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Revista Brasileira de Psicanálise
Print version ISSN 0486-641X
Rev. bras. psicanál vol.45 no.1 São Paulo Jan./Mar. 2011
ARTIGOS TEMÁTICOS
SUBLIMAÇÃO
Figuras da sublimação na metapsicologia freudiana
Figures of sublimation in Freud's metapsychology
Figuras de la sublimación en la metapsicología freudiana
Ana Maria Loffredo
Membro filiado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP, doutora em psicologia clínica e docente do Instituto de Psicologia da USP
RESUMO
O texto faz uma breve apresentação das principais obras freudianas que tratam da sublimação e, na perspectiva de abordá-la por meio da ideia de campo da sublimação, anuncia possíveis articulações entre sublimação, angústia e recalque.
Palavras-chave: sublimação; metapsicologia freudiana; angústia; recalque.
ABSTRACT
This text is a brief presentation of the main Freudian works which deal with sublimation. Under the perspective of approaching the idea of “field of sublimation”, it elucidates possible links between sublimation, feeling of fear and suppression
Keywords: sublimation; Freudian metapsychology; fear; repression.
RESUMEN
En el texto se hace una breve presentación de las principales obras freudianas que tratan de la sublimación y, en la perspectiva de abordarla por medio de la idea de campo de la sublimación, se hace alusión a posibles articulaciones entre sublimación, angustia y recalque.
Palabras clave: sublimación; metapsicología freudiana; angustia; recalque.
Preliminares
As questões que convergem para o conceito de sublimação estão presentes desde o início do trajeto freudiano e, embora sejam discutidas oficialmente pela primeira vez em "Três ensaios sobre a teoria da sexualidade" (Freud, 1905/1990k), estão subjacentes a formulações teóricas espalhadas na correspondência com Fliess (Masson, 1986), em que o foco de interesse é a relação da sexualidade com a emergência e desenvolvimento da moralidade e suas derivações nas produções psicopatológicas (por exemplo, na carta de 14/11/1897).
A partir de então, as remodelagens sofridas pelo conceito nos remetem à ideia de um percurso em que figuras da sublimação se destacam, acompanhando o fundo dinâmico das construções e reconstruções metapsicológicas. De qualquer forma, a sublimação será mais enunciada do que desenvolvida no discurso freudiano, e, mais do que um conceito, apresenta-se como a indicação de uma problemática a ser tematizada: "certamente, uma das cruzes (em todos os sentidos do termo: ao mesmo tempo um ponto de convergência, de cruzamento, mas também o que põe na cruz) da psicanálise e uma das cruzes de Freud" (Laplanche, 1989, p. 9).
Já naquele primeiro momento, a pulsão foi definida como uma medida de exigência de trabalho dirigida ao psíquico em função de seu enraizamento no corporal e as relações entre o sexual e o não-sexual são explicitadas por meio da hipótese de vias de influência recíproca:
essas mesmas vias pelas quais as perturbações sexuais repercutem sobre as outras funções do corpo serviriam na saúde a outra importante atividade. Por elas se daria a atração das forças pulsionais sexuais para outras metas, não sexuais, ou seja, a sublimação da sexualidade. (Freud, 1905/1990k, p. 187)
Apesar da enigmática "atração" da pulsão para outras metas, é formulada uma hipótese fundamental relativa ao intercâmbio dos destinos pulsionais articulado às questões econômicas nele implicadas e são dados os passos teóricos iniciais da análise das repercussões sociais no registro pulsional e do encaminhamento dos "excessos" pertinentes a esse processo (Fabbrini, 1999). Peço licença para citar um trecho longo, pois ele sintetiza os elementos que tenho interesse em destacar nesse momento, articulando a sublimação à perversão, à neurose e à fixação de traços de caráter por meio de formação reativa:
O terceiro desfecho de uma disposição constitucional anormal é possibilitado pelo processo da "sublimação", no qual as excitações hiperintensas provenientes das diversas fontes da sexualidade encontram escoamento e emprego em outros campos, de modo que o resultado de uma disposição em si perigosa é um aumento nada insignificante do rendimento psíquico. Aqui encontramos uma das fontes da atividade artística; e à medida que essa sublimação haja sido completa ou incompleta, a análise de pessoas altamente dotadas, em particular as de disposição artística, revelará a mescla em distintas proporções de eficiência, perversão e neurose. Uma subvariedade da sublimação talvez seja a supressão por formação reativa que, como descobrimos, começa no período de latência da criança e, nos casos favoráveis, prossegue por toda a vida. O que chamamos de "caráter" de um homem constrói-se, em boa parte, com o material das excitações sexuais e se compõe de pulsões fixadas desde a infância, de outras adquiridas por sublimação e de construções destinadas ao refreamento de moções perversas, reconhecidas como inutilizáveis. (Freud, 1905/1990k, p. 218)
Se, posteriormente, com a perspectiva fornecida pela segunda tópica, o ideal do eu é concebido como herdeiro do complexo de Édipo, vinculando-se estreitamente aos impulsos libidinais do id, não só se explicita a sujeição do eu ao id, em contrapartida ao encaminhamento do Édipo, como fica evidente a relação dos ideais com a herança mais arcaica de cada indivíduo. De modo que cabe relembrar aqui a afirmação segundo a qual, por meio da formação do ideal, o que de mais sublime poderia advir na condição humana teria a mesma origem do que pertence ao extrato mais baixo de nossa vida mental, regulado pelo registro da sexualidade e do gozo (Freud, 1923/1990l). O que está em questão são as modalidades possíveis de encaminhamento dessa força constante que constitui e mantém o psiquismo, abrindo-se para a subjetividade os destinos nomeados em "Pulsões e destinos das pulsões" (Freud, 1915/1990i), norteados pelo regime da produção do prazer e da evitação do desprazer e da dor.
No espaço transcorrido entre as publicações iniciais, "Três ensaios sobre a teoria da sexualidade" (Freud, 1905/1990k) e "A moral sexual 'civilizada' e doença nervosa moderna" (Freud, 1908/1989c), e as concepções finais desenvolvidas nas "Novas conferências introdutórias à psicanálise" (Freud 1933/1989d), as vicissitudes do conceito de sublimação gravitaram principalmente em torno do eixo conjunção-disjunção entre a sublimação e a erotização (Birman, 2010).
Inicialmente, como se sabe, a concepção de sublimação implicava uma mudança de meta das pulsões sexuais, de modo que pudessem ser explicadas, do ponto de vista dinâmico e econômico, atividades que não tivessem explicitamente um fim sexual, tais como a criação artística, a investigação intelectual e, de modo geral, as atividades valorizadas culturalmente. Uma vez mantido o mesmo objeto, a deserotização da pulsão o enviaria para o plano do sublime, em detrimento do erótico.
As reformulações teóricas pertinentes ao segundo dualismo pulsional (Freud, 1920/1990c) e à segunda tópica (Freud, 1923/1990l) fundamentaram um novo entendimento da sublimação, nos escritos finais de Freud, que se fundava em outras bases metapsicológicas. Em termos do convívio e tensão permanentes entre a pulsão de vida e a pulsão de morte, trata-se agora de colocar, de um lado, a erotização e a sublimação e, de outro lado, a destrutividade e a crueldade. Importa destacar que, nesse novo contexto teórico, a operação da sublimação está implicada na criação de novos objetos para investimento da pulsão, favorecendo uma estratégia para as operações de ligação empreendidas pela pulsão de vida em seu movimento de domínio da pulsão de morte.
É assim que ao mal-estar na civilização cabem duas leituras opostas: em "A moral sexual 'civilizada' e doença nervosa moderna "(Freud, 1908/1989c), o mal-estar é produzido pelo desvio da pulsão de seus fins sexuais, imposto pela civilização; já em "O mal-estar na civilização" (Freud, 1930/1990d), o mal-estar seria fruto da destrutividade e crueldade, para cuja regulação seriam imprescindíveis a sublimação e a erotização, de modo a que a pulsão de vida promova obstáculos aos imperativos da pulsão de morte (Birman, 2010).
Embora essa força contínua constituinte da pulsão apresente a peculiaridade de poder deslocar-se e disponibilizar grandes montantes de energia para fins desviados dos seus objetivos sexuais de origem e, com isso, prestar enorme contribuição à civilização, Freud nos adverte, ainda no âmbito de seus estudos iniciais, sobre a possibilidade de que essa mesma mobilidade leve à fixação de objetivos libidinais inoperantes para fins culturais e dos quais poderiam se derivar quadros patológicos. Esse potencial "perigoso" da sublimação vai ser elaborado de modo mais consequente nos trabalhos posteriores. Também é necessário lembrar que o montante libidinal passível de ser sublimado apresenta grande variação entre os indivíduos, bem como no mesmo indivíduo em épocas diferentes de sua vida (Freud, 1908/1989c).
Do ponto de vista clínico, em "Uma recordação infantil de Leonardo da Vinci" (Freud, 1910/1988a), é afirmado que a sublimação não apresenta relações de exclusividade com os vários quadros patológicos (neurose, perversão e psicose), nos quais outros mecanismos de defesa podem estar presentes, de modo que "é a combinação destes elementos, que se permutam ao longo do tempo, que nos permite pensar as oscilações, dificuldades e amplitude compreendidas entre o 'sadio' e o 'doente'" (Fabbrini, 1999, p. 42).
Entretanto, é possível acompanhar, segundo a interessante leitura efetuada por Birman (1997), os desdobramentos da conhecida afirmação de Freud, em "Totem e Tabu"(1913/1988b), segundo a qual a histeria seria uma obra de arte distorcida, a neurose obsessiva seria uma religião distorcida e a paranoia um sistema filosófico distorcido. Para tanto, é necessário que levemos em conta que Freud efetua uma espécie de hierarquia entre as formações culturais que analisou, mesmo considerando-as como expressões da atividade sublimatória, pois a arte é claramente mais valorizada em relação a religião e filosofia. Essa diferenciação não é trivial, pois ela se articula à concepção de sublimação que será construída posteriormente.
É possível, segundo a leitura que estamos acompanhando, propor uma certa diferenciação, do ponto de vista sublimatório, entre as psiconeuroses anteriormente nomeadas, tomando o corpo e o desejo como parâmetros dessa diferenciação, a partir do exposto por Freud em "O recalque" (1915/1990j). Nesse artigo, considera que a saída pela histeria seria mais bem sucedida, à medida que, ao contrário da neurose obsessiva e da fobia, é mantido o contato com o corpo erógeno e o desejo, que estariam nas outras afecções "nos limites da evaporação, pela colocação no primeiro plano do pensamento e do Outro" (Birman, 1997, p. 93).
O próximo passo dessa análise, tematizado a partir do trabalho "Escritores criativos e devaneio" (Freud, 1908/1989a), trata da questão fundamental colocada pela sublimação e pela psicanálise relativa ao destino oferecido para a renúncia pulsional: ou seja, como aceitar a interdição e, ao mesmo tempo, manter a posição desejante. Na arte se evidencia essa possibilidade, à medida que o movimento em direção ao Outro não se desdobra em uma captura pelo Outro, o que não ocorre, para Freud, no caso da religião e da filosofia. Essas interpretações se esclarecem se tomarmos a análise da magia efetuada em "Totem e tabu" (Freud, 1913/1988b), em que a arte é considerada herdeira direta dessa formação cultural, desde que, em ambas, o desamparo produzido pelos mistérios do mundo se desdobra em uma tentativa de domínio viabilizada pela mediação do desejo. Aqui se aparentam arte e ciência, nas quais o desejo de saber mobiliza o sujeito à criação de símbolos e instrumentos no confronto com seu desamparo, pela transformação do mundo e do Outro. Ao contrário, a religião tampona o desejo de saber pela promessa de salvação e de proteção pelo Outro divinizado, que permite uma leitura totalizante do mundo para o sujeito, inserindo-se a filosofia no mesmo crivo crítico pela leitura cósmica do mundo voltada, como a religião, a proteger o sujeito da angústia do desamparo.
A psicanálise justamente se ocupa do espaço habitado pela tensão entre narcisismo e alteridade, sempre presentes no sujeito e assim se explicita como não há diferença entre a psicologia individual e a psicologia coletiva, conforme discutido por Freud (1921/1990h) em "Psicologia das massas e análise do eu". É nesse sentido que uma leitura possível da sublimação é considerá-la uma operação voltada à inserção da pulsão no âmbito da cultura, no sentido do exercício de uma dialética da alteridade, eixo que, com certeza, acompanhou Freud desde as primeiras reflexões sobre a sublimação.
