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Nova Perspectiva Sistêmica

Print version ISSN 0104-7841On-line version ISSN 2594-4363

Nova perspect. sist. vol.30 no.69 São Paulo Jan./Apr. 2021

https://doi.org/10.38034/nps.v30i69.611 

DOSSIÊ

 

Visão sistêmica sobre os pressupostos de alienação parental na prática clínica individual e familiar

 

A systemic approach to parental alienation assumptions and clinical practice with individuals and families

 

Visión sistémica sobre los supuestos de alienación parental en la práctica clínica individuos y familias

 

 

Sérgio Alberto Bittencourt MacielI; Josimar Antônio de Alcântara MendesII; Luciana de Paula Gonçalves BarbosaIII

IPsicólogo, psicodramatista, terapeuta de casais e famílias, especialista em abordagem familiar no contexto judicial (UnB), coordenador substituto da Coordenadoria Psicossocial Judiciária (TJDFT). E-mail: sergio.maciel@tjdft.jus.br
IIDoctoral researcher na University of Sussex, Reino Unido. Especialista pelo Centre for Addiction and Mental Health (CAMH) - Toronto/Canadá. Psicólogo, terapeuta sistêmico de casais e famílias, mestre em Psicologia Clínica e Cultura (UnB). E-mail: josimards@gmail.com
IIIPsicóloga formada pela Universidade de Brasília, CRP 01/7789. Especialista em Violência Doméstica Contra Crianças e Adolescentes pela USP/SP, com formação em Abordagem Familiar no Contexto Judicial. Especialista em Psicologia Jurídica. Analista Judiciária, especialidade Psicologia, desde outubro de 2000. Supervisora do Núcleo de Assessoramento às Varas Cíveis e de Família da Coordenadoria Psicossocial Judiciária do TJDFT - NERAF/COORSPI. E-mail: ludepaulagb@gmail.com

 

 


RESUMO

Após quase vinte anos da sua chegada ao Brasil, os pressupostos de alienação parental extrapolaram o Poder Judiciário e ingressam nos consultórios particulares. O termo passou a constar das narrativas de clientes e psicoterapeutas. Tendo isso em vista, no presente artigo discutimos crítica e sistemicamente esses pressupostos. Apresentamos um estudo de caso qualitativo de três vinhetas clínicas para discutir como os acordos conversacionais estabelecidos entre psicoterapeutas e clientes no contexto clínico podem engendrar, substanciar ou ressignificar as narrativas de alienação parental, e as implicações dessa escolha para o processo psicoterápico. A discussão dos casos indica que as alegações e percepções de alienação parental constituem-se como uma tentativa de se classificar ou explicar comportamentos usualmente presentes em desavenças conjugais e parentais e o sofrimento delas advindo. Em adição, é problematizado o lugar do profissional na construção dialógica do objeto de intervenção e questionando-se a noção de realidade observável na psicoterapia.

Palavras-chave: Alienação parental; Acordos conversacionais em psicoterapia; Perspectiva sistêmica novo-paradigmática; Psicologia clínica.


ABSTRACT

After almost twenty years of its implementation in Brazil, one can observe that the parental alienation's assumptions went beyond the Judiciary and have affected therapist's practice. Narratives of parental alienation have become part of clients' and psychotherapists' discourses. Taking that into account, this paper critically and systemically discusses those narratives. A qualitative case study of three clinical vignettes is presented to discuss how the conversational agreements established between psychotherapists and clients in the clinical context can engender, sustain or reframe parental alienation narratives as well as implications of this for the psychotherapeutic process. The discussion indicates that parental alienation allegations are used to classify or explain behaviours that are usually present in marital and parental disagreements that regards to developmental issues and cause suffering. In addition, the professional's position in the dialogical construction of clinical interventions and the notion of observable reality in psychotherapy are questioned.

Keywords: Parental alienation; Conversational processes in therapy; Systemic approach; Clinical psychology.


RESUMEN

Casi veinte años después de su llegada a Brasil, los supuestos de alienación parental excedieron el Poder Judicial y adentraron la psicoterapia. Ese concepto pasó a formar parte de las narrativas de clientes y psicoterapeutas. Teniendo esto en cuenta, este artículo analiza de manera crítica y sistemática esos supuestos. También se presenta un estudio de caso cualitativo con tres viñetas clínicas para discutir cómo los acuerdos conversacionales establecidos entre psicoterapeutas y clientes en el contexto clínico pueden engendrar, corroborar o reformular las narrativas de la alienación parental y las implicaciones de esta elección para el proceso psicoterapéutico. La discusión de los casos indica el intento de clasificar o explicar los comportamientos usualmente presentes en los desacuerdos conyugales y paternos y el sufrimiento que surgen de ellos. Se cuestiona el lugar del profesional en la construcción dialógica del objeto de intervención y se cuestiona la noción de realidad observable en psicoterapia.

Palabras-clave: Alienación parental; Acuerdos conversacionales en psicoterapia; Perspectiva sistémica nuevo paradigmática; Psicología clínica.


 

 

INTRODUÇÃO

A temática da alienação parental e seus pressupostos não são novidade nos meios social, acadêmico e jurídico brasileiros. O tema começou a ter relevância nesses meios há quase vinte anos. Mendes (2019, p. 15) propõe quatro ondas para o percurso da alienação parental no Brasil: (a) descoberta: inicia-se em meados dos anos 2000, com a divulgação de materiais informativos sobre o tema pelas associações de pais e mães separados. Esta onda é marcada pela necessidade de positivar normativas que pudessem dar cabo jurídico à questão; (b) engajamento: localiza-se na segunda metade dos anos 2000, com o forte engajamento midiático, promovido por aquelas associações de pais separados, e pressão jurídica para a criação da lei de alienação parental; (c) legalização: inicia-se a partir de 2010, com a promulgação da Lei nº 12.318/10, que instituiu o reconhecimento e consequentes manejos legais para os casos discriminados como alienação parental. Nesta onda, também houve o crescimento vertiginoso de publicações psicojurídicas, matérias de jornal e blogs abordando o tema da alienação parental; e (d) questionamento: esta é a atual fase na qual o próprio Sistema de Justiça e pais/mães que se sentiram prejudicados com a lei começaram a contestar a sua validade jurídica. Nesta fase, houve também o aumento de pesquisas e publicações com um viés mais crítico aos pressupostos de alienação parental.

