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Revista Brasileira de Psicodrama
On-line version ISSN 2318-0498
Rev. bras. psicodrama vol.26 no.2 São Paulo July/Dec. 2018
https://doi.org/10.15329/2318-0498.20180032
COMUNICAÇÕES BREVES
Violência doméstica em cena: perspectivas psicodramáticas com grupo de mulheres no judiciário
Domestic violence in scene: psychodramatic perspectives with women's group in the judicial system
Violencia doméstica en escena: perspectivas psicodramáticas con grupo de mujeres en el sistema judicial
Viviane Giombelli
Psicóloga pela Fundação Universidade Regional de Blumenau/SC (FURB). Psicodramatista pela Companhia Teatro Espontâneo e Psicodrama. Mestre em Psicologia (UFSC). Professora no departamento de Psicologia da Sociedade Educacional de Santa Catarina (Unisociesc) em Blumenau/SC. E-mail: vivigiom@gmail.com
RESUMO
Este artigo visa compartilhar experiências vivenciadas no Judiciário, quanto à atuação psicodramática voltada para as vítimas de violência doméstica, enquadradas na Lei Maria da Penha. A criação de vínculo favoreceu o trabalho em equipe com os operadores do Direito, auxiliando indiretamente nas intervenções. São analisados casos embasados em autores psicodramáticos, principalmente utilizando os conceitos de papel e espontaneidadecriatividade. O método psicodramático confirmou-se como recurso para trabalhar o tema na coletividade multiplicando resultados, produzindo reflexões e ampliando as discussões no Judiciário.
Palavras-chave: violência doméstica, grupo de mulheres, psicodrama, judiciário
ABSTRACT
This article aims to share experiences in the Judicial system, regarding the psychodramatic performance focused on the victims of domestic violence, framed fell under Maria da Penha Law. Creating a bond has promoted teamwork with legal operators, which indirectly assisted in the interventions. Cases are analyzed supported by psychodramatic authors, mainly using the concepts of role and spontaneity-creativity. The psychodramatic method was confirmed as a resource to work on the theme in the collective, multiplying results, producing reflections and broadening the discussions in the Judicial system.
Keywords: domestic violence, women's group, psychodrama, judicial system
RESUMEN
Este artículo tiene como objetivo compartir experiencias en el Judiciario, en relación com desempeño psicodramático centrado en las víctimas de violencia doméstica, que están bajo la Ley Maria da Penha. La creación de vínculo promovió el trabajo en equipo con los operadores del Derecho, lo que indirectamente ayudó en las intervenciones. Se analizan casos con el apoyo de autores psicodramáticos, principalmente utilizando los conceptos de rol y espontaneidadcreatividad. El método psicodramático se confirmó como un recurso para trabajar el tema el colectivo, multiplicando los resultados, produciendo reflexiones y ampliando las discusiones en el sistema judicial.
Palabras clave: violencia doméstica, grupo de mujeres, psicodrama, sistema judicial
NOVAS PERSPECTIVAS PARA A PSICOLOGIA JURÍDICA
A aplicação da Psicologia na prática forense esteve por muito tempo limitada às avaliações diagnósticas. Focar no acolhimento, no cuidado e na compreensão das dinâmicas estabelecidas entre vítimas e supostos agressores, tende a ajudar a justiça na resolução das demandas trazidas por estas.
A atuação psicodramática no ambiente forense, especificamente direcionada à Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006), ocorre por meio do Programa de Assessoria Psicológica às mulheres vítimas de violência doméstica, patrocinado pelo Conselho da Comunidade1 do município de Gaspar-SC. O Juizado Criminal, o Ministério Público e o Conselho da Comunidade se reuniram, propuseram o exercício do Programa, o qual foi aprovado. E, em fevereiro de 2015 iniciaram-se os trabalhos.
Os atendimentos são predominantemente grupais. Os atendimentos individuais ocorrem eventualmente para entender de forma mais específica a demanda ou fazer alguma orientação direcionada. O fato de o grupo ocorrer semanalmente desde março de 2015 possibilitou a criação conjunta de uma sistemática para receber as pessoas, compartilhando e falando sobre a importância dos encontros.