Dando prosseguimento à discussão efetuada por aquele comentador, é possível apreender, a partir do exposto anteriormente, o alcance das novidades teóricas enunciadas em "O futuro de uma ilusão" (Freud, 1927/1990f) e em "O mal-estar na civilização" (Freud, 1930/1990d): a presença de modalidades narcísicas de sociabilidade, representadas pela religião e pela filosofia, que não se vincularão necessariamente ao regime da alteridade; e a sublimação implicada em alteridade, no seio da qual se inscreve a diferença entre os sujeitos e em que o desejo de saber é regulado e mobilizado pelo desamparo, que remete necessariamente ao reconhecimento de uma falta. Nessa nova abordagem da sublimação, é crucial a mudança de objeto da pulsão, destacando-se, ao mesmo tempo, sua função de objeto compartilhado por outros sujeitos. Também é absolutamente imprescindível que essa criação de novos objetos que são introduzidos nos circuitos pulsionais implique a realização de rupturas por parte do sujeito no campo de objetos e de símbolos no qual se constituiu sua visão de mundo, instituída pelas vias dos saberes práticos (religião e ideologia) e dos saberes teóricos (filosofia) (Birman, 1997).
Penso que aqui não haveria nenhum exagero na referência, por analogia, a uma modalidade de "corte epistemológico", no melhor espírito bachelardiano e então estaríamos a um passo da intimidade do exercício da clínica psicanalítica.
De modo que as vicissitudes do percurso da sublimação na teorização freudiana, sua repercussão nos vários planos da ficção metapsicológica, seu enredamento estreito ao conjunto dos mecanismos de defesa, as questões suscitadas pelos temas para os quais aponta e a elasticidade de sua operação que nos permite abordá-la por meio de uma variedade de ângulos de acesso, nos estimulam a pensá-la no âmbito do que seria uma espécie de campo da sublimação. O jogo de forças que o constitui se ordena segundo eixos que sustentam sua operação no psiquismo de formas variadas e eminentemente particulares, em que se entrecruzam os vários registros que compõem a arquitetura metapsicológica. É nesse sentido que os vários recortes de pesquisa que se impõem pretendem tornar passível de figurabilidade o movimento multifacetado da sublimação, desenhando os contornos pertinentes a uma pluralidade de figuras da sublimação.
A dupla face da sublimação
Se o caráter do eu é um precipitado de investimentos de objeto abandonados, pode-se supor que a transformação de uma escolha de objeto erótica em uma alteração no eu é uma estratégia de domínio sobre o id e um meio utilizado pelo eu para um aprofundamento das relações entre eles. Mas essa operação tem um custo, levando o eu a sujeitar-se em grande parte às exigências do id. Ao assumir as características do objeto, o eu está se oferecendo como um objeto de amor e para compensar essa perda para o id é como se dissesse: me ame, pois sou semelhante ao objeto.
Justamente nessa análise, presente em "O eu e o isso" (Freud, 1923/1990l), é enunciada uma hipótese fundamental sobre os desdobramentos implicados na sublimação, que será retomada, posteriormente, em "O problema econômico do masoquismo" (Freud, 1924/1990g) e em "O mal-estar na civilização" (Freud, 1930/1990d):
A transformação da libido de objeto em libido narcísica, que assim se efetua, obviamente implica um abandono dos objetivos sexuais; uma dessexualização e, portanto, uma espécie de sublimação. Em verdade, se coloca uma questão que merece ser tratada a fundo: não será esse o caminho universal para a sublimação? Não se efetuará toda sublimação pela mediação do eu, que inicialmente muda a libido objetal em libido narcísica, para depois, talvez, fornecer-lhe outro objetivo? Posteriormente, teremos de averiguar se essa mudança não pode ter como consequência outros destinos pulsionais: produzir, por exemplo, uma desfusão das diferentes pulsões que se acham fundidas. (Freud, 1923/1990l, p. 32, grifos meus)
Devemos enfatizar que
não é apenas a desfusão Eros/Thanatos que pode ocorrer, mas a desfusão dos vários componentes das pulsões eróticas que, quando foram investidos nos objetos (em especial nos objetos de amor), encontravam-se subsumidos à pulsão genital. Porém, ao retornarem ao eu, tornam-se passíveis de decomposição, de retornar a suas formas primeiras, como pulsões parciais. Isso poderia causar tanto uma estase da libido quanto uma regressão libidinal, ambas com resultados patológicos. (Fabbrini, 1999, p. 76)
Portanto, não deve nos surpreender as articulações possíveis entre a sublimação e a perversão.
