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Revista Brasileira de Psicanálise
Print version ISSN 0486-641X
Rev. bras. psicanál vol.50 no.3 São Paulo July/Sept. 2016
EM PAUTA
O analista descons(c)ertado: considerações sobre acessos a dimensões protomentais
The disconcerted (and unrepaired) psychoanalyst: comments on access to proto-mental dimensions
El analista desconcertado: consideraciones sobre accesos a dimensiones protomentales
Paulo de Moraes Mendonça Ribeiro
Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP) e da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Ribeirão Preto (SBPRP). Analista didata da SBPRP
RESUMO
O autor propõe pensarmos sobre situações descons(c) ertantes presentes na prática psicanalítica cotidiana. Considera desconCertos, com C, como movimentos mentais necessários para o analista poder abrir-se a captações intuitivas de dimensões arcaicas, pré-verbais e desconhecidas da realidade psíquica do analisando; desconSertos, com S, são trabalhados como movimentos mentais do analista, mais ou menos conscientes, que podem ser fruto de atuações contratransferenciais ou vir a se constituírem em atos interpretativos úteis ao desenvolvimento de funções da personalidade do analisando. Modelos estéticos e clínicos são utilizados para ilustrar estas conjecturas.
Palavras-chave: alucinose; ato de fé; cesura; intimidade; mente multidimensional.
ABSTRACT
The author's purpose is to think about disconcerting situations that are experienced in everyday psychoanalytic practice. He considers two different kinds of consternations: (1) mental movements which are needed to enable the psychoanalyst to open up himself to intuitive uptakes from archaic, preverbal, and unknown dimensions of the analysand's psychic reality; (2) analyst's mental movements that may be the result of countertransferential acts, or may become interpretative acts, which are useful for developing some patient's personality functions. The author uses some aesthetic models and clinical vignettes in order to illustrate these conjectures.
Keywords: hallucinosis; act of faith; caesura; intimacy; multidimensional mind.
RESUMEN
El autor propone que pensemos sobre situaciones desconcertantes que están presentes diariamente en la práctica psicoanalítica. Considera dos tipos de desconciertos: (1) como movimientos mentales necesarios para que el analista pueda abrirse a la percepción intuitiva de dimensiones arcaicas, preverbales y desconocidas para la realidad psíquica del paciente; (2) como movimientos mentales del analista, más o menos conscientes, que pueden ser resultado de contratransferencia o llegar a constituirse en actos interpretativos, útiles para el desarrollo de las funciones de la personalidad del paciente. Se utilizan modelos estéticos y clínicos para ilustrar estas conjeturas.
Palabras clave: alucinosis; acto de fe; cesura; intimidad; mente multidimensional.
Para ser grande, sê inteiro: nada Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda Brilha, porque alta vive.
(Ricardo Reis [Fernando Pessoa], 14.2.1933)
Descons(c)ertado é com S ou C?
trabalho analítico transcorre no campo de interação bipessoal e para sua efetividade requer condições mínimas de setting - seja o setting constituído pelas condições promotoras de segurança e confiança do modelo freudiano, seja o setting interno de cada membro da dupla, formado pelas personalidades do analista, do analisando e a que emerge a partir da interação da dupla, que Ogden (1984/1996a) chamou de terceiro analítico intersubjetivo.
Diante dessa complexidade, o analista em sua práxis tem como suporte arquitetônico de sua delicada função as capacidades para atentar, sonhar e intuir, as quais, trabalhando em conjunto, poderão lançar luz na direção de travessias do mundo das vivências da realidade sensorial para o da realidade psíquica, expandindo o espectro mental do analisando e, consequentemente, promovendo a restauração da sua capacidade de pensamento inconsciente (pensamentos oníricos). Esses trânsitos, na maioria das vezes inconscientes, englobam situações descons(c)ertantes (ora com S, ora com C) que podem vir a ser úteis na busca da singularidade do analisando.
