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Revista Brasileira de Psicanálise
Print version ISSN 0486-641X
Rev. bras. psicanál vol.44 no.4 São Paulo 2010
PRÊMIOS FEPAL
Clone: o inferno do si mesmo1
Clon: El inferno de uno mismo
The clone: the torment of the same
Vera L.C. Lamanno-Adamo2
RESUMO
A autora desenvolve formulações a respeito da clonagem como um mito revelador e em criação. Um mito que auxilia reflexões sobre uma forma específica de relação do sujeito com o outro, de sua relação com o real e de um modo peculiar de pensamento. Utilizando-se do mito e de fragmentos extraídos da clínica, discute-se um conjunto de operações mentais que auxiliam a compreensão de pacientes referidos na literatura psicanalítica como desvitalizados, desobjetalizados, de difícil acesso, borderline. Discute-se também as especificidades do processo transferencial e contratransferencial com esses pacientes.
Palavras-chave: clonagem; trabalho disjuntivo; trabalho conjuntivo; protomental.
RESUMEN
La autora desarrolla formulaciones respecto a la clonación como un mito revelador y a la creación. Un mito que auxilia en la reflexión sobre una forma específica de relación de un sujeto con otro, de su relación con lo real y de un modo peculiar de pensamiento. Valiéndose del mito y de fragmentos extraídos de la clínica, se discute un conjunto de operaciones mentales que auxilian en la comprensión de pacientes referidos en la literatura psicoanalítica como desvitalizados, sin objeto, de difícil acceso, borderline. También se discuten las especificidades de los procesos transferenciales y contra-transferenciales con esos pacientes.
Palabras clave: clonación; trabajo disyuntivo; trabajo conjuntivo; protomental.
ABSTRACT
The author develops thoughts about cloning as a myth, in creation, which reveals interesting aspects of some patients. A myth which helps reflections about a specific type of relationship between the subject and the other, about his relationship with reality and about peculiar ways of thinking. The author uses the myth of the clone and some clinical experiences to discuss mental operations which help to understand those patients referred to in the psychoanalytical literature as devitalized, de-objectalized, of difficult access, borderline. Specificities of the transferencial and contratransferencial process with these patients are also discussed.
Keywords: cloning; disjunctive work; conjunctive work; protomental.
As noções aqui formuladas estão alicerçadas na experiência clínica com pacientes que apresentam recursos simbólicos precários, pobreza imaginativa, apego à concretude, incapacidade para utilizar a livre associação de ideias, pacientes que procuraram ajuda com queixa vaga de tristeza, drogadição e distúrbios somáticos (Adamo e Lamanno-Adamo, 1997, Lamanno-Adamo 2004, 2005, 2006).
Os encontros com esses pacientes geralmente se iniciam com entusiasmo de minha parte, mas frente à incapacidade deles de passar minha comunicação por um processo mental seletivo, com movimentos de retenção e expulsão característicos de um organismo cumprindo funções de absorção, minha capacidade de associar, formular ideias e pronunciá- las vai perdendo a vitalidade e dando lugar a uma forte sensação de entorpecimento. Esses pacientes não vivenciam, conscientemente, sentimentos de inércia, inutilidade, vazio, futilidade, esses são "criados" transferencialmente no clima desvitalizado das sessões.
O querer desses pacientes é tão vago; eles se apresentam quase que totalmente "adormecidos" às questões e conflitos inerentes à condição humana. Uma espécie de clone, pensei várias vezes. Não parece ter sido fruto de uma união sexual, desejos, sonhos. Parece não terem descoberto ainda o mundo das coisas vivas e vistas, e em contínuo processo de ligação e combinação. Apresentam-se quase que totalmente "ignorantes" de necessidade e de desejo de contato afetivo, quase que totalmente desprovidos de reconhecimento da implicação emocional em suas experiências.
Mas esses pacientes procuram tratamento, solicitam algum tipo de ajuda e, fundamentalmente, me estimulam a compreendê-los: que configuração mental é essa que revela, ao menos à primeira vista, uma quase total ausência de vida de fantasia, pensamento simbólico e incapacidade para elaboração e insight?
