida por Baddeley3, como "um sistema de capacidade limitada capaz de armazenar e manipular informações". A definição do QI se baseia no fato de que "a inteligência fluida refere-se às operações mentais que uma pessoa usa quando está defronte de tarefas novas que não podem ser executadas automaticamente. Essas operações mentais incluem o reconhecimento e a formação de conceitos, a compreensão de implicações, resoluções de problemas, extrapolação e reorganização ou transformação de informações".

Sendo assim, as implicações das alterações de funções executivas em crianças com PC originam-se na complexidade de processos cognitivos que, de forma integrada, permite ao indivíduo direcionar comportamentos a metas, avaliar eficiência e a adequação desses comportamentos, abandonar estratégias ineficazes em prol de outras mais eficientes4.

Estudos consistentes das funções executivas dependem da escolha de um modelo explicativo que procure analisar os resultados a partir de medidas sensíveis capazes de mensurar os diversos aspectos propostos. Assim, este estudo selecionou o modelo de memória operacional de Baddeley3, o qual propõe a existência de um sistema executivo central responsável pelo gerenciamento de informações trabalhando em conjunto com dois outros sistemas: alça fonológica e alça visuoespacial. O primeiro consiste em um sistema de apoio para manutenção temporária de informações verbais e o segundo está relacionado à sustentação temporária visual e espacial5.

O presente estudo buscou investigar as correlações entre memória de trabalho e inteligência fluida. As descrições de desempenho em tarefas de memória de trabalho foram comparadas aos resultados das medidas psicométricas de inteligência. As análises foram realizadas estabelecendo correlações entre funções executivas e inteligência fluida, detalhando o funcionamento do executivo central, a partir de componentes da memória de trabalho: (a) manutenção do nível de ativação das representações mentais; (b) coordenações de atividades mentais simultâneas; (c) monitoramento e supervisão das atividades mentais; (d) atenção seletiva; (e) ativação de informações da memória de longo prazo; e (e) redirecionamento de rotas ou flexibilidade adaptativa, pressupondo que uma análise das funções executivas explica as habilidades cognitivas não preservadas em crianças com PC de forma mais satisfatória do que as medidas psicométricas dos testes de inteligência, embora estejam correlacionadas.

 

MÉTODO

Para esta pesquisa foram selecionadas duas crianças com diagnóstico clínico de PC, citadas como caso A e caso B, ambas do sexo feminino e com a idade de 9 e 11 anos, respectivamente. Os critérios de inclusão para a pesquisa foram exames de imagem (tomografia computadorizada) e autorização de livre consentimento à participação na pesquisa. Trata-se de um estudo experimental, de conveniência e descritivo, com abordagens quantitativa e qualitativa a partir da análise de entrevista semiestruturada com a família (anamnese), testes neuropsicológicos padronizados, e exame de neuroimagem (tomografia computadorizada). As características demográficas estão sistematizadas na Tabela 1.

 

 

Descrição do caso A

A criança A nasceu pré-termo, com idade gestacional (IG) de 28 semanas, de parto normal, com perda de líquido amniótico (oligodramnia), pesando 800 g e medindo 34 cm, com Apgar 7, apresentando icterícia neonatal. Há histórico de um aborto espontâneo anteriormente e nova ameaça nesta gestação com a IG de três meses, gravidez gemelar detectada apenas no momento do parto e com óbito do outro feto. A genitora relatou que foi realizada uma única ultrassonografia, a qual apresentou como resultado desenvolvimento normal. Após o nascimento, a criança foi encaminhada à incubadora, permanecendo internada por um período de um mês. O diagnóstico de PC foi obtido aos dois anos de idade e com sete anos foi encaminhada ao Hospital Sarah, para realização de exames, retornando para nova avaliação, em 2014, aos nove anos de idade. Não faz uso de medicação. Está matriculada na escola regular desde os quatro anos, tem acompanhamento de atendimento educacional especializado no CAPI - Centro de Apoio Pedagógico de Ipiaú, em turno oposto à escola, duas vezes por semana, e faz sessão de fisioterapia uma vez por semana, em casa, com duração de 30 minutos cada sessão, promovida pelo Sistema Único de Saúde (SUS).

