SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.26 issue2In search of the moment: for a theory of temporality based on Moreno's workDomestic violence in scene: psychodramatic perspectives with women's group in the judicial system author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Services on Demand

article

Indicators

Share


Revista Brasileira de Psicodrama

On-line version ISSN 2318-0498

Rev. bras. psicodrama vol.26 no.2 São Paulo July/Dec. 2018

https://doi.org/10.15329/2318-0498.20180031 

COMUNICAÇÕES BREVES

 

Reflexões sobre a dinâmica das relações fraternas na vida adulta

 

Reflections on the dynamics of fraternal relations in adult life

 

Reflexiones sobre la dinámica de las relaciones fraternas en la vida adulta

 

 

Adelsa Cunha

Psicóloga clínica. Psicodramatista didata supervisora e terapeuta de adultos e casais. E-mail: fadcunha@uol.com.br

 

 


RESUMO

O conceito de cluster de papéis considera que os papéis se agrupam segundo determinada dinâmica. A espontaneidade de um papel não atuado é transferida para outro atuado no presente. Assim, dinâmicas incorporadas nas relações entre irmãos se manifestam nos papéis sociais que envolvem a simetria vincular. Este texto reflete sobre como o terceiro cluster (fraterno) pode dar subsídios para a compreensão de clientes e para ajudá-los a enfrentar a tarefa de saber-se mais um no mundo, com tantos iguais.

Palavras-chave: psicodrama, papéis, cluster de papéis


ABSTRACT

The role clusters concept considers that roles are grouped according to a certain dynamics. The spontaneity of a non-performed role is transferred to another one performed in the present. Thus, dynamics incorporated in fraternal relations are manifested in the social roles that involve the symmetry of bond. This text reflects on how the third cluster (the fraternal) can give subsidies to better understand clients and to help them to face the task of knowing that they are one more in a world of like.

Keywords: psychodrama, roles, role clusters


RESUMEN

El concepto de cluster de roles considera que los roles se agrupan según determinada dinámica. La espontaneidad de un role no actuado es transferida a otro actuado en el presente. Así, dinámicas incorporadas en las relaciones entre hermanos se manifiestan en los roles sociales que envuelven la simetría vinculante. Este texto refleja sobre cómo el tercer cluster (el fraterno) puede dar subsidios para la comprensión de los clientes y para ayudarlos a enfrentar la tarea de saber más uno en el mundo, con tantos iguales.

Palabras clave: psicodrama, roles, clusters de roles


 

 

Vivemos em um mundo que apresenta um aspecto curioso: quanto mais informações, mais parece que estamos isolados. Temos assistido a uma crescente onda de radicalismo, a uma crescente falta de respeito com a liberdade do outro. A exacerbação da lógica "farinha pouca meu pirão primeiro" nos leva a pensar em como lidar com isso e de que forma é possível contribuir.

Como psicóloga clínica há mais de 30 anos e psicodramatista por formação e convicção, a autora tem refletido a respeito dessas questões que, inclusive, aparecem em seu cotidiano profissional. Quando se deparou com a dificuldade hoje existente de lidar com os iguais, de vivenciar a paridade. Há disputas constantes, rivalidades nocivas, e a competição faz parte do dia a dia, mesmo sem saber qual prêmio ou título está em jogo.

O que chama a atenção é o fato de que a vida atual, com todas as suas transformações, mudou também, e muito, os papéis familiares. Por necessidade, um número cada vez maior de mulheres, além do papel de mãe, tem de se dedicar a seus papéis profissionais, o que transforma a relação de acompanhamento dos filhos. Somam-se a esse aspecto as novas configurações familiares, nas quais estão presentes novas formas de fraternidade - meios irmãos, filhos dos novos companheiros da mãe e do pai, que muitas vezes convivem na mesma casa, mas não são irmãos biológicos - e ainda a necessidade de migração para outras cidades, muitas vezes em razão do desenvolvimento da carreira profissional.

Constata-se, assim, que o mundo do século XXI nos mostra que as relações familiares consanguíneas já não são, necessariamente, as mais importantes, nem presentes no dia a dia de muitas pessoas. Hoje, muitas relações fraternas desenvolvidas por escolha acabam ocupando o lugar que, ontem, era restrito à família biológica. Contudo, nem por isso vemos um mundo mais fraterno, mais compreensivo e respeitoso. Continuamos presenciando mais rivalidades e competições que compartilhamentos.

