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Revista Psicopedagogia
Print version ISSN 0103-8486
Rev. psicopedag. vol.39 no.120 São Paulo Sept./Dec. 2022
https://doi.org/10.51207/2179-4057.20220034
ARTIGO ORIGINAL
A Psicologia Escolar no trabalho com adolescentes: A arte como intervenção
School Psychology in the work with adolescents: Art as an intervention
Eveline Tonelotto Barbosa PottI; Maura Assad Pimenta NevesII; Vera Lúcia Trevisan de SouzaIII
IPsicóloga; Mestre e Doutora em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas), Campinas, SP, Brasil
IIPsicóloga; Mestre e Doutora em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas), Campinas, SP, Brasil
IIIProfessora do programa de Pós-Graduação em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas), Campinas, SP, Brasil
RESUMO
Este artigo, derivado de duas pesquisas de doutorado, reflete sobre os fundamentos teóricos da Psicologia Histórico-Cultural em sua compreensão da adolescência. Objetiva discutir possibilidades de intervenção mediadas pela arte em uma perspectiva que compreende esse momento do desenvolvimento como propício à ampliação do pensamento e da imaginação, duas funções psicológicas que assumem prevalência na adolescência. O artigo ressalta, ainda, a importância de compreender os afetos na adolescência como base da potência de ação do sujeito, o que requer a criação de formas emergentes de intervenção que favoreçam o desenvolvimento da imaginação e do pensamento, funções que têm na base o afetivo.
Unitermos: Psicologia Escolar. Adolescência. Psicologia Histórico-Cultural.
ABSTRACT
This article, derived from two doctoral researches, reflects on the theoretical foundations of Historical-Cultural Psychology in its understanding of adolescence. Proposed objectives possibilities of media intervention through art in a perspective that includes proposals for the moment of development and imagination, as two possibilities that assume prevalence in adolescence. The article also highlights the understanding of effects in the action of adolescence as the basis of the power of education, which requires the creation of emerging forms that favor the development of imagination and thought, functions that have the affection basis.
Keywords: School Psychology. Adolescence. Historical-Cultural Psychology.
Introdução
Este artigo é fruto de duas pesquisas de doutorado vinculadas ao grupo de pesquisa Processos de Constituição do Sujeito em Práticas Educativas (PROSPED), que buscaram investigar estratégias de intervenção com adolescentes de escolas públicas, utilizando-se como fundamento a Psicologia Histórico-Cultural. Seu objetivo é apresentar reflexões teóricas sobre a compreensão da adolescência na perspectiva da psicologia crítica e possibilidades de intervenção com adolescentes mediadas pela arte (Vigotski, 1925/2001).
O estudo da adolescência é um convite à compreensão da constituição do sujeito, especialmente no que se refere ao desenvolvimento das funções psicológicas superiores e ao papel do meio nesse processo. Ao articular as reflexões teóricas com considerações sobre práticas educativas, amplia-se o convite para pensar formas de promoção do desenvolvimento humano − uma tarefa emergente, haja vista os desafios enfrentados nas escolas atualmente, decorridos dois anos de seu fechamento ocasionado pela epidemia do Coronavírus.
Nos últimos anos, vários estudos têm apontado para o crescente fenômeno da evasão escolar e a falta de interesse dos estudantes pelos conteúdos escolares, principalmente nos anos finais do Ensino Fundamental e no Ensino Médio (Arinelli, 2022; Arinelli et al., 2021; Barbosa & Souza, 2015; Jesus, 2020; Neves, 2020). Tais evidências colocam como desafio a construção e a consolidação de perspectivas teórico-metodológicas que visem ao enfrentamento desses fenômenos, em especial a elaboração de práticas que rompam com a concepção cristalizada que coloca no sujeito a culpa pelo fracasso escolar (Aguiar & Ozella, 2008; Angelucci et al., 2004; Bock, 2007).