Descrição do caso B

A criança B também nasceu pré-termo com 36 semanas de gestação, de parto cesárea, com rotura da membrana 12 horas antes do parto, pesando 2460 g, e medindo 47 cm, perímetro encefálico de 34 cm e Apgar 8. A genitora relatou que, aos 7 meses de IG, sofreu um acidente doméstico, o qual teve hemorragia ocasionada pelo corte da artéria radial, com a presença de desmaio e estado de choque polêmico, suspeita de parada respiratória, amadurecimento prévio de placenta e sofrimento fetal. Anteriormente ao acidente, o acompanhamento pré-natal foi realizado mensalmente, com diagnóstico clínico adequado para idade gestacional (IG) em crescimento uterino e resultados de ultrassonografias também normais. A primeira crise convulsiva ocorreu 40 minutos após nascimento e a segunda, dois dias depois. Permaneceu por dois meses na UTI neonatal, no primeiro com respiração artificial e alimentação endovenosa. A sonda foi retirada com um mês e 45 dias, e aos quatro meses, foi introduzida dieta via oral. Apresentou reflexo gastroesofágico de grau três e ausência de reflexos de sucção e deglutição. Exame de tomografia computadorizada com um mês de idade, com resultado normal. Foi assistida desde os dois meses de idade, com acompanhamento dos serviços da equipe multidisciplinar do Hospital Sarah, com interrupção aos cinco anos de idade. Realizou, no período de 2010 a 2011, sessões de equoterapia. A criança apresentou constantes infecções respiratórias, crises convulsivas frequentes até os três anos, com tempo de 15 a 20 minutos e medicação intravenosa. Faz uso de Trileptal e Urbanil, tendo a mesma posologia nos últimos quatro anos. Está matriculada na escola regular desde os três anos, tem acompanhamento de atendimento educacional especializado no CAPI - Centro de Apoio Pedagógico de Ipiaú, em turno oposto à escola, duas vezes por semana, desde o ano de 2009, faz sessões de fisioterapia duas vezes por semana em clínica particular e tem acompanhamento semanal da fonoaudióloga. Visitas anuais regulares ao oftalmologista.

Instrumentos

A avaliação da compreensão da linguagem verbal foi realizada com o teste de Boston, parte 1 e 2, adaptando os cartões impressos em folha A3 para melhor visualização das crianças. Para avaliação da inteligência foi aplicado o teste Matrizes Progressivas Coloridas de Raven e o Columbia, que avaliam a inteligência e estimam a capacidade de raciocínio geral de crianças de uma forma não-verbal, bastante utilizados em pacientes que não apresentam condições de expressar-se verbalmente, recomendável a sujeitos com dificuldades verbais e/ou motoras e indicado para crianças com PC, lesão cerebral, retardo mental, deficiência visual, dificuldade na fala e perda de audição.

Para a avaliação neuropsicológica das funções executivas foram utilizadas medidas para os domínios de memória e atenção. A memória pode ser avaliada por meio do teste de Cubos de Corsi, que avalia o "span" visuoespacial e a aprendizagem de sequência espacial. Para o teste de atenção foram utilizados o Teste de Trilhas, tarefa A e o TAVIS-3, tarefas 1, 2 e 3 para avaliar a capacidade de atenção seletiva, alternada e sustentada.

 

RESULTADOS

Para a avaliação de linguagem foi utilizado o Teste de Boston, verificando-se que as duas crianças apresentaram índices de compreensão verbal adequados, sendo capazes de completar as tarefas, porém não obedeceram ao critério do tempo estabelecido, em virtude da dificuldade motora (Tabela 2).

 

 

Para a avaliação do QI estimado, foram escolhidos dois testes para a aplicação. No primeiro momento, optou-se pelas Matrizes Coloridas de Raven, e, no segundo, o Columbia. Porém, o funcionamento intelectivo não pode ser quantificado em virtude de algumas limitações na aplicação, onde se constatou ausência de pré-requisitos conceituais básicos (semelhanças e diferenças).