Durante décadas, a Psicologia se debruçou na tentativa de entender o comportamento humano, em seu desenvolvimento, focando principalmente as primeiras fases da vida. Dessa forma, a relação com a figura materna foi e ainda é a mais importante para a formação de sentimentos e emoções básicas do ser humano. Em segundo lugar, vem a relação com a figura paterna, dando-se pouca importância à relação com os irmãos, ou a vínculos fraternos, embora a maioria dos papéis desempenhados na vida ocorra naqueles em que o vínculo é eminentemente fraterno ou simétrico. Segundo Dalmiro Bustos (1990),

Existem dois tipos de vínculos: aqueles com complementaridade de igual responsabilidade, indicando simetria, que tem uma palavra que nomeia o vínculo. Do outro lado estão os vínculos assimétricos, os que devem ser denominados pelos papéis polares. No primeiro caso estão os vínculos de amantes, amigos, irmãos ou companheiros. Na outra categoria estão os de paifilho, professor-aluno, médico-paciente. (p. 115)

Sem querer questionar a importância das dinâmicas primeiras de nosso desenvolvimento, acredita-se que nossas mazelas psíquicas aparecem, fundamentalmente, quando estamos jogando e desempenhando papéis inerentes a situações de simetria vincular. Por exemplo: dificuldades de relacionamento no trabalho, dificuldade as relações amorosas, brigas e conflitos familiares etc.

Essas considerações encorajaram a elaboração deste texto, na esperança de poder compartilhar com alguns colegas a importância de refletirmos sobre a estruturação do cluster três ou fraterno e de, com isso, influenciarmos o estar no mundo das pessoas. O Psicodrama nos subsidia com esse conceito tão importante.

Como a autora tem estudado e aplicado a teoria de clusters de papéis há muitos anos, ela pensou que poderia ser interessante levantar uma reflexão do quanto esse conceito pode nos auxiliar em nosso trabalho, e não só na área clínica, mas também em todas aquelas que lidam com grupos e pessoas. Na verdade, o que ela quer defender é a necessidade de estarmos atentos aos vínculos fraternos e de sua importância no desenvolvimento humano.

Vamos começar pelo conceito de clusters de papéis para facilitar o entendimento do que quero defender.

Segundo Moreno (1978):

O eu então desenvolverá outra de suas funções centrais: a de selecionador de papéis. Cada momento de interação se exerce através do papel adequado. Filho, irmão, neto, sobrinho, amigo, aluno. Possuem denominadores comuns e características especiais para cada papel. E é o eu que seleciona e adequa os papéis e as respectivas condutas. O intercâmbio de experiências se realiza através do efeito cluster. (p. 115)

Bustos (1990) complementa:

Quando Moreno diz que os papéis interagem suas experiências, diz que esses se agrupam segundo certa dinâmica. Minha pergunta foi: como se agrupam as ramificações? Tomando como referência a ordem evolutiva podemos pensar que em cada período o bebê incorpora experiências que vão influir fortemente em seu futuro desenvolvimento. Sob esse ponto de vista podemos dividir esta aprendizagem em três grupos: cluster um, cujo complemento é a mãe ou o adulto que a represente; cluster dois, cujo complemento é o pai ou o adulto substituto; e o terceiro é o cluster três, cujo complemento é o irmão ou o seu equivalente. (p. 116)

Cada um desses clusters se relaciona a uma dinâmica específica. O cluster um é diretamente ligado à forma como lidamos com a dependência, aqui incluídas todas as formas decorrentes dela, tais como o quanto aceito minhas vulnerabilidades, sei pedir ajuda etc. A função é holding/acolhimento e as emoções básicas são a inveja e a voracidade. O cluster dois tem como dinâmica principal a conquista da autonomia e tudo o que está a ela associado, como saber nomear o que se quer, aceitar limites, saber afirmar o que se pensa etc. A função principal éo grounding e a emoção básica é o ciúme. O cluster três tem como principal dinâmica saber dividir o mundo com os iguais, e a função principal é o sharing. A palavra-chave é simetria vincular. Os vínculos que sobrevêm da simetria contêm três dinâmicas diferentes: competir, rivalizar e compartilhar.