Envolvida com essa questão encontrei as noções de Baudrillard (1981, 1990, 1999) sobre o clone, e me vi estimulada a desenvolver formulações a respeito da clonagem como um mito em criação, um mito revelador de uma forma específica de relação do sujeito com o outro, de sua relação com o real e de um modo peculiar de pensamento. Nessa perspectiva, passei a considerar o clone um mito que diz respeito a um conjunto de operações mentais que vêm me auxiliando a compreender esses pacientes referidos na literatura psicanalítica como pacientes desvitalizados, desobjetalizados, de difícil acesso, borderline.
Muito provavelmente, o "gêmeo clônico" nunca será idêntico ao seu genitor, nunca será o mesmo, nunca será "tal como em si próprio", milhares de interferências farão dele, apesar de tudo, um ser diferente que terá os olhos pretos do pai, o que não tem nada de novo. A experimentação clônica, muito provavelmente, irá demonstrar a impossibilidade de dominar o processo de procriação pelo domínio da informação e do código. Por isso, tendo a pensar a clonagem como um mito em criação, um mito alicerçado em fantasias fundamentais do ser humano, contendo, expressando e simbolizando a vida fantasmática de uma cultura, ao mesmo tempo que a partir dele, estruturam-se as fantasias.
1
A rede conceitual da teoria de Freud se articula a partir de um ponto pivô: o complexo de Édipo. O complexo de Édipo é o ponto pivô da vida mental. Através desse mito, Freud organizou a dupla diferença sexual e geracional, transformando o mito em um complexo sistema teórico que abarcou o mecanismo de transferência, o trabalho clínico cotidiano com os pacientes, o papel do pai, a análise dos sonhos, o abandono da teoria do trauma como conceito real. O complexo de Édipo repousa numa ampla rede conceitual na qual a diferença sexual e geracional é articulada com as noções de castração, culpabilidade, falo, superego, identificação, Édipo invertido, bissexualidade, narcisismo e sublimação.
Esse é o homem-Édipo revelado por Freud, permanentemente às voltas com a castração, culpa, sublimação, em permanente risco de repetir compulsivamente os vínculos amorosos do passado, a situação triangular, numa sempre e mesma cura de sedução onde o Outro é constantemente convidado a contracenar, e a esse Outro é atribuído um determinado lugar, sempre o mesmo: o de um tirano perverso, o de um ideal de acolhimento e sabedoria, o de um rival a ser exterminado etc.
Édipo diz respeito ao sujeito que mesmo mergulhado profundamente em fantasias de autoengendramento, ainda assim permanece vinculado às figuras da mãe e do pai, figuras parentais sexuadas que o sujeito pode desejar apagar ao substituir-se a elas, mas sem negar a estrutura simbólica da procriação: ser filho de si próprio ainda é ser filho de alguém. O Clone, não, o clone é fruto de uma abolição radical da mãe, do pai, do vínculo sexuado entre eles, da completa união entre seus genes, da imbricação de suas diferenças. O clone não é um ser autoengendrado: ele brota de cada um de seus segmentos, já não há pai, já não há mãe, somente uma matriz (a matriz do código genético) que passa a gerar até o infinito, segundo um modo operacional calcado na abolição da sexualidade, da diferença e da morte. Em consequência, já não há mais sujeito, pois nessa configuração existencial tanto o processo de espelhamento como os processos de projeção e identificação ficam abolidos: o ser clônico é a materialização do duplo por via genética, isto é, abolição de toda a alteridade e do imaginário, reprodução autônoma independente da sexualidade e da morte.
Desvencilhado da diferença sexual e geracional, e também da morte, o homem-clone não corre o risco, como Édipo, de se perder no Outro, não é o sujeito-assujeitado nesse grande Outro. O Outro, no clone, está perdido internamente, assim como a sua capacidade de identificação com esse Outro. Na clonagem vai-se do mesmo para o mesmo sem passar pelo Outro.