Neste sentido, estudar a adolescência demanda considerar dois pontos fundamentais: assumi-la como produção histórica e social, considerando os aspectos culturais e singulares que constituem o sujeito adolescente, desenvolvidos na relação dialética com o meio de que são parte; e adotar como desafio a busca pela criação de estratégias e caminhos à promoção do processo de desenvolvimento desses sujeitos. Para tanto, as contribuições da Psicologia Histórico-Cultural apresentam subsídios para a construção de práticas que permitam ampliar as possibilidades de desenvolvimento das potencialidades dos adolescentes, como, por exemplo, as intervenções mediadas pela arte que iremos abordar nesse artigo.
Serão apresentados, a seguir, alguns conceitos para endossar nossa defesa da arte como materialidade potencializadora do desenvolvimento de adolescentes.
Contribuições da Psicologia Histórico-Cultural: o papel dos afetos
A Psicologia Histórico-Cultural é uma teoria que tem como principal inquietação o modo como o desenvolvimento humano ocorre e pode ser potencializado ao longo do processo de constituição do sujeito. Para Vigotski (1931/2010), o processo de desenvolvimento humano acontece na relação dialética do sujeito com o meio em que está inserido, mediada sempre pela dimensão do afeto. Sendo assim, o afeto ocupa um importante papel nessa perspectiva teórica, o que exige uma melhor compreensão deste conceito, haja vista sua dispersão semântica.
Para a compreensão do afeto, Vigotski (1932/2004) inspirou-se na teoria de Espinosa, filósofo do século XVII, cujo pensamento apresenta a centralidade dos afetos na relação indissociável entre corpo e mente. Para Espinosa, é na relação do sujeito com o outro que ele é afetado e constitui sua forma de agir e pensar. Utilizando-se de suas palavras: "Um corpo, em movimento ou em repouso, deve ter sido determinado ao movimento ou ao repouso por um outro, o qual, por sua vez, foi também determinado ao movimento ou ao repouso por um outro" (Espinosa, 1957, p. 32).
Neste sentido, afeto para Espinosa (1957) são as afecções que o corpo sofre na relação com o outro e que mobiliza o sujeito em diferentes perspectivas. Nas palavras do filósofo: "Por afeto compreendo as afecções do corpo, pelas quais sua potência de agir é aumentada ou diminuída, estimulada ou refreada, e, ao mesmo tempo, as ideias dessas afecções" (Espinosa, 1957, p. 50). Assim, o sujeito se apropria da realidade não pelo acesso direto a ela, mas pelas afecções que seu corpo sofre nas interações e encontros que estabelece, podendo aumentar ou diminuir o que chama de potência de ação.
A potência de ação ou seu refreamento se relaciona a dois tipos básicos de afetos, dos quais derivam todos os demais: a alegria e a tristeza. Espinosa (1957) chama um afeto de alegre quando este aumenta a potência de agir da mente e do corpo. Em contrapartida, a tristeza é o afeto que tende a refrear esta potência. É importante destacar que, para o autor, o afeto alegre não é aquele que necessariamente causa um bem-estar em nosso corpo, mas aquele que aumenta nossa potência de ação. Um exemplo é quando estamos frustrados com algum acontecimento; do ponto de vista da nossa vivência, a sensação é desagradável, mas se ela for fonte de mobilização do pensamento, da memória, da imaginação, entre outras funções psicológicas, pode ser considerada como afeto alegre, pois gerou o aumento da potência de ação do sujeito. Isso vale em relação ao afeto triste, uma vez que uma situação pode ser bem agradável, mas não mobiliza nosso pensar e agir, ou seja, não aumenta nossa potência de ação. Neste sentido, o que Espinosa (1957) chama de afeto alegre ou triste é totalmente diferente do que se compreende na sociedade neoliberal, a qual classifica esses afetos com base em ideologias e concepções pragmáticas que, por vezes, se centram no consumo.
Portanto, podemos pensar a partir da Psicologia Histórico-Cultural que o afeto alegre é aquele que aumenta nossa potência de ação, mobilizando as funções psicológicas para a construção de novos nexos ou relações, criando, assim, novas possibilidades de compreensão e ação do sujeito, enquanto afetos tristes diminuem nossa potência de ação por nos colocar em um estado de padecimento em que permanecemos voltados para nós próprios.
