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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.50 no.2 São Paulo Apr./June 2016

 

EM PAUTA

 

As noções de trauma e regressão nos escritos de Sándor Ferenczi e suas possíveis articulações com as propostas teóricas da Escola Psicossomática de Paris

 

The concepts of trauma and regression in Sándor Ferenczi's work, and their possible articulations with the theoretical proposals of the Paris Psychosomatic School

 

Las nociones de trauma y de regresión en los escritos de Sándor Ferenczi y sus posibles vínculos con las propuestas teóricas de la Escuela Psicosomática de París

 

 

Marcos Mariani Casadore; Rodrigo Sanches Peres

Universidade de Uberlândia (UFU)

Correspondência

 

 


RESUMO

Neste estudo, temos como objetivo discutir as noções de trauma e regressão nos escritos de Sándor Ferenczi e suas possíveis articulações com as propostas da Escola Psicossomática de Paris, em particular aquelas estabelecidas por Pierre Marty. Ao tratar da imbricação entre corpo e psique para compreender a traumatogênese, a angústia e a formação de sintomas desprovidos de conteúdo representacional, associados a movimentos regressivos, Ferenczi esboça uma teorização que virá a convergir com desenvolvimentos posteriores no campo da psicossomática psicanalítica. Em nosso entendimento, há um diálogo fecundo a ser construído entre as últimas teses de Ferenczi e as formulações teóricas e clínicas de Marty, malgrado o fato de este não ser apontado como um leitor daquele. Consideramos possível reconhecer certas raízes ferenczianas, sobretudo acerca das noções de trauma e regressão, nas proposições teóricas de Marty, nomeadamente aquelas relativas às noções de pensamento operatorio, desorganização progressiva e regressão somática.

Palavras-chave: psicossomática psicanalítica; trauma; regressão; Sándor Ferenczi; Pierre Marty.


ABSTRACT

This paper aims to discuss both concepts of trauma and regression in Sándor Ferenczi's work, and its possible connections with the proposals of the Paris Psychosomatic School, particularly those established by Pierre Marty. By bringing up the imbrication between soma and psyche in order to understand the genesis of trauma, angst, and the development of symptoms (symptoms without any representational content and associated to regressive movements), Ferenczi outlines a theory which is going to converge towards later progress in the field of psychoanalytic psychosomatics. Although Marty has never been known to read Ferenczi's work, we believe that there is a fruitful dialogue to be built between Ferenczi's latest theories and Marty's theoretical and clinical formulations. Therefore, we think it may be found certain Ferenczian roots, especially concerning both concepts of trauma and regression, in Marty's theoretical proposals, specifically those related to his ideas of operative thinking, progressive disorganization, and somatic regression.

Keywords: psychoanalytic psychosomatics; trauma; regression; Sándor Ferenczi; Pierre Marty.


RESUMEN

Este estudio analizará las nociones de trauma y de regresión en los escritos de Sándor Ferenczi y sus posibles vínculos con las propuestas de la Escuela Psicosomática de París, en particular las establecidas por Pierre Marty. Al tratar de la unidad establecida entre cuerpo y psique para entender la génesis del trauma, la angustia y la formación de síntomas que carecen de contenido representacional, asociados con movimientos regresivos, Ferenczi esboza una teoría que convergerá con los desarrollos posteriores en el campo de la psicosomática psicoanalítica. Hay un diálogo rentable hecho entre las últimas teorías de Ferenczi y las formulaciones teóricas y clínicas de Marty, a pesar de que este último no sea reconocido como un lector de Ferenczi. En última instancia, consideramos posible notar ciertas raíces ferenczianas, especialmente en relación a las nociones de trauma y de regresión, en las proposiciones teóricas hechas por Marty, en particular en las nociones de pensamiento operatorio, desorganización progresiva y regresión somática.

Palabras clave: psicosomática psicoanalítica; trauma; regresión; Sándor Ferenczi; Pierre Marty.


 

 

Os derradeiros estudos de Sándor Ferenczi: modificações teóricas e técnicas

O médico e psicanalista húngaro Sándor Ferenczi (1873-1933), ao desafiar os limites da clínica psicanalítica de sua época, empreendeu importantes transformações na técnica. Com isso, veio a contemplar em sua prática certas demandas que, até então, eram pouco consideradas pelos demais analistas, mas que ocupam lugar central nos chamados casos difíceis, pelos quais, inclusive, ganhou reconhecimento como exímio clínico. O autor pôde, dessa forma, experienciar mudanças que concerniam a determinados aspectos da relação terapêutica e da dinâmica transferencial que não haviam sido suficientemente explorados por seus pares.