Levando-se em conta a afirmação de Freud (1923/1990l) segundo a qual a essência de uma regressão da libido reside numa desfusão pulsional, tal como, inversamente, o avanço de uma fase anterior para a genital definitiva estaria condicionada a um acréscimo de componentes eróticos, devemos deixar em suspenso a questão, que deverá ser retomada posteriormente, relativa às consequências dessa desfusão das pulsões parciais na sublimação, em seu entrecruzamento com a regressão que faz parte, necessariamente, do mecanismo de recalque.
Pois devemos considerar que a polarização pulsional constitui, para Freud, uma oposição síntese e antissíntese, o que significa que esse embate não ocorre no plano de uma simetria entre as pulsões, pois a pulsão de morte é, simultaneamente, antipulsão de vida e princípio que impede a união entre ela própria e a pulsão de vida (Laplanche, 1989, p. 122). Aqui estaremos bem afinados com as concepções freudianas presentes durante todo o seu trajeto, segundo as quais as formações psíquicas devem ser concebidas como complexos, de modo que o método para investigá-las deve envolver um procedimento de análise implicado num trabalho de fragmentação de seus componentes. É dessa forma que o patológico sempre foi uma porta de entrada privilegiada para o estudo desses modos de formação, desde que, nele, esse composto se expressa, justamente, por estar decomposto. Creio que essa perspectiva deve nos orientar na análise dos meandros complexos das vicissitudes da sublimação.
Retomemos o fio da meada, após esse pequeno desvio de caráter metodológico.
Pelo exposto até este momento, destaca-se o interesse em abordar a sublimação em termos de um trabalho sublimatório, conforme propõe Mijolla-Mellor (2010), à medida que a ênfase, nesse caso, não é dirigida ao processo de transformação da pulsão sexual enquanto tal, mas sim,
às condições de uma articulação tópica suscetível de torná-la possível ... A sublimação está, na verdade, ligada ao investimento de um tempo futuro e ao trabalho para conseguir isso. Essa é a razão pela qual se pode legitimamente aproximar a sublimação desses momentos de reelaboração identificatória que constituem o trabalho de luto, o do humor, o tempo do período de latência, bem como o da cura psicanalítica. (p. 503)
Dessa forma, é pertinente destacar a perspectiva de abordagem da sublimação em termos de uma escolha sublimatória, articulada a uma descrição metapsicológica desse processo fundada na tensão entre o eu e suas instâncias ideais. Assim, a escolha sublimatória pode ser particularmente convocada nos "momentos críticos" da vida, que se colocam como uma oportunidade de uma modificação tópica na relação entre o eu e seu ideal, desde que obrigam o sujeito a reexaminar a imagem que ele tem de si próprio nessas situações de passagem (Mijolla-Mellor, 2010).
Ainda na ambientação de "Introdução ao narcisismo", Freud (1914/1990b) assinala a diferença entre o processo de idealização e o de sublimação da seguinte maneira: a sublimação se reporta à libido objetal e envolve uma mudança de objetivo da pulsão, distante da satisfação sexual original; a idealização, por sua vez, envolve o objeto e, sem mudar sua natureza, o torna engrandecido e exaltado psiquicamente. De modo que a idealização é possível tanto no âmbito da libido egóica como no da libido de objeto. Também se diferenciam quanto à sua participação na etiologia das neuroses, pois a formação do ideal aumenta as exigências do eu e constitui o elemento mais poderoso a favor do recalque, sendo a sublimação, por sua vez, uma via por meio da qual essas exigências podem ser atendidas sem que o mecanismo de recalque seja acionado.