É na interação do sujeito com o meio que ele afeta e é afetado pelas relações que estabelece e das quais participa. E é nessas relações que ele desenvolve um estado de maior ou menor potência de ação, direcionando seu processo de desenvolvimento. Em outras palavras, a todo tempo estamos envolvidos em encontros que podem aumentar ou diminuir nosso conatus, termo este utilizado por Espinosa (1957) ao se referir ao esforço do sujeito para perseverar em sua existência.
A adolescência na perspectiva da Psicologia Histórico-Cultural
Compreender a adolescência a partir desta perspectiva teórica exige a clareza de que o adolescente se desenvolve a partir das relações que estabelece, sofrendo e provocando afecções de diferentes naturezas, as quais podem aumentar ou diminuir sua potência de ação. Portanto, é necessária a construção de espaços e formas para afetá-lo, a fim de aumentar sua potência, em busca por mobilizar as funções psicológicas superiores, ampliando cada vez mais suas possibilidades de compreensão e ação no mundo. Mas será que qualquer forma de relação é garantia de promoção de afetos alegres, ou seja, daqueles que aumentam a potência de ação do sujeito?
Ao buscar compreender a adolescência e possibilidades de ações favorecedoras de relações promotoras de afetos alegres, é imprescindível considerar os interesses e necessidades do sujeito adolescente que revelam seu modo de sentir, pensar e agir sobre a realidade enquanto desenvolvimento já consolidado e revelam seu potencial de desenvolvimento (Vigotski, 1931/2006). Nesta perspectiva, o sujeito só pode ser afetado na medida em que interage com significações que estejam em diálogo com seus interesses e necessidades. Nas palavras de Espinosa (1957):
Se o corpo humano não foi afetado, de nenhuma maneira, por algum corpo exterior, então, a ideia do corpo humano tampouco o foi, isto é, a mente humana tampouco foi afetada, de qualquer maneira, pela ideia da existência desse corpo, ou seja, a mente não percebe, de nenhuma maneira, a existência desse corpo. (p. 37)
Neste sentido, para mobilizar o sujeito é necessário estabelecer relações de afeto e, para isso, é preciso compreender as características e interesses do momento do desenvolvimento em que este se encontra. Vigotski (1931/2006) descreve a adolescência como um momento de transição, em que as características da infância são superadas e um novo arcabouço de interesses e necessidades é construído. As emergentes necessidades na adolescência são decorrentes tanto do desenvolvimento biológico como psíquico, quando suas funções psicológicas ganham qualidade de superiores, permitindo-lhe perceber e significar elementos mais complexos e simbólicos da realidade. Ainda, concomitante à constituição de novos interesses, também há a necessidade em desenvolver novos repertórios para corresponder às expectativas e demandas que o meio lhe apresenta, como, por exemplo, o aumento da responsabilidade, maior complexidade em relação aos conteúdos escolares, entre outros.
A tensão entre as novas exigências do meio e o fato de que os recursos psicológicos que o adolescente apresenta não são suficientes para corresponder a essas demandas, resulta no que Vigotski chama de crise, cuja característica é positiva, pois ela impulsiona o desenvolvimento do sujeito, ao colocar-lhe como desafio a criação de novos modos de pensar e agir via elaboração e desenvolvimento das funções psicológicas superiores (Vigotski, 1931/2006, 1931/2010). Nessa perspectiva, os elementos que constituem o processo de desenvolvimento humano se consolidam a partir de oposições e tensões que favorecem a constituição do sujeito (Veresov, 2021).
Em outras palavras, estar em desenvolvimento implica o movimento contínuo de vir-a-ser, que Vigotski (1931/2006) chamou de tendência dinâmica integradora, uma vez que caracteriza um constante esforço do sujeito em integrar-se ao meio, apropriando-se de instrumentos culturais, já que o meio está sempre em transformação. É essa tendência dinâmica integradora que faz o sujeito ter novos interesses e justamente o que confere dinamicidade ao seu processo de constituição.
Neste sentido, para compreender o arcabouço de aspirações que irão constituir os interesses na adolescência e, também, os novos desafios que irão configurar a crise nesse momento, é importante conhecer o desenvolvimento das funções psicológicas na adolescência.