Freud conceituou uma compulsão à repetição: em vez de rememorar e elaborar, repete-se, repete-se incansável e compulsivamente. Ao invés de representar e simbolizar, atua-se, repete-se um ato, uma fala, uma cena, repete-se a relação triangular edipiana, os desejos infantis insatisfeitos, a tentativa de gratificação das vivências insatisfatórias e inconclusivas. Como se chegasse um tempo em que não há mais como se satisfazer com palavras e evocações, cadeias associativas, condensações, ligações e desligamentos, quer-se então, somente atuar as paixões, a carne viva das paixões.
Édipo é o convidado de máscara sentado entre nós. O rosto escondido e mascarado, a cara que não se mostra de vez, incitando por isso mesmo, a curiosidade, o fascínio, a paixão. Clone é o homem que perdeu a própria sombra, ou se tornou transparente à luz que o atravessa, ou então está iluminado de todos os lados, superexposto sem defesa a todas as fontes de luz, sem poder refratar essa luz, condenado a uma atividade branca, a uma socialidade branca, ao embranquecimento do corpo, do cérebro, da memória, a uma assepsia total (Baudrillard, 1990).
Édipo é o sujeito múltiplo, polissêmico e polifônico. Clone é o sujeito da dessimbolização, é o sujeito "livrando-se" da inscrição simbólica da pulsão na diferença sexual e na diferença geracional, através de uma situação alucinada de simetria primitiva aquém do sexual e da morte. Através de "técnicas" de desimpedimento do sexo e da morte, tenta-se abolir tudo o que é humano – os desejos, as faltas, neuroses, sonhos, desvantagens, vírus, delírios e o inconsciente, tenta-se abolir todos os traços que fazem de nós seres vivos complexos e específicos. Na clonagem o que está em jogo é a "transposição de um ponto além do qual nada mais é humano ou inumano" (Baudrillard, 1999, p. 40). Na clonagem a sexualidade, a morte e o pensamento, tornam-se uma função inútil.
Que fantasias inconscientes são essas que promovem tal situação alucinada, que operações mentais subsidiam tal configuração?
2
Num instigante texto intitulado "A solução final ou a revanche dos imortais" Baudrillard (1999, pp. 32-45) discute como as técnicas de clonagem são a manifestação de um abrandamento dos seres vivos em sua luta pela morte, em sua luta pela divisão, pelo sexo, pela alteridade, levando-os a se tornarem indivisíveis, idênticos a si mesmos e, portanto, imortais.
Fundamentado no conceito de pulsão de morte formulado por Freud, Baudrillard propõe serem as técnicas de clonagem uma fantasia da ciência que revela a nostalgia do estado não sexuado e não individualizado em que nos encontrávamos antes de sermos mortais e descontínuos. A morte verdadeira não sendo tanto o desaparecimento físico do ser individual, mas a regressão ao estado primordial do ser vivo indiferenciado. Somos seres individuados e orgulhosos de sê-lo, sugere Baudrillard, mas em alguma parte, no inconsciente profundo, nunca nos recuperamos disso, vivemos um eterno remorso da individuação, um fascínio pelo retorno ao universo homogêneo e contínuo.
Nunca, salienta o autor, nos reconciliamos completamente com toda essa multiplicidade de semelhantes dos quais nos separamos no decorrer da evolução. Assim, um arrependimento duplo se instala: não somente o da emancipação individual em relação à espécie, mas de maneira mais profunda, a dos seres vivos sexuados em relação ao reino inorgânico. O clone revela "a revanche dos seres imortais e indiferenciados sobre os seres mortais e sexuados, é isso que podemos chamar de solução final" (Baudrillard, 1999, p. 34).
Fantasia de retorno ao "mesmo do mesmo", espécie de incesto, uma entropia primitiva em prol da desinformação da espécie pela anulação das diferenças e da complexidade. Fantasia de involução que visa libertar o sujeito do sexo e da morte, numa tentativa de pôr fim às peripécias do ser vivo sexuado com toda a sua diversidade, complexidade, diferença radical, alteridade.