Para as medidas de memória operacional foi utilizado o teste de Cubos de Corsi, verificando-se a impossibilidade de realizar as sequências numéricas apresentadas nas ordens direta e inversa (Tabela 3).

 

 

Nas medidas de atenção observadas na Tabela 4, a criança A, na tarefa 1, obteve desempenho dentro da média, na tarefa 2, apresentou desempenho limítrofe e, na tarefa 3, seu desempenho foi inferior. A criança B, na tarefa 1, obteve desempenho superior, na tarefa 2, apresentou desempenho médio superior e, na tarefa 3, o desempenho foi inferior.

No Teste de Trilhas, as crianças não apresentaram desempenho satisfatório para execução da tarefa.

 

DISCUSSÃO

O principal objetivo deste trabalho consistiu em verificar e analisar, por meio de uma bateria de testes neuropsicológicos, alterações de funções executivas em duas crianças com PC. A avaliação neuropsicológica de crianças com PC não é uma tarefa fácil, o desafio é verificar a lesão cerebral relacionando ao nível de comprometimento cognitivo.

A compreensão das dificuldades só pode ser verificada e sistematizada a partir de testes neuropsicológicos que mensuram de maneira mais específica determinadas habilidades. Os achados dos testes neuropsicológicos comprovaram déficits nas funções executivas, porém os prejuízos nos domínios de memória e atenção possibilitaram criar hipóteses que não puderam ser verificadas, pois os padrões de lesão não foram revelados nos exames de neuroimagem. Para o caso A, as características do quadro clínico estabelecem forte ligação com leucomalácia periventricular (lesão de substância branca) que é bastante característica em crianças prematuras, com diagnóstico clínico de PC, representando entre 62% a 100% dos casos2,6. Por outro lado, os dados sugerem que os prejuízos podem ter ocorridos em diversas áreas do cérebro, tanto de forma difusa, quanto focal, assim como descrito na literatura que lesões no trato anterior à substância branca estão associadas à disfunção atencional e ao funcionamento executivo, como as lesões dos gânglios basais e sistemas funcionais do tálamo podem afetar tanto atenção concentrada quanto as funções executivas4 e dilatações de comissura intra-hemisféricas podem resultar em déficit intelectual2.

Nas análises da criança B, as informações obtidas por meio dos relatórios médicos emitidos na maternidade revelaram que houve necessidade de reposição de componentes hematológicos no período pré-natal, presumindo uma forte relação desse fator com o quadro de lesão apresentado. Estudos anteriores descrevem que alterações nas substâncias sanguíneas nesse período associam-se com alto risco de desenvolvimento de um quadro de PC7.

Os primeiros achados apresentados referem-se à aplicação do Teste de Boston, que possibilitou verificar o índice de compreensão de linguagem, uma vez que há diferença na oralidade entre elas, tendo o caso A apresentando padrões de respostas verbais e o B, respostas não-verbais. Os resultados do teste apresentaram escores médios para os dois casos, o que caracteriza que ambas as crianças compreendem bem as instruções verbais e são capazes de executá-las, apesar da lentidão motora observada em ambas.

Outro aspecto a ser ressaltado nas tarefas de compreensão verbal, com base no estudo publicado por Rosen & Engle8, que avaliava a memória de trabalho e fluência verbal, é que quanto maior a capacidade de memória de trabalho, maior a ativação e fluência de recuperação de informações da memória de longo prazo. Isto talvez permita justificar o porquê de um melhor desempenho no teste de Boston.

Para avaliação do QI estimado foram aplicados os testes de medidas psicométricas, Matrizes Coloridas de Raven e o Columbia, nos quais os resultados apresentaram dados inconsistentes, pois o funcionamento intelectivo não pode ser quantificado em virtude de algumas limitações na aplicação, onde se constatou a ausência de pré-requisitos conceituais básicos (semelhanças e diferenças). A hipótese descrita para esse problema está associada à dificuldade no processamento de informações perceptivas e visuais, conforme verificado que 39% dos casos de PC apresentam alterações visuo-construtivas9.