O desenvolvimento das funções psicológicas superiores: em foco a adolescência
A perspectiva da Psicologia Histórico-Cultural tem como principal objeto de investigação e ação o processo de desenvolvimento das funções psicológicas superiores (Veresov, 2021). Vigotski (1931/2006) destaca que há um sistema funcional psicológico único capaz de corresponder às demandas e expectativas que o contexto cultural impõe ao sujeito. Na adolescência, as funções psicológicas superiores se reorganizam e ganham novas qualidades, mas como as funções psicológicas superiores são constituídas a partir da unidade entre o biológico e o cultural, é necessária a presença de um contexto social que potencialize esse desenvolvimento.
Isto quer dizer que, embora o sujeito tenha o potencial para o desenvolvimento das funções psicológicas superiores, isso só acontecerá se houver uma situação social de desenvolvimento propícia para tal. Uma situação social se configura como situação social de desenvolvimento quando há uma vivência ou, no russo, perezhivanie, que é uma experiência dotada de fortes emoções e que impacta o desenvolvimento do sujeito. Acreditamos que a arte, no trabalho com adolescentes, tem o potencial de promover vivências (Vigotski, 1931/2010).
Na adolescência, a função psicológica superior que ganha destaque é o pensamento. As demais funções se unem a ele e resultam em uma síntese, ganhando novas qualidades, reorganizando-se sobre a base do pensamento, portanto, intelectualizando-se (Vigotski, 1931/2006, 1927/1991). O pensamento característico da adolescência, e que favorece a intelectualização das demais funções, é o pensamento por conceito, cujo desenvolvimento marca a idade da adolescência e é a forma que possibilita ao sujeito pensar novos conteúdos, ter novos interesses e aspirações. Este desenvolvimento lhe permite conhecer a realidade externa e interna, visto que, além de ter mais domínio da produção cultural, o sujeito também consegue significar seus sentimentos e emoções (Vigotski, 1931/2006).
Em relação ao pensamento por conceito, há dois tipos: os conceitos cotidianos e os científicos. Os conceitos cotidianos são aprendidos e acessados na realidade diária do sujeito, em seu processo de internalização de valores e ideologias. Já os conceitos científicos são mais sistematizados, aprendidos, principalmente, durante o processo de escolarização, e é o que constitui o pensamento teórico. A compreensão das várias esferas do conhecimento - ciência, arte, filosofia - só pode ser assimilada pelos conceitos científicos.
Apesar de possuírem origens diferentes, ambos são frutos de um processo de abstração. Segundo Vigotski (1931/2006), inspirado nas ideias de Marx, não há como apreender ou acessar o concreto sem passar pela abstração. Nas palavras de Delari (2013), o concreto "é meta alcançada, não ponto de partida, como no senso comum" (p. 56). Portanto, sem o processo de conceitualização, a realidade é praticamente inexistente ao sujeito.
Sendo assim, na maioria das vezes, os conceitos científicos e cotidianos atuam em conjunto na atividade do pensamento, sendo um base para o desenvolvimento do outro. O conceito científico incorpora os conceitos cotidianos (Anjos, 2014), e quando isso não ocorre o pensamento e a ação se desintegram e não há a apropriação do conceito em sua forma sui generis. O mesmo pode ser pensado quando o conceito cotidiano não supera e avança para o científico, o que resulta em uma generalização limitada que não acessa o conceito em sua essência e complexidade.
Esse é um dos principais fatores que faz a perspectiva da Psicologia Histórico-Cultural enfatizar a importância do processo de escolarização na constituição do sujeito, pois é só por meio da educação escolar que o sujeito tem a possibilidade de ampliar sua compreensão e acessar a realidade em sua plenitude. No entanto, em nossa realidade, cujos conteúdos científicos mais básicos nem sempre são apreendidos por todos, seja pela falta de acesso à educação escolar, seja por outras limitações, muitos jovens não têm avançado no modo de pensar em si e na realidade, guiando-se a partir do que é aprendido no cotidiano.
Em um estudo realizado com alunos de uma escola pública (Barbosa & Souza, 2015), constatou-se que as reflexões dos adolescentes sobre temas como diferenças sociais, poder econômico, relações de poder, acesso à educação, entre muitos outros, se caracterizavam, na maioria das vezes, por pensamentos cotidianos, não apresentando reflexões mais esquematizadas, generalizadas e críticas sobre o que vivem e sentem. O pensamento objetivado na fala dos alunos tinha como principal conteúdo concepções ideológicas e cristalizadas.