Essa fantasia de retorno a um estado indiviso e indiferenciado corresponde, penso, a dinâmicas psíquicas que promovem um permanente trabalho disjuntivo da coexistência entre sim e não, ausência e presença. A meta da pulsão (de morte), nesse caso, sendo a de realizar ao máximo a função desobjetalizante (Green, 1988), através do desligamento, do desinvestimento. O sucesso desse funcionamento manifestando-se pela extinção da atividade projetiva e introjetiva, que então se traduz, sobretudo, pelo sentimento de morte psíquica, ou seja, pela alucinação negativa do eu (Green, 1988). Nessa circunstância, o objeto perde a sua individualidade específica, tornando-se, em casos extremos, nenhum objeto. Um investimento que tem como objetivo fazer o objeto desaparecer, mantendo os afetos libidinais e agressivos em relação ao objeto em contínuo estado de supressão e apagamento, estando, assim, mais ligado às questões de inexistência do que à agressão propriamente dita, mais ligado às vivências de vácuo, vazio, futilidade e ausência de representabilidade e significado do que à agressividade.
O resultado dessa fantasia de involução, dessa fantasia de retorno a um estado indiviso e indiferenciado, levada a cabo por um contínuo trabalho disjuntivo, através de permanente apagamento e supressão dos afetos agressivos e libidinais em relação ao objeto, promove um estado de ausência de relações e enorme empobrecimento da vida mental e emocional. Caminhar rumo a um apagamento quase total das características simbólicas que nos conferem humanidade, libera de forma radical o desejo, a paixão, os signos e as ações, de sua ideia, de seu conceito, de sua essência, de seu valor, de sua referência. Liberados de sua origem e finalidade, o desejo, as paixões, os signos e as ações entram numa espécie de autorreprodução ao infinito, como as células cancerígenas que se multiplicam de modo incontrolável. Essa proliferação ao infinito, fruto de um trabalho de desligamento e desinvestimento das "origens", gera um estado mental de saturação onde nada se contradiz, posto que não estão em conjunção, um estado mental de embranquecimento, uma iluminação de todos os lados, um excesso que cria o lugar para a intensificação dos processos no vácuo.
Caucionado no "nada", incapacitado de simbolização, o pensamento/objeto do clouner, tornado "inumano", não consegue mais se sensibilizar, sentir, interpretar o mundo, tampouco trocá-lo por ideias.
3
C. é um jovem de 28 anos, alto, moreno. Está acima do peso e por isso me procurou: "Já tentei vários tratamentos, vários tipos de regime, nenhum deles surtiu efeito, continuo engordando... daí resolvi buscar terapia, me disseram que uma terapia poderia me ajudar... preciso emagrecer... não me sinto bem assim... gordo". Não disse mais nada. Esperei um pouco para ver se ele iria me dizer alguma coisa sobre a sua vida, sua história. Perguntei se tinha alguma ideia a respeito do porquê de não conseguir emagrecer: "à noite eu tenho muita vontade de comer... fico na televisão comendo, nem sei dizer o que como, não é fome."
Indaguei sobre sua vida profissional, se estudava, trabalhava. "Me formei há três anos, disse, e trabalho numa pequena empresa de um amigo, trabalho só no período da tarde... pouco tempo, não é nada empolgante, mas também não sei o que seria melhor do que isso, ao menos tenho alguma coisa para fazer à tarde. Mas o que está me incomodando mesmo, salientou, é o meu corpo, é não conseguir emagrecer, não sei mais como conseguir parar de comer, e nem sinto fome, quando vejo estou na cozinha pegando uma coisa e outra, nem sei direito o que é que estou comendo e não é por fome".
Por ansiedade, perguntei? "Ansiedade? Não sei, quando eu vejo já estou com um saco de bolachas na mão, comendo, nem vejo o que estou comendo e o quanto estou comendo".
Fiquei quieta alguns segundos, observando aquele corpo acima do peso e pensei: "um corpo..." E ele disse: "Acho que vou conseguir emagrecer só com remédios, mas não queria tomar mais remédios". Indaguei sobre a sua história de vida e ele me respondeu de forma corriqueira, banal: "Meus pais se separaram quando eu tinha onze anos, sou o filho temporão. Meu irmão mais velho sofreu um acidente de moto e está há um ano em coma no hospital e meu irmão do meio era esquizofrênico, morreu há quatro anos em um acidente de carro, mas não foi de fato um acidente, muito provavelmente ele se matou".
