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Revista Brasileira de Psicodrama

On-line version ISSN 2318-0498

Rev. bras. psicodrama vol.26 no.2 São Paulo July/Dec. 2018

https://doi.org/10.15329/2318-0498.20180027 

ARTIGOS INÉDITOS

 

O uso das peças do xadrez no jogo dramático: desdobramentos sociométricos e sociodinâmicos

 

The use of chess pieces in a dramatic game: sociometric and sociodynamic unfolding

 

El uso de las piezas del ajedrez en el juego dramático: desdoblamientos sociométricos y sociodinámicos

 

 

Carolina Moreira AlcântaraI; Maria Inês Gandolfo ConceiçãoII

IMestre e doutoranda em Psicologia Clínica e Cultura pela Universidade de Brasília (UnB). Professora e supervisora de estágio em psicologia clínica no Centro Universitário de Brasília (UNICEUB). Especialista em Impactos da Violência na Saúde (FIOCRUZ – 2018). Finalizando formação em Psicodrama Clínico Nível I (ABP – 2018). E-mail: carolmalcantara@gmail.com
IIDoutora em Psicologia pela Universidade de Brasília (2000). Pós-doutora pela Universidade Federal Fluminense (2010/2011) e pela University of Toronto – CAMH/CICAD (2014-2015). Professora e coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica e Cultura (PPGPsiCC/IP/UnB). Psicodramatista didata supervisora (2010). E-mail: inesgandolfo@gmail.com

 

 


RESUMO

Este artigo propõe o uso das peças do xadrez no psicodrama como objeto intermediário, abordando suas potencialidades e limitações. A técnica tem sido útil na identificação de conflitos interpessoais em distintas abordagens psicoterapêuticas. Propomos uma articulação do xadrez como instrumento psicodramático e sociométrico e as contribuições de Moreno, explorando sua utilização, como: 1) aquecimento para eliciar emoções e identificar conflitos; 2) instrumento de diagnóstico do átomo social; e 3) ferramenta para a realização de teste sociométrico. Apresenta-se um protocolo de aplicação do xadrez na construção do átomo social no atendimento individual, para auxiliar o terapeuta na utilização desse recurso. Conclui-se que o uso psicoterápico das peças do xadrez requer do psicodramatista criatividade e espontaneidade.

Palavras-chave: psicodrama, relações interpessoais, desempenho de papel, rede social


ABSTRACT

This article proposes the use of chess pieces in psychodrama as an intermediary object, approaching its potentialities and limitations. The technique has been useful in identifying interpersonal conflicts in different psychotherapeutic approaches. We propose an articulation of chess as a psychodramatic and sociometric instrument and the contributions of Moreno, exploring its use as: 1) warming-up to elicit emotions and identify conflicts; 2) instrument of diagnosis of the social atom; and 3) tool to perform sociometric test. A protocol for the application of chess in the construction of the social atom in individual care is presented to assist the therapist in the use of this resource. It is concluded that the psychotherapeutic use of chess pieces requires psychodramatist's creativity and spontaneity.

Keywords: psychodrama, interpersonal relations, role playing, social networking


RESUMEN

Este artículo propone el uso de las piezas del ajedrez en el psicodrama como objeto intermedio, abordando sus potencialidades y sus limitaciones. La técnica ha sido útil en la identificación de conflictos interpersonales en distintos enfoques psicoterapéuticos. Proponemos una articulación del ajedrez como instrumento psicodramático y sociométrico y las contribuciones de Moreno, explorando su utilización como: 1) caldeamiento para eliciar emociones e identificar conflictos; 2) instrumento de diagnóstico del átomo social; y 3) herramienta para realizar el test sociométrico. Se presenta un protocolo de aplicación del ajedrez en la construcción del átomo social en la atención individual, para auxiliar al terapeuta en la utilización de ese recurso. Se concluye que el uso psicoterápico de las piezas del ajedrez requiere del psicodramatista creatividad y espontaneidad.

Palabras clave: psicodrama, relaciones interpersonales, desempeño de papel, red social


 

 

INTRODUÇÃO

Nosso interesse pelo jogo de xadrez (re)surgiu com base nos relatos de clientes. A partir de reiteradas metáforas, como "sinto que estou em xeque-mate", "ele é um reizinho, e nós somos apenas os peões", "eu sou a rainha, e meu marido é o rei", pesquisamos o tema que nos levou ao artigo da psicodramatista Reiko Schawb (1978), citado posteriormente por Blatner e Blatner (1996) como a técnica do tabuleiro de xadrez (chessboard). Essa técnica é tida como "uma variação do sociograma de ação e ilustra a gama de possibilidades de símbolos que podem ser utilizados no aquecimento dos protagonistas para os diversos papéis em suas redes sociais" (Blatner & Blatner, 1996, p. 180).