Portanto, estudar o pensamento na adolescência é de fundamental importância e muito se tem investigado sobre tal temática. No entanto, ainda permanecem questões a serem aprofundadas, como: De que modo o pensamento por conceito é desenvolvido? O que o constitui? Como pode ser mobilizado? Estudos como os de Neves (2020), Jesus (2020) e de Barbosa e Souza (2018) defendem que o pensamento por conceito é interdependente da imaginação.
Em estudos anteriores (Barbosa & Souza, 2015; Neves et al., 2022), constatou-se que não há aprendizagem sem a imaginação, o que sustenta nossa defesa de que esta função seria indispensável para a apropriação dos conceitos, sobretudo os científicos. Além disso, os conceitos objetivados em produções artísticas, como em histórias e músicas, também só podem ser apreendidos pelo sujeito pela via da imaginação, o que nos coloca como desafio pensar em práticas que considerem essa função psicológica como central, utilizando diferentes formas de arte no trabalho com adolescentes. A seguir, discorreremos sobre o papel da arte e suas possibilidades de intervenção no trabalho com adolescentes.
A arte e seu potencial no trabalho com adolescentes
A forma de compreender a arte, aqui apresentada, deriva de anos de estudos do grupo PROSPED dedicados a investigar o potencial das expressões artísticas no trabalho do psicólogo escolar, como materialidade mediadora promotora do desenvolvimento humano. O termo materialidade mediadora se refere ao fato de ser uma produção humana, que contém aspectos da cultura, e que é mediadora, por se constituir como núcleo organizador tanto da relação do psicólogo com os sujeitos como dos pensamentos, sentimentos e emoções do psicólogo-pesquisador e do sujeito pesquisado (Barbosa & Souza, 2015; Dugnani et al., 2011; 2018; Souza, 2016a, 2016b).
Pautamo-nos na Psicologia da Arte, de Vigotski (1925/2001), que volta o seu olhar para a relação do sujeito na fruição com a obra de arte, assumindo como objeto de seu interesse a reação estética. Vigotski (1925/2001) não focalizou, portanto, a atividade pedagógica da arte ou sua ludicidade, mas seu potencial transformador, reconhecendo-a como "técnica social do sentimento" (p. 315), que integra as dimensões históricas, cognitivas e afetivas, representando uma síntese do acontecer humano. Como produto da cultura, o seu acesso amplia a experiência humana, possibilitando ao sujeito ir além da realidade da vida cotidiana. Ainda, por ser histórica, datada e produzida dentro de um contexto, por meio dela podemos ser conduzidos a outros tempos e espaços, baseados em fatos ou na fantasia, ampliando nossas formas de imaginar (Vigotski, 1931/2006).
Neste sentido, o intuito de se trabalhar com a arte não vem de uma necessidade de ensiná-la, mas sim, de favorecer que os sujeitos tomem contato com diferentes expressões artísticas, ampliando seu conhecimento e se desenvolvendo por meio do que Vigotski (1925/2001) denominou de vivência estética. Na apreciação de uma obra de arte, uma série de sentimentos opostos entre si são suscitados, caracterizando uma contradição emocional, em um processo que envolve uma atividade psíquica intensa e elevada, que mobiliza o sistema psicológico, em especial as seguintes funções: emoção e imaginação. Ambas atuam de forma imbricada e interdependente, e assumem prevalência no processo de desenvolvimento do psiquismo (Vigotski, 1925/2001).