Do ponto de vista linguístico, as palavras desconCertado e desconSertado são homó-fonas, mas seus significados e grafias são diferentes. São o particípio dos verbos desconcertar e desconsertar. O prefixo latino des - significa "separação, ação em sentido contrário". A palavra desconCertado se refere a alguma coisa ou a alguém que está sem a harmonia esperada, sem ordem, aturdido, e que perdeu, temporária ou definitivamente, a orientação prevista. Já desconSertado se refere a alguma coisa desarranjada, avariada, prejudicada em sua função, que necessita reparos, consertos. Exemplos com C: "A resposta violenta do analisando me deixou desconcertado!"; "O violinista da orquestra está desconcertado. Parece querer tocar sozinho"; com S: "O relógio da sala está desconsertado. Mandarei arrumá-lo"; "Não posso correr a maratona: meu joelho está desconsertado. Preciso operá-lo".
O verbo desconCertar pode ser transitivo, intransitivo ou pronominal; como transitivo, pode significar: (1) fazer perder a boa disposição de; (2) desmanchar; (3) pôr em divergência; como intransitivo, pode significar: (4) disparatar, discordar; como pronominal, significa: (5) descompor-se. O verbo desconSertar pode ser transitivo e pronominal e significar: avariar, estragar, pôr ou ficar fora de funcionamento ou em desordem (www.priberam.pt/DLPO/).
DesconCerto em psicanálise
Na relação analítica privilegiamos a observação atenta das experiências emocionais, fruto das relações continente↔contido ocorrendo na mente do analisando, na mente do analista e no vínculo entre ambos. Às vezes, vive-se simultaneamente a mesma experiência emocional, na mesma dimensão; outras vezes, analista e analisando vivenciam experiências emocionais em dimensões distintas - por exemplo: quando o analisando se encontra em transformações projetivas ou em alucinose, enquanto o analista tenta trabalhar em transformações em K. Dimensões distintas sendo vividas simultaneamente podem ser descons(c)ertantes aos participantes da dupla. Portanto, o balizamento das diferentes experiências emocionais vigentes pode colaborar para a expansão do conhecimento da vivência em trânsito e, assim, prevenir atuações por parte do analista ou do analisando.
A compreensão da captação dos fenômenos primitivos da mente humana evoluiu muito com o advento do conceito de identificação projetiva, cunhado por Melanie Klein (1946/1991), especialmente a partir da colaboração de Bion (1957/1994), que permitiu entender as identificações projetivas como forma realística de comunicação de experiências pré-simbólicas que não encontram outro meio de expressão. A partir dessas contribuições, as identificações projetivas passaram a ser vistas como um dos componentes do campo das experiências emocionais, elucidando muitos fenômenos observados na clínica psicanalítica.
Entretanto, situações que aparentemente não faziam parte das relações continente↔contido começaram a intrigar analistas, que observavam fenômenos peculiares, como um moralismo primitivo cruel, assassino-suicida, que se fazia presente na vida do analisando, mas que era totalmente resistente às interpretações usuais. Eram fenômenos dos quais o analista parecia não participar de forma alguma; eram observáveis, mas não pareciam ser fruto de transferência ou de projeções. Começou-se, então, a conjecturar a existência de comunicações que seriam mais primitivas do que as identificações projetivas, evocações de experiências protomentais de dimensões anteriores às relações continente↔contido (Mattos & Braga, 2009).
A evolução da compreensão do campo das experiências emocionais para aquém (ou além) das identificações projetivas (Ribeiro, 2013, 2014) abriu caminho para a expansão do uso clínico da sensibilidade imaginativa do analista, que passou a abarcar suas impressões, seus feelings, na busca de evidências de estados emocionais arcaicos. Embora o conceito de experiência emocional tenha acompanhado toda a obra de Bion, isso ocorreu de forma irregular: em Aprendendo com a experiência (1962) e Elementos de psicanálise (1963/2004), o conceito foi usado de forma explícita; em Transformações (1965) e Atenção e interpretação (1970/2006), sofreu modificações significativas, desaparecendo como termo explícito nos artigos publicados entre 1976 e 1979; não obstante, continuou presente em suas supervisões e seminários sob os nomes coloquiais de feeling e impression (Braga, 2012a, 2012b).