É importante pensar que, dependendo da forma como aprendemos a lidar com as dinâmicas específicas de cada cluster, aprendemos uma forma de responder às situações nas quais essa dinâmica esteja presente. Ou seja, repete-se um comportamento conservado, que funcionou um dia e que por isso continuou sendo utilizado. Ou, como diz Dalmiro Bustos (1990), diante de determinadas situações que me remetem à dinâmica de dependência, autonomia ou compartilhar, posso antecipar uma conduta e agir em função dela, e não de forma espontânea e criativa.

Dessa forma, se entendermos como cada pessoa aprendeu a se relacionar com os iguais, enfrentou a dura realidade de aceitar que não é o único nem o especial e que tem tanto direito quanto os demais, poderemos perceber o quanto ela é capaz de ter vínculos de confiança, em que o compartilhar seja mais frequente que o competir, e o rivalizar não seja uma constante.

Acredita-se que a apresentação de um caso poderá ser muito útil para demonstrar o que defendo.

Alberto (nome fictício) tem 48 anos. É executivo de uma grande empresa multinacional. Procura ajuda psicoterápica porque teve um episódio de descontrole emocional no ambiente de trabalho e foi chamado pelo presidente, que, em uma conversa, diz que o considera muito eficiente e competente, mas muitas pessoas não gostam de Alberto, pois acham que ele é mandão, não ouve os colegas e é exigente por demais. Afirma também que essas características estão prejudicando-o enormemente.

Alberto chega ao consultório muito chateado, pois sente-se incompreendido e ameaçado. Seria o sucessor natural do presidente da empresa - e isso é o seu sonho -, mas percebe que, após essa conversa, sua promoção poderá não acontecer. Ele é casado há mais de 20 anos e tem uma filha. É o único filho adotivo de um casal. A mãe é falecida e o pai, dependente de álcool, vive hoje em uma residência para idosos. Relata que a mãe era protetora e submissa ao pai. Um homem trabalhador, mas que, em razão do uso excessivo de álcool, teve a vida profissional interrompida precocemente. Aos 15 anos Alberto começa a trabalhar com o pai e aos 18 anos já tem todo o controle do negócio familiar. Diante das sucessivas agressões físicas praticadas pelo pai contra a mãe, a separação do casal é inevitável e ocorre quando ele tem 18 anos. Teve uma carreira brilhante em indústrias, cursou economia, casou-se aos 21 anos e desde então tem tido mais e mais conquistas profissionais, alcançando excelente situação financeira.

O que chama a atenção na história de Alberto é sua reduzida vida social. Ao fazer seu átomo social demonstra muita dificuldade em identificar quem são seus vínculos mais próximos. Além da filha e da esposa, coloca a mãe falecida e um primo. No trabalho não consegue manter relacionamentos além do cotidiano profissional. Até mesmo a relação de casamento parece mais um vínculo de parceria operacional que um vínculo de afeto genuíno. A filha é, hoje, sua fonte de afeto e motivação para continuar a viver, porém se encontra profundamente abalado por perceber que não é querido pelos colegas do trabalho. Conta que em todas as empresas onde trabalhou teve problemas, poucas vezes com superiores e frequentemente com seus pares e subordinados. Sofre por achar que não é compreendido. Leva as tarefas muito a sério. É dedicado, correto, mas muito impaciente com as falhas dos demais.

Podemos dizer que, aos olhos da sociedade, é um homem muito bem-sucedido e é valorizado por isso. Entretanto, percebe-se que, no tocante às dinâmicas relacionadas a saber lidar com relações simétricas, tem um comportamento muito diferente. O que mais o incomoda é o quanto fica bravo e explode, quando as pessoas não concordam com ele. Ou não conseguem ter o desempenho que ele considera adequado.

