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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641XOn-line version ISSN 2175-3601

Rev. bras. psicanál vol.41 no.2 São Paulo June 2007

 

PRÊMIOS DO XXI CONGRESSO DE PSICANÁLISE

 

As novas formas de concepção e a produção de subjetividade: a propósito de um caso clínico1

 

New ways of conception and subjectivity production: on a clinical case

 

Las nuevas formas de concepción y la producción de subjetividad: propósito de un caso clínico

 

 

Luciana Oltramari Cezar2

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

As técnicas de fertilização artificial fazem parte da vida moderna. Porém, a que transformações subjetivas nos remetem esses avanços tecnológicos? A autora investiga as fantasias sobre o enigma das origens, examinando o caso clínico de um menino nascido de uma gestação de proveta e que chegou para tratamento. Parte da idéia de que o real vivido ingressa no aparelho psíquico empapado pelo imaginário, indo enlaçar-se com as inscrições históricas singulares ali existentes para assim produzir efeitos subjetivos; nesse sentido, este trabalho reflete também a respeito das novas formas de concepção, da produção de subjetividade e da constituição psíquica.

Palavras-chave: Fertilização artificial; Enigma sobre as origens; Sexualidade infantil; Teoria da sedução generalizada; Mensagens enigmáticas; Representação; Sexualização; Função materna e paterna; Fantasia; A posteriori; Teorias sexuais infantis; Desmentida estrutural.


ABSTRACT

Artificial fertilization techniques are part of modern life. However, to what subjective transformations such technological progresses take us? This paper’s purpose is to examine the fantasies about the riddle of origins setting out from a clinical case of a boy who is the outcome of a assisted reproduction pregnancy that has come for treatment. The idea that the reality experienced enters the psychic apparatus filled by the imaginary is present becoming intertwined with existent singular historical inscriptions so as to produce subjective effects; in such a way that this paper also tends to reflect upon new ways of conception, the production of subjectivity and psychic constitution.

Keywords: Artificial fertilization; Riddle about origins; Child sexuality; Generalized seduction theory; Enigmatic messages; Representation; Sexualization; Mother and father function; Fantasy; Child sexual theories; Subjectivity.


RESUMEN

Las técnicas de fertilización artificial forman parte de la vida moderna. Más, a que transformaciones subjetivas nos remiten estos progresos tecnológicos? Este trabajo se propone examinar las fantasías sobre el enigma de los orígenes a partir de un caso clínico de un niño fruto de una gestación de probeta que vino a tratarse. Se parte de la idea de que lo real vivido ingresa en el aparato psíquico empapado por lo imaginario, mezclándose con las inscripciones históricas singulares allí existentes para así producir efectos subjetivos, de modo que este trabajo también trata de pensar a respecto de las nuevas formas de concepción, la producción de subjetividad y la constitución psíquica.

Palabras claves: Fertilización artificial; Enigma sobre los orígenes; Sexualidad infantil; Teoría de la seducción generalizada; Mensájenes enigmáticas; Representación; sexualización; Función materna y paterna; Fantasía; A posteriori; Teorías sexuales infantiles; Subjetividad.


 

 

Novas tecnologias, novas questões, novos enigmas. É inegável o benefício que as novas técnicas de inseminação trazem às pessoas. Muitos casais, impedidos por questões psíquicas ou orgânicas de serem pais por via natural, não são mais privados da felicidade de ter um filho. Porém, a que transformações subjetivas nos remetem esses avanços tecnológicos? Essas novas questões convidam a uma honesta revisão de paradigmas, impondo-se cada vez que uma criança ou adolescente nos chega ao consultório. O real vivido ingressa no aparelho psíquico empapado pelo imaginário, indo enlaçar-se com as inscrições históricas singulares ali existentes para, assim, produzir efeitos subjetivos. Os enigmas humanos apontados por Freud como aqueles que põem em andamento a atividade autoteorizante da criança – a exemplo do coito dos pais e do nascimento dos bebês – e que culminam nas “teorias sexuais infantis” não possuem mais o mesmo conteúdo. Nem todas as crianças entram ou saem pelo mesmo lugar. As teorias sobre as origens, tais como costumam ser construídas pelas crianças, podem perder sua vigência naquelas concebidas sob essas novas formas.