A Figura 1 permite uma análise visual do padrão de funcionamento intelectivo dessas crianças com base no que foi discutido até o momento, relacionando-o à inteligência fluida. Trata-se de um sistema altamente especializado, composto por diversas instâncias que se relacionam de modo interdependente. Como sistema, qualquer falha numa dessas instâncias causará interrupção nessa relação, gerando algum dano no funcionamento desse sistema.

Em estudo com 75 crianças com PC, 50 (67%) apresentavam algum grau de déficit cognitivo de leve a grave, com comprometimento em todas as medidas utilizadas para avaliar o funcionamento cerebral10. Análise de testes específicos para verificar as alterações de comprometimento das funções executivas das duas crianças revelou déficits na memória operacional, demonstrado durante a aplicação dos Cubos de Corsi. Observou-se que as crianças não foram capazes de reter informações visuais temporárias suficientes para construção de um mapa mental que possibilitasse a execução da tarefa.

Estudos recentes11 relatam uma estreita relação entre memória operacional e inteligência fluida, esta última compreendida como "a capacidade de resolução de problemas novos e poucos estruturados para os quais não existem procedimentos aprendidos previamente, diferentemente da inteligência cristalizada que se refere à habilidade de aplicar métodos e procedimentos previamente aprendidos para lidar com situações problema"12. Esse mesmo autor sugere que, a relação entre memória operacional e inteligência fluida está estabelecida porque ambas dependem das funções realizadas pelo executivo central, pois requerem o armazenamento de informações e a execução simultânea de processos de transformação dessas informações, ultrapassando o conjunto de informações que os sistemas escravos conseguem manter ativas12,13.

No presente estudo, as crianças revelaram falha no percurso visuoespacial, fato já observado anteriormente por Miyake et al.14, em um estudo que correlacionou memória de curto prazo e memória operacional, concluindo que a memória visual é indistinguível do executivo central, enquanto que a memória de curto prazo é completamente distinta, sugerindo que as tarefas verbais seriam mais automáticas e menos dependentes no executivo central, ao passo que, as tarefas visuais, mesmo envolvendo uma pequena quantidade de informações, já sobrecarregaria o sistema de memória, exigindo o executivo central.

A maioria das crianças com PC apresenta desempenho mais lento na execução de tarefas, sugerindo um comprometimento geral na eficiência do processamento da informação15. Essa afirmação valida o modelo cognitivo de memória operacional proposto por Baddeley3, porque é nessa instância de processamento que se organizam informações que serão disponibilizadas para outros processos cognitivos. Cabe notar que as dificuldades manifestadas pelas crianças residem em déficits na manipulação da informação. As tarefas são consideradas complexas, pois a execução exige demanda de esquema visuoespacial, planejamento, atenção sustentada e monitoramento.

No TAVIS-3, os resultados apresentados revelaram que a atenção seletiva encontra-se preservada nas duas crianças, evidenciando que a criança B obteve melhor desempenho. No que concerne à atenção alternada, a criança B obteve desempenho médio superior, enquanto que a criança A teve seu desempenho limítrofe. Já na tarefa 3, que avalia atenção sustentada, as duas crianças obtiveram desempenho semelhante, com resultado significativamente inferior à média. Os resultados são consistentes com estudos anteriores que descrevem crianças com PC apresentando dificuldade em medidas de atenção sustentada9.

Em se tratando do sistema atencional, alguns estudos demonstram resultados ao relacionar memória operacional e controle de atenção. Engle et al.16, em estudo sobre medidas de memória de curto prazo e memória de trabalho, afirmam que "somente a memória de trabalho requer o controle da atenção, já que envolve a execução de múltiplas tarefas simultaneamente" e justificam ser esta a diferença entre ambas, pois uma só armazena; a outra armazena e processa17.