Numa das primeiras sessões, de psicodrama interno, revive uma cena na escola. Ele tem em torno de 7 anos. É hora do recreio e os meninos debocham dele e ameaçam tirar-lhe a merenda. Ele chora, acuado, e diz que sua mãe não está na cena e por isso não pode defendêlo. Então diz que se lembrou do pai e começa a gritar e parte para cima dos moleques, dando chutes, pontapés e socos. Os meninos saem, mas queixam-se com a professora, que repreende Alberto e o pune com uma suspensão, por ter sido agressivo. Esta cena foi importante no processo e duas sessões depois ele traz outra cena. Está na casa de uma tia, e o primo, de idade próxima, que está perdendo o jogo de dama, provoca Alberto chamando-o de mulherzinha e dizendo que ele vai pedir ajuda à mãe ou ao pai. Alberto fica com muita raiva do primo, mas, temendo bater nele e ser repreendido, propõe ao primo mostrar-lhe como pode jogar melhor e, dessa forma, consegue sair da situação de briga e ainda sentir-se admirado pelo primo, que, a partir daí, passa a convidá-lo para jogar sempre que possível e vai se tornando um bom competidor. As disputas viram uma constante, e aos poucos ele vai percebendo que o primo é tão bom quanto ele. A partir dessas cenas, começaram a aparecer diversas situações profissionais em que sua sensação é a de que seu ponto de vista é o correto, e não consegue perceber que o outro pode ter pontos de vista diferentes. Muitas tentativas de inversão de papel com seus pares e superiores são feitas, até que, finalmente, ele, num determinado dia, fala da dor que é ter que engolir que, por mais certo que esteja em suas posições, não é o único a decidir e que, sendo muitas vezes voto vencido, deveria trabalhar em favor da equipe, e não torcer para que as coisas deem errado. A partir daí, começa a aparecer em seu processo a dificuldade em compartilhar seus sentimentos, até mesmo com a esposa. Gradativamente, foi identificando os argumentos dos outros, percebendo novos pontos de vista e conseguindo lidar melhor quando, apesar de seu esforço em defender sua ideia, a decisão tomada não é a que ele propôs. Conseguiu também retomar alguns contatos profissionais do passado, investindo numa nova rede de relacionamentos.

O caso de Alberto ilustra uma pessoa bem-sucedida e que, aparentemente, consegue administrar bem a questão da dependência e da autonomia. Contudo, foi muito difícil para ele aceitar que é apenas mais um num mundo de tantos. E essa realidade é vivenciada por muitos. O mundo hoje, que tanto valoriza pessoas determinadas e que sabem muito bem aonde querem chegar, acaba gerando pessoas fechadas em si mesmas, egocentradas e que têm muita dificuldade não só de empatizar com a dor alheia, como também de suportar o fato de que não são as melhores, pelo menos não o tempo todo. Por isso, precisamos parar para acolher a dura realidade de que nem todos chegarão lá, especialmente no tempo que determinam.

Ainda pode-se citar o caso um paciente jovem, de 27 anos, muito ansioso e que se queixava de que tinha colocado como meta ter um milhão de dólares aos 30 anos. E aos 27, como não tinha conseguido juntar nem um terço desse valor, angustiava-se e buscava a todo tempo novas oportunidades de trabalho, de negócios. Quando ele foi questionado sobre o porquê dessa meta, o silêncio e um vazio foram obtidos como resposta.

Considera-se importante pensar na amplitude que o conceito de cluster fraterno nos traz. Para além dos irmãos, a percepção e a consciência de todos aqueles que são nossos pares e, portanto, têm o mesmo direito que eu no mundo devem ser valorizadas para que tenhamos, principalmente, uma sociedade mais consciente da igualdade de direitos. Que nos leve a nos desenvolver, conhecer nossas habilidades e também nossos limites. Aceitar quando se perde e lutar com afinco nas situações em que se deseja competir, mas sem querer destruir o outro porque ele é melhor e isso pareça insuportável.

 

REFERÊNCIAS

Bustos, D. M. (1990). Perigo... Amor à vista! (2a. ed., ampliada). São Paulo, SP: Aleph.         [ Links ]

Moreno, J. L. (1978). Psicodrama. São Paulo, SP: Cultrix.         [ Links ]

 

 

Recebido: 30/11/2017
Aceito: 6/12/2018

Creative Commons License All the contents of this journal, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution License