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Revista Brasileira de Psicanálise
Print version ISSN 0486-641X
Rev. bras. psicanál vol.44 no.2 São Paulo 2010
ARTIGOS TEMÁTICOS - VARIAÇÕES E FUNDAMENTOS
Os novos ritmos do século XXI e a clínica psicanalítica contemporânea
Los nuevos ritmos del siglo XXI y la clinica psicoanalítica contemporánea
The new rhythms of the twentieth century and contemporary psychoanalytic clinic
Ronis Magdaleno Júnior1, Campinas
RESUMO
Partindo das mudanças observadas na cultura desde o final do século XX, o autor propõe uma discussão a respeito do lugar do psicanalista no setting analítico hoje, e as particularidades necessárias para a análise do sujeito de século XXI. Os principais desafios que se apresentam atualmente para os analistas são a hospitalidade para o radicalmente estrangeiro e o rigor de sua formação. A hospitalidade só pode ser oferecida por um analista que tenha plenamente incorporado em si o método psicanalítico e a ética que lhe é própria, sendo essa incorporação do método na estrutura identitária do analista o que possibilita um lugar de permanência na cultura dos não lugares e da velocidade, viabilizando um setting possível e eficiente. Nos tempos de respostas, a psicanálise e os psicanalistas devem manter sua vocação em sustentar as boas perguntas.
Palavras-chave: psicanálise; hospitalidade; formação analítica; método psicanalítico.
RESUMEN
A partir de los cambios observados en la cultura desde el final del siglo XX, el autor propone una discusión referente al lugar del psicoanalista en el setting analítico en la actualidad, y de las particularidades necesarias para el análisis de pacientes del siglo XXI. Los principales desafíos que hoy surgen para los analistas, son la hospitalidad para lo radicalmente extranjero y el rigor de su formación. La hospitalidad solo puede ser ofrecida por un analista que tenga plenamente incorporado en sí el método psicoanalítico y la ética que le es propia. La incorporación del método en la estructura identitaria del analista es lo que permite que el análisis sea un lugar de permanencia en la cultura de los no-lugares y de la velocidad, viabilizando un setting posible y eficiente. En el tiempo de las respuestas, el psicoanálisis y los psicoanalistas deben mantener su vocación y sustentar las buenas preguntas.
Palabras clave: psicoanálisis; hospitalidad; formación analítica; método psicoanalítico.
ABSTRACT
Starting from the observed changes in culture since the late twentieth century, the author proposes a discussion about the place of the psychoanalyst in the analytic setting today, and about characteristics required for the analysis of the subject of the XXI century. The main challenges facing today for analysts are the hospitality for the radically strange and the rigor of their training. Hospitality can only be offered by an analyst who has fully incorporate the psychoanalytic method and its ethic, with this embodiment of the method in the analyst's identity structure which allows a place to stay in the culture of non-places and speed, enabling a setting possible and efficient. In these times of responses, psychoanalysis and psychoanalysts should keep its purpose in supporting the good questions.
Keywords: Psychoanalysis; hospitality; psychoanalytic training; psychoanalytic method.
Os novos ritmos do século XXI e a clínica psicanalítica contemporânea
… es tiempo de buscar las buenas preguntas…
Viñar, 2006
Se considerarmos os dois trabalhos seminais de Sigmund Freud que fundaram a psicanálise – A interpretação dos sonhos, de 1900 e "Três ensaios sobre a teoria da sexualidade", de 1905 – podemos dizer que esta ciência tem hoje entre 105 e 110 anos de idade. Ainda jovem como ciência, ela aparece e sobrevive num cenário histórico de mudanças radicais, talvez como nunca se tenha visto na história da humanidade. Acompanhou e sobreviveu a profundos abalos na cultura, sobretudo no comportamento dos indivíduos para os quais ela se destina, ou seja, o homem reflexivo e que sofre com sua condição. Nasce em plena era vitoriana, época com valores morais muito particulares, sobretudo no que se refere à crítica à condição animal do ser humano, ou seja, sua sexualidade e seus impulsos agressivos. Onde a natureza selvagem se revelava, mecanismos de defesa e negações se impunham. Tudo era resguardado e escondido, quando não – e aí encontramos a genialidade de Freud – "esquecido" sob a pressão de intensas forças psíquicas. Freud (1894/1976, 1895/1974a, 1900/1972a) chamou esse esquecimento de recalque e percebeu que era isso que sustentava o sintoma neurótico.