Este trabalho visa pensar os novos métodos de concepção, a produção de subjetividade e a constituição psíquica. Apresento também uma vinheta clínica de uma criança cuja gestação foi de proveta e examino as respostas teorizantes com as quais ela enfrenta o enigma de sua origem.

Concebemos a constituição do psiquismo partindo de uma concepção exógena, ou seja, o aparelho psíquico, o inconsciente, um ego não existentes desde a origem constituindo-se a partir da relação com o outro. São modelos de aparelho postos por Freud já no Projeto de 1895 (1985/1987), com a idéia de quantidades que circulam nos neurônios, a ação específica e a vivência de satisfação deixando marcas mnêmicas, na Carta 52, na qual propõe um aparelho que se forma por traços de memória, e no capítulo 7 de A interpretação dos sonhos (1900/1997), onde propõe um aparelho que se rege por uma corrente que vai desde o pólo perceptivo ao motor e um sistema que transforma as excitações em traços permanentes que vão se tornar representações, dando origem à vida psíquica.

A partir do abandono, por Freud, da teoria da sedução e também de sua auto-análise, abre-se o caminho para a descoberta do complexo de Édipo, da fantasia e da sexualidade infantil. Freud abandona a teoria da sedução e não consegue aproveitar o que nela há de bom. Laplanche, a partir das idéias de Freud, parte dessa teoria da sedução restrita, como se a sexualidade fosse limitada às histéricas, e propõe a teoria da sedução generalizada, para falar sobre a constituição do sujeito psíquico como produto do encontro com o outro.

Laplanche parte da idéia já existente em Freud, desde o Projeto para uma psicologia científica (1985/1987), de que no início da vida há um ser que, se entregue a si mesmo, é incapaz de ajudar-se por conta própria, ou seja, nasce num estado de desamparo. Os primeiros tempos da vida estão marcados pela passividade e dependência com relação ao semelhante e isso define a sedução do adulto para com a criança. Poderíamos citar aqui um belíssimo trabalho de Ferenczi, Confusão de línguas entre a criança e o adulto, que Laplanche considera uma espécie de prefácio à teoria da sedução generalizada, onde diz que a criança fala a linguagem da ternura, e o adulto, a da paixão. A partir disso, a criança diante do adulto faz apelo ao infantil que há nele e a relação originária se instala, assimétrica. E nessa defasagem se dá um traumatismo necessário, pois estamos falando de uma sexualização humanizante.

A sedução que ocorre entre o adulto e a criança é traumática na medida em que a criança não tem à sua disposição um aparato psíquico com representações para integrar o evento. Estou partindo do pressuposto de que a sexualidade irrompe de fora para dentro, que é do outro que a sexualidade chega ao sujeito, o inconsciente sendo fundado no interior dessa relação sexualizante e produto do recalque originário. Nessa sedução precoce de que nos fala Laplanche, o pai perverso, personagem da cena infantil, cede lugar à mãe, que nos cuidados corporais dispensados ao bebê introduz um plus de prazer.

Para Freud, quando surge uma tensão de necessidade no interior do organismo (por exemplo, a fome), é necessária uma ação específica, que não pode ser realizada pelo bebê nos seus inícios:

O organismo humano é, a princípio, incapaz de levar a cabo essa ação específica. Ela se efetua por meio de assistência alheia, quando a atenção de uma pessoa experiente é atraída para o estado em que se encontra a criança, mediante a condução de descarga pela via de alteração interna. Essa via de descarga adquire, assim, a importantíssima função secundária da comunicação, e o desamparo inicial dos seres humanos é a fonte primordial de todos os motivos morais (Freud, 1895/1987, p. 336).

Embora destaque que é a “pessoa experiente” que oferece assistência ao desamparado, a participação do outro na constituição psíquica não é o interesse principal de Freud. Apesar de ele nos oferecer pistas importantes, seu foco está muito mais em como se processam as excitações dentro do aparelho psíquico. Por isso, para complementar esse modelo, busquei desenvolvimentos teóricos de Laplanche (1992, 1993, 2005)e Bleichmar (1990, 1994, 2005).