A partir de suas incursões clínicas, Ferenczi foi impelido a reconsiderar o posicionamento do analista como um todo. O autor não apenas apresentaria contraindicações à sua recém-proposta técnica ativa (Ferenczi, 1926/2012c) como destacaria a necessidade de, por vezes, demonstrar empatia e favorecer o acolhimento do sofrimento do paciente, conforme a demanda, a fim de possibilitar a consolidação da confiança dele na pessoa e no trabalho do analista (Ferenczi, 1930/2012f). Nessa perspectiva, a técnica, flexibilizada de acordo com cada caso, obedeceria ao "tato" do analista e sua capacidade de "sentir com" o paciente (Ferenczi, 1928/2012d).

Ferenczi também criticou o que designou como hipocrisia e narcisismo do analista, ao aludir a situações em que este, em primeiro lugar, se deixaria levar por uma situação de conforto no setting e se absteria de incomodar-se com isso e, em segundo lugar, estabeleceria como prioridade questões referentes ao seu trabalho e identidade profissional em detrimento da análise de seu paciente. É nesse sentido que o autor chegaria a sugerir, inclusive, uma metapsicologia do analista (Ferenczi, 1928/2012b) como uma espécie de complemento às formulações metapsicológicas voltadas à compreensão do funcionamento do paciente.

Tais apontamentos evidenciam o quanto Ferenczi buscou repensar a clínica. Para tanto, colocou em evidência preocupações concernentes à pessoa do analista e às implicações determinadas pela inserção deste em uma relação essencialmente intersubjetiva, bem como se ocupou das consequências, positivas e negativas, das diferentes possibilidades de manejo desta relação. Como resultado direto desse movimento, empreendeu adaptações no dispositivo analítico para que pudesse trabalhar com os casos que se mantinham inertes às tentativas de aplicação da técnica psicanalítica conforme preconizada até então e que, justamente por isso, eram considerados contraindicados à psicanálise pelos demais analistas.

Ferenczi ainda buscou investigar outros meandros das experiências subjetivas associadas a problemas mais arcaicos. Os comportamentos regredidos apresentados por alguns pacientes fizeram com que o psicanalista húngaro passasse a atentar para possíveis experiências traumáticas, vivenciadas na tenra infância, que se mostravam ainda fortemente inscritas na subjetividade deles, embora essas "inscrições" não parecessem ter se efetivado a partir da linguagem. O autor se reporta a determinado ponto do desenvolvimento humano no qual não haveria uma capacidade simbólica bem estruturada e, portanto, o físico e o psíquico se encontrariam ainda difusos e pouco definidos. O registro mnêmico de qualquer experiência traumática também obedeceria a essa (con)fusão entre corpo e mente, pois, "não estando o órgão do pensamento completamente formado, só eram registradas as lembranças físicas" (Ferenczi, 1930/2012f, p. 74).

A flexibilização do setting terapêutico a partir do "tato" do analista, a análise "sensível" e as técnicas de relaxamento propostas por Ferenczi despertavam, em certos pacientes, movimentos regressivos. Ocorre que estes, muitas vezes, se encontravam distantes da possibilidade de elaboração simbólica inerente às tradicionais interpretações do material oriundo das associações livres. A palavra, assim, mostrava-se insuficiente, e a "irrepresentabilidade" tomava forma como "ação". Ferenczi percebeu então que somente poderia responder a isso também com "ação". Tanto sua crítica a uma abordagem clínica simplesmente tecnicista e insensível quanto sua proposta de uma prática essencial, que envolveria, por parte do analista, a compreensão empática do paciente, teriam, grosso modo, um mesmo objetivo: impedir a repetição de uma situação traumática infantil atualizada no registro transferencial da análise. Afinal, esta repetição impossibilitaria a construção de uma relação de confiança sobre a qual se fundamentaria a análise.

Concluímos, assim, que se origina do campo da prática o interesse de Ferenczi pela traumatogênese, pelo modo como o trauma pode se inscrever na história do sujeito e, ainda, por sua relação com certos movimentos regressivos experimentados na clínica. O autor buscava também trabalhar teoricamente com tais questões, tendo como objetivo compreendê-las mais pormenorizadamente para ampliar o alcance da psicanálise na clínica dos casos difíceis. Vale destacar que, em seus estudos sobre o trauma e a regressão, Ferenczi constatava com frequência a relação destes com períodos muito precoces do desenvolvimento humano e, logo, com relações objetais arcaicas. Por essa razão, esboçava uma proximidade entre os traumatismos infantis e o desencadeamento de "sintomas" corporais, ou mesmo doenças orgânicas qualificadas como distúrbios psicossomáticos, que se mostravam essencialmente irrepresentáveis.