C. me deu uma informação rápida, sintética, precisa sobre sua família. Não me ofereceu uma narrativa sobre a sua família, me informou sobre a sua família. Como se o pai, a mãe, o irmão já morto e o outro à beira da morte, não lhe pertencessem, não fizessem parte de sua vida. Em tom informativo, numa fala sem carga afetiva e valor simbólico, C. me noticiou a tragédia que vem acometendo sua família, Uma fala "branca", homogênea, sem passar pela sensorialidade, pelo afeto, pelo Outro, sem tocar, de fato, o mundo que o rodeia.
Essa sua fala "xerocada", basicamente factual, me colocou, prontamente, num estado de saturação que interrompeu de imediato minha capacidade de sentir, imaginar, pensar. Um excesso que me colocou inerte. O processo analítico ficou em suspenso, sustentado no vácuo. Quando consegui me recuperar dessa vivência de entulhamento, perguntei: "você acha que esses acontecimentos na sua família têm alguma relação com você não conseguir emagrecer?" "Não", ele respondeu. "Isso é uma coisa minha, não tem nada a ver com eles".
Nesse contexto que estou apresentando, não entendo essa débil capacidade de C. de construir elos de ligação, em termos de resistência, na conceituação clássica de Freud. Não raro, numa primeira entrevista, o paciente expressa sua conflitiva essencial colocando-a no negativo: "Meu pai morreu quando eu tinha três anos, mas não é esse o meu problema, não é por isso que estou aqui". Não é essa dinâmica resistencial que percebi em C. quando ele negou qualquer ligação entre o que lhe trouxe à terapia e a história trágica de sua família. Não se trata de uma resistência circunstancial, e sim de uma configuração mental implicada num trabalho disjuntivo, de desligamento e desinvestimento. Tenho reconhecido essa configuração mental, essencialmente, na contratransferência, na súbita perda de minha capacidade de associar, sentir, imaginar, pensar: no estado de saturação e de excesso que experimento no decorrer da sessão, no sentimento de inércia, na sensação de que o processo analítico está caucionado no vácuo. Essas vivências contratransferenciais têm me auxiliado a discriminar essa incapacidade à conjunção, que faz com que a experiência emocional prolifere ao infinito de forma rápida e desordenada, promovendo um vazio de excesso, uma falta de falta, que tem de antemão a garantia de não servir para nada (excesso de gordura a ser eliminada).
Decorre desse trabalho disjuntivo, a percepção de uma psique desencorpada e de um soma desmentalizado (Lamanno-Adamo, 2004). Uma psique desencorpada diz respeito a um espaço mental que se assemelha a um depósito que contém um acúmulo de fatos e ações desligados das mensagens afetivas do psiquismo. As palavras, nesse caso, não têm a função de ligação pulsional e tornam-se estruturas "brancas", nulas, congeladas, posto que esvaziadas de substância e significação. O discurso mantém-se inteligível, porém totalmente destituído de afeto: "Meus pais se separaram quando eu tinha onze anos, sou o filho temporão, meu irmão do meio era esquizofrênico etc." Uma fala que denuncia uma falência anímica (Bion, 1959), isto é, a falência em perceber objetos vivos, vistos e reais em permanente combinação e interação. Isso implica uma incapacidade de armazenar a experiência como memória, a experiência ficando reduzida a uma acumulação de fatos (coisas), desprovida das qualidades necessárias para emprego em sonhos e pensamentos.
A falência anímica denuncia a presença de permanente mecanismo de splitting entre animado e inanimado (seio e leite). Sob o efeito desse splitting, seio e leite não são vividos como elementos interligados em contínua combinação e interação, e se convertem em elementos indistinguíveis em si e entre si, num exagero de emanação (Lamanno-Adamo, 2005). A experiência emocional é, assim, transformada num amontoado de elementos inconexos e indiferenciados, e o Outro (perdido internamente) fica reduzido a um objeto utilitário (uma pílula, uma almofada, uma poltrona, um divã). Nessa configuração mental o corpo é um corpo desmentalizado, uma máquina de alta precisão composta de órgãos que mais se assemelham a uma engrenagem constituída por chips, molas e parafusos, do que fonte indubitável de sensações e emoções. Um corpo vivido cartesianamente como mecânico e, portanto, alheio ao psíquico e que passa a substituí-lo (um corpo que come sem saber por que, o quê e o quanto está comendo, um corpo com um defeito a ser consertado).
O trabalho analítico com C. tem sido interessante. Muitas vezes me vejo espelhando, na contratransferência, o inferno do si mesmo. Desligada do que origina significado, percebo-me dominada, de um lado, por um senso de saturação e excesso e, de outro, por um senso de vazio e de inexistência. Nessa situação experimento o processo analítico se sustentando no vácuo, e eu me movimentando do excesso à inércia, da tetanização ao nada. Algumas vezes, me recupero e consigo conversar com C. sobre sua fantasia de completa abolição de suas origens, como uma maneira, mesmo que drástica, de sobreviver. Consigo então conversar com ele sobre sua fantasia de apagamento de sua história e de seus sentimentos de amor e de ódio, como uma forma ainda de se acalmar, de encontrar algum consolo. Em algumas dessas ocasiões C. me olha, fica em silêncio por algum tempo, e então retoma a problemática do corpo acima do peso, então eu tento lhe transmitir como minha fala, nesses momentos, fica transformada em gordura a ser eliminada, já que não parece servir para nada, só para engordar. Algumas vezes, quando lhe digo sobre suas fantasias de se tornar completamente inumano (sem raízes, sem desejo, conflitos, paixão e memória) como forma de apaziguamento, C. me diz: "Pode ser, eu nunca havia pensado nisso antes". Muitas vezes o percebo em estado de saturação e inércia e quando consigo me "desvencilhar" do espelhamento, converso com C. sobre os efeitos de suas fantasias, de se manter completamente desligado de suas origens, de como elas geram nele um senso de inexistência, futilidade, vácuo.
Alguns meses após o início de nosso trabalho, numa sessão depois de um feriado prolongado, C. introduziu um clima diferente no nosso encontro. Ele foi viajar para a praia com sua namorada e a filha dela, de cinco anos. Nesse momento deparei-me com um homem mergulhado em paixão: mostrou-me sua raiva por ter tido a "pentelha" da filha da namorada o tempo todo grudada na mãe, seu sentimento de exclusão, rivalidade, incompreensão, abandono, impotência, vontade de mandá-las para o "espaço" e, ao mesmo tempo, medo de perder a namorada. Tão diferente essa sessão, tão edípica, demasiadamente edípica, estavam todas ali, as três fantasias classicamente reconhecidas: a castração, a sedução, a cena primária.
O trabalho com C. tem me ajudado a compreender essa configuração mental, fundamentalmente clônica, criadora de splittings entre soma e psique, entre animado e inanimado, entre humano e inumano. Um funcionamento que traz, na essência, a fantasia de se tornar indiviso, indiferenciado, sem raízes e origens, como forma de sobreviver a situações traumáticas.
No entanto, essa configuração mental sustentada por permanente desligamento e desinvestimento pode, para alguns pacientes, estar representando apenas um aspecto tributário de algo mais básico, que seria a descontinuidade das sensações primitivas, protomentais que, desde o início, não puderam entrar em conjunção. Não se cindiram porque nunca estiveram em conjunção. Permanecem num espaço de cesura intransponível, tornando-se assim naturalmente disjuntivas (Franco Filho, 2005). Nesses casos, o que impera não é um trabalho mental disjuntivo gerador de dessimbolização. Muitas vezes, confrontamonos na clínica, com áreas mentais em que predominam vivências que não alcançaram um trabalho mental conjuntivo, vivências protomentais que se constituem como um conjunto de elementos em que o físico e o mental são indiferenciados (Bion, 1968). No estado protomental não se pode diferenciar os eventos físicos dos mentais, os componentes emocionais se acham fusionados, pois como fenômenos mentais conformam algo incipiente (Meltzer, 1978).