Em Aprendendo com a experiência, o sentido considerado por Bion para experiência emocional é parte de sua teoria do pensamento, relaciona-se ao processo de formação de pensamentos por um pensador e se expressa como vivência emocional que acompanha o preenchimento de uma preconcepção em sua conjunção com um objeto que satisfaz ou não sua natureza incompleta (realização positiva ou negativa);1 também se expressa como experiência psíquica de elos no processo do aprender com a experiência, ou seja, vínculos positivos e negativos de amor (L), ódio (H) e conhecimento (K). Entretanto, a partir de Transformações, Bion radicalizou o modelo de apreensão dos conteúdos mentais do analisando para além do uso das experiências emocionais como matéria-prima para o desenvolvimento de pensamentos no analista.
No modelo vigente em Aprendendo com a experiência, através da identificação projetiva realista, o analista capta os elementos projetados inconscientemente em sua mente (elementos P) para metabolizá-los e devolvê-los ao analisando numa forma que lhe seja assimilável (elementos a).2 A partir de Transformações, e especialmente em Atenção e interpretação, a apreensão da realidade psíquica passa a ter como foco principal a mente do próprio analista, o que ocorre nesta sob estímulo da relação com o analisando. O interesse nas experiências emocionais deslocou-se para o desenvolvimento dos pensamentos no analista ou, mais especificamente, para as experiências emocionais geradoras (ou não) de pensamentos no analista. A "antena mental", antes voltada principalmente para o que vinha do analisando, foi (em parte) redirecionada para captações oriundas da mente do próprio analista. Resulta dessa atitude observacional binocular o analista tornar-se capaz de trazer para a dimensão do conhecer, via captações intuitivas,3 experiências psíquicas muito arcaicas da mente do analisando, anteriores à capacidade para identificações projetivas, anteriores às relações continenteocontido, provenientes de camadas mentais que não dispõem de recursos simbólicos minimamente elaborados para representação narrativa, imagética ou em forma atuada/encenada, como ocorrem nos enactments, tão bem apresentados em nosso meio por Cassorla (2015) (ou por Jacobs [1986, 1991]).
Essa evolução paradigmática no referencial teórico-clínico da psicanálise implicou demandas extras sobre as funções psicanalíticas do analista, o qual passou a enfrentar situações descons(c)ertantes em sua práxis, renovando assim a necessária atenção à suficiência de análise pessoal do analista para que este possa apresentar o mínimo de pontos cegos obstrutores às suas conjecturas imaginativas (Chuster, 2014) e captações intuitivas. A análise pessoal do analista também deve lhe permitir qualidades de ato de fé (Bion, 1970/2006), o que implica confiança na existência de uma realidade inconsciente e desconhecida (O) que está na origem de múltiplos fenômenos que transcorrem na sessão de análise; essa confiança, essa fé, acasalada com a devida paciência, lhe possibilitará ser invadido por fenômenos inesperados potencialmente reveladores de estados emocionais de dimensões inusitadas.4
Um método perigoso
Freud já salientara o método psicanalítico como individual e construído ao longo da evolução do psicanalista. Em sua obra (1912/1996b, 1913/1996c, 1914/19963), foi cauteloso ao ressaltar que recomendações não eram mandamentos e, tal qual um casal que gera filhos para emancipação, o "pai" da psicanálise abriu caminho para que cada analista encontrasse e desenvolvesse seu método pessoal de práxis psicanalítica.
A palavra método vem do grego méthodos (meta: através de; hodos: via, caminho) e, simbolicamente, significa a arte de dirigir o espírito na investigação da verdade. Em psicanálise, essa verdade diz respeito tanto à verdade do analisando quanto à verdade pessoal do analista. Portanto, qualquer que seja a demanda por parte do analisando, se trabalhando com a personalidade total, ambos, analista e analisando, estarão sofrendo transformações psicanalíticas.
Nosso método também é essencialmente emocional. Sapienza e Junqueira Filho (2004), parafraseando Shakespeare, afirmam que "a emoção é a matéria-prima da qual a psicanálise é confeccionada".