Essa experiência, na sua totalidade, resulta numa vivência de satisfação que deixa marcas, e esse prazer o bebê buscará repetir, o que Freud chamou de desejo. Na Carta 52, Freud diz que as marcas não se formam de uma só vez, mas se desdobram em vários tempos, sofrendo novos arranjos, transcrições e retranscrições. São experiências de prazer no contato com o outro e são as impressões da mãe, sua voz, seu cheiro, seu toque, sua disposição – um dia está mais carinhosa, feliz, descontraída; noutro, mais irritada, preocupada, apressada. Esse conjunto de impressões semelhantes e diferentes do mesmo objeto vai se inscrevendo várias vezes, formando uma representação psíquica do objeto mãe.

Esse aparelho psíquico incipiente fica entregue a inscrições que são efeito da ação do outro e que mais tarde formarão o núcleo do inconsciente, os resquícios inconscientes do recalcamento originário, o que Laplanche chama de objeto-fonte e que Freud, de certa forma, definiu como representação-coisa. O princípio de inércia, a tendência à descarga zero, é rompido desde o início, e a proposta de Freud de que há estímulos endógenos dos quais não se pode fugir é o que mais tarde ele vai conceitualizar como pulsão. Assim, a vivência de satisfação não se dá pela simples satisfação nutrícia, mas porque esse elemento apaziguador da fome e também objeto sexual, o seio, é introduzido pelo outro humano, sexuado, provido de inconsciente e cujos atos não se reduzem ao autoconservativo.

Laplanche apresenta a expressão “sedução originária” para esta situação fundamental em que o adulto propõe à criança significantes verbais e não-verbais impregnados de significações sexuais inconscientes. É sua própria sexualidade infantil oral, anal, urogenital recalcada que é reativada pela situação de desamparo em que a criança se apresenta. Os cuidados maternos veiculam o enigmático que a mãe nem sabe que está emitindo e que a criança terá de metabolizar.

Em 1905, nos Três ensaios sobre a sexualidade,Freud escreveu:

O trato da criança com a pessoa que a assiste é, para ela, uma fonte incessante de excitação e satisfação sexuais vindas das zonas erógenas, ainda mais que essa pessoa – usualmente a mãe – contempla a criança com os sentimentos derivados de sua própria vida sexual: ela acaricia, beija e embala, e é perfeitamente claro que a trata como o substituto de um objeto sexual plenamente legítimo. A mãe provavelmente se horrorizaria se lhe fosse esclarecido que, com todas as suas expressões de ternura, ela está despertando a pulsão sexual de seu filho e preparando a intensidade posterior desta. Ela considera seu procedimento como um amor puro, assexual (Freud, 1905/1987).

Também nesse texto Freud descreve a teoria do apoio como o surgimento da pulsão sexual apoiada sobre a função de autoconservação. Laplanche, seguindo essa linha de pensamento, reformula-a dizendo que a única verdade do apoio é a sedução originária. Justamente porque os gestos do adulto são portadores de mensagens sexuais inconscientes para ele mesmo e não domináveis pela criança é que se instala uma zona erógena, não dada biologicamente. A zona oral está predestinada, por sua função, a ter valor erógeno, mas somente serviria de apoio. Na busca do alívio da fome, o bebê encontra-se com o seio. A fome é aquilo que se pode saciar com a ação específica; é da ordem do biológico, mas ali onde ela se extingue nasce a sexualidade.

Segundo o modelo que tomamos, a pulsão é um produto gerado pelo encontro com esse “primeiro sedutor”, não um substrato biológico, herdado geneticamente, diferindo, então, da noção de instinto.

Silvia Bleichmar vai dizer que esse outro humano do qual falam Laplanche e Freud é a mãe ou sua substituta e que a função materna é imprescindível à constituição do sujeito psíquico, outorgando-lhe uma função de duplo comutador: tanto de sexualizar, permitindo a instauração da pulsão desde a sua sexualidade inconsciente atravessada pelo recalcamento, quanto de narcisizar a cria, desde suas representações egóico-narcisistas, possibilitando vias de ligação às quantidades que implanta. Essa idéia já está presente em Freud quando descreve as vias colaterais no Projeto de 1895.