A história do xadrez na prática clínica inicia-se no Oriente. O médico persa Rhazes ou Rasis (852-932 d.C.), também conhecido por sua prática denominada psychoterapeusis (Lian, 1945), aconselhava alunos e pacientes a partir das metáforas e das aplicações das configurações do xadrez nas situações da vida real (Fadul & Canals, 2010). No Ocidente, a analogia entre o jogo de xadrez e o processo clínico no mundo ocidental foi mencionada por Freud (1913/1996), ao descrever a relação que se dá entre analista e analisando, não podendo existir um sem o outro. Posteriormente, psicanalistas (Melamed & Berman, 1981), psicólogos cognitivoscomportamentais (Aciego, Garcia & Betancort, 2012; Demily et al., 2009; Saariluoma, 2001) e behavioristas (Mechner, 2010) também citaram o uso do xadrez como instrumento de intervenção psicoterapêutica. Em uma perspectiva desenvolvimental, Sirgirtmac (2016) em estudo quantitativo identificou um aumento positivo no pensamento criativo. Observa-se que, entre estes, destacam-se os estudos psicanalíticos que se concentram nos aspectos simbólicos do jogo: matar o rei, ou seja, o parricídio, uma alusão à questão edípica (Fine, 1956; Fried, 1992; Reider, 1959).

A partir do viés socionômico, o presente trabalho busca subverter o jogo do xadrez, ou seja, não é solicitado ao paciente que desenvolva uma partida e nem são analisadas as jogadas de acordo com as regras da Federação Internacional de Xadrez (FIDE). Dessa forma, o interesse do psicodramatista concentra-se: no aspecto simbólico coconstruído na intersubjetividade da relação terapeuta-cliente, na promoção do resgate da espontaneidade e no desenvolvimento de papéis, mantendo especial atenção nas relações de poder e nas lógicas afetivas de condutas subjacentes.

Entre a conserva cultural e a espontaneidade: o uso das peças do xadrez no jogo dramático

Moreno (1997) elucida que a espontaneidade e a conserva cultural são conceitos interligados, não existindo de forma pura, sendo, porém, fenômenos tangíveis e observáveis. Ambas as categorias estão intimamente relacionadas ao conceito de papel, entendendo esse último como "uma fusão de denominadores coletivos e diferenciais individuais" (Moreno, 2008, p. 95). O conceito de papel é centrado na Socionomia, pois o surgimento do papel é anterior ao self, clara referência aos primeiros papéis desenvolvidos, a saber, os psicossomáticos. Portanto, para Moreno, os papéis sociais desenvolvem-se em um momento posterior, baseados nas experiências vividas em papéis psicossomáticos e psicodramáticos (Fox, 2002). Desse modo, como bem elucida Nery (2014), a vivência do papel social em determinada situação mobiliza estímulos internos (cognição, história pessoal e afetividade), estímulos externos (tipos de vínculos, contextos, cultura e momento), bem como expectativas que incluem os critérios sociométricos (projetos dramáticos) e a busca da homeostase biossociopsíquica. Sob a perspectiva da Sociodinâmica, é no role playing que é possível resgatar a espontaneidade-criatividade.

Se, em uma visão psicanalítica, o jogo de xadrez remete à repetição do conflito edípico, em uma perspectiva moreniana, utilizar as peças do xadrez permite brincar de rei, de rainha, de cavaleiro, de prisioneira na torre e até de Deus. Especialmente sob o aspecto da repetição no jogo, Motta (2002) define os jogos de repetição circular, os quais levam à ação conservada, cristalizada, e os jogos de repetição em espiral, que promovem a atualização e a aprendizagem. Desse modo, observa-se que nem todos os jogos são dramáticos, e nem toda dramatização é terapêutica. O uso terapêutico da ação consiste, portanto, em fornecer à pessoa uma variedade de situações flexíveis capazes de (re)configurar a complexidade da própria vida (Moreno, 1983).