Com C., paciente apresentado logo acima, tentei ilustrar o processo de desmantelamento da simbolização em função da dor psíquica que dela resultava. Tentarei, agora, ressaltar através de fragmentos da análise com X., como se manifestou na transferência e na contratransferência uma vasta área mental não conjuntiva. Já apresentei X. em um texto anterior (Lamanno-Adamo, 2005), portanto, vou salientar agora os aspectos desse trabalho analítico que me ajudam a pensar sobre essa questão.
4
Uma característica central da análise com essa paciente foram os relatos a respeito de sua atividade na faculdade e depois, quando já estava trabalhando, a respeito de sua atividade profissional. Basicamente, ela me informava sobre as suas atividades cotidianas. Que teria prova tal dia, que teria que escrever um trabalho, que tal aula havia mudado de dia etc. Quando, raramente, me relatava algo sobre seus colegas, jamais os nomeava.
Era muito árduo acompanhar essas suas falas "sem nome", sem enredo em que nada era caracterizado, nada tinha cor, sabor, cheiro ou alguma peculiaridade que me remetesse a uma associação livre de ideias capaz de me ajudar a construir um trabalho interpretativo. Sua fala era repetitiva, com pouca ou quase nenhuma alteração no repertório. Não pareciam ter um elo dinâmico, pareciam flutuar numa zona morta, indistinguíveis em si e entre si. Progressivamente, a cada sessão, eu ia mergulhando num estado de quase total ausência de curiosidade e sentindo cada vez mais o equivalente a uma perda de minhas funções mentais, como se nada estivesse sentindo, imaginando, pensando.
Semelhante ao trabalho com C., a análise com X. também movimentava-se, predominantemente, da saturação ao vácuo e eu sentindo-me presa entre o entulhamento, excesso de elementos inconexos e indiferenciados que se multiplicavam de forma incontrolável e a inércia (vivências contratransferenciais de inutilidade e futilidade). Parece-me que tanto o trabalho mental disjuntivo como o campo mental não conjuntivo se manifestam na análise, através de movimentos rápidos que vão do excesso ao vácuo. Tanto C. como X., apresentavam um estado mental no qual os mecanismos de sonho (trabalho onírico em decorrência da função alfa) estavam inoperantes, um estado no qual o espaço de sonho estava quase totalmente obliterado. Ambos manifestavam um senso de orfandade, de não existência, de clandestinidade, de desenraizamento. No entanto, havia uma diferença significativa entre eles, havia uma intransponibilidade em X. que eu não vivenciava com C.
Vivia com X., salvo raras ocasiões, uma intensa impossibilidade para transpor, para passar além do mundo somático das excitações, parecia que vivíamos num mundo que não havia sido ainda tocado por uma visão humana, pelo sentido humano que podemos dar às coisas. Com muito esforço conseguia, algumas vezes, me desvencilhar do intenso mal-estar físico que o encontro com X. me provocava (corpo pesado, sonolência, visão embaçada) e arriscava lhe apontar que talvez estivesse tensa ou com medo. Na maioria das vezes X. reagia com maior imobilismo, seu corpo ficava ainda mais rijo, paralisado, quase sem nenhum sinal de vida. Às vezes, ela mexia um pouco as mãos, percebia seus lábios se movimentando como se quisesse me dizer alguma coisa, mas nenhuma palavra era dita. Depois de muitos minutos (para mim uma eternidade) ela retomava sua comunicação habitual sobre suas atividades cotidianas. Momentos de agonia.
Numa sessão, após seis anos de análise, conseguimos dar uma figurabilidade a essa vivência de agonia. Era a primeira sessão da semana e, como de costume, após um longo período em silêncio X. começou a "listar" suas atividades. Eu, meio aborrecida com aquele seu discurso monótono e repetitivo, pensei: "cada vez que nos encontramos é como se fosse a primeira". Lembrei-me então de um filme a respeito de um casal idoso cuja mulher estava perdendo a memória. O marido, desesperado, todos os dias sentava-se ao lado de sua esposa e contava-lhe a história de um casal apaixonado, na verdade, a história deles. Acreditava que dessa forma, ele manteria sua mulher sem esquecer. Algumas vezes ele conseguia; como que despertando de um sono profundo ela olhava para ele, lembrava-se de quem ele era, e por alguns instantes conseguiam se reencontrar. Em seguida, ela retornava para o seu mundo sem memória e sem história, seu olhar ficava distante e perdido no nada.