Como dito antes, a partir do abandono da teoria da sedução, três temas passam a ocupar a mente de Freud: a sexualidade infantil, a fantasia e o Édipo. Mas de onde surgiriam? Sem muitas respostas, ele vai situar a sedução como uma das fantasias originárias, de origem filogenética. Pensando assim, seria difícil, mesmo para Freud, reavaliar a questão da sedução e conceber a pulsão como efeito da inscrição sexualizante do semelhante. Freud, ao abandonar a teoria da sedução, não só fez da fantasia uma teoria científica, mas procurou explicar, em termos de origem, como a sexualidade ocorre no ser humano. Vemos nele uma estreita correlação entre fantasia, desejo e sexualidade. O movimento, segundo a argumentação aqui desenvolvida, seria sempre no seguinte sentido: excitações somáticas – nas quais o corpo só serve de apoio para que se instalem, a partir dos cuidados autoconservativos sexualizantes da mãe –, surgimento da pulsão e, posteriormente, fantasia. Para Freud, o auto-erotismo seria a fonte da fantasia.

Para Laplanche, as fantasias, assim como os mitos, pretendem proporcionar uma representação aos enigmas das crianças. São os grandes enigmas – como o do coito dos pais, o nascimento de um irmão e a diferença entre os sexos – que põem em andamento a atividade autoteorizante da criança e culminam nas teorias sexuais infantis.

Seguindo Silvia Bleichmar, diremos que, a partir do momento em que a linguagem e o recalcamento originário se instalam e são abertas as relações entre o pré-consciente e o inconsciente, essas vias de ligação serão as formas de significar, ou seja, de autoteorizar.

A primeira ligação do traumático se daria então a posteriori – o inconsciente originariamente recalcado encontra, através dos distintos modos de constituição da fantasia, possibilidade de articulação.Seguindo a teoria freudiana do après-coup, Laplanche vai dizer que há dois tempos do recalcamento originário: o primeiro, o das inscrições, e um segundo, em que esses significantes são reatualizados e a criança deve tentar ligar, o que desemboca nas teorizações.

Freud observa que, à medida que a sexualidade da criança avança, ela impulsiona em meio às suas excitações uma atividade de busca pelos enigmas da vida: a pulsão de saber. A criança seria atraída, principalmente, pelos problemas sexuais com os quais se depara, como o tema das origens: de onde vêm os bebês e a diferença entre os sexos. Surge o desejo de saber da vida dos pais e, em especial, da cena primária. As crianças sofrem a curiosidade e fazem suas pesquisas sexuais formulando teorias próprias, de acordo com suas percepções e a capacidade que possuem de representar. São tentativas de tradução do sem sentido que vão resultar numa produção fantasmática. Também porque os adultos não se preocupam em explicar tudo, nem são capazes disso, elas fazem que reste uma mensagem de caráter enigmático. A propósito, Silvia Bleichmar esclarece:

É flutuando entre duas posições – a revelação e a investigação – que a criança estabelece seus modelos de construção de um sistema de certezas egóico a respeito de si mesma e do mundo. Os enigmas se estruturam a partir da impossibilidade da linguagem parental de “significar tudo”, das efrações que inauguram as verdades “histórico-vivenciais” em relação aos redescobrimentos que o recurso parental propicia. Qualquer ilusão de que os pais possam dizer tudo deve ser abandonada, na medida em que eles mesmos desconhecem as determinações inconscientes que os impulsionam no interior do vínculo com seu filho (Bleichmar, 1994, p.78).

No espaço exato dessa falta, cria-se a possibilidade para criar, fantasiar, simbolizar. A exigência de trabalho interno na busca de sentido é o que torna complexo o aparelho psíquico, outorgando às perguntas a respeito das origens o estatuto de perguntas estruturantes. A criança tem de recorrer a novos códigos que irão ajudá-la a ligar e simbolizar aquilo que vivencia, tarefa indispensável a sua humanização. Os grandes esquemas narrativos transmitidos, principalmente os contos infantis, ajudam-na a simbolizar e traduzir o enigmático.