Como sintetiza Conceição (2012), os jogos dramáticos podem ser inseridos em três contextos diferentes (social, grupal ou psicodramático), tendo como instrumentos: o diretor, o ego auxiliar, o palco, a plateia e o protagonista; podendo se utilizar de diferentes técnicas (solilóquio, duplo, espelho, inversão de papéis e interpolação de resistência). Ademais, o jogo dramático diferencia-se de outros tipos de jogos, pois apresenta como etapas: o aquecimento, a dramatização e o compartilhar, sendo possível usar diferentes critérios, como o jogo sociométrico, utilizando critérios sociométricos de agrupamento; o jogo de comunicação, para a melhoria da comunicação e de processos laborais; e o jogo de metacomunicação, servindo para o grupo analisar e comunicar as próprias interações. Especificamente, o jogo dramático consiste em um meio para o trabalho terapêutico que se estabelece no aqui e agora e deve considerar as características das pessoas que compõem o grupo e a fase em que o grupo se encontra (Guimarães, 2011). Para além de se considerar o processo de desenvolvimento grupal, outros autores relacionam os jogos dramáticos com o processo de desenvolvimento da matriz de identidade (Castanho, 1995; Yozo, 1996) e a teoria dos papéis (Monteiro, 1994; Motta, 2002).

Motta (2002) categoriza os jogos em: jogos de percepção (que favorecem a percepção da relação Eu-Tu e o role taking), jogos de iniciação (que promovem comportamentos novos e o role playing), jogos de improviso (como o teatro espontâneo, permitindo o reconhecimento da trama do drama) e jogos dramáticos (que utilizam elementos simbólicos, auxiliando o processo de role creating no desenvolvimento de papéis). Na prática, a autora pontua que os jogos podem alcançar a dimensão "dramática", desde que sejam incluídas novas ações ou técnicas, sendo possível perceber que um jogo dramático realmente ocorreu somente após sua realização. Desse modo, para que se desenvolva um jogo dramático, pressupõe-se que a pessoa "já tenha armazenado aprendizagens que atuarão como polarizadoras da espontaneidadecriatividade" (Motta, 2002, p. 94). A partir dessas contribuições, considera-se o jogo dramático um instrumento da sociodinâmica, que permite explorar a dinâmica de diversos papéis, a partir de elementos simbólicos, tendo como objetivo promover a espontaneidade-criatividade.

O uso de objetos intermediários é frequente nos jogos dramáticos. Rojas-Bermúdez (1970/2016) relata o uso de objetos intermediários no trabalho com marionetes em psicóticos crônicos, tendo descrito oito classificações para mencionar as qualidades do objeto intermediário: existência real e concreta, inocuidade, maleabilidade, transmissibilidade, instrumentabilidade, capacidade de adaptação, assimilação e identificação. Esse autor explora a importância da relação papel como objeto intermediário e papel com o "si mesmo", enfatizando que o "objeto intermediário pode ultrapassar a barreira do 'si mesmo' sem desencadear reações de alarme, que lhe confere a possibilidade de ser utilizado como instrumento terapêutico" (Rojas-Bermúdez, 1970/2016, p. 76), permitindo, assim, compreender os vínculos e as lógicas afetivas de conduta. Mais recentemente, observam-se novas criações como a de Casson (2002, citado por Casson 2007, p. 238) e o Communicube e o Communiwell, ferramentas inicialmente utilizadas com pessoas em vivências psicóticas, mas que permitem a diferentes clientes a simbolização por miniaturas, promovendo o acesso a conteúdos significativos de maneira segura, criativa e terapêutica.

Schwab (1978) defende que o uso de objetos inanimados como as peças de xadrez para representar pessoas constitui algo muito menos ameaçador e conflituoso para os indivíduos que posicionar pessoas reais de acordo com suas relações interpessoais percebidas em um grupo, ou no caso de uma escultura. Desse modo, a utilização do xadrez proposta neste trabalho não necessita de um profundo conhecimento utilizado no jogo comum, seguindo, assim, a orientação sugerida por Schwab (1978), em que não é necessário saber as técnicas de abertura, estratégia, táticas de desenvolvimento típicas dos campeonatos de xadrez; basta apenas conhecer as peças e utilizá-las de forma mais ampla. Assim, o conhecimento das peças, a importância (valor) e a movimentação de cada uma são feitos de maneira simples: apresenta-se o jogo de xadrez e suas 32 peças, em que metade delas é de cor preta e a outra, branca. Cada um dos dois conjuntos de 16 peças é composto de oito peões, duas torres, dois cavalos, dois bispos, uma rainha e um rei, e cada peça tem seu próprio papel e movimento no jogo. Observase, portanto, que as peças possuem diferentes tamanhos e formatos. A variação de tamanho das peças guarda uma relação direta com a proporção de valor no jogo: as peças de menor valor são os peões, seguidos dos cavalos, dos bispos, das torres e das rainhas. As peças de maior valor são os reis. Assim, a partir de peças concretas, com características distintas, é possível simbolizar as pessoas ao redor do cliente, deixando-o escolher livremente as peças que compõem sua rede de relações. As instruções dadas aos participantes necessitam ser curtas e claras: primeiramente, são mostradas as peças do xadrez, sua disposição no tabuleiro, como se movimentam, mencionando, ainda, que o objetivo do jogo é fazer xeque-mate, ou seja, matar o rei. Informa-se, assim, que a peça mais importante de um jogo de xadrez é o rei. Posteriormente, pede-se que o cliente descreva sua família, ou outra relação interpessoal significativa, solicitando que os membros sejam representados por meio das peças do xadrez e considerando suas distâncias interpessoais no tabuleiro.