Defendemos, então, que o trabalho com a arte pode favorecer o desenvolvimento humano. Mas será que o uso de qualquer expressão artística, em qualquer contexto, será promotor de desenvolvimento? Acreditamos que não, e há um ponto fundamental no trabalho do psicólogo escolar que se apoia na psicologia da arte: a intencionalidade. Nas palavras de Souza (2016a):
A intencionalidade no que concerne ao objeto como foco de intervenção do profissional psicólogo é o sujeito em seu processo de desenvolvimento, que envolve as relações. Logo, não é o indivíduo seu alvo de ação, mas o grupo, o coletivo, o contexto pela via das relações. A intencionalidade no que concerne ao objetivo da ação é 'transformar as relações', de maneira que se promova desenvolvimento. O psicólogo 'não ensina' na escola; ao contrário, ele aprende e apreende os sentidos e significados que circulam nas relações e 'promove a reflexão' sobre eles, assumindo o papel de 'mediador dos afetos', entendidos como modo de viver, sentir, perceber a realidade, utilizando-se de conhecimentos, estratégias e técnicas apropriados ao longo de sua formação. Seu objetivo não é a apropriação de conhecimentos de conteúdos escolarizados, como no caso do professor, mas a 'tomada de consciência', pelos sujeitos, de suas condições de existência e de suas possibilidades de se assumirem como atores e autores de suas histórias. (p. 89)
No que se refere ao trabalho com adolescentes, a arte tem sido um importante recurso, quando usada com a intencionalidade de se trabalhar as relações que esses sujeitos empreendem dentro e fora da escola, com vistas a contribuir na mobilização de afetos, na construção de interesses e na potência de ação (Barbosa, 2017; Neves, 2020; Neves & Souza, 2018, 2019), e, assim, com a superação dos desafios apresentados pelos educadores de escolas públicas, quanto ao desinteresse dos estudantes pelos conteúdos escolarizados, e o aumento do abandono e da evasão escolares.
A arte, no trabalho com esses sujeitos no contexto escolar, tem se revelado potente, por tocar o sensível por meio de sua estética, atraindo a atenção, favorecendo que o pensamento se amplie e a imaginação seja agilizada, despertando o interesse pelo que está sendo apresentado na obra e na situação vivida. Ao estar em uma sala de aula, onde um psicólogo, ou uma psicóloga, entra e se apresenta como alguém que irá promover encontros mediados por arte, levando filmes, músicas, pinturas, literatura, para contemplarem, discutirem e se expressarem artisticamente, é algo que por si só mobiliza algum tipo de curiosidade nos jovens.
A princípio, alguns irão se interessar, imaginando que o que está por vir será diferente e empolgante, e outros não, como é de se esperar. Ao passar do tempo, na medida em que o profissional vai investindo na relação intersubjetiva (Neves, 2020), novos sentidos vão sendo configurados e outros significados atribuídos pelos estudantes, que ficam aguardando aquele momento da semana, em que a arte será a materialidade mediadora e onde eles terão espaço para expressar seus pensamentos, emoções e sua imaginação de forma diferente da que é, tradicionalmente, mobilizada pela escola.
Por ser a adolescência um momento do desenvolvimento em que a imaginação e o pensamento por conceito assumem prevalência, se desenvolve a habilidade de pensar crítica e abstratamente, impulsionando o movimento reflexivo (Vigotski, 1934/2003), que pode ser fomentado ainda mais com o apoio da mediação de diferentes obras de arte, conforme revelado por Barbosa (2017) e Neves (2020) em suas pesquisas.
Barbosa (2017), ao defender a tese de que "a imaginação, mobilizada pela contação e produção de histórias, favorece a participação e o interesse de adolescentes em atividades escolares e promove novos modos de pensar sobre si, o outro e a realidade" (p. 84), constatou que a imaginação, ao ser agilizada, favorece a criação de situações sociais de desenvolvimento. Isto, porque, para além dos meios físico e social em que o sujeito está inserido, o meio imaginado assume concretude pela via da imaginação, se configurando também como situação social de desenvolvimento, por mobilizar a atenção, a memória, o pensamento por conceito, ampliar a consciência e promover o interesse e a participação dos adolescentes nas atividades escolares, especialmente, no que concerne à leitura e a escrita.