Outro estudo, de Kane et al.18, também verifica que a memória de trabalho está associada ao controle da atenção. No presente estudo, as duas crianças demonstraram a atenção seletiva preservada, sendo este um bom indicador para refletir sobre planejamento de atividades que privilegiem esse domínio; apenas uma (caso B) esteve na média no que concerne à atenção alternada e, para a atenção sustentada, ambas obtiveram resultado muito abaixo da média. Assim, verifica-se que, para esse domínio e pensando num sistema, as crianças apresentam falhas nos mecanismos atencionais, o que provoca algum tipo de interrupção, não permitindo, assim, que processos cognitivos superiores se estabeleçam com integridade, sobretudo porque o controle da atenção é uma importante função do executivo central.

Este estudo possibilitou a construção de algumas inferências, ideias a respeito do padrão de funcionamento intelectivo dessas crianças e trouxe algumas respostas, principalmente no que diz respeito à impossibilidade de realização dos testes de QI.

A avaliação neuropsicológica aponta déficits de funções executivas como um dos comprometimentos mais significativos em se tratando de crianças com PC. É bastante comum encontrar déficits cognitivos na maioria dos casos, no entanto, poucos estudos têm delimitado áreas de dificuldades específicas nesses indivíduos.

 

CONCLUSÃO

As alterações de funções executivas em crianças com PC revelaram padrões similares com prejuízos em memória operacional e atenção. Déficits em funções executivas advêm de prejuízos nos padrões lesionais pré-motores e outras regiões adjacentes, podendo desencadear lesões focais ou difusas, originando a singularidade da PC.

Embora a locomoção restrinja a experiência interpessoal, a exploração do meio e a interpretação social deficiente não se relacionam diretamente com esta, pois os déficits das funções executivas explicam que as dificuldades acadêmicas e as relações sociais experimentadas pelas crianças com PC estão mais relacionadas com as interações dos domínios cognitivos do que com as funções motoras.

Como estudo experimental os resultados revelaram que fazer avaliação neuropsicológica em crianças com PC é extremamente difícil, devido ao prejuízo no funcionamento intelectivo de crianças com PC e a dificuldade motora. As crianças avaliadas demonstraram déficit intelectual que foi associado à memória operacional e ao sistema atencional (executivo central) e, consequentemente, inteligência fluida. Déficits executivos podem ocorrer na presença de déficit intelectual em PC.

A relevância deste estudo pode trazer benefícios para um criterioso plano de reabilitação, pois possibilita uma compreensão mais detalhada sobre o funcionamento cognitivo do universo singular e diverso de crianças com PC. No entanto, o conhecimento sobre esse universo encontra-se bastante restrito no nível de carência em publicações de estudos sobre essa temática. Sendo assim, faz-se necessário refletir sobre medidas psicométricas que possam atender a esse grupo heterogêneo, levando em consideração a idade e o nível de comprometimento motor, bem como normatização e a validade de testes, principalmente no Brasil.

Reconhecendo os pontos fracos metodológicos relativos a este estudo, há algumas considerações na avaliação neuropsicológica de crianças com PC que representam variáveis capazes de interferir na análise dos resultados que devem ser levadas em consideração no desenvolvimento de novas pesquisas. Nesse campo, por exemplo, o uso de algumas estratégias (ampliação nas dimensões físicas das figuras e ajuste de tempo) para aplicação de testes teria como uma necessidade eventual adicional, incluir também estratégias mais específicas, tais como adequações de mobiliários, recursos adaptativos e comunicação alternativa.

 

AGRADECIMENTOS

A Catiusha de Cerqueira Abreu, que muito colaborou com o nosso estudo, sendo responsável pela aplicação dos testes de inteligência com as crianças participantes.