As dicotomias do xadrez: papel, contrapapel e relações de poder

Entendemos que as peças do xadrez servem para exprimir os papéis sociais, imaginários, latentes, psicodramáticos, possibilitando a explicitação das dinâmicas vinculares. Nery (2014, p. 21, citando Aguiar, 1990) elucida: "todos os tipos de papéis que desempenhamos podem ser relacionados às categorias de vínculos que estabelecemos: os residuais, os atuais e os virtuais". A mesma autora entrelaça as contribuições de Fonseca (1980) ao considerar que o aprendizado emocional resulta na modalidade vincular afetiva, que influenciará no modo peculiar de desempenho dos papéis de cada pessoa. Quando essa modalidade vincular está cristalizada, um vínculo residual específico permanece incorporado, composto da criança interna ferida (Cukier, 1992) e do papel complementar interno patológico (Bustos, 2005). Nery (2014) entende por vínculo o resultado do fenômeno tele que viabiliza a complementariedade de papéis sociais, repercutindo nos estados coconscientes e coinconscientes. Por sua vez, a afetividade "é o conjunto de respostas subjetivas e definidas, expressas sob forma de sentimentos, sensações, estados emocionais, desejos, necessidades e temores" (Nery, 2014, p. 37), que tem como objetivo a manutenção do equilíbrio biossociopsíquico por meio do desempenho de papéis.

De modo semelhante, "o exercício de poder ocorre por meio de múltiplas dinâmicas vinculares formadas por condutas", constituindo um dos pilares do surgimento e do desenvolvimento dos papéis sociais e do "eu" (Nery, 2014, p. 108). A partir das contribuições de Foucault (1985) sobre a noção de poder relacional associada à prática sociátrica, a referida autora sistematiza seis instâncias relativas às dinâmicas de poder nos vínculos: a primeira se refere ao estabelecimento dos vínculos simétricos e assimétricos; a segunda pontua sobre a resultante dos estados do coconsciente e coinconsciente que contradiz as práticas de poder nos vínculos; a terceira refere-se aos vínculos latentes; a quarta abrange os dispositivos e os recursos de poder que podem ser utilizados nos vínculos; a quinta diz respeito à afetividade nas relações de poder; e a sexta refere-se à conexão das dinâmicas de poder do microcosmo do vínculo com o macrocosmo da sociedade (Nery, 2014).

Entende-se que o xadrez com seus conjuntos de peças brancas e pretas permite explicitar conflitos e relações complementares. A lógica binária das cores é analisada a partir das significações que o paciente verbaliza, revelando conflitos que perpassam por questões afetivas e vinculares, como também explicitando questões de gênero, étnicas e sociopolíticoeconômicas, permitindo, assim, a elucidação sobre as relações de poder em que o paciente está inserido. Em nossa prática clínica, o xadrez torna-se útil por trazer à tona questões afetivas, vinculares das microrrelações, como também denuncia as violências sociais que eventualmente ficam invisibilizadas em um contexto clínico. Um exemplo dessa questão ocorreu na construção do átomo social em uma aplicação coletiva para estudantes de psicologia. Na ocasião, um estudante relatou sobre seus conflitos étnico-raciais intrafamiliares, enquanto se identificava como afro-descendente em uma família miscigenada, verbalizando não apenas sobre as discriminações vividas no seio familiar, como também seus vínculos e sua afetividade em relações de poder que promoviam o reconhecimento de sua identidade e o fortalecimento de sua autoestima. Ao final da atividade, após a mobilização emocional, o estudante compartilhou novos insights que teve em relação à sua forma de vinculação. Assim, parte-se do princípio que o papel do terapeuta é promover o enfrentamento de qualquer forma de violência; e, para tanto, torna-se necessário, primeiramente, evidenciá-la.