Ferenczi, infelizmente, morreu antes de transformar em textos mais aprofundados parte de suas anotações (Ferenczi, 1934/2012e) ou alguns pensamentos expressos em um diário pessoal escrito durante seu último ano de vida (Ferenczi, 1990). Todavia, podemos inferir, a partir destas publicações póstumas, uma série de formulações que em muito colaboram com os estudos psicanalíticos dos fatores psíquicos das doenças orgânicas, e não simplesmente em um sentido contextual e histórico. Em última instância, entendemos que pode ser identificada uma certa continuidade entre tais formulações e algumas teses estabelecidas anos depois no campo da psicossomática psicanalítica.

Diante do exposto, no presente estudo temos como objetivo principal discutir as noções de trauma e regressão nos escritos de Ferenczi. Adicionalmente, procuraremos apontar suas possíveis articulações com as propostas teóricas e clínicas da Escola Psicossomática de Paris, considerada uma das principais correntes psicanalíticas na atualidade, a qual teve como maior expoente o médico e psicanalista francês Pierre Marty (1918-1993). Para tanto, delinearemos a seguir um panorama das formulações ferenczianas sobre trauma e regressão. Mais adiante, abordaremos algumas implicações clínicas de tais formulações. Por fim, com o intuito de colocar em relevo a possibilidade de aproximações entre Ferenczi e Marty, apresentaremos uma síntese dos fundamentos da Escola Psicossomática de Paris conforme definidos, especificamente, a partir de três de suas noções mais relevantes, a saber: pensamento operatorio, desorganização progressiva e regressão somática.

Trauma e regressão em Ferenczi: elementos para uma compreensão psicanalítica dos distúrbios psicossomáticos

Os casos difíceis abordados a partir dos experimentos técnicos implementados na clínica psicanalítica possibilitaram a Ferenczi o acesso a conteúdos de outra ordem, de caráter essencialmente corporal, que seriam pouco ou nada passíveis de tradução em termos psíquicos. É justamente este aspecto do trauma que se articula de forma direta à dinâmica psíquica de muitos pacientes acometidos por doenças orgânicas e que, por essa razão, interessa à nossa leitura presente, na perspectiva de uma articulação entre as formulações do autor e os desenvolvimentos teóricos posteriores no campo da psicossomática psicanalítica.

No último dos textos publicado por Ferenczi (1933/2012b), o escopo é justamente a exploração do processo traumático infantil a partir de um fator exógeno. Trata-se do momento final de sua teoria do trauma, elaborada com mais afinco nos anos precedentes. O autor fala de uma experiência traumática ocasionada por uma confusão de línguas entre o que seria próprio de uma linguagem adulta - a qual foi qualificada como linguagem da paixão e estaria envolta de genitalidade - e a linguagem ainda imatura da criança, denominada linguagem da ternura. Ressalte-se que ambas seriam sexualizadas, mas o psicanalista húngaro sustenta que a expressão libidinal infantil remete à relação terna mãe-criança, e todo elemento que extrapola essa condição e arrebata passionalmente tal relação, em um momento em que ainda não há possibilidade de compreensão maior por parte da criança, seria consequente de um tratamento desprovido de "tato" por parte do ambiente (Ferenczi, 1931/2012a).

É válido salientar que o trauma se destaca como tópico central nos estudos finais de Ferenczi. À época, o autor foi bastante criticado por seus pares - Freud incluso -por retomar um assunto que há muito já havia sido tratado, sobretudo em um movimento que culminou no abandono da teoria freudiana da sedução e no advento da teoria da fantasia, a qual demarcou o lugar central da realidade psíquica na patogênese neurótica. Porém, ao contrário do que apontavam com destrato alguns de seus críticos, o intuito de Ferenczi não era subverter a lógica da fantasia ou mesmo revogar a ideia da existência de uma sexualidade infantil, mas apontar para algo de ordem externa que também poderia compor uma experiência traumática.