Comuniquei a X. essa minha lembrança, contei-lhe sobre o filme salientando o aspecto do esquecimento, da intimidade perdida no esquecimento. Ela ficou em silêncio e eu com aquela sensação habitual: o que eu dizia não era capaz de produzir qualquer ressonância em seu interior. Mas, para minha surpresa, desta vez conseguimos ir um pouco além. Após uma longa pausa X. falou: "É que nem o filme Fale com ela... ele falava com a moça em coma". Ficamos por um longo tempo quietas. E eu pensando que me sentia com X., como o enfermeiro conversando com sua paciente em coma, contando-lhe as notícias do dia a dia, relatando os fatos da vida... Então eu disse: "Que interessante essa história do homem que conversava com a moça em coma, ele conversava com ela como se ela o estivesse escutando e, às vezes até dialogando com ele, às vezes eu sinto nós duas aqui muito semelhantes a esses personagens do filme... eu falando e você tão quieta, mas eu continuo falando, como se você estivesse me escutando...". X. ficou quieta, depois eu perguntei: "O que você está pensando?" Ela disse: "Nessa história da mulher em coma...".
Você também se sente meio em coma? Quero dizer, fazendo as coisas, acordando cedo, indo trabalhar... mas tão distante do que está sentindo, tão distante do outro, como se estivesse em coma? "Acho que sim", ela respondeu.
Depois de um tempo eu quis continuar nossa conversa, mas ela disse que estava muito cansada. Ficamos sem dizer mais nada uma à outra e, eu, às voltas com a imagem do enfermeiro que conversava com a moça em coma.
Mais ou menos um ano depois dessa sessão, X. disse: "No começo quando eu vinha aqui e conversávamos, no final de nossa conversa eu me deparava com um paredão, agora, esse paredão tem uma porta de vidro... eu enxergo que tem coisas lá, mas não consigo entrar".
Através dessa imagem conseguimos dar figurabilidade às vivências de intransponibilidade que experimentava com X. Um agrupamento primitivo de excitações sensóriosomáticas que permaneciam num estado de cesura intransponível, isoladas e excluídas de um espaço mental permeável e dos processos transformadores. Em decorrência disso, um estado de agonia se instalava: o paciente em coma se esforçando para ter vida (psíquica), ou, então, morrer (psiquicamente) de vez. A agonia do moribundo com sua ânsia de viver e morrer.
Cabe ainda salientar um aspecto importante da análise com X. que alcancei no decorrer da escrita deste trabalho. Entremeava os estados de agonia e os raros momentos de atividade mental transformadora, uma conversa relativamente animada sobre alimentos. A faculdade que estava cursando era na área de alimentos e inúmeras vezes as nossas sessões ficaram inundadas por sabores, cores e cheiros de ingredientes utilizados na cozinha. Possivelmente, nessas ocasiões, estávamos construindo um assoalho sensorial a partir do qual as experiências de qualidades de subjetividade, historicidade e riqueza de significados simbólicos pudessem se desenvolver. Uma linguagem de toque que permitisse a X. experimentar sensações, e depois afetos que permitissem uma representabilidade (Quinodoz, 2001).
Se Édipo é o sujeito múltiplo, polissêmico e polifônico, permanentemente às voltas com a castração, culpa e sublimação, clone é o sujeito indiviso, indiferenciado e dessimbólico, constantemente confrontado com seu vazio constitutivo.
Referências
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Vera Lúcia Colussi Lamanno-Adamo
[Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP]
Av. João Mendes Jr., 180/17 | Cambuí
13024-030 Campinas, SP
e-mail: vera.adamo@ig.com.br
[Recebido em 7.10.2010, aceito em 29.10.2010]
1 Prêmio Revista FEPAL.
2 Membro efetivo e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP, membro do Núcleo de Psicanálise de Campinas e Região.