O uso do xadrez como ferramenta de aquecimento

Como afirmou Moreno (1997), o processo de aquecimento manifesta-se em todo e qualquer comportamento de um organismo vivo, expressando em uma dimensão corporal, psicológica e social. O aquecimento (warming up) consiste em uma das fases da sessão psicodramática, podendo ser dividida em duas partes: inespecífica e específica (Santos & Conceição, 2014). O aquecimento inespecífico é uma etapa de preparação do grupo para a dramatização por meio de elementos que possibilitem o relaxamento, o foco no momento presente, a escolha do tema a ser trabalhado. Por sua vez, o aquecimento especifico é o momento de aquecimento do(a) protagonista para a dramatização de seu conflito. Embora a etapa do aquecimento esteja prevista no início da sessão como requisito para uma boa dramatização, sua manutenção nas demais etapas é fundamental para o bom andamento e o desfecho da sessão.

A utilização das peças do xadrez permite que o jogo dramático ocorra mesmo em ambientes de espaço físico restrito. O tabuleiro constitui, portanto, o primeiro instrumento psicodramático: o palco. No tabuleiro, assim como no palco, "realidade e fantasia não se conflitam; ao contrário, são funções de uma esfera mais ampla - o mundo psicodramático dos objetos, pessoas e eventos" (Moreno, 2008, p. 103). Utilizou-se neste trabalho do tabuleiro quadrado com três demarcações (vide Figura 1). Sugere-se, porém, a experimentação de outras estruturas em formato circular com diferentes níveis, assim como propõe Casson (2007).

 

 

O tabuleiro torna-se, então, o palco, o locus da cena dramática. O momento de aquecimento varia de acordo com o momento de cada cliente, bem como de suas ações diante da proposta. Para alguém que nunca jogou xadrez e que o considera um jogo difícil, torna-se necessário promover um ambiente relaxado, garantido por meio de falas, como: "vou apenas mostrar as peças, não vamos jogar xadrez, vamos utilizá-las de uma maneira diferente e fácil". Para outro cliente que conhece o jogo, demonstrando ser mais competitivo nas relações interpessoais, dizer: "não vamos jogar xadrez da maneira que você conhece, mas gostaria que fechasse os olhos, respirasse e se lembrasse de cada peça do xadrez" pode ser útil para promover a abertura para uma nova ação. Após um breve momento de aquecimento ou relaxamento, em que são mostradas ou relembradas todas as peças do xadrez, é dada uma consigna: escolha uma peça que represente você em sua vida e a posicione no centro do tabuleiro. Após escolher a peça, solicita-se também: "de maneira semelhante, escolha as peças que representem as pessoas mais significativas de sua vida e posicione-as no tabuleiro de acordo com a distância emocional que você sente com relação a elas agora".

Cabe citar, ainda, a experiência com um adolescente tido como psicótico catatônico, que solicitou jogar uma partida "tradicional" com a terapeuta. Nesse caso específico, foi terapêutico atender ao pedido do cliente e propiciar um jogo que inicialmente poderia ser classificado como "circular", uma vez que a pergunta do diretor: "em que situação da sua vida você se percebe assim?" (referindo-se ao momento final de xeque-mate) possibilitou a verbalização sobre os conflitos familiares que o cristalizavam no papel de paciente identificado. Assim, se o cliente for gradativamente aquecido ao longo do jogo, sendo incentivado a se conectar com seus sentimentos e pensamentos por meio de solilóquios durante suas jogadas, especialmente, seus sacrifícios, sua estratégia, ora mais agressiva, ora mais defensiva, a substituição das peças por pessoas é conduzida de maneira fluida, e a cena pode ser desenvolvida, culminando na dramatização.

A partir do aquecimento verbal, o diretor introduz o cliente a se confrontar com os sentimentos derivados de sua interação com as pessoas presentes em seu átomo social e a identificar possíveis tensões resultantes das interações nos papéis e nos contrapapéis emergentes. Com base nas tensões e emoções explicitadas, o diretor trabalha horizontalmente os temas emergentes, evoluindo para uma possível verticalização do conflito por meio de dramatização do tema protagônico.