Muitos analistas creem que dominar suas emoções lhes permite alcançar uma neutralidade que leva à interpretação ideal. Entretanto, apreendendo o continente como fruto da tecedura de fios constituídos por emoções (Bion, 1962) que se entrelaçam formando uma espécie de rede tridimensional capaz de acolher conteúdos, em vez de dominar as emoções, o que podemos fazer é tentar modulá-las como continente para podermos "nos abandonar a ela[s] para explorarmos sua textura, sua topografia, seu ritmo, seu caráter pré-monitório" (Sapienza & Junqueira Filho, 2004).
Ao ponderarmos a experiência emocional a partir da observação do que ocorre na mente do analista quando se abandona à experiência em decurso, ela evolui para o que Bion (1965, 1977/1981) nomeou como sendo ou tornando-se O, que, creio, passou a constituir a experiência emocional analítica mais privativa possível a ser vivida a dois, uma vez que os limites do que se origina num ou noutro borram-se, perdem nitidez e mesmo importância. As transformações em O correspondem aos movimentos emocionais experimentados "ao vivo e em cores" pela dupla analítica; nestes, sem necessariamente haver perdas na função psicanalítica do campo, ambas as personalidades estão se relacionando verdadeira e espontaneamente, a experiência emocional sendo vivida apresenta pouca ou nenhuma distorção oriunda de aspectos contratransferenciais do analista e há ampla fluidez no espectro transferência↔contratransferência.
A capacidade analiticamente bem treinada do psicanalista para colocar-se em estado de receptividade ampla é alcançada através do cultivo da opacidade de "memória, desejo e necessidade de compreensão imediata", campo de excelência da função psicanalítica da personalidade (Bion, 1992/2000; Sapienza, 1999b). Abrem-se assim as portas perceptuais para as captações intuitivas, conceito que pode ser pensado como a experiência emocional que ocorre em consequência do sendo O.
Essas evoluções implicam uma maior complexidade técnica no trabalho analítico, e fica evidente o risco envolvido na intimidade da dupla, uma vez que, com limites turvos e a assimetria entre os participantes da dupla deslocada apenas para a manutenção da função psicanalítica pelo analista, borram-se parâmetros que outrora eram usados no balizamento das interpretações do analista. Na busca da realização da concepção da singularidade do analisando através da participação ativa da personalidade total do analista, muitos descaminhos podem ocorrer, compondo inclusive possíveis iatrogenias na análise.5 Esses descaminhos podem acometer não só o analisando, mas também o analista, desconSertando-o temporariamente.
O analista desconSertado
DesconSertos na clínica são inevitáveis. A "arte" consiste em fazermos bom uso deles. Dessa forma, o que o analista pode sentir inicialmente como atuação de sua parte pode tornar-se um ato interpretativo (Ogden, 1984/19963), uma interpretação em ação, com a qual o analisando pode vir a se identificar, desenvolvendo novas funções em sua personalidade. Essa forma de comunicação amplia o espectro de ação do psicanalista, incluindo na relação interpretações não verbais,6 mais ou menos conscientemente formuladas.
1. Recentemente, um analista em formação chegou para supervisão bastante desconSertado. Estava aborrecido e envergonhado. Relutou em contar-me o ocorrido, o que é infrequente, pois temos uma relação bastante franca. Por fim, revelou que estava sentindo-se culpado por ter atuado (acting in) junto a uma analisanda. Contou-me que a Sra. X, uma assistente social de meia-idade, bastante atuante em uma comunidade de pessoas carentes, compareceu à sessão com uma enorme equimose no rosto, esfolada e sangrante. Ela havia chegado em casa mais tarde do que costumava, pois estava consolando uma colega de trabalho cuja mãe falecera naquela tarde. Ao chegar, encontrou a porta travada por dentro e teve que acordar o marido para abri-la. Este, ao abrir a porta, agarrou a esposa pelos cabelos e arrastou sua cabeça contra a parede, xingando-a de puta.
Ameaças de morte e violência física eram frequentes e graves e, para preocupação do analista, nunca resultavam em nenhuma medida preventiva - a analisanda parecia estar muito adaptada ao meio. As raízes desse drama remontavam a uma infância na qual abandono e maus-tratos eram rotina.