Desse modo, o psicanalista húngaro considera também os efeitos de eventos reais provenientes da realidade externa, e não somente o papel da fantasia, na composição de uma complexa experiência traumática. Logo, expande a dinâmica desse tipo de situação para o plano das relações intersubjetivas, embora ainda mantenha o protagonismo dos mecanismos intrapsíquicos. A demarcação das relações objetais arcaicas como ponto de partida para a compreensão do funcionamento psíquico, inclusive, está presente nas primeiras obras do autor (Ferenczi, 1909/20125). Ademais, se revelou crucial na evolução de suas propostas teóricas, perpassando suas experimentações técnicas e influenciando diretamente os caminhos que percorreu até culminar nos estudos sobre o trauma (Casadore, 2012, 2014).

Ferenczi, portanto, expande as fronteiras dos estudos psicanalíticos sobre o trauma e amplia suas perspectivas para uma melhor compreensão de tal fenômeno. É nesse sentido que inaugura as bases do que Mészáros (2011) chama de teoria moderna do trauma, cujos aspectos centrais, a propósito, fornecem elementos valiosos para a compreensão de algumas condições psicopatológicas atualmente recorrentes na clínica psicanalítica. Ferenczi explora a traumatogênese por reconhecer potencialidades, tanto terapêuticas quanto teóricas, inerentes a esta incursão, e o faz chamando atenção especial para as experiências em que reconhece a implementação de uma espécie de "lembrança corporal" disparada pela incapacidade de o sujeito registrá-las de qualquer outra forma.

É nesse sentido que o autor enquadra a angústia como consequência imediata de todo traumatismo, atrelando-a à inviabilidade de o sujeito se adaptar a determinada situação desprazerosa. Em uma de suas anotações publicadas postumamente, Ferenczi fala da exigência de um "escoadouro" de angústia, a partir da situação de desprazer, e associa-o à autodestrutividade. Mais especificamente, alude a uma autodestrutividade da consciência, que obedeceria mais prontamente que a unidade corporal, ao afirmar: "Eu não sofro mais, no máximo uma parte do meu corpo" (Ferenczi, 1934/2012e, p. 294). Sabemos, no entanto, que muitos distúrbios psicossomáticos não obedeceriam a essa "cisão" entre consciência e corpo, emergindo sempre no contexto de uma relação bastante complexa entre as referidas instâncias, a qual, até mesmo em função disso, se revelaria de difícil "tradução", situando-se às margens da clínica psicanalítica clássica conforme concebida para a abordagem das neuroses.

Em outra nota, Ferenczi complementaria este posicionamento ao sustentar que os bebês apenas possuiriam emoções e sensações corporais, subjetivas, relacionadas à expressão, e mesmo as crianças, nos primeiros anos de vida, teriam poucas lembranças conscientes do desenvolvimento de sua própria compreensão de mundo. Logo, haveria uma supremacia das sensações, com tonalidades de prazer e desprazer, e reações corporais subjacentes, sendo que as lembranças permaneceriam imobilizadas no corpo, e somente nele poderiam ser despertadas. O autor complementa:

Não se justifica exigir da análise a rememoração consciente de algo que nunca foi consciente. Só é possível reviver alguma coisa, com uma objetivação a posteriori, pela primeira vez, na análise. Reviver o trauma e interpretá-lo (compreendê-lo) - em vez de "recalcamento" puramente subjetivo - é, portanto, a dupla tarefa da análise.

(Ferenczi, 1934/2012e, p. 305)

Ferenczi se refere àquilo que viria a denominar posteriormente, em uma de suas últimas anotações, como mnemos orgânico-psíquicos (Ferenczi, 1934/2012e, p. 308). Basicamente, estes seriam eventos "psíquicos" do passado que se revelariam incompreensíveis para o consciente, deixando seus traços de lembrança somente em uma linguagem que poderia ser classificada como corporal. Logo, enquanto substituta de uma memória representacional, tal linguagem implicaria "marcas somáticas" consequentes. Assumindo esta assertiva, Knobloch (1996) diz que, na perspectiva ferencziana, o trauma apenas se expressaria como silêncio, "ação" ou clivagem. Segundo a autora, tratar-se-iam de "aparições" do trauma, na medida em que ele somente poderia "apresentar-se", e não ser representado.

Em suma, de acordo com as formulações de Ferenczi acerca da traumatogênese, os traços referentes ao trauma situar-se-iam em um sistema-limite (corpo/psique) e, justamente por essa razão, seriam registrados de maneira "sensível" e não simbólica. Ampliando essa linha de raciocínio, o autor ainda afirmaria que certos conteúdos não podem e não devem ser interpretados, ou sequer remodelados pela interpretação, sendo que a vivência direta de uma experiência do passado, por meio da técnica de relaxamento, poderia legitimá-la como verdadeira, além de possibilitar, por fim, um trabalho clínico relacionado a ela (Ferenczi, 1934/2012e).