O xadrez como jogo dramático: explorando o átomo social no psicodrama bipessoal

Entende-se como átomo social a configuração social das relações interpessoais, as quais se desenvolvem desde o nascimento de um indivíduo, ampliando-se a partir das escolhas mútuas que cada pessoa realizou, sendo composto, portanto, de várias estruturas tele e formando, assim, as redes sociométricas (Moreno, 1997, 2008). Cukier (1992) ressalta a contribuição desse jogo exploratório como um significativo recurso para o incremento da anamnese, promovendo ainda um treino para futuras dramatizações.

Schwab (1978) pontua que a relação representada pelos clientes pode ser, em parte, a representação da relação almejada, que o paciente deseja ter ou acredita que deveria existir. O simples comentário que espelhe as escolhas realizadas, como: "vocês são bem próximos um do outro", ou "seus filhos são mais próximos de seu marido que de você" ou "você não está certo onde deveria ficar em relação à sua esposa e à sua filha", ajuda os clientes a explorar seus sentimentos e suas percepções e examinar seus pensamentos por trás de seus comportamentos. Quando o fazem, eles podem modificar a configuração com base no que acreditam ser mais fidedigno à realidade.

A autora ilustra com o seguinte exemplo:

uma mulher, em resposta a um comentário, "essa filha é mais próxima a você que sua outra filha", admitiu que atualmente a situação era justamente a oposta, porém, colocou as peças em disposição diferente, porque ela foi acusada pela outra filha de preferir uma filha à outra. Como ela explicou sobre a situação em família, ela moveu as peças para uma posição mais adequada que descrevia a relação existente. As diferenças entre as relações atuais e as desejadas ficam evidentes a partir das duas configurações sociométricas. (Schwab, 1978, p. 43, tradução livre)

Cabe ressaltar que as explorações do átomo social revelam, ainda, a íntima relação entre a teoria do momento e a teoria da espontaneidade. Ambas as teorias se relacionam quando o aqui e agora é vivenciado como uma experiência nova, sui generis. Para tanto, é necessário que ocorra a mudança do cenário/situação/ambiente e que essa mudança seja percebida pelo indivíduo. A percepção adequada por parte do indivíduo é promovida a partir do aquecimento preparatório de um ato espontâneo (Guimarães, 2011).

Assim, a teoria do momento e da espontaneidade se influenciam mutuamente no sentido de que a espontaneidade precisa de um momento adequado para surgir, o que implica dizer que as mudanças em um sujeito acontecem em determinado momento. Esse momento, por sua vez, é antecedido de instantes que precedem a mudança; sem isso, não há processo criativo. Segundo Moreno (1983, p. 155): "para captar verdadeiramente um momento, necessitamos de algum meio suscetível de determinar seu surgimento, por exemplo, contrastando-o com o instante ou os instantes que o precederam, avaliando o grau de mudança e a experiência de novidade que provoca".

Dessa maneira, no momento adequado, o psicodramatista ou o psicoterapeuta pode fazer o duplo ou propor a inversão de papéis. A aplicação do xadrez, ademais, pode transformar o que aparece para servir a uma cena dramática mais profunda. Por sua vez, as explicações verbais que os indivíduos espontaneamente fazem e os comportamentos não verbais exibidos no processo de escolha e posicionamento das peças permitem uma dimensão adicional da análise. O drama não somente proporciona aos psicoterapeutas e aos psicodramatistas um insight mais abrangente sobre o mundo interno do cliente, mas também serve como um estímulo para o aprofundamento sobre as novas informações trazidas pela técnica para serem trabalhadas no setting terapêutico.

De acordo com o que Schwab (1978) propõe, no atendimento individual, a escolha das peças e o posicionamento delas permitem a oportunidade de explorar e clarificar os sentimentos do próprio cliente para si mesmo e os sentimentos nas relações interpessoais. Para além do propósito diagnóstico, essa oportunidade enseja no protagonista a chance de ressignificação de seu lugar social, o que pode acarretar mudanças profundas em suas relações. Pessoas significantes com as quais o cliente tem uma relação conflituosa podem ser excluídas numa tentativa de não as ver ou de serem incluídas de maneira que sugira que o indivíduo reconheça a existência desses conflitos.

O átomo social tem sido utilizado no contexto psicodramático basicamente com dois propósitos: diagnóstico e interventivo. As variações de seu uso são diversas e correm a cargo da criatividade do terapeuta. Embora seja uma configuração derivada do estatuto sociométrico do indivíduo, o átomo social ganha diversos contornos e pode servir de inspiração para a elaboração de jogos dramáticos com esses propósitos (diagnóstico e intervenção), podendo derivar de seus desdobramentos ou de sua própria confecção. No caso do uso das peças de xadrez no psicodrama, de forma análoga ao átomo social "clássico", a exploração da disposição das peças no tabuleiro, bem como das emoções advindas da entrevista nos respectivos papéis, serve para explicitar conflitos e fazer emergir conteúdos inconscientes, para, assim, adentar em cenas mais profundas, via verticalização.