O analista, por sua vez, enfrentava situações de vida bastante delicadas: estava envolto com o tratamento de um câncer e ajudando sua filha a lidar com o complicado divórcio de um marido perverso. Naquela sessão, ele não permitiu que a analisanda se prolongasse na narrativa: pediu que ela pegasse o celular e ligasse imediatamente para a Sra. Y, uma amiga que ele sabia ser da confiança da Sra. X e cujo marido era delegado de polícia; pediu o celular da analisanda, apresentou-se para a Sra. Y e solicitou que ela ajudasse a Sra. X, mobilizando seu marido, antes que uma tragédia maior acontecesse. Encerrou a sessão precocemente, encaminhando a analisanda para concretizar essas providências.
2. Outra supervisionanda chegou para nosso encontro bastante irritada. Estava decidida a interromper o trabalho com o Sr. Z. Nem queria conversar sobre ele, pois "seria inútil, uma perda de tempo, uma vez que, de qualquer forma, ele deixaria de ser seu paciente". Decidimos pensar um pouco sobre a situação, e a analista me contou que, caso o Sr. Z, um jovem adepto ao cross-dressing, não se separasse imediatamente de sua nova amante, ela iria dizer-lhe que não o atenderia mais. O Sr. Z já há algum tempo fazia um certo mistério, instigando a curiosidade da analista, sobre a identidade de sua amante; dizia-lhe que a amante lhe pedira para não revelar seu nome, pois a analista não aprovaria o relacionamento adúltero que estavam vivendo. A analista, por sua vez, percebendo a pressão para curiosidade voyeurística, refreou-se em perguntar e voltou-se para os fatos da sessão. O Sr. Z, então, no final de uma sessão, revelou que estava envolvido com a Sra. W, que fora casada com um primo distante da analista. A analista sabia, através do atendimento da filha adolescente do casal, que a Sra. W, por um longo período, traíra o marido, confidenciando isso à filha, pedindo-lhe conselhos, como se esta fosse uma amiga confidente. Com a separação do casal, a Sra. W ficou com o amante e agora estava traindo-o com o Sr. Z.
A analista também se recordava que a filha da Sra. W, já adolescente, dormia na cama dos pais e que um de seus maiores terrores era a fantasia de acordar, no meio da noite, e presenciar os pais em relação sexual, convidando-a para participar do ato. Mesmo após a separação do casal, a mãe continuava convidando a filha para compartilhar sua cama com seus namorados. A analista sentiu, violentamente, que a Sra. W estava agora querendo fazer do seu divã uma grande cena primária perversa e revoltou-se.
Desconcertando o analista
Técnica é apenas um meio para se chegar a uma afirmação.
Quando estou pintando, tenho uma vaga noção do porvir.
Eu posso controlar o fluir da tinta.
Não há nenhum acidente, assim como inexiste começo ou fim.
Às vezes perco uma pintura, mas não tenho medo de mudanças...
Porque uma pintura tem vida própria, tento deixá-la viver.
(Jackson Pollock)
Em "Como tornar proveitoso um mau negócio" (1979), Bion propõe atenção a dimensões desconhecidas da mente:
Quando dois caracteres ou personalidades se encontram, cria-se uma tempestade emocional. Se eles têm contato suficiente para estarem seguros um com o outro, ou mesmo não estando seguros, um estado emocional se produz pela conjunção destes dois indivíduos, destas duas personalidades. (p. 467)
Essa "tempestade emocional", em cada renovada sessão, deverá estar a serviço da análise, ser respeitada e usada em favor da captação de "estados mentais" não conhecidos.
Assim procedendo, desconSertos tornam-se inevitáveis, em função da natureza do objeto psicanalítico, a saber, personalidades animadas em interação íntima, ambas sujeitas às complexidades da vida. Por outro lado, desconCertos passam a ser desejáveis; ao permiti-los, o analista abre sua "antena mental" para "estar uno" a dimensões inusitadas da realidade psíquica do analisando, se aparta de aspectos mais ligados à consciência (conjecturas racionais) e permite um livre fluir do seu inconsciente (conjecturas imaginativas). Nesses trajetos, elementos mais próximos das alucinoses serão bem-vindos.7
Os pré-requisitos para o analista experimentar tornar-se a realidade junto ao seu analisando incluem, além de sólida bagagem de conhecimento que transite consistentemente pelos vértices freudiano, kleiniano e bioniano da teoria, características pessoais de espontaneidade, criatividade, confiança em si mesmo e fé na psicanálise (Bion, 1970/2006; Ferro, 1995; Marinho & Marinho, 2015). Essas características não podem ser ensinadas, mas podem ser apreendidas e desenvolvidas ao longo de uma formação calcada na experiência de extensa e intensa análise pessoal, bem como na participação ativa em supervisões e seminários.