Quando os adolescentes ouvem histórias e as produzem, são conduzidos ao mundo da imaginação, pois são eles quem criam as cenas a partir do que ouvem, associado às memórias de experiências vividas anteriormente (Barbosa, 2017). O mesmo equivale ao processo de apreciação de imagens, como demostrou o estudo de Neves (2020). Na apreciação de fotografias de Sebastião Salgado, os estudantes se concentram nas cenas, exploram as possibilidades do que estaria ali acontecendo, desenvolvendo a percepção, a atenção, o pensamento e a imaginação, mobilizados pelos afetos e emoções que emergem na fruição com as cenas capturadas pelo fotógrafo. Também, na contemplação de pinturas surrealistas, as confusões geradas à percepção da realidade posta nas obras instigam, mobilizando, pelo enlace emocional, a vontade de decifrá-las, criando, por meio da imaginação e do pensamento por conceito, hipóteses para explicação das cenas, construindo e articulando ideias, que são expressas e produzidas por meio da fala. Ainda, quando assistem a um filme biográfico, refletem sobre a história de vida ali contada, pensando também sobre a própria história, seus valores, suas escolhas e perspectivas de futuro. As intervenções mediadas pela arte fazem emergir sentimentos e emoções pela contradição na relação empreendida com a obra e pelos afetos que depreendem dessa relação, que se traduzem em potencial de ação dos adolescentes, que se envolvem tanto na fruição com as obras como com as intervenções subsequentes desenvolvidas a partir dessa fruição (Neves, 2020).
Este artigo está longe de esgotar as inúmeras formas de se trabalhar com a arte com adolescentes, sendo tantas as possibilidades de expressões artísticas que poderiam ser utilizadas como materialidades mediadoras. E, descrevê-las, neste momento, também superaria os objetivos desse artigo, mas outros trabalhos já realizados podem também ser acessados em pesquisas, como de Arinelli (2022), Barbosa & Souza (2018), Jesus (2020) e Neves (2020).
Considerações
O uso de histórias literárias, músicas, pinturas, fotografias e filmes tem demonstrado em nossos trabalhos seu caráter transformador dos afetos e favorecedor do desenvolvimento de funções psicológicas superiores de adolescentes, em especial por mobilizar a construção dos interesses e a participação nas atividades propostas com mediação da arte (Barbosa, 2017; Neves, 2020).
É importante destacar que há a intencionalidade na escolha e finalidade do uso da obra de arte, que não é pedagógica, ou seja, não há intenção de ensinar arte, e nem lúdica, o horizonte é mobilizar o sujeito em seus afetos, em suas emoções, ampliar o pensamento, agilizar a imaginação, de modo que o sujeito tome contato com a arte e saia transformado na relação com ela estabelecida. Em nossos trabalhos com adolescentes, constatamos que a arte pode ser potente e transformadora, se usada com intencionalidade, com objetivos claros, o que é impulsionado pelo desenvolvimento do pensamento e do enlace emocional (imaginação e emoção) (Fleer & March, 2017), que juntas favorecem o aumento da potência de ação do sujeito.
O trabalho com arte em práticas desenvolvidas com adolescentes tem como principal foco a construção de relações que mobilizem as emoções, em especial pela defesa de que o contato com a arte favorece a configuração de significados e sentidos que ampliam a consciência (Andrada & Souza, 2015; Petroni & Souza, 2014) Ainda, na medida em que a arte favorece a mobilização da fala e do pensamento acerca das emoções do sujeito, nota-se que elas não são expressas por vias elementares, mas elaboradas e transformadas pela via da imaginação (Vigotski, 1934/2003).
Acreditamos que o trabalho com arte pode ser utilizado por diferentes atores escolares, não restringindo-se somente às ações do Psicólogo Escolar, como, por exemplo, por professores e educadores em diferentes contextos educativos. Neste sentido, ao utilizar a arte como materialidade mediadora nos trabalhos com adolescentes, o profissional se utiliza de outras formas de tocar o sujeito em seus afetos, promovendo situações sociais de desenvolvimento (Vigotski, 1931/2010). E isto ocorre porque há na arte o potencial de afetar o sujeito em suas emoções, aumentando sua potência de ação e mobilizando o desenvolvimento do psiquismo.
Referências
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Endereço para correspondência:
Eveline Tonelotto Barbosa Pott
Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas)
Av. John Boyd Dunlop - Jardim Ipaussurama - Campinas, SP, Brasil - CEP 13034-685
E-mail: evelinebarbosaa@gmail.com
Artigo recebido: 1/8/2022
Aprovado: 15/8/2022
Trabalho realizado na Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas), Campinas, SP, Brasil.
Conflito de interesses: As autoras declaram não haver.