Posteriormente, em "Psicologia das massas e análise do eu" (Freud, 1921/1990h), a idealização e a identificação podem ser comparadas da seguinte maneira: há um empobrecimento libidinal do eu na idealização, em contrapartida a um enriquecimento presente na identificação, à medida que, nesse caso, o eu introjeta o objeto e suas qualidades; há um objeto superinvestido na idealização, ao passo que a identificação envolve a perda do objeto, que é justamente restabelecido no eu; e, finalmente, na idealização, o objeto é colocado na posição de ideal de eu, enquanto que, na identificação, é o próprio eu que é colocado no lugar de objeto (Mijolla-Mellor, 2010).
A identificação com as figuras parentais implicada no surgimento do supereu tem, portanto, o caráter de uma dessexualização, ou mesmo de uma sublimação. Se uma alteração desse tipo produz também uma desfusão pulsional, conforme já esclarecemos anteriormente, supõe-se que, após a sublimação, o componente erótico não esteja mais habilitado para unir toda a tendência destrutiva que com ele se achava combinada e esta é liberada sob a forma de inclinação a agressão e destruição. "Seria dessa desfusão, justamente, de onde o ideal extrai toda a severidade e crueldade do imperioso dever-ser" (Freud, 1923/1990l, p. 55).
Dessa forma, por meio de seu trabalho de identificação e de sublimação, o eu auxilia as pulsões de morte do id na obtenção de controle sobre a libido, mas, desse modo, enfatiza Freud (1923/1990l), corre o perigo de tornar-se, ele próprio, objeto dessas pulsões e de sucumbir. Para prestar esse auxílio, teve que armazenar-se de libido, tornando-se o representante de Eros "e agora quer viver e ser amado" (p. 57). Como a sublimação produz uma desfusão pulsional e uma liberação das pulsões de agressão no supereu, sua luta contra a libido o expõe ao perigo de maus tratos e da morte.
Unheimlich
Não é por acaso que, nesse ponto da discussão realizada em "O eu e o isso", Freud (1923/1990l) introduz, abruptamente, a questão da angústia. O eu é então nomeado explicitamente como a genuína sede da angústia, espécie de moeda corrente e destino prioritário dos afetos, em sua transmutação como efeito do processo defensivo. Afeto peculiar, em que uma espécie de "coquetel sensório-motor se torna sensível, na sua mistura de passividade e atividade, de desprazer e erotização" (Assoun, 1996, p. 160).
Estamos acompanhando as vicissitudes do eu em seus embates com as outras instâncias psíquicas e então se recorta uma noção que beira a um estatuto conceitual na metapsicologia freudiana: a noção de perigo. Embora Freud não possa especificar nesse momento a que se reporta esse perigo externo e libidinal, usa a expressão "medo de ser esmagado ou aniquilado" que permite estabelecer facilmente uma conexão com a "situação traumática" que será definida no ensaio "Inibição, sintoma e angústia", em que se enfatiza a função defensiva que a angústia passa a ocupar na segunda tópica (Freud, 1926/1990a), Nesse trabalho, a definição de situação traumática articula-se à conceituação de desamparo e se reporta a um acúmulo de excitação, proveniente de fontes endógenas ou exógenas, que deixam o eu completamente fora de controle, situação propícia à irrupção de uma descarga denominada angústia automática ou econômica.
Esse contexto teórico confere à conceituação de sinal de angústia uma posição nuclear, desde que se reporta a uma liberação intencional mínima desse afeto por parte do eu, perante situações de perigo. Essa estratégia sinaliza a ameaça de ocorrência de uma situação traumática, de modo que o eu se previne contra esse "esmagamento" por meio do agenciamento dos processos defensivos, entre os quais o recalque é um dos destinos possíveis. O afeto de angústia assim se articula a uma expectativa, melhor dizendo, trata-se de uma expectativa angustiante, que se inscreve, portanto, no registro de uma lógica da "antecipação".
Os determinantes do perigo se alteram no decorrer da evolução do eu, embora apresentem como característica comum a separação ou perda do objeto, ou de seu amor, que significam a ameaça de eclosão de uma situação de desamparo.
O perigo do aniquilamento se remete a intensidades excessivas que rompem os escudos-protetores, independente de onde se originem e, desta forma, a questão central gira em torno das modalidades de encaminhamento desse fluxo, de modo que se impeça a configuração de uma situação traumática. A partir do sinal de alerta disparado pelo eu ocorre inicialmente uma regressão e é o modo de funcionamento ao qual a libido retorna por fixação que define qual mecanismo de defesa será utilizado e, consequentemente, que processo de formação de sintomas se efetuará.