Ainda que não seja oportuno, diante do escopo do presente estudo, um aprofundamento a respeito da noção de neurose de órgão proposta por Ferenczi, consideramos relevante salientar que, ao vislumbrar a possibilidade de "sintomas" corporais não simbólicos emergirem como consequência de um trauma, o autor acaba revendo, ainda que indiretamente, uma tentativa anterior de compreensão dos fatores psíquicos das doenças orgânicas esboçada em um dos poucos textos que consagrou especificamente ao assunto. Ocorre que a neurose de órgão seria, em essência, um distúrbio psicossomático precedido de alguma desordem na sexualidade adulta (Ferenczi, 1926/2012c). Logo, na descrição desta condição estaria implícita uma ideia da simbologia do órgão afetado, com a qual, podemos antecipar, o posicionamento de Marty não consentiría. Portanto, não deixa de ser curioso o fato de Ferenczi ter contribuído para avanços posteriores no campo da psicossomática psicanalítica, sobretudo a partir de estudos sobre o trauma e a regressão, e não sobre os distúrbios psicossomáticos propriamente ditos.

 

Algumas considerações sobre o recorte clínico proposto por Ferenczi

A exemplo do que ocorreu no início das incursões clínicas de Breuer e Freud, em um período ainda pré-psicanalítico, quando as histéricas exigiam que fossem ouvidas e apresentavam o caminho do trabalho terapêutico pautado na fala e em todo seu potencial representativo, na clínica do trauma havia também a emergência de algo a ser "compreendido" nos movimentos regressivos, nos atos e pequenos gestos dos pacientes. Ferenczi observou tal fato e atentou às novas exigências que emergiam na relação terapêutica em razão da ocorrência de material que escapava à interpretação e de sintomas empobrecidos em termos de simbologia. Logo, compreendeu que devia responder a eles de modo diferenciado: o "tato" e a empatia, por parte do analista, permitiam-lhe perceber que os procedimentos clínicos deveriam se adequar ao funcionamento psíquico do paciente e à dinâmica referente a seu sofrimento.

Ferenczi procurou desenvolver mudanças concernentes à relação terapêutica que pudessem responder de maneira positiva à evolução do trabalho clínico com estes pacientes, que estariam à margem de uma aplicação "clássica" dos preceitos psicanalíticos. Seus "experimentos" com a técnica psicanalítica - que, por vezes, foram criticados por seus pares - tinham como intuito conseguir alcançar novos horizontes dentre as possibilidades de trabalho da psicanálise (Casadore, 2012). Todavia, é preciso salientar que, nos últimos anos de vida de Ferenczi, seu furor sanandi incontido também o levou a muitas frustrações devido à proposição de práticas que se revelaram pouco plausíveis, como a chamada análise mútua. Ainda assim, o psicanalista húngaro foi responsável por inovações técnicas que viriam a ser reconhecidas como importantes para a clínica psicanalítica, principalmente nas décadas vindouras.

Com relação à clínica do trauma, Mészáros destaca que o principal ponto de apoio das propostas clínicas ferenczianas passa pelo reconhecimento das relações objetais precoces, bem como da relevância da "atualização" delas na relação terapêutica. É nesse sentido que o autor afirma:

A psicanálise torna-se um sistema de processos multidirecionais de elementos interpessoais e intersubjetivos. Desenvolver a confiança entre analista e analisando torna-se o meio indispensável para abordar experiências traumáticas. A comunicação autêntica por parte do terapeuta torna-se requisito fundamental, pois afirmações falsas resultam em dissociação e repetem a dinâmica patológica de relações anteriores. (2011, p. 14)

Ainda sobre o papel da confiança na relação terapêutica, Ferenczi enfatizou que esta seria essencial para qualquer trabalho clínico que envolvesse movimentos regressivos associados a situações traumáticas. O autor deixou claro tal ponto de vista ao asseverar que "essa confiança é aquele algo que estabelece o contraste entre um presente e um passado insuportável e traumatogênico". Ademais, reforçando este posicionamento, afirmou que a confiança do paciente - sobretudo daquele que vivenciou um trauma - no analista seria "indispensável para que o passado seja reavivado, não enquanto reprodução alucinatória, mas como lembrança objetiva" (Ferenczi, 1933/2012b, pp. 114-115).