O GRUPO DE MULHERES NA PERSPECTIVA DO MÉTODO PSICODRAMÁTICO
Nesse grupo de mulheres utiliza-se a modalidade role playing, jogo de papéis, treino de papéis. Para Aguiar (1994), trata-se de dar um foco pragmático ao método, "a queixa descreve sempre o problema a ser resolvido, e este é exatamente o que foi descrito" (p. 71).
As queixas das mulheres precisam de um olhar prático, considerando a intensidade do sofrimento e até o perigo eminente. Elas precisam se perceber no desempenho atual, ver outras possibilidades de atuação utilizando recursos como o modelo dramatizado por colegas do grupo ou colocando-as em outros papéis como de amiga, ou filha, nos quais consegue ter um comportamento satisfatório nos quesitos de dar limites, ocupar seu espaço, valorizar seu posicionamento, sentir-se respeitada, tomar decisões. Aguiar (1994) esclarece: "o que conta é valorizar a boa emoção, incentivar o que favorece a espontaneidade" (p. 72). Em outras palavras, mapear os outros papéis desempenhados - mãe, filha, irmã, amiga, motorista, participante de algum grupo religioso ou de mobilização social, identificando as características da atuação nos papéis. O modo que se percebem e se posicionam em outras funções podem constituir subsídios para o papel de mulher e esposa. Trata-se de auxiliá-las na reflexão seja nas singularidades, seja no propósito coletivo.
O processo psicodramático/sociodramático por si só contempla a cocriação. Cada uma traz elementos por meio de suas histórias incorporadas no aquecimento, na dramatização ou no compartilhar. Quando elaboram a situação de violência doméstica ao final das atividades, em suas casas ou em seus trabalhos e contam para outras pessoas o que tem percebido pode-se dizer que estão cocriando.
Segundo Naffah Neto (1980), a história individual, coletiva, bem como o espírito de uma época se entrecruzam no método psicodramático, e especificamente em um grupo com características sociodramáticas. Cabe citar Naffah Neto (1980, pp. 67-68) literalmente:
Quando Moreno nos diz que o momento criador engloba a história, ele está querendo nos dizer que ele consegue presentificar as determinações históricas, justamente para reorganizar e transforma2 a história, não para aboli-la. É necessário nos desvencilharmos dessa concepção superficial da história que a descreve no âmbito do puro determinismo. A história faz-se, fundamentalmente, pela constante superação de uma situação de fato; não é enquanto passivo e alienado no sistema capitalista que o proletário faz história, mas justamente quando atinge a consciência revolucionária capaz de lançar a sociedade em direção a uma nova ordem.
GRUPO DE MULHERES: Relato de um dos Encontros e Considerações Teóricas
Em um dos encontros foi utilizado relaxamento para aquecê-las, no qual falaram sobre si. Embora pareça antagônico, foi a forma utilizada para que imaginassem algo que lhes dava prazer, num local agradável, experienciando o cheiro, a sensação, fixando-se em uma imagem de plenitude e felicidade.
As duas primeiras pessoas relataram sensações de tranquilidade. A terceira pessoa (Sra. A) disse que não tinha momentos felizes em sua vida, e desconhecia a felicidade. Manifestou seu interesse para tratar a questão quando contou os abusos sexuais sofridos na infância. Ela e sua irmã foram abusadas pelo pai por anos, a mãe aguentou calada, fingia não perceber. A Sra. A identificou a mãe como submissa.
O relato serviu como subsídio para as cenas. Na primeira cena a Sra. A em diálogo com os pais, acusando-os de maus tratos, indiciando-os pela situação que ela se permitia passar naquele momento de sua vida (aceitava as humilhações, as surras de seu atual marido, além de garantir o sustento dele). Segue breve apresentação de pontos específicos dos diálogos com os pais:
Sra. A (para o pai representado por uma participante escolhida por ela): Seu velho nojento, vagabundo, porco, covarde (ao falar com voz estridente, chorando, ia empurrando-o ao chão). Não sinto a tua falta. Ainda bem que você morreu, velho ruim. Você é um verme.
P(Psicóloga): E agora que eu estou adulta e sou agredida pelo meu marido me sinto...
Sra. A: Eu me sinto feia, nojenta, suja.