O uso do xadrez como instrumento para o psicodrama grupal e para o teste sociométrico

Para o psicodrama grupal, o xadrez pode ser usado a partir da expressão de cada membro diante da percepção das relações existentes em um grupo, usando as peças do xadrez e discutindo os significados dessas relações (Schwab, 1978). Pais e filhos, por exemplo, podem ser solicitados a descrever suas famílias individualmente. A ocasião pode promover a eclosão de questões não resolvidas à superfície.

Vislumbra-se, ainda, a utilização do xadrez para a realização de uma nova modalidade de teste sociométrico, entendendo-o como o instrumento que examina as estruturas sociais de um grupo específico, por meio da medição das correntes de atração e repulsa que existem entre as pessoas em determinado momento (Fox, 2002). Trata-se, portanto, da análise do conflito entre a posição real que determinado indivíduo mantém no grupo e a posição revelada por suas escolhas.

Propõe-se o uso do xadrez como teste sociométrico para a realização de grupos já formados, destacando o necessário cuidado aos aspectos éticos envolvidos e a cuidadosa preparação do grupo, antes e depois da realização do teste. Diante dessas ressalvas, propõe-se a realização de duas maneiras de aplicar o teste sociométrico. O primeiro, em que é dada a consigna: escolha uma peça que representa você no grupo. Depois de cada um escolher a peça, solicita-se: posicione a peça no tabuleiro de acordo com a distância emocional que sente em relação aos demais membros do grupo, resultando, assim, na configuração do sociograma do grupo. A outra maneira sugerida assemelha-se mais aos moldes tradicionalmente propostos por Moreno, em que o participante escolhe uma peça para si e também para cada participante, registrando em uma folha de papel suas escolhas. O teste perceptual, por sua vez, poderia ser utilizado de maneira semelhante, em que cada participante registra a forma que acredita ser percebido pelos outros. O resultado poderia ser analisado a partir de uma tabela.

Considerações finais: o uso do xadrez, possibilidades e limitações

A partir dessas contribuições, vislumbra-se a utilização do xadrez: como aquecimento, para eliciar emoções e identificar conflitos; como instrumento de diagnóstico do átomo social; e como ferramenta para a realização do teste sociométrico em casais, famílias e grupos, auxiliando a compreensão da dinâmica do indivíduo, de suas relações e de suas escolhas sociométricas.

No presente trabalho, propõe-se o uso do tabuleiro-átomo (Figura 1), pois permite observar com mais clareza a distância afetiva. A atribuição de significado dessas relações de proximidade ou distância pode ou não estar associada à qualidade do relacionamento afetivo, sujeita à confirmação do cliente, e não apenas à interpretação do diretor. A significação atribuída a esse lugar tem um peso importante na apreciação que o cliente faz de suas relações, pois, assim como na técnica do espelho, a configuração derivada dessa montagem reflete seu lugar no universo relacional e permite a tomada de decisões para possíveis mudanças. Nessa mesma esteira, a escolha das peças de xadrez pelo cliente detém significações que devem ser partilhadas pelo cliente, e não subentendidas pelo diretor, podendo ter significados muito próximos aos previstos no jogo de xadrez. Cabe ressaltar que, na prática, não coincidentemente, o cliente costuma tecer considerações que associam os papéis das pessoas em sua vida às características da peça escolhida para as representar, isto é, é comum atribuir traços de autoridade, poder, disputa e submissão às peças nos respectivos papéis de sua vida. Essa reflexão, porém, precisa ser expressa pelo próprio cliente para favorecer o insight e ganhar potencial terapêutico.