Ao desvendar o recalque e o inconsciente, ele introduziu um novo paradigma para a compreensão do sujeito, ou seja, que por trás do que conhecíamos sobre nós mesmos e do que se entendia por identidade havia um caldeirão fervilhante de impulsos, desejos e ideias, aparentemente esquecido e que determinava as atividades conscientes, dando um caráter estrangeiro àquilo que somos.
Nesse momento, Freud fere profundamente o narcisismo humano ao postular que somos atravessados por esse estrangeiro formado por tudo aquilo que é selvagem e, o que é pior, não tivemos nada a ver com isso, tudo tendo ocorrido à nossa revelia. Neste momento da cultura, marcado profundamente pelo racionalismo e pelo iluminismo, pela crença na superioridade da razão humana frente a todo o resto da natureza, Freud obriga o homem a repensar seu lugar e, consequentemente, a cultura a se recolocar frente ao novo paradigma.
No final do século XIX, o truque usado pelos terapeutas da alma para tratar as patologias nervosas e transpor os diques e as resistências (Freud, 1895/1974a) impostas pelo sujeito à sua própria verdade, era a utilização do método hipnótico. O sujeito hipnotizado, em tese, diminuiria suas resistências e o médico teria um acesso facilitado àquilo que sustentava o sintoma, com autoridade para removê-lo. Freud (1886/1977b, 1888/1977a) foi buscar compreendê-lo com Charcot e Bernheim, contudo logo o abandona, mas aproveita de sua experiência para confirmar que existia, como havia suspeitado desde o início, ideias e emoções que estavam em estado latente em algum lugar além da consciência. Para ter acesso a elas, no lugar da hipnose introduz a regra fundamental, baseada na associação livre de ideias, que é pilar do método psicanalítico, que nos identifica como analistas até hoje. Curiosamente, de algum tempo para cá muitos analistas têm se esquecido da importância de enunciar a regra fundamental no início das análises, como se ela fosse naturalmente óbvia para o analisando (Laplanche, 2003). Resistência do analista? É possível, pois ao esquecer que lutamos o tempo todo contra resistências poderosas fazemos um conluio com a resistência do paciente.
O sujeito do século XX padecia de um mal-estar decorrente do impedimento do livre trânsito e da livre expressão dos impulsos, dos desejos. O recalcamento estava na raiz do mal-estar (Freud, 1930/1974c). O que acompanhamos hoje é de uma qualidade muito diferente; a aceleração do tempo e o abuso do referencial narcísico levam a um mal-estar que consiste no declínio do gesto introspectivo, pelo qual o trabalho de inscrição psíquica e ressignificação são mais operantes, empobrecendo os ingredientes que alimentam o cenário pessoal. Como consequência, o sujeito vive imerso em um paradoxo entre a pletora dos acontecimentos e a pobreza das experiências e inscrições significativas (Viñar, 2006) e o psiquismo se estrutura de forma rasa, com um conteúdo pouco consistente, pouco espesso, insuficiente para dar conta das exigências que lhe são feitas.
Dentro deste novo contexto sociocultural, bem diferente daquele vivido por Freud e dos primeiros anos da psicanálise, cabe a nós psicanalistas repensarmos nossa atividade e as mudanças que são necessárias, muitas delas já em curso, veladamente, há muitos anos. O risco que sempre acompanha as mudanças é o de descaracterização da essência do que fazemos. Até onde podemos ir com estas mudanças sem alterar a essência daquilo que fazemos? Onde balizarmos nossa atividade para que ela possa se adaptar às mudanças que estão por todos os lados, sem comprometer a pureza do método?