Nesse ponto, algumas aspectos merecem nossa consideração. Em primeiro lugar, podemos supor que o sinal de angústia deva ser emitido em situações de perigo, independente de sua fonte, seja ela proveniente da libido ou da violência pertinente à circulação da pulsão de morte como efeito de desfusão pulsional. Portanto, surge a seguinte questão: embora em sua origem, recalque e sublimação sejam destinos pulsionais independentes, será possível que no decorrer das vicissitudes do trabalho da sublimação o eu utilize estratégias de proteção e prevenção semelhantes às mobilizadas em relação ao afluxo libidinal?
Em segundo lugar, não deixa de ter importância avaliar, a partir da hipótese relativa ao intercâmbio dos destinos pulsionais, já enunciada por Freud desde os "Três ensaios" e apresentada no início deste artigo, qual o efeito do entrecruzamento dos processos de regressão pertinentes à formação de sintomas e aqueles oriundos de desfusão pulsional via sublimação. Talvez o encaminhamento dessas interrogações possa ser útil na pesquisa voltada aos efeitos potencialmente perigosos do trabalho da sublimação e aos dispositivos utilizados pelo eu nessas ocorrências.
Finalmente, o risco implicado pela vinculação estreita da sublimação ao movimento de fusão e desfusão das pulsões poderia perfeitamente ser abordado em função das condições tópicas, bem como das magnitudes em jogo pertinentes às moções pulsionais, na perspectiva de uma espécie de "escala "para cujo limite tenderia a operação radical de desligamento própria à pulsão de morte. Estaríamos, apenas em termos de uma analogia, muito próximos a um esquema freudiano já presente no conceito de "equação etiológica", definido nos primórdios de seu percurso (Freud, 1895/1989e) e mais bem elaborado na proposta presente na 23ª das "Conferências introdutórias à psicanálise" (Freud, 1917/1989b). Em ambas, como se sabe, a concepção de sobredeterminação fundamenta a noção de "séries complementares", que permite compor os elementos constituintes da formação de sintomas em função das posições e magnitudes relativas que eles guardam entre si. Alternativa interessante na explicação da etiologia das neuroses, que permite incluir tanto fatores exó-genos como endógenos, segundo uma série em que os elementos em questão variam em sentido inverso e complementar, tendendo nas extremidades para a operação de apenas um dos fatores (Laplanche & Pontalis, 2001).
Na equação etiológica de 1917, os componentes da formação de sintomas são, de um lado, a frustração, como pré-condição mais geral e a tendência ao conflito, em virtude dos obstáculos que se impõem à satisfação dos impulsos libidinais; e, de outro, uma pré-disposição por fixação libidinal (em função do par composto, de modo complementar, por constituição sexual a partir de experiências pré-históricas e a experiência infantil da história do sujeito). Na equação etiológica de 1895, o fator etiológico específico para produção das neuroses de angústia eram os distúrbios da vida sexual atual e, em 1917, é a fixação, determinada pela relação complementar entre a disposição herdada e as ocorrências infantis, que passa a ocupar esse papel. O conflito e a frustração, correspondentes às experiências acidentais traumáticas da vida adulta, são, como complemento da fixação, apenas o fator desencadeante da neurose.
O próprio formato de uma "equação" impõe por si só a ideia da insuficiência de uma análise apenas qualitativa das condições etiológicas, de modo que a abordagem dinâmica desses processos deve ser acompanhada pelo ponto de vista econômico, desde que o conflito entre duas tendências só emerge quando são alcançadas certas intensidades, mesmo que as condições determinantes do conflito estejam presentes:
A importância patogênica dos fatores constitucionais depende de quanto mais de uma pulsão parcial em relação a outra está presente na disposição; e ainda podemos imaginar que as disposições de todos os seres humanos são qualitativamente semelhantes e só se diferenciam por essas proporções quantitativas. O fator quantitativo não é menos decisivo na capacidade de resistência à neurose. O que interessa é o montante de libido não aplicada que uma pessoa pode conservar em suspensão e o tamanho da fração de sua libido que é capaz de desviar do sexual para as metas da sublimação. (Freud, 1917/1989b, p. 341)
De modo mais enxuto, em 1933, encontramos o seguinte afirmação na 32ª das "Novas conferências introdutórias à psicanálise":" Só a magnitude da soma de excitação converte uma impressão em fator traumático, paralisa a operação do princípio do prazer e confere à situação de perigo a sua importância" (Freud, 1933/1989d, p. 87).