Podemos inferir, portanto, que Ferenczi ensaia outro tipo de compreensão acerca dos distúrbios psicossomáticos e, consequentemente, um modo diferente de abordá-los. E é justamente por fazê-lo vislumbrando a possibilidade de a formação de "sintomas" corporais não ser intermediada pela simbolização que o autor estabelece as bases sobre as quais se apoiarão desenvolvimentos posteriores no campo da psicossomática psicanalítica. Assumindo tal premissa, entendemos que a teorização ferencziana serviu como uma espécie de ponto de partida para a constituição da Escola Psicossomática de Paris, sobre a qual nos deteremos a seguir.

 

Articulações possíveis entre Ferenczi e Marty à luz das noções de pensamento operatorio, desorganização progressiva e regressão somática

É importante frisar, de início, que para Marty (1996/1998) há um pressuposto fundamental a ser levado em consideração para a compreensão dos fatores psíquicos associados não apenas aos distúrbios psicossomáticos, ou somatizações, como prefere o autor, mas também à saúde em seu sentido mais amplo: a constituição do sujeito se apoia em uma unidade funcional entre corpo e mente. Dessa forma, como salienta Aisenstein (1994), todas as suas vivências, quer sejam físicas, quer psíquicas, seriam compreendidas como resultantes de interações contínuas e dinâmicas que obedeceriam a movimentos de organização ou desorganização. Mais adiante, discutiremos com maiores detalhes tais movimentos e as possíveis articulações entre as concepções subjacentes a eles e os postulados ferenczianos acerca do trauma e da regressão.

Antes disso, consideramos relevante salientar que, conforme o modelo teórico da Escola Psicossomática de Paris, em função de uma marcante limitação representacional, as tensões tendem a ser descarregadas diretamente no corpo, o que, em última instância, favoreceria a eclosão de somatizações. É justamente por essa razão que haveria uma inclinação a doenças orgânicas em sujeitos que apresentam uma capacidade de simbolização restrita. Ocorre que estes, de acordo com Marty (1990/1993), não disporiam dos recursos necessários para se valer do aparelho mental e tampouco do aparelho sensório-motor para elaborar psiquicamente ou escoar por meio de comportamentos as tensões que experimentam. Logo, restaria apenas o acionamento da via somática como possibilidade de descarga, a qual se afiguraria, para o psicanalista francês, como o último dos três domínios mobilizáveis por qualquer indivíduo em prol da supressão do desequilíbrio provocado pelo excesso ou acúmulo de tensões.

Quando a capacidade de simbolização é restrita a esse ponto, tipicamente prevaleceria uma forma de pensamento consciente, superficial, desprovida de valor libidinal, excessivamente orientada para a realidade externa e estreitamente vinculada à materialidade dos fatos, que foi denominada por Marty e M'Uzan (1963[1962]/1994) pensamento operatorio. Os autores ainda asseveraram que, nessas circunstâncias, a impossibilidade de referência a um "objeto interno realmente vivo" (p. 168) ensejaria um amplo apagamento da expressividade de ordem mental, comumente acompanhado por uma variedade de somatizações não simbólicas, análogas, portanto, àquelas que, para Ferenczi, resultariam de experiências traumáticas.

Vale ressaltar que, ampliando suas formulações iniciais, Marty (1980) passou a utilizar o termo vida operatoria para aludir a uma dinâmica mental propensa à cronicidade, em que os mecanismos presentes nas neuroses e nas psicoses seriam pouco apreciáveis devido à predominância do pensamento operatório. Ademais, acrescentou que a vida operatória se encontraria intimamente relacionada a desarmonias afetivas experimentadas na primeira infância em virtude do desempenho inapro-priado - excessivo ou insuficiente - da função materna. Tal proposição, crucial para a Escola Psicossomática de Paris, nos remete à associação estabelecida na perspectiva ferencziana entre o trauma, a regressão e os períodos precoces do desenvolvimento humano.

Todavia, com base em conhecimentos oriundos da biologia, Marty (1976) originalmente sustentou que movimentos constantes de organização evolutiva seriam fundamentados em grupos funcionais ou elementos funcionais (p. 118), sendo que estes se constituiriam de funções - somáticas e mentais, nesta sequência - adquiridas e estabelecidas em momentos anteriores do desenvolvimento individual. Tal dinâmica, em contraste com o que se poderia cogitar a princípio, não seria linear e exigiria, para a constituição de uma nova organização funcional, rearranjos das referidas funções. E estas, devido a traumas, atuais ou passados, possivelmente não se mostrariam disponíveis para tanto, o que ensejaria desorganizações em razão das quais adviria um tipo específico de movimento regressivo. Porém, um outro tipo de movimento regressivo seria observado, diante de desorganizações, nos casos em que, a exemplo do que ocorre na vida operatória, as funções prévias são insuficientes.