Ao longo desses quase 20 anos, poucos autores dedicaram-se a promover uma visão realmente sistêmica sobre o tema (destaque para Barbosa & Castro, 2013; Barbosa & Juras, 2010; Coelho & Moraes, 2014; Formiga, 2020; Maciel et al., 2020; Mendes, 2019; Mendes & Bucher-Maluschke, 2017; Mendes, Lordello, & Ormerod, 2020). Outros autores (e.g., d'Ávila & Kortmann, 2014) chegaram a ensaiar uma apropriação epistemologicamente sistêmica para discutir a alienação parental, mas acabaram por assumir parcial e/ou integralmente os pressupostos de alienação, os quais colidem frontalmente com quaisquer bases epistemológicas das diversas correntes de pensamento que se intitulam 'sistêmicas'.

Os pressupostos de alienação parental são incompatíveis com os sistêmicos, pois partem de um paradigma que, epistemologicamente, superssimplifica e hiper-reduz as complexidades das relações, papéis, funções e interações dentro do sistema familiar, especialmente no contexto do divórcio e disputa de guarda. No contexto das práticas sistêmicas e terapêuticas com famílias, compreende-se a família como um sistema vivo, dinâmico, multideterminado e influenciado por transações endógenas e exógenas ao próprio sistema que, assim, o mantêm em constante desenvolvimento. Além disso, o que também torna a família um sistema é a dinâmica dos processos transacionais entre os seus membros, a qual é marcada por interdependência, circularidade e processos retroalimentativos. Os pressupostos de alienação parental parecem enxergar a família, seus subsistemas, papéis e funções em um 'vácuo relacional', estéril de qualquer influência social, cultural ou transgeracional. Esses pressupostos enquadram a família em uma 'cena relacional' disjuntiva, descontextualizada e dicotômica. Por isso, sob uma visão dita sistêmica, os pressupostos de alienação parental não se sustentam.

Como entusiastas da perspectiva sistêmica, o nosso modus operandi em relação à alienação parental sempre é o de desafiar narrativas preestabelecidas, contestar 'certezas relacionais' rígidas e ampliar o campo de avaliação e compreensão sobre as relações familiares que, por definição, são multideterminadas, recursivas e até mesmo ambíguas e contraditórias, a depender da perspectiva adotada. Assim, o raison d'être de uma abordagem sistêmica sobre a temática de alienação parental é essencialmente desconstruir esses pressupostos ao desvelar outras camadas de sentido, funções, causalidade recursiva e implicações daquelas dinâmicas familiares que alguns discriminam como sendo 'alienação parental'. Este é o principal objetivo deste artigo. Para isso, inicialmente, faremos um breve percurso sobre aquilo que chamamos de 'pressupostos de alienação parental' e apontaremos explicações sistêmicas alternativas a esses pressupostos. Em seguida, apresentaremos três casos clínicos envolvendo alegações de alienação parental. A partir desses casos, propomos uma visão sistêmica e crítica sobre o tema, com especial recorte para a atuação clínica.

 

A EPISTEMOLOGIA DOS PRESSUPOSTOS DE ALIENAÇÃO PARENTAL

Segundo o Dicionário Michaelis, 'pressuposto' remete a "(a). aquilo que se pressupõe; conjectura, pressuposição, suposição. (b). Aquilo que se tenta atingir; meta, objetivo. (c). Ideia que se tem para a execução de algo; plano, projeto" (Dicionário Michaelis, 2020). Os pressupostos de alienação parental apontam antecipadamente, antes de se defrontar com o objeto sob análise, hipóteses-verdade sobre os conflitos familiares e já as assume, inequivocamente, antes mesmo de observar e analisar esses conflitos. Eles também têm o objetivo de produzir significados e sentidos para esses conflitos e fornecê-los tanto às famílias quanto ao Sistema de Justiça. Para a família, a produção desses significados e sentidos ajuda a aplacar a sua angústia e sofrimentos diante do não entendimento dos percalços do seu próprio desenvolvimento. Para o Sistema de Justiça, esses significados e sentidos produzidos oferecem um caminho "mais simples" para a operação do Direito de Família que, em sua essência, é complexo, dinâmico e multideterminado, portanto, desafiador. O plano e o projeto embutidos nesses pressupostos têm o fito de regular e controlar as relações familiares por meio de sua judicialização (Mendes, 2019; Oliveira, 2019).

Esses pressupostos constituem, em si, um paradigma. Ou seja, eles expressam suposições, conceitos, valores, ideias e práticas que constituem uma forma particular de ver e entender certo fenômeno (Steinert, 2020). No âmbito das relações sociais, um paradigma direciona um grupo a concordar que determinada coisa "é assim e é assim que deveria ser" (Bartel, 2004). Dessa forma, um paradigma, por meio das teorias que promulga, dos métodos e instrumentos que oferece, serve de guião, dentro de um grupo social, para indicar quais perguntas devem ser feitas, como elas devem ser feitas e quais regras e princípios devem ser seguidos no processo de interpretação das respostas para aquelas perguntas (Ritzer, 1975).

Os pressupostos da alienação parental indicam um paradigma com suposições específicas sobre os conflitos familiares após a separação conjugal. Essas suposições carregam conceitos, valores, ideias e práticas específicas para os fenômenos do pós-divórcio: (a) supõem que, em alguns conflitos parentais após a separação, um dos genitores (alienador), investido em mágoas e intenções contra o outro, adota ações e comportamentos com o objetivo de excluí-lo (genitor alienado) da vida dos filhos, ou de minimizar sua importância e participação parental. Os filhos, manipulados pelo alienador, passariam a rejeitar o genitor alienado, apresentando comportamentos e discursos que não seriam deles em si, mas apenas um eco do alienador; (b) compreendem, com base nessas suposições, que as relações e interações familiares são estanques e unidirecionais, desconsiderando sua historicidade e como os papéis, lugares e afetos de cada membro da família se organizam e reorganizam constantemente e de modo recursivo e complexo dentro do sistema familiar; (c) promovem práticas, baseadas nessas suposições e compreensões, que enrijecem os genitores em posições antagônicas e acirram o conflito e crise familiar diante da necessidade crescente de acusações e provas um contra o outro, o que, por seu turno, desprotege e expõe os filhos e mina o potencial da família para alcançar mudanças efetivas na direção dos interesses destes (Mendes & Bucher-Maluschke, 2017; Mendes, Lordello, & Ormerod, 2020).

 

UMA VISÃO SISTÊMICA SOBRE AS DINÂMICAS FAMILIARES ENTENDIDAS COMO 'ALIENAÇÃO PARENTAL'

Antes de seguirmos, convidamos o(a) leitor(a) a refletir sobre a escolha do conjunto de palavras, ideias e marcadores epistêmicos que compõe o título desta subseção (a escolha não foi por acaso). Nós indicamos uma 'visão sistêmica', pois, ao contrário dos pressupostos de alienação parental, nós entendemos que, por mais que haja uma aparente regularidade observável nos conflitos familiares após o divórcio, eles não podem ser massificados nem reduzidos a rótulos estéreis e metonímicos. Entendemos que aqueles comportamentos discriminados como alienação parental, e com papéis estanques, dicotômicos e rígidos são, na verdade, 'dinâmicas familiares' complexas e multideterminadas. Essas dinâmicas podem envolver aspectos transgeracionais e são essencialmente distintas, pois atendem a processos sistêmico-relacionais concernentes às estruturas de comunicação e transação daquela determinada família, além de cumprirem uma determinada função - geralmente relacionada ao processo de desenvolvimento e manutenção de equilíbrio do sistema familiar.

Em função das nossas pesquisas, publicações e engajamento com o tema, além das nossas experiências com casos de disputa de guarda no âmbito da Justiça (que, se somadas, dão mais de 40 anos), somos frequentemente convidados a falar sobre a alienação parental. Nossa visão sempre foi sistêmica e crítica quanto aos pressupostos de alienação parental tanto em relação às suas dimensões científicas quanto técnicas e éticas.

Todas as vezes em que nos propusemos a refletir, discutir e desconstruir os pressupostos de alienação parental, portanto, não os assumindo, sempre nos interpelam: como alienação parental 'não existe' se é possível observar os atos de alienação, os comportamentos do genitor alienador, do genitor alienado e da criança/adolescente alienada? Para responder a esta pergunta, há dois pontos a se considerar.

O primeiro é que problematizar os pressupostos de alienação parental não é o mesmo que não reconhecer e/ou deslegitimar a dinâmica de conflitos e sofrimentos que se apresenta. Nós reconhecemos que há sim um problema ali, nós só não o observamos a partir das lentes dos pressupostos que geraram a teoria e a lei de alienação parental no Brasil. Assim, compreendemos tais dinâmicas a partir do pensamento sistêmico novo-paradigmático (ou de 2ª Ordem), conforme apontado por Esteves de Vasconcellos (2020), que leva em conta as ideias de complexidade e instabilidade dos sistemas, e de intersubjetividade, considerando que todo o conhecimento está inevitavelmente relacionado àquele que conhece, ao sujeito observador.

O segundo ponto é que, antes do surgimento da teoria de alienação parental, em meados de 1980, já existiam, há pelo menos quinze anos, abordagens sistêmicas teóricas e práticas, com base em numerosas evidências, que reconheciam aqueles mesmos comportamentos e dinâmicas que são discriminados como 'alienação parental'. A pergunta que se deve fazer é: por que essas abordagens não tiveram a mesma aderência jurídica e social que a teoria de alienação parental? Em seus estudos de doutoramento, o segundo autor deste artigo realizou um estudo transcultural inédito entre Brasil e Inglaterra, no qual 73 atores jurídicos (juízes, promotores, advogados, psicólogos e assistentes sociais) foram entrevistados. O objetivo foi compreender como se dava o processo de tomada de decisão sobre a guarda dos filhos após a separação conjugal. Mendes e Ormerod (20211) observaram que o contexto desse processo de tomada de decisão é extremamente complexo e cercado por incertezas geradas por fatores contextuais (e.g., crise familiar e estratégias não assertivas de enfrentamento). Para enfrentar a complexidade gerada pelas incertezas, os atores jurídicos lançam mão de estratégias cognitivas que possam reduzir essa complexidade e, assim, permitir-lhes atuar e tomar decisões sobre o caso. Nesse sentido, os pressupostos de alienação parental servem para reduzir essa complexidade e, assim, permitem que os atores jurídicos construam uma compreensão simplificada sobre o caso e, deste modo, tomem ações e decisões igualmente simples. Em suma, por serem hiper-reducionistas e estáticos, os pressupostos de alienação parental permitem uma atuação menos atravessada pela complexidade dos casos. Além disso, os pressupostos de alienação parental também dialogam bem com o paradigma do Direito, levando a uma colusão entre os discursos médico e legal (Mendes, 2019; Sousa, 2019).

Antes de abordar as explicações alternativas oferecidas pelas abordagens teóricas e práticas sistêmicas, faz-se necessário um breve resgate sobre os processos homeostáticos da família e o ciclo vital do seu desenvolvimento para contextualizar essas explicações. O sistema familiar é regido por duas forças básicas que se opõem e se complementam na dinâmica complexa que é a constituição e o desenvolvimento de um núcleo familiar. Uma dessas forças é desorganizativa, incerta e imprevisível e tende a impulsionar o sistema ao caos. A outra é conservativa, delimitada e previsível e tende a levar o sistema ao equilíbrio (homeostase). Como um mecanismo de proteção contra o caos e a dissolução familiar, o sistema tende sempre à manutenção do seu equilíbrio e, para isso, lança mão de recursos que possam garantir a coesão familiar, ainda que sob alguns custos para a própria família. Porém, toda família é um sistema vivo e aberto e, por isso, está sempre se desenvolvendo, mudando através de ciclos desenvolvimentais ao longo do tempo; mas, para mudar, o sistema precisa abrir mão, ainda que transitoriamente, dos seus recursos conservativos e de coesão familiar, para acomodar as mudanças adaptativas necessárias.

Em muitas situações de disputa de guarda litigiosa, os comportamentos não assertivos e desadaptativos apresentados por algumas famílias nada mais são do que estratégias disfuncionais para enfrentar tanto a resistência à mudança que o divórcio implica quanto os prejuízos desenvolvimentais e relacionais dessa própria resistência. Assim, as explicações sistêmicas alternativas aos pressupostos de alienação parental se baseiam nos processos desadaptativos e disfuncionais da família frente ao divórcio. Entre essas explicações, destacam-se: (a) triangulação: refere-se a triângulos relacionais. Quando há uma tensão relacional considerável entre dois membros, um terceiro tende a se inserir nessa relação para tentar diminuir aquela tensão e, assim, passa a cumprir um papel de regulador emocional (Juras & Costa, 2011). A formação de tríades dentro do sistema familiar é um fenômeno comum que, a priori, não é necessariamente disfuncional e nem permanente, pois pode servir como instrumento de passagem de uma fase relacional para outra, especialmente quando há altos níveis de ansiedade e estresse, como no caso do divórcio (Juras & Costa, 2017; Emery, 2012). O problema está quando os processos de triangulação perdem o seu caráter transitório e adaptativo e se tornam estruturas cristalizadas de interação familiar que podem implicar danos para os filhos e no alijamento de outros membros; (b) coalizão: este fenômeno é outra propriedade da formação de tríades dentro do sistema familiar e se refere à formação consciente de uma aliança de dois membros contra um terceiro. No contexto da disputa de guarda litigiosa, representa o alinhamento claro entre um genitor e os filhos contra o outro genitor; (c) fronteiras difusas: dentro de um sistema familiar existem subsistemas como o parental e o filial. Para o bom funcionamento do sistema, as regras, as normas, os papéis e funções entre esses subsistemas, portanto as fronteiras, devem ser bem claras e delimitadas, mas também permeáveis (Maciel et al., 2020). Quando essas fronteiras são difusas (ou seja, não claras, confusas, contraditórias) ou extremamente rígidas, os processos inter-relacionais entre o subsistema parental e o filial podem adquirir características disfuncionais que tendem a levar à formação de alianças rígidas entre um genitor e um filho; d) lealdades invisíveis: são expectativas implícitas, muitas vezes transgeracionais, que implicam cada um dos membros familiares na manutenção da homeostase familiar (Boszormenyi-Nagy & Spark, 1984). No divórcio, um dos genitores pode ser visto como alguém que contrariou aquelas expectativas ao romper o união conjugal e, portanto, pôs em risco o mito e coesão familiares. Assim, os demais membros da família tendem a se unir contra aquele genitor.

Conversação terapêutica e epistemologia sistêmica na prática clínica

Com base na experiência dos autores deste artigo, as dificuldades e impasses surgidos no exercício do papel parental configuram-se como uma das principais queixas relacionadas à vida familiar e que aparece nas psicoterapias individual, conjugal e familiar. A compreensão sistêmica de tais situações aponta em várias direções, da relação com a família de origem à formação do casal, ressaltando o caráter relacional que subjaz tais dificuldades. No presente artigo, o foco de análise dessas dificuldades será na díade parental, tanto no contexto do casamento quanto no do pós-divórcio.

O avanço dos pressupostos e do conceito de alienação parental na sociedade brasileira repercutiu também na prática clínica. Com isso, o termo passou a ser utilizado por profissionais e clientes em tratamento psicoterápico, seja na terapia de casal, seja no atendimento individual. As questões ligadas à alienação parental e que impactam a prática clínica não são exclusivas de casais separados ou divorciados. Pelo contrário, observa-se que muitas dificuldades nessa área são agravadas após a separação do casal, mas sua existência já pode ser notada nos arranjos relacionais firmados durante o casamento (Boris, 2012). Nesse âmbito, queixas de pais e mães que se sentem desautorizados e desqualificados em seu papel parental, ou mesmo alijados da convivência com os filhos em razão de alianças estabelecidas entre estes e o outro cônjuge, apontam para uma dinâmica relacional que pode interferir no exercício parental e na convivência e nos cuidados com os filhos.

Os autores deste artigo atuam com casais e famílias a partir de uma epistemologia sistêmica, que pressupõe a construção conjunta do conhecimento em espaços consensuais de intersubjetividade (Esteves de Vasconcellos, 2020), e que questionam a necessidade e efetividade do uso dos pressupostos de alienação parental. A partir dessa experiência, discutiremos como esses acordos conversacionais entabulados na terapia contribuem (ou não) para tornar os pressupostos de alienação parental uma realidade observável pela família e atores jurídicos; além das implicações disso para os processos clínicos.

As dificuldades interacionais e conversacionais da família que ensejam alegações de alienação parental são figuras presentes na prática clínica com indivíduos, casais e famílias e, por isso, é preciso pensar: o que a clínica dos indivíduos, e casais e famílias tem a ver com isso? Como ela é impactada? Quais desdobramentos epistemológicos e éticos o uso dos pressupostos de alienação parental poderia trazer para a prática clínica? E como construir uma prática clínica crítica e baseada em evidências diante das alegações de alienação parental? Para problematizar essas questões, recortes de casos clínicos serão utilizados para ilustrar os desdobramentos dos pressupostos de alienação parental para a relação entre terapeuta e cliente(s). Contudo, antes de abordar os casos, é importante fazer algumas considerações sobre as apropriações epistemológicas dos autores deste artigo quanto aos processos clínicos e o papel do terapeuta.

Compartilhamos do entendimento de Grandesso (2000), que compreende a terapia como uma prática social estruturada em torno de um tipo especial de discurso, definida como conversação terapêutica. De acordo com a autora, trata-se de uma prática dialógica, com propósito de criação de um contexto facilitador para a construção de novos significados ancorados em novas narrativas, que ampliam seu sentido de autoria e possibilidades existenciais. Tal prática não considera os conceitos de patologia, normalidade nem de terapeuta como expert. Ainda nessa perspectiva, para Anderson (2009), o objetivo da terapia não é descobrir conhecimento ou informação, mas criar novos significados a partir de outras formas de dialogar sobre aquelas partes das histórias dos clientes que os preocupam.

Na perspectiva pós-moderna, o terapeuta, diante da queixa do cliente, não atua como um especialista em busca de uma realidade preexistente a ser desvelada. Ele estabelece com o cliente um diálogo colaborativo, no qual ambos são coconstrutores de um espaço conversacional destinado ao surgimento de novos significados para os problemas, que deixam de ser vistos como uma realidade observável para serem compreendidos como o produto de descrições, o produto de uma construção social (Anderson, 2009). Seguindo a perspectiva de que as realidades emergem dos acordos linguísticos entabulados em contextos delimitados, a conversação entre terapeuta e cliente também pode contribuir para a manutenção e/ou o reforço de certas formas de descrever os problemas, que os mantêm aprisionados em narrativas de descrença e vitimização.

No contexto dos discursos produzidos pelos clientes quanto à alienação parental, ao invés de assumir as realidades descritas como fáticas e rígidas, o terapeuta sistêmico, nestes casos, deverá ser fomentador de processos discursivos e reflexivos que ajudem o(s) cliente(s) a construir novos significados e narrativas para as suas realidades relacionais. Esses significados devem, ao mesmo tempo, ser atinentes à realidade relacional do sistema familiar (complexa, multideterminada, interdependente) e também à promoção de saúde e bem-estar nos processos transacionais da família. Isso será mais bem debatido na discussão dos casos clínicos a seguir.

 

MÉTODO

Neste artigo, propomos reflexões e discussões sistêmicas a partir do método qualitativo de 'estudo de caso'. Esse método originou-se no campo das Ciências Médicas e, logo depois, passou a ser utilizado em outros campos da Ciência, incluindo a Psicologia (Peres & Santos, 2005; Ventura, 2007). Um estudo de caso é uma estratégia de pesquisa observacional naturalística que objetiva desvelar conhecimentos e discussões sobre determinado tópico e/ou fenômeno, tendo como base os elementos e características singulares de um caso específico para ampliar o potencial de conhecimento sobre determinado aspecto ou fenômeno a partir da análise dedicada de um caso específico e singular (Brum et al., 2012; Serralta, Nunes, & Eizirik, 2011). Este estudo está de acordo com o disposto na Resolução nº 510/2016, do Conselho Nacional de Saúde, e na Carta Circular nº 166/2018-CONEP/SECNS/MS da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa quanto à sua dispensa de aprovação formal em um Comitê de Ética em Pesquisa. As vinhetas dos casos apresentados abaixo foram extraídas de atendimentos clínicos e nenhuma informação pessoal dos clientes será apresentada; os nomes indicados são fictícios.

 

APRESENTAÇÃO E DISCUSSÃO DOS CASOS2

Caso 1: "Sofro alienação parental por parte da minha esposa"

Essa foi uma das queixas trazidas por Wagner, 35 anos, na primeira sessão de terapia de casal. Ele e a esposa, Vanessa, 30 anos, procuraram atendimento alegando distanciamento físico e afetivo e discussões acaloradas, que, por vezes, chegavam à violência verbal. Ambos já haviam feito menção à separação como forma de resolução das dificuldades, mas nenhuma atitude fora tomada nesse sentido.

Estavam casados havia seis anos e tinham uma filha, Bianca, com três anos à época do atendimento. A chegada de Bianca a esse núcleo familiar foi motivo de realização por parte dos pais, que planejaram juntos a gravidez e vislumbravam grande prazer no exercício do papel parental. Contudo, Wagner se dizia descontente no exercício de seu papel de pai, e afirmava sua certeza de que estava sofrendo alienação parental por parte de Vanessa. Ele mesmo se encarregou de enumerar os comportamentos que, na sua leitura, faziam de sua esposa uma alienadora: críticas constantes a ele quanto aos cuidados com a filha, tanto na presença quanto na ausência da criança. Vanessa, por sua vez, se defendia das acusações e apontou que a relação ficou muito desgastada depois que o marido passou a chamá-la de e a tratá-la como 'alienadora'.

Wagner nunca havia prestado atenção ao conceito alienação parental até que sua psicoterapeuta, que o acompanhava havia anos, lhe indicou uma leitura sobre o assunto. A partir daquele momento, ele começou a correlacionar o que estava descrito no texto com diversos comportamentos de sua esposa - percepção que, segundo ele, era ratificada nas conversas que tinha com sua psicóloga. Ele também buscou se inteirar sobre o assunto com um amigo, advogado atuante na área do Direito de Família, o qual também o alertou que se tratava da prática de alienação parental, prevista na lei nº 12.318/10.

Wagner foi associando alguns comportamentos de Vanessa àquilo que ele chamava de personalidade alienadora, interpretando os atos e as críticas de Vanessa à sua atuação parental como uma intenção deliberada dela em fazer com que sua filha o rejeitasse. Um dos seus temores com a separação era de que a esposa nunca mais permitisse que ele visse Bianca. Vanessa, por sua vez, se sentia atacada pelas acusações do marido e, como recurso defensivo, passou a reproduzir reiteradamente o discurso de estar cansada, pois se sentia sozinha nos cuidados com a filha, e de que Wagner queria apenas o bônus, mas não o ônus da parentalidade, cabendo a ela a parte mais difícil da criação de Bianca. Assim como o marido, Vanessa também construiu uma hipótese linear acerca do problema a partir da qual, assim como Wagner, ela se via como uma vítima das acusações do marido.

A comunicação entre o casal estava comprometida e a confiança abalada. Vanessa e Wagner estavam fixos em narrativas conflitantes acerca de seus problemas, condensadas e encerradas na narrativa de alienação parental. Haviam se tornado protagonistas de histórias incapacitantes, impossibilitados de recuperar sua capacidade de autoria e autonomia diante da própria história. As acepções de alienação parental haviam se juntado àquelas acusações próprias dos casais em conflito, com o agravante de que tais acepções, fomentadas em práticas discursivas consensuais, limitaram as possibilidades de outras narrativas acerca dos problemas do casal; logo, cristalizaram o subsistema conjugal em uma cena relacional enrijecida e intransigente.

