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Revista Brasileira de Psicodrama
On-line version ISSN 2318-0498
Rev. bras. psicodrama vol.21 no.1 São Paulo 2013
ARTIGOS INÉDITOS
Original Articles
Mosaico de vidas: reflexões sobre sociopsicodramas na saúde coletiva
Mosaic of lives: refletions of socio-psychodramas in public health
Pâmela V. MorinI; Oriana H. HadlerII
IEstudante de Psicologia na Sociedade Educacional Três de Maio (Setrem)
II Psicóloga pela Universidade Católica de Pelotas (UCPEL), mestre em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), psicodramatista (IDH-RS), doutoranda em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
RESUMO
O presente trabalho é produto de uma experiência de estágio em Psicologia com um grupo de mulheres diagnosticadas como depressivas, usuárias de Unidade Básica de Saúde de um município da região noroeste do Rio Grande do Sul. Apontamos como principais reflexões a busca por possibilidades de intervenção que venham libertar papéis cristalizados em torno de um diagnóstico. Nesse sentido, destacamos as contribuições da filosofia moreniana, no momento em que incitam o aflorar da espontaneidade e a ruptura com conservas sociais hegemônicas. Assim, foi possível observar quanto o ambiente público da atenção básica tornou-se um espaço de invenção que aposta na potencialidade do ser humano, partindo de um trabalho com ideais de uma clínica ampliada embasada na teoria Sociopsicodramática.
Palavras-chave: Sociopsicodrama. Políticas públicas de saúde. Clinica ampliada.
ABSTRACT
This paper is based on the experiences of a Psychology training placement with a group of women diagnosed with depression, who are service users of a Primary Care Health Center in a city in the North-West region of Rio Grande do Sul. In the main focus of our reflections is the search for interventions that can liberate roles that have crystallized around this diagnosis. With this in mind, we emphasize the contributions of Morenian philosophy, as these stimulate the development of spontaneity and the rupture of hegemonic social conserves. Thus, we observed how the public environment of the primary care system can be turned into a setting that fosters the human potential, and through work embedded in the socio-psychodramatic theory can further expand general practice.
Keywords: Socio-psychodrama. Public health policies. Extended general practice.
INTRODUÇÃO
POSSIBILIDADES DE IN(TER)VENÇÃO
Pois a hora escura, talvez a mais escura, em pleno dia, precedeu essa coisa que não quero sequer tentar definir. Em pleno dia era noite, e essa coisa que não quero ainda tentar definir é uma luz tranquila dentro de mim, e a ela chamariam de alegria, alegria mansa. (Clarice Lispector, A Descoberta do Mundo, 1984)
O local: uma Unidade Básica de Saúde. Um grupo: mulheres diagnosticadas com depressão. O desafio: encontrar possibilidades de intervenção que rompessem com o estigma social lançado àqueles diagnosticados com essa patologia e, ao mesmo tempo, convertessem o espaço público em coletivo, de transformação. Foi nesse cenário que o Psicodrama encontrou uma estagiária de Psicologia e sua orientadora. Momento em que teve início uma prática de estágio no campo das políticas de saúde em um município da região noroeste do Rio Grande do Sul.
Considerando a realidade brasileira contemporânea, em especial no que tange à inserção do psicólogo no campo da saúde, ressaltase, principalmente a partir da década de 1980, como o número de profissionais dessa categoria foi aumentando nesse setor. Após o período ditatorial, as práticas psicológicas voltavam-se cada vez mais para o compromisso social e, apesar das diversas dificuldades encontradas (formação acadêmica descompassada com as práticas sociais, abordagens voltadas para um viés clínico ortodoxo, baixa remuneração e pouco reconhecimento do psicólogo em meio a outras profissões ligadas à saúde etc.), a Psicologia buscava desassossegar uma identidade marcada por modelos de subjetividade individualistas (DIMENSTEIN, 2001).
Nesses termos, pode-se perceber, com o adjunto das políticas públicas, o nascimento de práticas "psi", que buscavam desvincular-se de teorias essencialistas e universalistas, partindo para propostas que transcendiam o enfoque público, voltando-se para um viés coletivo. Assim, abrem-se as cortinas para um palco de ação que convocava sujeitos, os quais, nas palavras de Dimenstein (2001, p. 59) venham a ser "capazes de revolucionar o cotidiano na medida em que acreditam na possibilidade de o novo surgir, na surpresa; sujeitos que recusam o determinismo absoluto que aniquila os possíveis espaços de liberdade, de criação, de diversidade". Eis a brecha para a Revolução Criadora de Moreno e os espaços de ação psicodramática surgindo!
Sob esse pano de fundo, este trabalho foi realizado a partir de uma proposta de estágio em Psicologia em uma Unidade Básica de Saúde (UBS). Dessa forma, as páginas a seguir trazem considerações sobre a prática psicológica no campo da Saúde Coletiva através de breves relatos sobre Sociopsicodramas escolhidos, realizados com um grupo de saúde da mulher, buscando contribuir com possibilidades de intervenção no âmbito das políticas públicas, sob o enfoque psicodramático.
AS POLÍTICAS PÚBLICAS DE SAÚDE E OS DESAFIOS PARA A PSICOLOGIA
Para compreender os movimentos acerca de uma Política Pública Nacional de Saúde, vale ressaltar que os primeiros suspiros para a criação do Sistema Único de Saúde (SUS) tiveram início a partir da realização da VIII Conferência Nacional de Saúde; evento que contou com intensa participação social de diversos setores da comunidade brasileira, especialmente por acontecer no período em que se findava a ditadura militar. Conforme Dhein (2010), até esse momento, sob os comandos de governos militares, contávamos com a privatização da saúde, em que ocorria uma relação autoritária entre os serviços de saúde e a população. A citada conferência provocou uma ruptura em relação às noções de saúde pública no Brasil, consagrando uma concepção ampliada de saúde, como direito universal e dever do Estado.
A partir da década de 1990, as profissões de saúde passaram a se integrar à saúde pública, com cientistas sociais e profissionais das ciências humanas atuando em instituições, nas quais anteriormente não havia o trabalho em equipe. Com isso, o curso de Psicologia, que desde a sua implementação, em 1962, voltava sua prática para um viés clínico ortodoxo, passa a ter um currículo mínimo, articulado com a promoção de políticas para todos, marcando uma postura ético-política como guia para a atuação profissional do psicólogo (LUZIO, 2009).
Alicerçado por todos esses movimentos, nos campos da Psicologia e da Saúde, entra em discussão um novo conceito de saúde: não mais considerada vertente em sua dimensão biológica, mas também uma noção que leva em consideração aspectos sócio-históricos, psicológicos, culturais, entre outros, pensando assim o processo para além de noções dicotômicas referentes à "saúde/doença". Nesse âmbito novas formas de atendimento que preveem o acesso universal e igualitário são abarcadas às ações e aos serviços para promoção, proteção e recuperação da saúde de todos (DHEIN, 2010).
Sob essa nova configuração das políticas de saúde, embasada principalmente pela Constituição Federal de 1988, surgem desafios à categoria de psicólogos, os quais se veem tentando mudar também seus espaços e suas formas de atuação perante o SUS, buscando uma mobilização e determinada ação política que se preocupem com a saúde mental dos sujeitos, preconizando um viés antimanicomial e a liberdade de expressão dos usuários nesse campo (NASCIMENTO et al., 2004).
Assim, há uma ampliação na atuação do psicólogo, que anteriormente limitava-se às instituições de saúde mental e agora se vê articulando com parâmetros de uma Clínica Ampliada, saindo dos moldes do consultório e indo ao encontro de um trabalho coletivo e político, com o intuito também de romper com os modos patologizantes e cristalizados sobre os seres humanos. Como aponta Scliar (2007), com essa nova prática coletiva, a Psicologia conquista um espaço no campo da Saúde não mais considerada Pública, mas Coletiva.
Conforme Campos et al. (2008), a noção de coletivo passa a fundamentar a construção do SUS e de práticas interdisciplinares agenciadas nos conceitos de universalidade, integralidade e equidade. A universalidade consiste nos direitos e no acesso de todos os cidadãos aos serviços de saúde – sem discriminação –; a integralidade implica um olhar ampliado, de forma continuada a fim de garantir ações integrais aos sujeitos; a equidade, enfim, refere-se à prioridade de acesso aos mais variados grupos sociais, assegurando-a àqueles que se encontram em precárias condições de vida.
Nesse viés coletivo, a filosofia moreniana encontra solo fértil para possibilidades de ação, uma vez que o Psicodrama se apresenta hoje como uma terapia inovadora dentro dos espaços públicos de saúde, vindo ao encontro do ser humano e levando em consideração seu espaço no "aqui-agora". Antônio Carlos Cesarino (apud Motta , 2008) descreve o Psicodrama no Brasil como algo que surgiu como movimento de contestação, de "barulho". Segundo ele, o Psicodrama é social, é político e, sem isso, perde sua essência.
Nessa arena social, as últimas décadas foram marcadas por diversos movimentos sociopsicodramáticos na agenda política do país, desde Psicodramas Públicos, no Centro Cultural de São Paulo – aberto e gratuito a quem se interessar –, que vêm trabalhando questões emergentes do coletivo da metrópole, até trabalhos realizados nas praças em Belo Horizonte, passando por Teatros Espontâneos em todo o Rio Grande do Sul, Paraná, Pernambuco, até ser utilizado como estratégia de intervenção em situações de conflito em comunidades carentes (VIEIRA et al., 2011). O Psicodrama brasileiro faz ressurgir a implicação social da criação de Moreno, escrevendo e transformando a história em que as pessoas estão, nos parques, nos contos com crianças, no trabalho com refugiados, tendo como premissa existencial o encontro dos povos. Nesse sentido, a Revolução Criadora Moreniana invoca do profissional uma postura ético-política, que visa a transformação social.
INVENÇÕES E RUPTURAS: O OLHAR MORENIANO NA SAÚDE COLETIVA
Importante ressaltar que a proposta do Psicodrama tem como objetivo desenvolver a espontaneidade e a criatividade embotadas dentro de cada sujeito que vem até o serviço, em busca de apoio, escuta e tratamento. Sob tal ótica, quando se fala em uma terapia moderna, trata-se de algo bem diferente dos moldes aos quais muitos profissionais psicólogos são habituados a trabalhar: o inconsciente, a escuta individual e o tempo. Como Moreno (1975) destaca, a ação dramática grupal que visa trabalhar aspectos sociais foi nomeada Sociopsicodrama. Essa perspectiva nasceu exatamente da necessidade de uma forma especial de Psicodrama, uma intervenção que projetasse seu foco sobre os fatores coletivos. Dessa forma, o processo terapêutico passa a ser sociopolítico, deslocando-se do âmbito individual para o grupal. O grupo passa a ser o sujeito e as questões não são únicas, mas compartilhadas entre cada integrante. Assim, cada participante do grupo é considerado agente terapêutico um do outro e aspectos sócio-históricos atravessam o espaço grupal.
Portanto, o Sociopsicodrama nos traz o potencial da atividade em grupo, que visa trabalhar aspectos sociais, proporcionando um processo de rematrização de experiências passadas no aqui-agora psicodramático (MORENO, 1975). Diante de um viés que articula a reinvenção e a reinscrição de novos formatos de ser e agir no mundo, torna-se essencial incitar o desempenho de novos papéis para que, através do palco psicodramático, seja possível expressar-se e vivenciar outras possibilidades de existência, buscando, desse modo, romper com o que lhes é estabelecido por padrões hegemônicos.
Assim, compreende-se que os trabalhos sociopsicodramáticos podem ser exatamente o espelho desse sentido, um encontro social tomado como um processo de maior amplitude e que atravessa todos os segmentos e as práticas sociais, "cuja potência é problematizar as condições e os critérios de pertença social que forjam processos de subjetivação e produção de identidades" (LIMA, 2011, p. 38). Sob essa ótica, o Psicodrama coloca-se como um saber que vem provocar a saúde, porém, não nos conformes de estratégias hegemônicas e higienistas, mas pelas vias da transformação e da ação coletiva, do potencial dos grupos, na criação entre as diferenças e o respeito entre estrangeiros, "entre a conserva e a espontaneidade" (idem).
MOSAICO DE VIDAS: SOCIOPSICODRAMAS TRANSFORMADORES
O trabalho em questão aconteceu em uma UBS de um município da região noroeste do Rio Grande do Sul, perdurou por um ano e meio e cada encontro com o grupo de mulheres era realizado semanalmente, com duração de 3 horas. Assim, começamos apresentando, a fim de facilitar ao leitor que entra em contato com o trabalho aqui realizado, um resumo (o mais breve possível, porém com as informações necessárias para a compreensão da dinâmica grupal) dos encontros. Em relação à escolha dos Sociopsicodramas para análise e discussão, o critério para eleger aqueles que aqui se apresentam deve-se, primeiramente, a uma questão temporal, ou seja, cada encontro diz respeito a momentos diferentes do processo grupal. O primeiro escolhido representa os meses iniciais, o segundo espelha o segundo semestre de trabalho com o grupo, e o terceiro Sociopsicodrama refere-se aos últimos encontros deste grupo.
Vale ressaltar que o grupo era homogêneo em relação ao gênero, uma vez que as participantes eram selecionadas pela equipe de gestão da UBS (composta de psicóloga, enfermeira, nutricionista e psiquiatra) e encaminhadas ao grupo. Dessa forma, os critérios para participação foram determinados pela equipe local, dos quais os principais eram: ser mulher e diagnosticada com transtorno depressivo. Importante salientar também que esse grupo existe há mais de uma década e, apesar das modificações de participantes, ele se mantinha praticamente homogêneo quando o estágio em questão se iniciou.
Uma característica marcante quando as atividades tiveram início foi o fato de as próprias integrantes sentirem-se amarradas em suas vidas, conforme relatos delas. Eram em torno de 30 mulheres com autoestima muito baixa, sobrepeso, dificuldades de relacionamento pessoal, sintomatologias antissociais e falta de perspectiva para mudanças ou prazer no viver. Ao chegarmos com a proposta de "encenar" as dores, as luzes e as sombras que lhes atravessavam a vida, a princípio, essa proposta foi recebida com grande resistência, passando por movimentos de dicotomias entre realidade e fantasia (tomadas aqui como ilusões vendidas socialmente e internalizadas como sonhos a ser conquistados), para então rupturas com padrões preestabelecidos ocorrerem, dissolvendo papéis cristalizados à libertação da espontaneidade.
Os encontros são a seguir relatados, para que se possa acompanhar a transformação de um grupo que começa arraigado em uma sistematização de atendimento codependente, na qual os usuários buscavam o serviço para transbordar suas dores, mas sem implicar uma mudança integral.
DESEJOS E EXPECTATIVAS
Um dos primeiros temas abordado foi "desejos e sonhos", uma vez que grande parte dos primeiros encontros envolvia processos longos de queixas das participantes, em que repetidamente ouvia-se sobre a dificuldade de conquistar sonhos e realizar desejos. Sendo assim, em um dia de verão, após um mês de encontros e período de vínculo com grupo, foi pedido para que elas se levantassem e, em círculo, caminhassem com os olhos fechados. Depois foi solicitado que pensassem no que haviam vindo fazer naquela tarde, o que buscavam ali. A partir disso, foi solicitado para que retornassem em um círculo, incitadas a pensar em uma palavra que descrevesse o que buscavam e o que desejavam para a vida. Desse modo, no momento em que descreviam seus desejos e seus sonhos, as protagonistas deveriam encontrar uma palavra que representasse esse sonho e, assim, caminhar, cada qual expondo sua palavra, buscando pessoas com palavras/sonhos similares, para que, em grupo, criassem esculturas com a voz que representasse esse sonho. As dramatizações foram realizadas com grande mobilização do grupo, que ficou fascinado ao descobrir diferentes sonhos. A seguir, o grupo escolheu uma cena cujas palavras e esculturas representavam saúde, autoestima e amor. Foi solicitado para que esse pequeno grupo se mantivesse no palco psicodramático enquanto a plateia moldava novas formas para a escultura que via. Fazendo uso do público, todas as participantes sentiram-se integradas na mesma escultura, que terminou com um passe de mágica: a protagonista havia transformado a cena com a criação de uma família unida e feliz – a receita para a concretização dos desejos de todas ali presentes. Assim, a cena termina. No processo de compartilhar, o grupo discutiu sobre a possibilidade de mudanças quando não se tem famílias felizes e unidas. Algum silêncio recaiu sobre o grupo que disfarçou e finalizou o encontro.
MULHER REAL X MULHER IDEAL
No tema "Mulher ideal x mulher real", como aquecimento propôs-se que caminhassem pensando no que temos de real, como é o nosso corpo, o que mais gostamos nele, o que menos gostamos e, principalmente, o que podemos fazer para mudar? Enquanto caminhavam, a dica era para que as participantes fizessem esculturas corporais que mostrassem essas questões. Na sequência, pequenos grupos foram formados por similaridade nas esculturas. Então, foi pedido para que discutissem sobre a mulher ideal, quem seria? Descrever aspectos subjetivos, corpo, mente etc. Posteriormente às discussões, foi solicitado para que cada pequeno grupo organizasse uma cena, criando assim um "teatro" por meio do qual poderiam demonstrar a mulher ideal ou real. O roteiro seria livre, baseado nas conversas compartilhadas, porém as cenas deveriam ter título e somente sons, sem palavras. Os grupos apresentaram suas cenas, expondo conflitos vivenciados cotidianamente com seus pares, familiares e no âmbito profissional. Entre as cenas, uma chama atenção de quase todas as participantes, uma cena marcante na qual uma mulher real cuidava de sua casa ininterruptamente. Nesse momento, foi pedido ao grupo que fosse criando novas sequências para essa cena, assim as participantes vão tomando o lugar da protagonista, uma a uma, transformando as ações, porém mantendo-as dentro do contexto de mulher real. No compartilhamento, o grupo revelou que essa cena marcou mais pelo fato de as participantes terem se visto "de fora", enxergado a si mesmas, os seus feitos e teatralizado tudo isso. A sensação era a de "dar vida para a vida comum". O encontro nesse dia findou-se com as palavras de uma integrante: "O jeito é sermos felizes da maneira que somos! Precisamos viver no real e não na fantasia de um ideal".
MOSAICO DE VIDAS
Com o tema "Mosaico de vidas", foram trabalhadas as questões pessoais de cada mulher do grupo. Esse foi um dia marcante, pois, foi um dos encontros em que as participantes trouxeram questões nas quais elas próprias eram protagonistas. Dito de outra forma, elas saíram do lugar de espectadoras para atrizes sociais, artistas de suas vidas... tomando as rédeas de suas escolhas e decisões: uma ruptura com o padrão de "depressivas" que lhes era associado há tempos. Sendo assim, nesse dia, foi solicitado que elas pensassem sobre sua vida, em todos os momentos bons que haviam vivenciado até ali (até poucos meses, essa consigna não surtia efeito, pois somente aspectos negativos vinham à tona). Em seguida, foi pedido que criassem um desenho que representasse o momento escolhido. Ao término do desenho e da apresentação dele para o grupo: uma surpresa! Pedimos que rasgassem suas obras. As reações foram as já esperadas, afinal não queriam rasgar seus desenhos, pois os haviam feito com muito amor. Entretanto, uma semente de desapego havia sido plantada e, aos poucos, elas começaram a rasgá-los. Em seguida, ocorreu o Sociopsicodrama, pois as mulheres começam a protagonizar entre si e em pequenos grupos a reconstrução a partir dos pedaços picotados de desenhos. Elas foram dramatizando (algumas inclusive verbalizando) acontecimentos de sua vida que, como o desenho, haviam se rompido, porém, nesse momento, ao iniciar o processo de união dos pedaços de papel e cor umas das outras, foi possível observar a criação de novas formas de lidar com perdas, desilusões, e desencontros. A partir daí, os grupos foram se encontrando, formando um mosaico de vidas. Ao findar a dramatização, no compartilhar, foram trazidas falas sobre a necessidade de "recomeçar mesmo nos sentido em pedaços" (relato de uma das participantes).
Ao olhar para os três encontros apresentados: dos desejos e expectativas como algo distante de realizar, ao difícil embate entre papéis embotados de mulher real x mulher ideal, ao encontro consigo mesmo em um mosaico de vidas, foi possível observar a potência do grupo ao trazer questões de uma coletividade. Nesse âmbito, cuja proposta era realizar uma escuta ativa de todas as participantes e incitar a ação através da troca de experiências, visualiza-se a transformação do grupo a partir não somente de uma reflexão coletiva, mas do questionamento da realidade no palco do como se.
Moreno (apud MONTEIRO, 2004, p. 2) já nos dizia isso quando afirmava: "a vida nos oferece inúmeras histórias, por que não as utilizamos ao invés de representar as obras já escritas?". Assim, os encontros tinham em vista uma articulação entre as participantes, as condições históricas que nos produzem e circundam e uma sensibilização quanto ao tema, buscando novas possibilidades de atuação diante de conservas que nos massificam e moldam nossos modos de ser no mundo. Portanto, os Sociopsicodramas tiveram como objetivo "transformar não lugares desterritorializados em lugares próprios e singulares de criação" (MASCARENHAS, 2008, p. 65). A UBS, nesse sentido, tornou-se arena de transformações sociais, sob enfoque moreniano, apostando no potencial cósmico de cada pessoa ali protagonista de sua vida.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao findar o presente artigo, pode-se afirmar a grande importância do suporte que o Sociodrama proporcionou como teoria de in(ter) venção, apresentando-se como uma ferramenta constitucional de transformação para o grupo, possibilitando novas formas de ser, e agir no mundo contemporâneo. Com o presente trabalho, foi possível visualizar o potencial do enfoque Sociopsicodramático, que incitou a ruptura com conservas sociais hegemônicas que acabam tornando seres enrijecidos, bem como a desnaturalização de práticas baseadas no modelo hospitalocêntrico, que procura apenas tamponar os sintomas.
Nesse sentido, o Sociopsicodrama tornou-se primordial para este trabalho de experiência acadêmica, em que as usuárias das políticas públicas de saúde, o grupo de mulheres em questão, tiveram, além de um espaço de escuta, um espaço de transformação integral, no qual puderam expressar-se e visualizar outras possibilidades de vida, através da invenção de papéis proporcionados pelo palco psicodramático, uma vez que, no desenrolar dos encontros, as participantes entraram em contato com a capacidade de brincar em outros papéis, vivenciar diferentes modos de enxergar a vida, acreditando em suas forças criadoras, a partir de um espaço versátil em que a espontaneidade era libertada no como se.
Sob essa ótica, essas transformações foram possíveis, pois o olhar moreniano desloca o olhar individualista e a-histórico sobre os indivíduos, articulando sua filosofia à proposta da clínica ampliada, inquietando o próprio saber psicológico, suas práticas e seus diagnósticos e colocandoos em movimento. Destarte, ao preparar uma prática interventiva, precisamos considerar todos os aspectos envolvidos, para que assim não nos fixemos apenas na escuta, mas possamos incitar um novo ver, sentir e agir aos sujeitos submetidos a essa intervenção, assim como a nós mesmos, para que tenhamos a consciência da necessidade de novas práticas profissionais, imersas na flexibilidade de uma visão ampla das diferentes realidades subjetivas provocando-nos a vivenciar uma nova postura ético-política, permeada pelo desassossego e não pelo comodismo em nosso campo de atuação, com ideias prontas, como se estas fossem fórmulas milagrosas, capazes de curar todos os modos subjetivos de sofrimento.
Para finalizar, fazendo alusão às palavras de Clarice Lispector (1984) apresentadas na epígrafe deste trabalho, o Psicodrama no campo da Saúde Coletiva não busca preceder "essa coisa que não quero sequer tentar definir", mas traz a "alegria mansa" como palco de invenção às políticas públicas de saúde.
Referências
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Endereço para correspondência
Pâmela V. Morin
Sto Antonio Consolata s/nº Três de Maio
CEP 98910-000
e-mail: pamelamorin@bol.com.br
Oriana H. Hadler
Rua Prof. Cristiano Fischer 818, apto. 602
Petrópolis – Porto Alegre, RS
CEP 91410-000
e-mail: orianahhadler@terra.com.br
Recebido: 11/02/2012
Aceito: 13/03/2013