Marty, portanto, fala de dois tipos distintos de movimentos regressivos que seriam desencadeados por processos de desorganização, a depender, essencialmente, da capacidade de simbolização do sujeito. Um pré-consciente enriquecido, quantitativa e qualitativamente, por representações, além de conduzir a uma estrutura egoica mais consistente, proporcionaria o aporte de pontos de fixação aos movimentos regressivos disparados por traumas. O termo regressão somática foi criado pelo psicanalista francês para aludir a este fenômeno, que seria essencialmente reorganizativo, mas comumente provocaria, em um primeiro momento, além de uma leve desorganização mental, "sintomas" corporais menores e muitas vezes passíveis de reversão espontânea, na medida em que um de seus desdobramentos seria a substituição momentânea da elaboração psíquica pela reação física (Marty, 1990/1993).

Por outro lado, sujeitos que possuem uma capacidade de simbolização restrita a ponto de depreender a existência de uma carência funcional do psiquismo tenderiam a experimentar um tipo de desorganização que fomentaria "sintomas" corporais mais graves. A este fenômeno Marty (1968) deu o nome de desorganização progressiva, definindo-o, essencialmente, como "a destruição da organização libidinal de um indivíduo" (p. 246). O autor esclareceu que o adjetivo progressivo se justificaria porque o referido movimento não seria interrompido por um sistema regressivo válido, ou seja, capaz de se deter em fixações anteriores, em contraste com o que ocorreria na regressão somática. Como consequência, a desorganização progressiva provocaria um apagamento global da dinâmica mental que abriria caminho para doenças orgânicas capazes de representar ameaça à vida.

Com base nesta diferenciação, Marty posicionou a desorganização progressiva e a regressão somática em polos opostos nos processos de somatização. Outrossim, esclarecendo o que determinaria a implementação desta ou daquela, o autor sustentou que,

quanto mais o pré-consciente de um sujeito se mostrar rico de representações permanentemente ligadas entre si, mais a patologia eventual correrá o risco de se situar na vertente mental. Quanto menos o pré-consciente se mostrar rico de representações, de ligações entre as que existem e de permanência das representações e de suas ligações, mais a patologia eventual correrá o risco de se situar na vertente somática. (1990/1993, p. 28).

É nesse sentido que Aisenstein (1994) distingue duas valencias nos movimentos regressivos conforme compreendidos pela Escola Psicossomática de Paris. Em uma primeira, haveria uma disposição estrutural do aparelho psíquico que viabilizaria regressões limitadas no tempo por pontos de fixação e dotadas de potencial reorganizador em termos mentais ou capazes, inclusive, de enriquecer o repertório evolutivo do indivíduo. Em uma segunda valência, diante da inexistência de pontos de fixação que possam atuar como anteparos das regressões, a desorganização se manifestaria clinicamente obedecendo à ordem da pulsão de morte e encerraria uma carga de energia contraevolutiva, ensejando, assim, processos de somatização que atingiriam funções cada vez mais fundamentais.

Concluímos, diante do exposto, que as formulações de Marty evidenciam as especificidades tanto de pacientes que apresentam somatizações associadas à vida operatória ou a desorganizações progressivas quanto dos desafios que se apresentam ao tratamento deles. Afinal, sob a égide do pensamento operatorio se tornaria perigosamente usual um expediente de que qualquer sujeito poderia lançar mão pontualmente e sem maiores prejuízos à sua saúde física diante do excesso ou acúmulo de tensões: o emprego da via somática em detrimento do recurso ao aparelho mental ou ao aparelho sensório-motor. Ademais, a desorganização progressiva abriria caminho para a eclosão de doenças orgânicas graves mediante a destruição da organização libidinal do sujeito, diferentemente do que ocorreria a partir da regressão somática. O psicanalista francês asseverou que os cenários implementados por tais fenômenos vão exigir outro tipo de abordagem por parte do analista, que pouco poderá oferecer ao paciente se referenciado simplesmente pelo modelo clássico de tratamento das neuroses e pelo emprego prioritário da interpretação que dele decorre.