Aqui se colocam duas questões que penso serem fundamentais na clínica atual: o lugar da hospitalidade (Giovannetti, 2006) e o problema da identidade do analista (Magdaleno, 2005), mas antes apresento duas situações clínicas que ilustram o paciente da psicanálise contemporânea.
Vanessa é uma adolescente, apagada, que me procurou com queixas vagas a respeito de sua vida. Não se sentia bem com alguma coisa em relação à sua vida, coisa essa que não conseguia definir e nem mesmo delimitar. Preveniu-me de que não era muito de falar, mas logo essa expectativa se desfez, pois Vanessa falava o tempo todo, até demais… Mas não dizia nada! Pouco a pouco fui me dando conta de uma irritação que sua fala causava em mim: certa impaciência, um tempo que não passava… Fui me dando conta de que seu discurso era vazio, dava voltas sem sair do lugar, sem insigths, sem elaborações. O tempo todo palavras vazias. O discurso era factual com pouca ou nenhuma associação com sua história de vida, sem sonhos. Fui me dando conta que ela realmente não conseguia falar, assim como havia me prevenido, e que sua fala nada mais era do que um desesperado movimento, utilizado para impedi-la de perceber o imenso vazio de sentido que havia se estabelecido dentro dela.
Bruna é uma jovem de 20 anos que foi trazida à análise após ter sido surpreendida algumas vezes furtando pequenos objetos ou pequenas quantias de dinheiro de colegas e parentes próximos. Além disso, apresentava uma obesidade importante desde criança que a inibia em seus contatos afetivos. Ao serem apresentadas as queixas da mãe, fiz logo a relação entre os furtos e o excesso alimentar, geralmente executado às escondidas. Pareceume óbvia a associação e apontei a ela: os objetos que furtava tinham o mesmo sentido da comida que furtivamente ingeria, mas para Bruna não fez sentido… Iniciamos o trabalho analítico e ela mostrou-se pouco engajada; suas sessões eram relatos dos dias que precederam as sessões, e o que impressionava era a incapacidade de relacionar as queixas e os acontecimentos de sua vida, uns com os outros. Expressava muita angústia, sobretudo quando era flagrada em situações que a colocavam em dificuldades: alguém que se referia à sua obesidade, alguém que a questionava a respeito de alguma pequena mentira, uma avaliação negativa de um professor ou colega. O que me chamava a atenção era a incapacidade de relacionar os fatos que contava. Tudo acontecia muito rápido e volumosamente, acumulava histórias, assim como gordura corporal, e ela não sabia o que fazer com isso. Toda tentativa de interpretação que procurava relacionar aos fatos caíam num vazio ou a obrigavam a rebater prontamente, como se estivesse sendo acusada e, logo a seguir, retomava a fala num ritmo acelerado, aparentemente sem nenhuma atividade elaborativa. Com o passar do tempo, foi ocorrendo um desinteresse pela análise, começou a faltar, mentir para a mãe dizendo que vinha à análise, até que, justificando-se com um motivo banal, interrompeu o processo, sem que eu tenha identificado qualquer movimento elaborativo, além de ter ficado devendo o pagamento do último mês, que foi acertado pela mãe – que não sabia – após eu ter entrado em contato.
Inquietudes na clínica e hospitalidade
A hospitalidade pura e incondicional, a hospitalidade em si, abre-se ou está aberta previamente para alguém que não é esperado, nem convidado, para quem quer que chegue como um visitante absolutamente estrangeiro, como um recém-chegado, não identificável e imprevisível, em suma, totalmente um outro. Eu chamaria esta hospitalidade de visitação mais do que de convite. A visita poderia, na verdade, ser muito perigosa, e não devemos ignorar este fato; mas será a hospitalidade sem risco, uma hospitalidade apoiada em certas garantias, protegida por um sistema imune contra o totalmente outro, seria uma hospitalidade verdadeira? Derrida (2002, citado por Giovannetti, 2006, p. 25).