Caso 2: "Ela não me deixa ser pai da minha filha"

Foi assim que Antônio, 40 anos, descreveu o que o afligia quando buscou atendimento psicoterápico individual por recomendação de uma psiquiatra. Diagnosticado com transtorno de ansiedade generalizada, Antônio relatou que não tinha contato com a filha Janaína, de 13 anos, havia sete meses.

Descreveu a separação ocorrida há dois anos como um momento tumultuado entre ele e a mãe de sua filha. Tramitava na Justiça um processo em que Antônio pleiteava a guarda unilateral da filha. Na última vez em que esteve com Janaína, discutiu com a ex-esposa e esta teria lhe dito que ele só veria a filha na Justiça. Relatou que, após esse episódio, fez tentativas de contato com a filha via redes sociais, mas sem lograr êxito.

Por ser bacharel em Direito, Antônio já ouvira falar de alienação parental. Em conversa com seu advogado, dois meses após o rompimento dos contatos com a filha, decidiu entrar com uma nova petição, alegando ser vítima de alienação por parte da ex-esposa. Toda a narrativa presente no documento descrevia um homem impedido de ser pai da própria filha. Em sua tese, tratava-se de alienação parental não apenas por parte de sua ex-esposa, mas também de outros membros da família materna.

O discurso de Antônio encontrou respaldo numa organização não governamental de pais e mães separados e em uma psicóloga que atuaria como sua assistente técnica no processo judicial. No diálogo com essas pessoas, Antônio fortaleceu sua tese. Em sua narrativa, edificada em torno de seus problemas, a ele cabia apenas um lugar: o de vítima da situação.

Ele se recusava a reconhecer qualquer contribuição sua no afastamento de sua filha, atribuindo esse movimento às manobras das outras pessoas para destituí-lo do lugar de pai. Não se permitia sequer considerar que sua filha, uma adolescente, pudesse ter algo a lhe contar a respeito desse afastamento, pois já teria sido programada para repetir as ideias e os pensamentos do núcleo materno.

Embora não houvesse nenhum impedimento legal, Antônio não se mostrava disponível para pensar em estratégias de contato com a filha além daquelas que já havia feito, e se descrevia como o elo frágil de uma disputa. Antônio se encontrava preso a uma narrativa de desesperança e impotência, e só restava a ele esperar que um terceiro (no caso, o Sistema de Justiça) decidisse a seu favor, libertando-o de tal posição. Por isso, havia dedicado os últimos meses a juntar no processo judicial informações que reforçassem a tese da alienação parental. Assim, ele não era mais autor de sua história, apenas esperava que alguém escrevesse um final que lhe fosse favorável. Enquanto isso, sua saúde deteriorava.

Caso 3: "Trocando tiros": o duelo do ex-casal

"Trocando tiros" foi como Marta, 38 anos, definiu sua relação com o ex-marido, Jonas, 36. O ex-casal chegou à terapia encaminhado pela escola do filho Artur, de 7 anos. A orientadora educacional percebeu sinais incomuns de agressividade na criança e, como já vinha acompanhando as desavenças entre os pais, decidiu orientá-los a buscar ajuda para lidar com as dificuldades do filho. Além de Artur, eles tinham um outro filho, Pedro, de 10 anos.

Marta e Jonas faziam acusações mútuas de alienação parental. Não havia consenso sobre quem começou a acusar quem de alienação. Foi possível apenas mapear como cada um chegou a essa descrição do problema: amigos, mídia, textos da internet, profissionais da Psicologia. Interessante frisar que o termo alienação parental não apareceu no relato da orientadora educacional. Esta procurou descrever cada um dos membros do ex-casal como corresponsáveis pelas suas dificuldades.

Cada um também se sentia alienado pelo outro por motivos distintos. Marta dizia que o ex-marido a desqualificava e minava sua autoridade diante dos filhos. Jonas afirmava que Marta tomava decisões referentes aos filhos sem comunicá-lo, excluindo-o da vida dos mesmos. Para agravar o duelo, ambos ameaçavam entrar na Justiça para pleitear a guarda unilateral dos filhos.

Como o casal do Caso 1, Marta e Jonas estavam encarcerados em narrativas que lhes deixavam indefesos e impotentes, e não lhes davam outra alternativa a não ser aprimorar seus ataques ao outro como recurso de defesa. Ao invés de se preocuparem com as repercussões desse cenário sobre a saúde dos filhos, entraram numa disputa para provar quem tinha razão. É possível que a crença preestabelecida de ocorrência de alienação parental tenha comprometido a forma como cada um descrevia os problemas relacionais, engessando a comunicação e minando a confiança entre eles. Além disso, por ter se tornado um dispositivo jurídico, a narrativa de alienação parental emergia como um forte argumento para uma nova ação judicial mas, em contrapartida, gerava em ambos um sentimento de ameaça e reforçava o clima adversarial entre eles.

 

DISCUSSÃO GERAL DOS CASOS

Compreendemos as narrativas trazidas pelos clientes ao contexto clínico como formas de descrição dos problemas, forjadas em conversações e interações com os outros e consigo mesmo. Além de seu caráter descritivo, essas narrativas trazem embutidas os significados que emergem a partir desses acordos linguísticos. Anderson (2009) aponta que, em geral, as pessoas começam a fazer terapia porque se encontram em colapso conversacional e com falta de sentido de agenciamento. A proposta terapêutica é a de que terapeuta e cliente(s) se engajem numa conversação que faça emergir aquelas histórias que estão subordinadas ao discurso dominante, favorecendo, assim, o surgimento de novas narrativas sobre a situação. Conforme ressaltam Paschoal e Grandesso (2014, p. 29), o "terapeuta e clientes navegam juntos no espaço aberto da terapia, buscando caminhos possíveis para novos entendimentos para os dilemas da vida, e ampliando as possibilidades de construção de novas narrativas que abram alternativas existenciais".

É possível depreender dos casos apresentados acima que os clientes haviam perdido sua habilidade para estar em diálogo e a crença na sua competência para lidar com o problema, sendo que a alegação de alienação parental contribuía fortemente para as suas narrativas enrijecidas. Além disso, observamos que os pressupostos de alienação parental não são apenas uma nova forma de descrever um problema antigo. Tais pressupostos são também geradores de significados e impactam as relações familiares de diversas maneiras.

Ainda que não conste dos manuais e códigos oficiais como um transtorno mental, percebe-se que o uso corrente do termo alienação parental revestiu-o de características próprias das de uma categoria diagnóstica. Entende-se que a própria lei em vigor no país corrobora isso quando lista uma série de práticas passíveis de serem diagnosticadas como alienação parental por profissionais ou equipes psicossociais (Lei nº 12.318/10). Trabalhos na área da Psicologia também contribuem para reforçar essa associação entre o conceito e comportamentos problemáticos, como a elaboração de um Inventário de Práticas Maternas Alienantes (Carvalho et al., 2017). A conjunção desses aspectos leva a duas implicações importantes: o caráter precursor das alegações de alienação parental nos processos conversacionais e éticos da atuação de terapeutas, em especial psicólogos. Os discursos médico e legal acerca da alienação parental, por meio da legitimação jurídica e suposta validação nosológica, têm impactado os processos conversacionais de pais e mães em conflito e/ou já separados, conforme visto nos casos apresentados. Esse impacto tem chegado à clínica e apresentado desafios importantes não só para a compreensão congruente de dinâmicas familiares funcionais discriminadas como 'alienação parental', quanto para uma atuação profissional do psicólogo que seja pautada na prática baseada em evidências e em princípios éticos da profissão (Mendes, 2019). Há dois principais significados gerados pelos pressupostos de alienação parental que se sobressaem quando observamos os atendimentos no contexto clínico.

O primeiro deles é o caráter patológico contido na narrativa de alienação parental. Quem pratica a alienação é visto como uma pessoa perversa, portadora de algum transtorno mental. Com efeito, as dificuldades relacionais são reduzidas a um problema intrapsíquico, situado no outro, isentando aquele que sofre a alienação da necessidade de reflexão sobre a sua responsabilidade por aquela situação (Mendes & Bucher-Maluschke, 2017). Era o que acontecia com Wagner que, a partir da narrativa de alienação parental, tentou elaborar um diagnóstico da personalidade de sua esposa Vanessa. Por vezes, na sessão, ele utilizava termos como "personalidade dominadora", "centralizadora", "manipuladora" e "abusiva". A proposta terapêutica para o casal teve por objetivo criar um contexto conversacional que tornasse possível explorar tais significados e ampliá-los, de forma a trazer para as sessões aquelas narrativas que se encontravam encobertas pelo problema. O conhecimento da relação do casal ao longo do ciclo de vida foi importante para suscitar outros entendimentos das ações um do outro e dar um aspecto mais dinâmico à situação. Nesse processo, optou-se pelo uso do questionamento reflexivo3, o que auxiliou o casal na ressignificação dos seus conceitos e narrativas.

O segundo é o de que tais situações são solucionáveis por mecanismos de punição aplicados por um agente externo, no caso, a Justiça. Nos atendimentos relatados, observou-se que isso reforçava o antagonismo entre as pessoas. De um lado, estava aquele que tinha as provas dos supostos atos de alienação e, de outro, o que precisava se defender da acusação. O padrão relacional estabelecido entre Marta e Jonas exemplifica bem essa dinâmica. Ambos desacreditavam da sua capacidade de encontrar uma saída para seus impasses, e estavam certos de que um terceiro traria a solução para seus problemas, apontando quem estava com a razão. Por conseguinte, envidaram esforços no sentido de angariar provas um contra o outro. Assim, no processo terapêutico, além de conhecermos como o ex-casal chegou a essa forma de descrever e viver seu problema e explorarmos outras narrativas, utilizou-se a externalização do problema4 como possibilidade de um rearranjo da díade parental. Ao invés de permanecerem em lados opostos, Marta e Jonas entenderam que ambos estavam aprisionados pela narrativa de alienação parental e, a partir desse lugar comum, restabeleceram a parceria para buscar outros caminhos para si próprios e para os cuidados com os filhos.

Dentre os medos da pessoa acusada de alienação, os maiores parecem ser a perda da autoridade parental, a mudança ou inversão do regime de guarda. Ela percebe isso como uma ameaça e, muitas vezes, se cala diante de atos abusivos cometidos contra os filhos pelo denunciante por receio de ser punida pela autoridade judicial - o que contradiz a tese de que a lei da alienação parental seria protetiva e atenderia ao princípio dos melhores interesses de crianças e adolescentes (Mendes, 2019; Mendes, Lordello, & Ormerod, 2020). Da parte de quem acusa, percebe-se que, ao conceber o problema como algo que só pode ser solucionado por um terceiro, há uma falta de engajamento pessoal na busca de alternativas relacionais.

O uso da narrativa de alienação parental teve o efeito de encobrir e mascarar a complexidade dos processos vivenciados pelas pessoas no pós-divórcio, gerando uma descrição de atos, dentro de uma lógica linear e simplista. Esse reducionismo teve efeito no padrão de comunicação dos clientes, pois já entravam no diálogo fortemente induzidos por suas convicções e pela vontade de que a sua verdade sobre os fatos predominasse sobre as demais. Conforme assinala Grandesso (2000, p. 248), a procura de um terapeuta nessas situações "parece mais a procura por um juiz que valide a sua versão do problema, que, inevitavelmente, tem um protagonista como paciente, detentor de um problema, e traz implícito quem e o que deveria mudar, como deveria mudar e em que direção".

O que a autora descreve já era observado por terapeutas de casais e famílias em diversos processos conversacionais ao longo de anos. O que nos chama atenção nos pressupostos de alienação parental é que o apelo para que 'alienação parental' se tornasse uma categoria médica e jurídica (o que, de fato, aconteceu no último caso) conferiu ao termo alguns significados peculiares que, do ponto de vista sistêmico, representam retrocessos em termos da compreensão, da teorização e da intervenção na prática clínica com casais e famílias.

Outro ponto que merece destaque é a desvalorização das narrativas de crianças e adolescentes em acusações de alienação parental (Mendes, 2019; Mendes, Lordello, & Ormerod, 2020). A conversação terapêutica no enfoque pós-moderno pressupõe que diferentes mapas de mundo trazem diferentes interpretações da realidade (White, 2012) e contribuem para a emergência de novos significados e alternativas. Como os pressupostos de alienação estão vinculados à ideia de doutrinação e, até mesmo, implantação de falsas memórias, isso leva os clientes a desconsiderarem a legitimidade das narrativas de seus filhos, tomando-as como um produto de uma lavagem cerebral. Além de excluídas da conversação terapêutica, as crianças e adolescentes também podem ser colocadas numa situação de risco por esse tipo de postura (Mendes, Lordello, & Ormerod, 2020). Antônio desconsiderava qualquer expressão de Janaína, pois afirmava que a filha estava com a "cabeça feita" pela mãe. Essa crença o impedia de planejar qualquer tipo de aproximação com a adolescente, levando-o a recusar, inclusive, uma sessão junto com a filha, sob o argumento de que a fala dela não teria credibilidade. Após ouvir a proposta terapêutica oferecida por um dos autores deste artigo, Antônio recusou-a e preferiu buscar alguém que, segundo ele, fosse especialista em diagnosticar atos de alienação parental. Acrescentou que não mediria esforços para provar na Justiça que a mãe de sua filha era uma alienadora. Em nossa leitura, Antônio foi em busca de outros acordos conversacionais que validassem a sua maneira de descrever a realidade e, assim, não desafiassem as narrativas de alienação parental que o aprisionavam em um papel rígido e acrítico de genitor alienado, ou seja, de vítima.

A partir da compreensão de como essas pessoas construíram suas verdades sobre os fatos, as intervenções terapêuticas com enfoque pós-moderno apresentam-se como um recurso de exploração e reconstrução de significados. Nesse processo, as narrativas alternativas ou invisibilizadas pelo discurso dominante podem emergir, facilitando o resgate da competência e do senso de autoria pessoal e o engajamento num diálogo mais colaborativo. Em contrapartida, modelos terapêuticos que coadunam os pressupostos de alienação parental podem incorrer na categorização de comportamentos em torno desses pressupostos, o que reforça e limita os conteúdos narrativos dos clientes e impede que outros significados despontem nessa conversação.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com as discussões apresentadas neste artigo, objetivamos expandir a compreensão das narrativas de alienação parental, tanto por meio de explicações sistêmicas alternativas para as dinâmicas familiares discriminadas como alienação parental quanto pela problematização dos processos conversacionais entre cliente(s) e terapeuta. A perspectiva tradicional e dualista de que o cliente é o portador dos problemas e o terapeuta é o expert que detém as melhores ferramentas para identificá-los é agravada quando se trata de denúncia de alienação parental. O caráter reducionista e a pretensa objetividade contidos nos pressupostos de alienação parental reduzem, sobremaneira, as possibilidades de os clientes se implicarem numa reflexão acerca dos padrões relacionais que mantêm seus impasses. Ao reduzirem a complexidade de suas experiências a alegações de alienação parental, os membros desse sistema se esquivam de enfrentar as crises próprias do ciclo de vida familiar e reforçam seus padrões disfuncionais.

Alguns terapeutas de família buscam uma aproximação entre a teoria sistêmica e os pressupostos de alienação parental como forma de compreensão e intervenção no que consideram ser um fenômeno, sem, no entanto, se questionarem como (e se) os condicionantes que deram origem ao termo 'alienação parental' (contexto sociocultural, valores, práticas narrativas) coadunam com aqueles pressupostos das teorias sistêmicas que embasaram a compreensão do funcionamento dos sistemas humanos. Além disso, também é importante pensar as implicações técnicas e éticas que a escolha do terapeuta em assumir ou não os pressupostos de alienação parental pode trazer para a família e, principalmente, para os melhores interesses das crianças e adolescentes. Que implicações éticas e técnicas o reconhecimento e reforçamento de narrativas de alienação parental trazem para a prática clínica? Elas se direcionam mais para caminhos de construção de narrativas com autoria e autonomia ou aprisionam pais e filhos em papéis rígidos de narrativas relacionais alijadoras de corresponsabilidades e formas de transações familiares mais funcionais, adaptativas e condizentes com as necessidades desenvolvimentais da família?

Partindo-se do paradigma pós-moderno, em que o terapeuta é parte integrante do sistema e tem uma participação ativa na coconstrução do que vem a ser compreendido, entendemos que diagnosticar e intervir também são práticas geradoras de significados que podem reforçar narrativas limitadas e, ao contrário do que se pretende, manter as pessoas presas em conversações disfuncionais e cada vez mais beligerantes. Nos casos abordados neste artigo, ao contrário, buscou-se assumir uma postura colaborativa, em que o terapeuta atuou como um facilitador que auxiliou as pessoas não apenas a contarem e a recontarem suas histórias, mas também a se relacionarem com elas de uma forma diferente, abrindo caminhos para a ressignificação e construção de novas narrativas mais congruentes com o funcionamento e desenvolvimento do sistema familiar. Portanto, cabe ao terapeuta refletir sobre o papel que assume dentro desse sistema e a partir de quais pressupostos ele irá compreender aquilo que lhe é trazido pelos clientes.

 

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Recebido em 29/11/2020
Aprovado em 09/03/2021

 

 

1 Mendes, J. A. A. & Ormerod, T. (2021a). Increasing uncertainty in child custody cases after parental separation: the role of context in the decision- -making process. Family Court Review. (No prelo).
2 O relato dos casos apresenta modificações e adaptações para que os jurisdicionados não sejam identificados.
3 O questionamento reflexivo é um aspecto da entrevista interventiva orientada para permitir que clientes ou famílias gerem novos padrões de cognição e comportamento por conta própria. O terapeuta adota uma postura facilitadora e deliberadamente se utiliza de perguntas que são suscetíveis de abrir novas possibilidades de autocura. Ver Tomm (1987).
4 A externalização é uma abordagem terapêutica que estimula o cliente a materializar ou personificar o problema que o oprime, convertendo-o em uma unidade separada de uma pessoa ou de uma relação a quem estava atribuído. Ver White e Epston (1993).

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