Após chorar e se acalmar foi pedido para que ela o deixasse em algum lugar, colocou-o num canto de cabeça baixa como forma de puni-lo.
Sra. A. (para a mãe - representada por uma participante): Que tipo de mãe você é? Eu nunca deixaria meus filhos desse jeito. Você foi fraca, preferiu ver tuas filhas sendo abusadas a lutar. Mas, eu tenho pena de você. Você não conseguiu fazer nada, você se omitiu, foi egoísta.
As atrizes auxiliares refizeram a cena, a fim de utilizar a técnica do espelho. O tom de voz da cena foi diminuído, dando ênfase para a expressão corporal.
P: O que você está vendo agora A?
Sra. A: Que estou fazendo o mesmo que a minha mãe fez, estou me omitindo de minha própria vida.
P: Queres tentar algo diferente na cena como um ensaio para tua vida?
Sra. A: Sim, quero fazer.
Entrou na cena, levantou-se, chegou perto de sua mãe e disse: Eu preciso me dar colo, já que você não me deu, preciso me cuidar, vai em paz que agora eu sou por mim.
Nesse dia específico uma moça, presente pela segunda vez no grupo, falou dos abusos sexuais sofridos e do sofrimento pela submissão da mãe em relação às ocorrências. O fato de se reconhecer na protagonista, sentir-se compreendida e entender o sofrimento alheio favorece o surgimento natural do compartilhar, sem que seja necessário, muitas vezes, a proposição da psicodramatista.
No caso da Sra. A foi preciso investigar brevemente a matriz de seu papel de mulher. A queixa relacionada ao cônjuge parecia não condizer com o desprazer completo em sua vida. Ela relacionou o papel de mulher como um lugar de sofrimento destituído de qualquer valor positivo como beleza, prazer e pureza.
Para Naffah Neto (1997), quando a pessoa responde à mudança de contexto, considerando os marcos referenciais dados do espaço dramático pode-se dizer que houve originalidade, espontaneidade. Mais adiante, o autor afirma:
Quer quando passamos de um contexto a outro (no psicodrama), quer quando enfrentamos uma mudança de situação (na vida real), somos jogados numa conjuntura que, se nos atordoa momentaneamente devido a seu caráter inesperado, não é entretanto senão uma variação ou uma transformação do mundo com o qual coexistimos, seja quando sonhamos ou quando "damos asas à imaginação". (p. 41).
A Sra. A atuou de forma original, espontâneo-criativa interagindo com os personagens do momento, permitindo-se vivenciar, sem se prender ao fato de que sua mãe já é falecida. Dentro dela a mãe vive, faz parte dela, desde a forma como ela se percebe, até na relação com seus filhos, em seus medos, suas ansiedades, suas raivas. Está nela, mesmo que ela não identifique de modo consciente. Bérgson (1922, citado por Naffah Neto, 1997) afirma: "e, mesmo quando estou sonhando, as imagens recobrem percepções táteis, sinestésicas visuais" (p. 41). Para Naffah Neto (1997) "a cena dramática é uma extensão do mundo que a pessoa está inserida, mergulhada, mesmo antes de começar a atuar" (p. 41).
Outra situação aconteceu recentemente quando uma das participantes contou sobre sua ousadia para lidar com as chantagens do ex-marido em relação ao filho. Ao contar a ousadia para as demais participantes, houve risos e expressões como: "eu também uso o que aprendo aqui". A contadora da história afirmou ter utilizado o recurso de criar o personagem fora do contexto dramático ofertado pelas vivências grupais.
O conceito de realidade suplementar e de personagem responde ao expresso verbalmente pelas participantes. Sobre a realidade suplementar Contro (2004) afirma:
A realidade suplementar coloca-se como, mais do que outra variável a se considerar quando pensamos no trânsito entre os contextos, um conceito com peculiaridades inerentes ao referencial psicodramático, mas que diz respeito a um fenômeno, como já afirmamos anteriormente, que não se restringe a esse arcabouço. O psicodrama oferece uma proposta - entre muitas outras concebidas por outros referenciais - de operacionalização da realidade suplementar, que, no cotidiano do contexto social, está presente todo o tempo, bastando que os parceiros se ajustem na forma de se comunicar, partindo de um mesmo patamar, ou seja, daquele que suplementa, excede a realidade. (pp. 50-51)
Não há como vetar as reverberações das vivências psicodramáticas, bem como não há como controlar os pensamentos e os sentimentos das experiências cotidianas. As sessões com essas mulheres constituem algo que se apropriaram naquele dia, como qualquer outro acontecimento do dia. A diferença é o espaço para reflexão, diálogo sobre o aprendizado do momento, sejam cenas, sentimentos, percepções, expressões verbais ou corporais.