 

REFERÊNCIAS

1. Rotta NT. Paralisia cerebral, novas perspectivas terapêuticas. J Pediatria. 2002;78(Supl.1): S48-S54.         [ Links ]

2. Robaina-Castellanos GR, Riesgo-Rodríguez S, Robaina-Castellanos MS. Definición y classificación de la parálisis cerebral: un problema ya resuelto? Rev Neurol. 2007;45(2):110-7.         [ Links ]

3. Baddeley A. The episodic buffer: a new component of working memory. Trends Cogn Sci. 2000;4(11):417-23.         [ Links ]

4. Malloy-Diniz LF, Paula JJ, Loschiavo-Alvares FQ, Fuentes D, Leite WB. Exame das funções executivas. In: Malloy-Diniz LF, Fuentes D, Mattos P, Abreu N, et. Avaliação neuropsicológica. Porto Alegre: Artmed; 2010. p.105.         [ Links ]

5. Malloy-Diniz LF, Sedo M, Fuente D, Leite WB. Neuropsicologia das funções executivas. In: Fuentes D, Malloy-Diniz LF, Camargo CHP, Cosenza RM, eds. Neuropsicologia: teoria e prática. Porto Alegre: Artmed; 2008, p.187.         [ Links ]

6. Pueyo-Benito R, Vendrell-Gómez P. Neuropsicología de la parálisis cerebral. Rev Neurol. 2002;34(11):1080-7.         [ Links ]

7. Legido A, Katsetos CD. Parálisis cerebral: nuevos conceptos etiopatogénicos. Rev Neurol. 2003;36(2):157-65.         [ Links ]

8. Rosen VM, Engle RW. The role of working memory capacity in retrieval. J Exp Psychol Gen. 1997;126(3):211-27.         [ Links ]

9. Bottcher L, Flachs EM, Uldall P. Attentional and executive impairments in children with spastic cerebral palsy. Dev Med Child Neurol. 2010;52(2):e42-7.         [ Links ]

10. Magalhães S, Lopes R, Simas F, Reis V, Vasconcelos MA, Batalha I. Paralisia cerebral: caracterização clínica e funcional. Rev Soc Portuguesa de Medicina Física e de Reabilitação. 2001;20(2).         [ Links ]

11. Engel de Abreu PMJ, Conway ARA, Gathercole SE. Working memory and fluid intelligence in young children. Intelligence. 2010; 38(6):552-61.         [ Links ]

12. Primi R. Inteligência fluida: definição fatorial, cognitiva e neuropsicológica. Paidéia. 2002; 12(23):57-75.         [ Links ]

13. Primi R. Complexy of geometric inductive reasoning tasks: contribution to the understanding of the fluid intelligence. Intelligence. 2002;30(1):41-70.         [ Links ]

14. Miyake A, Friedman NP, Rettinger DA, Shah P, Hegarty M. How are visuoespatial working memory, executive functioning, and spatial abilities related. A latent-variable analysis. J Exp Psychol Gen. 2001;130(4):621-40.         [ Links ]

15. Tabaquim MLM, Lima MP, Ciasca SM. Avaliação neuropsicológica de sujeitos com lesão cerebral: uma revisão bibliográfica. Rev Psicopedagogia. 2012;29(89):236-43.         [ Links ]

16. Engle RW, Kane MJ, Tuholski SW. Individual differences in working memory capacity and what they tell us about controlled attention, general fluid intelligence, and functions of the prefrontal cortex. In: Miyake A, Shah P, eds. Models of working memory: mechanisms of active maintenance and executive control. New York: Cambridge University Press;. 1999. p.102-34.         [ Links ]

17. Engle RW, Tuholski SW, Laughlin JE, Conway ARA. Working memory, short-term memory, and general fluid intelligence: a latent-variable approach. J Exp Psychol Gen. 1999; 128(3):309-31.         [ Links ]

18. Kane MJ, Bleckley MK, Conway ARA, Engle RW. A controlled-attention view of working-memory capacity. J Exp Psychol Gen. 2001; 130(2):169-83.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
Marselle Montanha de Castro Britto
Rua Des. Demétrio Tourinho, 210, apto 301
Jardim Apipema - Salvador, BA, Brasil
CEP 40155-010
E-mail: marsellemontanha@hotmail.com

Artigo recebido: 3/4/2014
Aprovado: 7/6/2014

 

 

Trabalho realizado na Universidade Federal da Bahia, Salvador, BA, Brasil.