Eis aqui, portanto, um importante ponto de convergência, em termos técnicos, entre as propostas de Ferenczi acerca dos casos difíceis, que exprimiriam um forte movimento regressivo durante o processo analítico, e as formulações de Marty concernentes aos pacientes que apresentam somatizações: o posicionamento do analista e a dinâmica instaurada na relação e no setting obedecerão a outra lógica em ambos os casos. Conforme já mencionamos, Ferenczi teve "tato" suficiente para perceber que precisava investir no que seria uma relação intersubjetiva de fato, a fim de possibilitar ao paciente algumas "construções" mais fundamentais, que em muito diriam respeito às relações objetais mais arcaicas e aos modelos abstraídos destas. O estabelecimento de um laço mais positivo com o paciente, baseado em uma postura confiável e compreensível, favorecia tal evolução.

Na Escola Psicossomática de Paris encontramos um posicionamento equivalente, pois Marty também atentou à fragilidade subjetiva inerente às somatizações associadas à vida operatória ou a desorganizações progressivas e observou que estas se encontrariam intimamente relacionadas a uma fase pré-verbal e pré-simbólica do desenvolvimento humano, sendo que, por essa razão, fugiriam ao escopo da interpretação. Este tipo de intervenção, portanto, deveria ser usada de modo extremamente criterioso. Seria imprescindível, em contrapartida, investir em uma relação mais honesta e aberta, na qual o analista disponibilizaria seus próprios sistemas elementares de representações e defesas, de modo a dar contorno ao desempenho progressivo de funções fragilizadas do paciente, e abandonaria gradualmente esse papel quando dos primeiros sinais de independência.

Justamente em função disso Marty afirmou que, "aplicada a qualquer outra coisa que não seja a análise da neurose clássica, a neutralidade iguala-se à indiferença" (1976, p. 131). Caberia então ao analista assumir uma postura ativa para cuidadosamente estimular a retomada do funcionamento mental apresentado pelo paciente antes de seu adoecimento, para apenas posteriormente passar a envidar esforços no intento de enriquecer seu aparelho psíquico até o nível mais desenvolvido possível. Nessa perspectiva, como observou Santos Filho (1994), o que se busca, em última instância, é a construção de uma possibilidade elaborativa a partir de um vínculo duradouro, confiável e contínuo.

 

Considerações finais

Diante do exposto, é possível pensar na existência de articulações entre os escritos finais de Ferenczi e as formulações psicossomáticas de Marty, malgrado o fato de este não ser apontado como um leitor daquele. Em síntese, é a partir do reconhecimento da relevância da regressão na clínica e de sua associação com as experiências traumáticas - do qual decorre uma abordagem que valoriza a postura ativa e empática do analista - que podemos situar os dois autores dentre aqueles que vislumbraram novos horizontes para a psicanálise e que extrapolaram as fronteiras da clínica mais tradicional, de modo a contemplar casos até então pouco estudados. Contudo, obviamente não é possível reduzir um ao outro.

Afinal, tratamos de dois autores que trabalharam em épocas e locais diferentes. Ferenczi, psicanalista húngaro pertencente à primeira geração e colega de Freud, pôde, ao fim da vida, focar sua prática clínica e seus estudos nos casos difíceis, que se mostravam refratários a uma terapêutica pautada essencialmente na regra fundamental psicanalítica da livre associação. Anos depois, Marty, trabalhando em hospitais franceses, se depara com uma problemática mais específica e passa a se ocupar do mapeamento dos fatores psíquicos das somatizações. Apesar destas distinções, e mesmo considerando o fato de Marty não apontar Ferenczi como um dos autores que influenciaram suas teorizações, é possível compreendermos que ambos chegaram a posicionamentos congruentes entre si. Assim, julgamos viável reconhecer certas raízes ferenczianas, sobretudo acerca das noções de trauma e regressão, nas proposições teóricas do psicanalista francês.

Aprofundando este argumento, nos parece possível sustentar que, mesmo que de modo pouco contundente, os estudos de Ferenczi propagaram-se também no campo da psicossomática psicanalítica. Afinal, as formulações de Marty - que ainda hoje se consolidam como uma das vertentes teóricas mais importantes para o estudo psicanalítico das somatizações - viriam a corroborar algumas proposições de Ferenczi que não puderam ser aprofundadas por ele e somente vieram a público postumamente. A identificação de uma confluência entre o posicionamento destes dois autores pode auxiliar tanto clínicos quanto pesquisadores na compreensão de desenvolvimentos teóricos pós-freudianos que têm se revelado determinantes para a ampliação do alcance da psicanálise.

 

Referências

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Correspondência:
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Recebido em 16.09.2015
Aceito em 19.02.2016

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