Hoje, mais do que em qualquer outra época, o analista deve estar preparado para receber a visitação de um outro que lhe é estrangeiro, recebê-lo em sua estranheza, assumindo os riscos desse processo. O sujeito que adentra nossos consultórios traz as marcas de um mundo repleto de mudanças rápidas, de valores outros que aqueles de não muitos anos atrás, imersos completamente na lógica superficial do consumo e do capital, e cuja capacidade simbólica, capacidade para pensar, foram substituídas pela necessidade de manter um padrão de consumo e estético nem sempre bem delimitados. Nesse contexto se estruturam as chamadas patologias de déficit ou de não representação (Magdaleno, 2008; Lisondo, 2004; Levy, 2003) que são desafios para psicanalistas, psicólogos e médicos que, nestes casos, não encontram pontos de balizamento nos quais fundamentar uma prática clínica satisfatória e eficiente.
Como acolher e tratar este paciente com o arsenal terapêutico que recebemos durante nossa formação? Como oferecer um setting definido por um tempo de 45 a 50 minutos, três ou quatro vezes por semana, sempre nos mesmos dias da semana, para um sujeito que funciona em megabytes por segundo e que circula em espaços virtuais? Como oferecer uma interpretação baseada na fala para um sujeito cujo cérebro funciona ao estilo do SMS ou da linguagem cifrada do Messenger? Como falar de enquadre de intimidade para um sujeito cujas comunidades estão no Orkut ou no Facebook, para todo mundo ver? Certamente, se tentarmos enquadrar esses sujeitos aos padrões clássicos a análise tenderá ao fracasso.
Para Viñar (2006) o impasse vivenciado pelos psicanalistas atualmente não decorre de mudanças léxicas, mas do ritmo do discurso, tendo a sequência narrativa deixado de ser linear, argumentativa e progressiva, passando a ser convulsiva, epilética e plena de presentes contínuos. Giovannetti (2006) corrobora essa hipótese ao afirmar que:
... os pacientes que nos procuram hoje, por viverem em um mundo onde fronteiras não mais existem e a ideia ou conceito de permanência estão substituídos pelo de velocidade e de aceleração do tempo, não podem ser apresentados ao setting clássico de análise, sob o risco de nenhuma possível análise se constituir. (p. 28)
O desafio colocado ao psicanalista não é achar uma nova língua para falar com este novo sujeito, e muito menos tentar impor a ele a velha língua, mas conseguir entrar em sintonia com seu ritmo, para só então, aos poucos, criar um ambiente que possa ser aceito por ele e aceitá-lo, dentro do qual, ao contrário daquilo que fazia Freud (1905/1972b), que realizava suas análises per via de levare, poder per via de pore criar uma linguagem que faça a intermediação entre o sujeito e nós, e depois entre ele e o mundo (Magdaleno, 2010).O desafio é construir um setting possível que favoreça que o espaço virtual e sem fronteiras possa ser transformado em um lugar de intimidade, de trocas, de narrativa, de existência real, não virtual (Giovannetti, 2006). Por fim, é função do analista, hoje, proporcionar um lugar de permanência dentro do mundo da virtualidade e dos não lugares.
Nas últimas décadas, os analistas têm sido obrigados a se mobilizar e adaptar sua clínica ao novo contexto cultural, o que tem permitido "a construção de um setting analítico possível, não clássico" (Giovannetti, 2006, p. 28). A construção deste novo lugar passa, necessariamente, por um luto pela perda daquele lugar que não mais existe, o que, diga-se de passagem, está em pleno acordo com o pensamento freudiano que baseou toda sua prática na certeza de que a escuta atenta e hospitaleira do outro era o que abria para o novo e para o inusitado.