Para Myrta Casas de Pereda (1999), a crença aparece dentro do contexto do desconhecido e teria o propósito de excluir as dúvidas, de construir uma teoria para não ter angústia frente ao não saber. Segundo Casas de Pereda, “são crenças, não certezas nem saberes” (p. 204). Para ela, essas crenças também teriam um lugar de organizador psíquico, outorgando à desmentida um estatuto estrutural nesses primeiros tempos e pensando-a como uma defesa frente à angústia. A desmentida através das teorias sexuais infantis seria um recurso natural a ser usado, tendo um verdadeiro efeito de estrutura. Diz a autora: “A desmentida estrutural é uma das respostas do aparelho mais imediatas, para resolver a indefesa estrutura dos começos da vida psíquica; imaginar, fantasiar ou alucinar” (p. 154).

De acordo com Freud, as primeiras teorias sobre o nascimento seriam a do coito oral e a do parto anal. As crianças também formulariam uma concepção sádica do coito dos pais. Em Sobre as teorias sexuais das crianças, Freud diz que cada vez mais a criança vai observando e elaborando falsas teorias, ligadas à oralidade ou às funções de micção e defecação. Estão cientes de que se formam e crescem dentro da barriga da mãe e de que o pai tem sua participação. Mas como vai parar lá dentro, no início é um enigma. Começam a desconfiar dos adultos e percebem que há algo de que não participam, tentando ansiosamente descobrir o que os pais fazem um com o outro para terem bebês. Somente depois de muitas articulações é que reconhecem o papel do pênis e da vagina.

Freud baseou-se nas crianças de sua época e, principalmente, na análise do pequeno Hans. A fecundação e a gestação só se davam de forma natural. É possível sustentar essas respostas a tais enigmas quando as formas de geração não são mais as mesmas? Que interrogantes estão presentes nas crianças que são fruto de inseminação artificial? Podemos nos arriscar a dizer que a criança se pergunta não pelo que os pais fizeram para ter um bebê, mas pelo que aconteceu com eles para que ela não fosse concebida pelo coito e precisassem da ajuda de um terceiro? Essa situação vem revelar que algo da relação entre pai e mãe não funcionou. Rompe-se aqui a relação natural que existia entre fecundação e sexualidade. De que modo incide no psiquismo a concepção de um filho fora do ventre materno? Como vai se constituir a cena primária em seus sistemas representacionais?

M. tem 6 anos e foi concebido por inseminação artificial. Para ele, a história de sua concepção vai também instaurar novas teorias sexuais e formações fantasmáticas. As fantasias que se expressam através do brinquedo e das vivências de M. são também armadas, seguindo Freud, pelo visto e pelo ouvido, restos transmitidos desde o discurso familiar, e vão ser a realidade psíquica a ser trabalhada.

Numa sessão, M. pega os dinossauros de sua caixa e põe os dois juntos, fazendo uma cena na qual enfia o rabo de um na boca de outro. Várias fantasias podem estar presentes nessa cena; poderia estar se armando a teoria de uma cena primária oral em que a concepção não passa pelo coito.

Na fazenda há uma pata que não pode sair do ninho porque os ovos podem estragar, mas, na seqüência, um ovo acaba se perdendo e pode morrer. M. sempre brinca com um cavalo que nomeou de poderoso. Esse cavalo pode voar, falar, lutar com monstros e bichos ferozes sem que nada lhe aconteça; nunca morre. M. procede da mesma forma em outras brincadeiras. Constrói um zoológico onde o dono mostra os bichos aos visitantes – entra na jaula do leão, do jacaré, do tubarão, da baleia – e pega os animais para mostrá-los melhor. Como ocorre na maioria desses casos, várias são as tentativas até que um dos óvulos fecundados implantados se desenvolva e a gestação inicie. Pode haver uma fantasia onipotente como defesa contra uma constante angústia de aniquilamento e a presença muito precoce de uma angústia de não-existência e morte, relacionada com suas origens e com a idéia de que ele poderia não ter existido. As fantasias onipotentes permitem triunfar sobre a sensação de fragilidade e o mortífero. Sentiria angústias de morte como se pensasse que era um ovinho solto perdido numa proveta ou porque foi tão difícil a fecundação?

A fantasia pode estar nas operações defensivas mais primitivas, como na transformação no contrário. Por exemplo, em M. o sentimento de impotência se transformaria numa fantasia de onipotência. Entretanto, esses sentimentos não se devem unicamente ao fato de uma criança ser de proveta, mas também em como a mãe libidiniza essa criança.

M. me fala de medos relativos a não aprender na escola, de não ser capaz, pois vai ingressar na primeira série no próximo ano. Numa ocasião em que brinca com o casal de bonecos, encena que se conhecem e diz que é a mulher que vai pedir o homem em casamento, que vem em cadeira de rodas para se unirem. Noutra sessão, pede que eu escolha um lugar para ser uma casa. Ali vão morar um casal e dois filhos e eu serei a esposa. Ele escolhe também um lugar que será a casa de seus bonecos, mas escolhe só um casal. Eu pergunto: Eles têm filhos?” M. responde: Não sei se vou ter, talvez revelando um medo de não ser potente para ter coisas e para ter filhos. Uma interrogação presente nessas crianças talvez seja: “O que houve com meu pai que não foi capaz de fazer um filho em minha mãe?” Noutra sessão, encena o coito entre um cavalo e uma égua e diz que é para ela engravidar: Ele fez muitos filhos, olha, passou a sementinha, agora vai começar a gravidez. Segue fazendo com o boi e a vaca e diz: Ela não quer, não aceita ele, então não deu. E logo depois: Agora deu, ela aceitou, mas eles namoraram primeiro. Será que se pergunta o que houve com sua mãe que não pôde ser fecundada pelo pai?

À medida que o trabalho analítico progride, vão aparecendo os conflitos edípicos, principalmente a rivalidade com o pai. Brinca de que os bonecos que representam o casal moram em fazendas separadas e cada um tem um filho. Escolhe um boneco que diz ser um robô, que tem vida própria, pensamento próprio e só faz o que gosta. Na fazenda ele é o que mata a cobra, dá as ordens, compra tudo o que deseja. Na sessão seguinte usa animais: um leão e uma onça, cada um no seu vale. Os bichos caçam, lutam, disputam, e o leão fica com a onça. Há também um leão que tem a pata quebrada, é doente, não faz nada, às vezes só avança. Também o gavião, depois de matar o macaco, se une à macaca e vão ter filhos. Monta uma cena em que o menino e a menina vão se encontrar atrás da montanha, e eu lhe pergunto o que fazem atrás da montanha, da porta, um homem e uma mulher, ao que ele reage: “Nada”; “Tu acha que o pai e mãe não fazem nada?”; “É, eles não fazem nada.”

Vemos que o complexo de Édipo, seus desejos inconscientes, também vão ser coloridos pela subjetividade. Ao mesmo tempo em que parece querer eliminar a lei paterna e pensa que o pai não vai separá-lo da mãe, não podendo exercer a função paterna ao ter essas fantasias, pode pensar que não é filho desse pai. Gavião e macaca não são da mesma espécie, ele não tem um pênis que possa fertilizar a macaca, tampouco o leão à onça.

Não concebemos que a incapacidade de ser pai ou mãe por via natural, a falha biológica, signifique incapacidade de exercer a função paterna e materna, ou mesmo que a capacidade corporal de ter filhos represente o desejo de tê-los. Portanto, pode haver uma dicotomia entre a capacidade do corpo e a fertilização psíquica. Obviamente os casais que recorrem a essas técnicas não são incapazes de serem bons pais, mas muitas vezes o filho representa a incapacidade parental de fecundação natural que traz uma ferida narcísica; então nosso trabalho com eles deve ser de investimento constante em seu desejo pelo filho, recuperando os aspectos vitais deles como pais.

Pareceria que criança de proveta não fantasia sobre a tecnologia. Sua preocupação não está no procedimento médico, nem tanto em como é o coito dos pais, mas, sim, nas interrogações do porquê de ela não ter sido concebida pelo coito: que houve com sua mãe que não pôde engravidar dela em seu próprio corpo e por que seu pai não teve espermatozóides suficientemente potentes para dar-lhe origem de modo natural? A tecnologia, com suas novas possibilidades, desloca o conteúdo das teorias infantis, mas não é sobre ela que a criança teoriza.

O enigma sobre as origens sempre existirá e não pode ser esclarecido pela biologia natural ou pela genética artificial. Os enigmas são só teorizáveis pela criança e podem dar origem tanto a sua inteligência quanto a seus sintomas. As interpretações deste trabalho não são universais. Levam em conta a singularidade do sujeito, os aspectos histórico-vivenciais e muitos dados do caso que não foram relatados.

Sabemos que o nascimento simbólico de uma criança não é correlativo ao seu nascimento biológico. É a partir daí que poderemos avaliar como se produzirá a evolução psíquica. Não penso que o funcionamento psíquico e os sintomas de uma criança ocorram somente porque ela é de proveta, mas as novas formas de concepção inegavelmente implicam transformações subjetivas, cabendo aqui distinguir subjetividade de constituição psíquica.

A subjetividade está atravessada pelas mudanças históricas, sociais, culturais e tecnológicas, mas, segundo Silvia Bleichmar, não se refere ao funcionamento psíquico em seu conjunto, nem dá conta das formas com as quais o sujeito se constitui, tampouco de suas constelações inconscientes. A autora propõe diferenciar o psíquico da subjetividade, remetendo esta última àquilo que se refere ao sujeito, o que é diferente da tópica psíquica, o inconsciente. Diz ainda que a subjetividade é um produto histórico, efeito de determinadas variáveis históricas, ao passo que a constituição é um processo mais profundo e básico para a estruturação e o funcionamento psíquico, seguindo Freud naquela idéia da existência de um inconsciente em sua materialidade, uma tópica, em oposição a um ego. A relação entre a organização psíquica e a subjetividade é que a subjetividade pode ser estabilizante da organização psíquica.

De que modo o real da fertilização artificial ingressa no sexual como mensagem enigmática e que teorias ele constrói sobre o originário? Como ficam as fantasias sobre a cena primária se ele não a tem na sua origem? O que, da sua origem, influenciou sua constituição psíquica? Esses questionamentos nos inquietam. Talvez uma resposta só venha a ser encontrada na articulação entre a teoria que nos guia e a clínica que se apresenta. Foi a tentativa deste trabalho, que promove mais perguntas do que respostas.

 

Referências

Bleichmar, S. (1994). A fundação do inconsciente. Porto Alegre: Artes Médicas.         [ Links ]

______ (2005). La subjetividad en riesgo. Buenos Aires: Topía.

______ & col. (1990). Lecturas de Freud. Buenos Aires: Lugar Editorial.

______ (2004). Límites y excesos del concepto de subjetividad en psicoanálisis. Revista Topía, año XIV, n. 40, Buenos Aires.

Casas de Pereda, M. (1999). En el camino de la simbolización. Buenos Aires: Paidós.

Freud, S. (1987). Primeiras publicações psicanalíticas. Obras completas, v. 1. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1895.)

______ (1997). A interpretação de sonhos. Obras completas, v. 5. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1900.)

______ (1987). Três ensaios sobre a sexualidade. Obras completas, v. 7. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1905.)

______ (1987). Sobre as teorias sexuais das crianças. Obras completas, v. 9. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1908.)

Laplanche, J., & Pontalis, J. B. (1993). Fantasia originária, fantasias das origens, origens da fantasia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

______ (1992). Novos fundamentos para a psicanálise. São Paulo: Martins Fontes.

______ (2005). Três acepções da palavra inconsciente no quadro da teoria da sedução generalizada. França.

 

 

Endereço para correspondência
Luciana Oltramari Cezar
Rua Bento Gonçalves, 1897
99000-000 – Passo Fundo – RS
E-mail: lucianacezar@brturbo.com.br

Recebido em 24.11.2006
Aceito em 8.5.2007

 

 

1 Artigo “Tema livre” do XXI Congresso Brasileiro de Psicanálise, Porto Alegre 2007, Prêmio Virginia Bicudo para Candidatos ABC (Associação Brasileira de Candidatos).
2 Candidata da SBPdePA.

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