Os casos específicos foram citados para ilustrar e exemplificar o trabalho. As mulheres e suas histórias compõem o conjunto temático. O foco está em temas relacionados à condição de mulher e novas perspectivas de atuação nesse papel. Nas palavras de Naffah Neto (1990) essas mulheres "são personagens de um drama coletivo" (p. 70). As especificidades fazem parte de um todo, somente visto como um todo quando colocadas frente a frente com outras mulheres, que em suas particularidades estão se referindo ao mesmo sofrimento. Ao se encantar pelas novas respostas dadas por outra participante, estão se encantando pela possibilidade de também criarem novas perspectivas para a própria vida.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Fazer intervenções com as protagonistas da Lei Maria da Penha não se resumiu aos encontros grupais ou aos atendimentos individuais. Foi e é necessária a inter-relação com os profissionais do Judiciário e do Ministério Público, e com a entidade viabilizadora do trabalho - Conselho da Comunidade de Gaspar.
Planejar, construir, aceitar, incorporar, revisar, observar, ouvir, posicionar constituíram algumas das ações valorosas para o esboço tornar-se realidade. Não se seguiu um modelo, utilizou-se das técnicas psicodramáticas, do comprometimento e do diálogo como ferramentas. O uso da dramatização, independentemente da modalidade, foi atrativo, útil e original para as participantes vivenciarem modos diferentes no papel de mulher.
O método psicodramático constituiu recurso plausível para as técnicas, e principalmente para o entendimento do contexto em que se encontram no que tange à amplitude do conceito de papel. Mais que as técnicas, foi fundamental entender as participantes como sujeitos da transformação de uma cultura, predominantemente machista, sem absterem-se de serem mulheres, mães e esposas.
AGRADECIMENTOS
Agradeço a Luiz Contro, meu supervisor, psicoterapeuta, e incansável incentivador deste artigo.
REFERÊNCIAS
Aguiar, M. (1990). O teatro terapêutico: escritos psicodramáticos. Campinas, SP: Papirus. [ Links ]
Aguiar, M. (1994) As diferentes focalizações na prática do Psicodrama. In S. R. A. Petrilli (Org.). Rosa dos ventos da teoria do psicodrama (pp. 61-76) São Paulo, SP: Ágora. [ Links ]
Contro, L. C. (2004). Nos jardins do Psicodrama: entre o individual e o coletivo contemporâneo. Campinas, SP: Alínea. [ Links ]
Contro, L. C. (2011). Psicossociologia crítica: a intervenção psicodramática. Curitiba, PR: CRV. [ Links ]
Naffah Neto, A. (1990). Psicodramatizar: ensaios (2a. ed.). São Paulo, SP: Ágora [ Links ]
Naffah Neto, A. (1997). Psicodrama: descolonizando o imaginário. São Paulo, SP: Plexus. [ Links ]
Recebido: 18/6/2018
Aceito: 26/11/2018
1 O Conselho da Comunidade é um Órgão de Execução Penal (Art. 161), instituído pela Lei de Execuções Penais - nº 7.210. A incumbência consiste em: I-Visitar, pelo menos mensalmente, os estabelecimentos penais existentes na Comarca, II-Entrevistar presos; III-Apresentar relatórios mensais ao Juiz da execução e ao Conselho Penitenciário; IV-Diligenciar a obtenção de recursos materiais e humanos para melhor assistência ao preso ou internado, em harmonia com a direção do estabelecimento.
Na Comarca em questão não há presídio. Nesse sentido, o Conselho da Comunidade optou por também estar atento as situações de violência que podem acarretar ou já acarretaram em crimes.
2 Grifo em itálico do autor.