Este lugar-não lugar dentro do qual trabalhamos hoje, ou, talvez dizendo de outra forma, este lugar potencial a ser construído, abala os pilares de sustentação da existência e do pensamento, remetendo à questão do trauma. É justamente a inexistência deste lugar que os pacientes trazem para o setting, colocando em xeque a referência que temos para executar nossa função. Toda a teoria freudiana, desde seus primórdios, foi baseada na existência de lugares e representações, por vezes virtuais e pouco delimitados, mas lugares e representações: dentro e fora, inconsciente, pré-consciente e consciente, Eu, Id e Supereu, eu e objeto, além da própria noção de setting como um lugar estável e com regras definidas. O desassossego do analista em trabalhar fora de seu lugar, sempre causou reações de proteção por parte dele. Hoje, mais do que em outros momentos, o analista é exposto a situações absolutamente inusitadas que desafiam até o limite a sua capacidade de se manter fiel ao método e, ao mesmo tempo, hospitaleiro para o estrangeiro que se apresenta.
Viñar (2006) observa que mesmo sendo impossível "conceber uma clínica psicanalítica sem inquietudes, porque é inerente ou intrínseco à reflexão freudiana fundar-se naquilo que desassossega e que desajusta, a clínica dos tempos atuais merece o barômetro de tormenta ou tempestade" (p. 31). O desafio que se apresenta aos analistas hoje é "reconhecer e analisar as maneiras em que as profundas e vertiginosas transformações desta mutação civilizatória de nossa época afetam a nossa prática, nossa clínica (…) e pensar como o tesouro do legado freudiano pode adequar-se às conjunturas e desafios do novo milênio" (p. 31).
O que na época de Freud configurava-se como desafio, ou seja, lutar contra a rigidez e a imutabilidade das estruturas neurótica, psicótica e perversa (as patologias sendo lugares em si), transformou-se radicalmente. O paciente frequentemente se apresenta como completo estrangeiro, em sua linguagem e sua estrutura. São estruturas nas quais não existe um lugar dentro do qual o sujeito possa se situar, e, consequentemente, um lugar a partir do qual possamos aplicar nosso método e trabalhar. Vemo-nos obrigados a uma aculturação inicial a esse sujeito, a aprender como nos remetermos a ele e, sobretudo, como nos fazermos ouvir. O psicanalista deve "adotar a postura do etnólogo, quando trata de impregnarse das lógicas de outra cultura, de outra sensibilidade que lhe é estranha (…) e traduzir esta estranheza em uma linguagem apreensível pelo sujeito" (Viñar, 2006, p. 32).
Identidade analítica: pilar de sustentação de um setting possível
Para falar da clínica psicanalítica contemporânea não podemos evitar tocar na questão da função analítica. Ser analista, hoje mais que nunca, é uma questão de identidade que depende da incorporação do método na estrutura identitária, candidato decorrente de um processo analítico radical de si mesmo e de um contato prolongado com o inconsciente (Green, 1999). Nunca foi tão necessário discutir a identidade psicanalítica e o setting interno, já que o setting geográfico (sala, disposição da sala, número de sessões, privacidade, constância de horários etc.) sofre cada vez mais os efeitos do novo padrão de funcionamento cultural, social e econômico. A saturada discussão sobre o número de sessões já não se aplica, pois os analistas que insistem em manter rigidamente suas exigências quanto ao setting clássico, veem seus possíveis pacientes se deslocando para outros lugares. É fala corrente que os consultórios de psicanálise se esvaziaram e que os pacientes se deslocaram para outros lugares onde são acolhidos de acordo com suas demandas, mesmo que superficiais (falta de tempo, indisponibilidade financeira, objetividade e resultados rápidos etc.). A terapia comportamental ganhou espaço, e caiu nas boas graças da psiquiatria (até porque atende à demanda pragmática do psiquiatra, que clama por objetividade e um suposto controle rápido do sofrimento). A psiquiatria, estimulada por grandes volumes de dinheiro, cresceu em proporções inimagináveis, tendo atraído para si uma enorme massa de pacientes fascinados com uma pretensa modernização das ferramentas terapêuticas disponíveis para curar seu sofrimento. O personal trainer tornou-se o mais novo concorrente do psicanalista, absorvendo uma população eternamente insatisfeita com suas vidas, deslocada para soluções mágicas em busca de um corpo irretocável e de uma saúde perfeita nunca alcançada, e que os leva aos esteticistas, ao cirurgião plástico, à nutricionista, fechando-se um círculo vicioso, dentro do qual se perde cada vez mais a capacidade reflexiva, o contato com a subjetividade e com a particularidade do sofrimento de cada um.