No que tange aos significados simbólicos individuais que as pessoas projetam nas peças do xadrez, Schwab (1978) enfatiza que estes, frequentemente, revelam o acordo entre as pessoas e suas dificuldades. A autora cita o exemplo de uma mulher que escolhe o cavalo para simbolizar seu desejo de fugir de um relacionamento que estava se tornando crescentemente problemático. A mesma peça foi escolhida por um homem, em uma sessão de casal, para simbolizar sua própria imagem como um "burro de carga" e seu status na família. Duas torres foram usadas por uma mulher para representar a si mesma e seu marido, para demonstrar como ambos eram bastante introspectivos e acabavam por construir muralhas ao redor de si mesmos. Em outro contexto, as torres foram usadas para simbolizar a "solidez da relação". Schwab (1978) acrescenta ainda que alguns indivíduos acabam por escolher a maior peça do xadrez (o rei) para si mesmos, de modo que possam expressar o poder e a importância de seus atributos para si mesmos, ou escolher a menor peça (o peão) para simbolizar o sentimento de insignificância e (des)empoderamento. Todavia, em nossa experiência clínica brasileira, por vezes, o rei apareceu como uma figura "importante, porém frágil", pois "necessita de que outros cuidem".

Assim, o uso do xadrez no contexto clínico tem revelado que clientes que possuem um conhecimento prévio do xadrez acabam por posicionar uma única peça em cada quadrante, para, eventualmente, proporcionar um jogo propriamente dito, bem como possíveis intervenções psicoterapêuticas em que o jogo e a vida real se misturam, proporcionando belíssimos insights e cenas dramáticas. Observamos, também, que determinados pacientes acabam por posicionar mais de uma peça em um mesmo quadrante, sendo esse aspecto uma informação significativa, que pode ser explorada pelo psicoterapeuta em sessão. De modo geral, percebemos que os pacientes depressivos apresentam um átomo social mais reduzido, com relações distanciadas, com poucas peças que simbolizam pessoas ou com peças que acabam por representar um grande grupo ou instituições, como: "colegas da faculdade", "igreja", "pessoal do trabalho". Esses clientes, frequentemente (porém, não exclusivamente), escolhem peças de menor valor no jogo, como um peão, um cavalo ou uma torre para representarem a si mesmos.

Outra vantagem no uso do xadrez consiste em propiciar, mais rapidamente, que as pessoas mostrem, consciente ou inconscientemente, seu mundo interno em um período mais curto de tempo, sendo sugerido por Schwab (1978) o tempo de 5 a 10 minutos, no máximo, para escolher e posicionar as peças do xadrez. Ademais, o uso de jogo de xadrez encoraja uma postura ativa do paciente e um envolvimento maior no processo terapêutico, tornando-se uma ferramenta especialmente útil para clientes tímidos e para aqueles que não estão preparados para articular suas experiências íntimas por meio de um processo verbal. Assim, o uso psicoterapêutico do xadrez pode ser mais indicado para situações em que os clientes precisem estar mais conscientes sobre suas relações interpessoais e identificar onde em suas relações necessitam de maior atenção (Schwab, 1978).

Entre as limitações da técnica, está a quantidade restrita de peças. Schwab (1978) soluciona a questão combinando dois ou mais jogos de xadrez para acomodar cada situação. No entanto, consideramos que o modo como cada indivíduo lida com a limitação de peças (recursos) é um dado que pode ser analisado no contexto terapêutico, bem como no contexto de pesquisa. Outra limitação observada por Schwab (1978) consiste no uso com crianças pequenas, sinalizando que elas tendem a posicionar as peças de maneira aglomerada em vez de posicioná-los em uma distância que represente a relação interpessoal entre estes (como no átomo social). Esse aspecto é interessante, pois observamos que alguns pacientes mais regredidos acabam por simbolizar suas relações da mesma forma que as crianças.

Ademais, o uso do xadrez constitui uma vantagem em relação ao uso de almofadas ou outros objetos, pois apresenta aspectos simbólicos significativos, permitindo a sistematização dos dados coletados para fins de pesquisa, possibilitando ainda que qualquer terapeuta bem treinado, em qualquer consultório, utilize essa acessível e compacta ferramenta, somando a essa, as já conhecidas técnicas do psicodrama, como solilóquio, inversão de papéis, espelho, duplo etc. Por último, mas não menos importante, o jogo de xadrez pode ser usado ainda em pesquisa em que se estuda e se identifiquem as mudanças ocorridas nas relações interpessoais. Esse registro das relações interpessoais antes e depois das intervenções psicoterapêuticas pode se tornar uma importante medida para demonstrar o processo de mudança. Entretanto, o uso do jogo de xadrez necessita de maior experimentação, especialmente por psicodramatistas. Seu uso na psicoterapia e em atividades educacionais requer criatividade e espontaneidade do psicodramatista que, em última instância, é o que determina seu valor como uma ferramenta de diagnóstico e intervenção nas relações interpessoais.

 

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Recebido: 26/1/2018
Aceito: 26/11/2018

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