Embora breve, essa incursão pela temática da angústia em sua relação com a formação de sintomas, explicita o alcance de inseri-la, bem como ao recalque e à regressão, na operação do campo de operação da sublimação. Não só pelos vínculos que os unem, mas também pelos desdobramentos de seus laços a partir do segundo dualismo pulsional e da segunda tópica. Essa rede de instrumentos conceituais nos permite visualizar e investigar a missão paradoxal da sublimação, destino no confronto com o desamparo e, simultaneamente, instrumento em potencial para produzi-lo. Também nos alerta para a necessidade de voltar o foco de nossa atenção para as sutilezas das relações entre a sublimação, a angústia e o recalque.
Assim pode-se entender como a experiência angustiante relativa ao registro do Unheimlich, que, na conhecida definição de Schelling utilizada por Freud "é tudo que deveria ter permanecido secreto, no oculto, mas veio à luz" (1919/1990e, p. 225), faz parte do campo de operação da sublimação. Pois a criação de novos objetos para a pulsão envolve, necessariamente, um esforço de ruptura do circuito de reprodução do mesmo (Birman, 1997), que, de meu ponto de vista, deve produzir momentos de dessimbolização, aos quais a angústia se vincula, segundo a apropriada expressão de Laplanche (1988):
os momentos de dessimbolização na passagem de um símbolo a outro são absolutamente essenciais e infalíveis; o momento de perda do símbolo, antes de se encontrar um outro, é o momento da angústia, dessa "angústia flutuante" que Freud se empenha em localizar, mesmo na história de um sintoma neurótico. (p. 289)
A indagação fundamental formulada por Freud em "O estranho" refere-se, justamente, ao papel ocupado pelo recalque nesse processo, desde que ele é a condição necessária para que um sentimento primitivo retorne em forma de algo estranho, produzindo um estranhamento que remonta a algo que é familiar.
Daí a afirmação definitiva de Lacan (2005), em seu intrigante aforismo: "A angústia não é sem objeto" (p. 39). Esse não é sem se presta com propriedade para definir as obscuridades desse objeto que resvala, na verdade, não capturável, de modo a que Freud (1917/1989b) seja levado a estabelecer diferenças, digamos, quase "pedagógicas", na discussão que efetua entre medo (Furcht), susto ou terror (Schreck) e angústia (Angst) na 25a das "Conferências introdutórias à psicanálise". Não chega, de fato, a nos convencer, apesar de seus esforços: o medo reportando-se claramente a um objeto, a angústia vinculando-se a um estado e prescindindo de um objeto, e o susto destacando o efeito de um perigo para o qual não houve preparação por meio da angústia. Pelo menos fica marcado com clareza que o sujeito se defende do susto por meio da angústia, operação que estará a cargo do eu quando a segunda tópica estiver configurada. Também não é difícil vincular o susto ou terror à situação traumática, dependendo das intensidades em jogo.
Creio que Assoun (1996) sintetiza o "espírito da coisa" com precisão:
Nesse afeto contraditório, de novo e velho misturados, é uma verdadeira 'sensação' do recalcado que se anuncia. A "impressão" (Eindruck) atual reatualiza um recalcado por via desse afeto complexo: quando o recalcado faz retorno, é por um afeto que ele se inscreve no sujeito. O que faz signo, assim, é um certo contraste entre a insistência do afeto e a indeterminação da representação. Nisso, vamos observar, o afeto conforma sua função de "sinal", como se o Eu percebesse que "há recalcado no ar!", (p. 161)
É nesse sentido que é possível formular a ideia, que desenvolvi em outra ocasião (Loffredo, 2002), segundo a qual o registro do Unheimlich pode ser considerado um parâmetro para se definir a instauração ou desintauração do que se define como situação analítica, adquirindo uma espécie de estatuto operacional, no cerne da poiesis que o atravessa.
Referências
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Correspondência:
Ana Maria Loffredo
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Recebido em 31/1/2011
Aceito em 25/2/2011