O analista contemporâneo deve ser capaz de transitar, na companhia de seus novos pacientes, por esse novo espaço e, para tanto, mais do que nunca o rigor de sua formação se faz necessário, pois é ela que possibilita a apreensão do método enquanto incorporação de uma ética particular, ou seja, que permite mudanças na identidade pessoal do candidato (Magdaleno, 2005). Ninguém mais do que nós, analistas, precisamos nos expor às transformações identitárias impostas pelo processo analítico e estar continuamente em crise. Incorporar o método como estrutura identitária significa colocar-se em risco constante, sendo esse o único e necessário modo de inserção no campo movediço e sem balizamentos que é a transferência. A alta, para nós analistas, é sempre algo adiado para um momento futuro, pois ser analista é estar o tempo todo colocando expostos os próprios pontos cegos para uso do outro, em análise, o que perpetua um existir no campo da transferência que é próprio do ofício de analista. Como bem nos lembra Giovannetti (2001), nós analistas somos os únicos pacientes que nunca resolvemos nossa neurose transferencial, e vivemos dela em nosso trabalho, pois fazemos a escolha de viver em contato contínuo com nossos restos transferenciais. Mas isto tem seu lado positivo, que é a possibilidade de incorporar uma ética da neutralidade (Magdaleno, 2005), ou seja, a incorporação do método possibilita, como em nenhum outro campo humano, um genuíno respeito pela individualidade do outro, seja ele um analisando, seja alguém de nosso convívio diário.
Hoje, num momento em que a psicanálise encontra-se em crise, ou pelo menos os analistas estão em crise, mais do que nunca a questão da formação do analista vem para primeiro plano. Somente aqueles analistas que tenham atendido às duras exigências de uma formação analítica, com toda a dor implicada e a transformação radical de sua própria estrutura pessoal, estarão aptos a fazer frente ao que é radicalmente novo e estrangeiro. Mais do que nunca a noção de "setting interno" se impõe e este só pode ser construído a partir da própria identidade do analista. Muitas das análises atuais só são possíveis desde que haja um setting interno adequadamente constituído pela dupla, a partir da função analítica do analista. O desafio é poder se situar dentro deste campo, ouvir seus ruídos (por vezes bastante ruidosos) e ressituá-lo num outro nível de funcionamento. Isto só é possível partindo de um lugar particular, resultado desta modificação da estrutura identitária do analista e de sua capacidade de ser hospitaleiro com o que é estrangeiro e traumático no outro.
O tempo das boas perguntas
Os analistas que há alguns anos colocavam-se mais ou menos comodamente em seus consultórios, dentro de um setting preestabelecido, com seus pacientes neuróticos e psicóticos, vêm cada vez mais se vendo obrigados a admitir variações e novidades. É nesse processo que as falhas na formação se fazem evidentes. A reação frente ao estrangeiro pode ser a de se aferrar a normas escolásticas de outros tempos, fazer pulso firme, insistir em manter o setting clássico, inclusive interpretando as estranhezas contemporâneas como resistências. O fracasso é quase certo, e o sujeito procurará ajuda em outros settings. Outra possibilidade, mais nefasta que a anterior, são os arranjos que vão sendo feitos no método, para adequá-lo às demandas. Acompanhamos o surgimento de propostas de adaptações que alteram perigosamente a essência do método psicanalítico, a ética da neutralidade se dilui e se perde em meio a uma avalanche de posturas explicativas e aconselhamentos baseados na teoria psicanalítica que, sob uma fachada de modernização, propõem-se a tornar a psicanálise mais acessível. Estas feridas na essência do método mudam necessariamente o campo que se estabelece no setting e, neste caso, o processo analítico fica inviabilizado.
Em síntese, as duas questões básicas que se colocam à psicanálise hoje são: a hospitalidade e a formação do analista. A hospitalidade, em psicanálise, só pode ser oferecida por um analista que tenha plenamente incorporado em si o método psicanalítico e a ética que lhe é própria. É a incorporação do método que possibilita um lugar de permanência na cultura dos não lugares, viabilizando um setting possível e eficiente.
Vivemos em um tempo de respostas, há respostas ilusórias para tudo, que vão desde religiões, shopping centers até os tão procurados medicamentos antissofrimento ofertados ad nauseum pela psiquiatria moderna. O contraponto proposto pela psicanálise, como citado na epígrafe deste ensaio, é um tempo de buscar as boas perguntas. A psicanálise, enquanto única ciência que busca falar daquilo que não se pode dizer, sustenta-se no paradoxo de oferecer cada vez mais perguntas às perguntas, posto que tem como objeto o inconsciente que é, em essência, não todo (André, 1987), ou seja, não aceita respostas. É o evasivo (Lacan, 2008) que constrói perguntas que nunca se fecham. Toda a tentativa que a ciência tradicional sempre fez de responder aos mistérios do homem, e que atingiu talvez o seu auge na segunda metade do século passado, frustrou-se. Hoje vemos um ser humano perplexo frente à vastidão de perguntas que chegam de todas as direções. Os poucos referenciais oferecidos pela cultura, pela ciência e pelas religiões esfacelam-se diante de nossos olhos. Mais e mais perguntas se fazem necessárias, e frente a elas e à perda de referenciais, o homem do século XXI padece de certa desistência, perdendo o interesse por sua subjetividade, e lançando-se, perplexo, num universo vazio de significações (Magdaleno, 2008) onde o que resta é seu corpo e seu poder de consumir.
Os velhos parâmetros estão obsoletos e os novos códigos são inseguros. A experiência pessoal é marcada por mudanças rápidas e incessantes, a pletora de fatos que atingem o sujeito a cada instante, muitas vezes numa linguagem técnica, desafetada, interesseira por parte do mercado de consumo, sem o potencial formador de subjetividade, não "têm o efeito subjetivante de dar ao espírito o alento de navegar pelos enigmas da existência" (Viñar, 2006, p. 43). A psicanálise tem hoje esse papel de oferecer ao sujeito a cada sessão, em meio à cultura da vertigem (Viñar, 2006), um lugar de permanência e hospitalidade (Giovannetti, 2006).
É o desafio de cada um de nós que se propõe a dar continuidade à criação freudiana, que estejamos atentos às mudanças à nossa volta, no sentido de expandir nosso método e nossa técnica visando poder abarcar este novo sujeito da cultura. Toda a tentativa de adaptar o sujeito a parâmetros obsoletos conduz a psicanálise a um isolamento, o que vai frontalmente contra a meta freudiana de permitir que o sujeito possa se tornar apto para a existência (Freud, 1905/1972b), ou seja, inserido ativa e prazerosamente em seu momento cultural. Se entendermos este sujeito como o psicanalista ou a própria psicanálise facilmente chegamos à conclusão de que nós psicanalistas, e a própria psicanálise, só temos chance de existir a partir do momento que abandonarmos nossas fobias neuróticas e nos apresentarmos para o mundo com todo nosso potencial heurístico e revolucionário, como sempre fomos desde o princípio.
Referências
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Ronis Magdaleno Júnior
[Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP e Núcleo de Psicanálise de Campinas e Região]
Rua Padre Almeida, 515, sala 14 – Cambuí
13025-251 Campinas, SP, Brasil
e-mail: ronism@uol.com.br
[Recebido em 26.4.2010, aceito em 21.5.2010]
1 Membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP e membro do Núcleo de Psicanálise de Campinas e Região.