Um modelo da história da arte talvez possa colaborar com estas reflexões: o artista plástico norte-americano Jackson Pollock (1912-1956) foi uma das maiores referências mundiais do movimento expressionista abstrato. Desenvolveu, de forma radical, uma técnica de pintura chamada dripping, na qual respingava tinta sobre imensas telas, fazendo os pingos escorrerem e formarem traços harmoniosos que se entrelaçavam na superfície da tela. Pollock sabia retratar a realidade academicamente, mas abdicou dos rigores clássicos e passou a pintar com a tela no chão para, segundo ele mesmo referia, "sentir-se mais perto, dentro do quadro, parte da pintura".8 Caminhava sobre a obra, comprimia objetos contra ela, chegava a andar de bicicleta na tela para imprimir-lhe os pneus.
Sua pintura resulta de uma profunda entrega à experiência emocional vigente, levando-o à tomada de decisões em frações de segundo, intuitivas, casuais, fruto de uma coreografia natural e da oportunidade do momento. Cada obra tornava-se, assim, absolutamente única, espontânea e irrepetível. Aparentemente caóticas, Pollock controlava o fluxo da tinta em cada obra: "Não há nenhum acidente!"
Em sua techné de trabalho pessoal, Pollock abandonou o cavalete, o suporte clássico das telas, para interagir com a obra a partir de dentro, buscando o máximo envolvimento possível com ela. Sua arte, aparentemente simplória, constituída "apenas" por pingos numa tela, de ingênua não tem nada: é fruto de refinado pensamento.
Blue poles, monumental obra exposta na National Gallery of Australia, em Canberra, é um dos melhores exemplos da complexidade envolvida nessa forma de criação: parte de um fundo negro, sem luz, sem forma, unidimensional, e caminha - gota a gota - em direção à luminosidade e à tridimensionalidade (textura). Nesse caminhar, alcança áreas de extrema intensidade/vivacidade, expressas em amarelos, laranjas e brancos luminosos, sem nunca excluir ou negar a dimensão negra ao fundo. Aliás, no elemento em primeiro plano na tela, os poles (postes, mastros ou vértices), o azul que ele criou é de tonalidade extrema, um quase preto, volvendo ao fundo/origem/o O da tela.
A formação acadêmica do analista, como a dos artistas, o habilita a fazer uso da experiência emocional sendo vivida junto ao analisando de maneira pessoal, intuitiva, única e intransferível. Ao se conceber a existência de múltiplas dimensões mentais concomitantes,9 o "sonhar" a situação analítica tornou-se mais complexo, começou a incluir a observação de emoções que transitam inconscientemente de uma mente para a outra e que podem ser intuídas. Assim, as experiências emocionais do analista passam a indicar a dimensão da vida mental prevalente do analisando. Trabalhando-se em condições mentais suficientemente favoráveis, as experiências emocionais do analista podem ser consideradas invariantes no reconhecimento das transformações acontecendo na relação.
Naturalmente, a apreensão de fenômenos pré-verbais e formas infra ou supras-sensoriais de comunicação requer relação interpessoal íntima, na qual a modulação dos afetos como continente (♀) possibilita transformações em O que tornam possível o acesso a dimensões não conhecidas, que de outra maneira permaneceriam cesuras intransponíveis. Caminhos potencialmente desconCertantes podem revelar o que Bion (1977/1981) expôs como "ideias que estão enterradas num futuro que ainda não aconteceu, ou enterradas num passado que está esquecido, e que mal podemos dizer que pertencem àquilo que chamamos pensamento" (p. 126):
1. Certa vez estava com o Sr. R, homem de meia-idade, inteligente e sensível, que exerce funções administrativas e humanitárias de alta complexidade e que procurou análise queixando-se de nunca ter tido uma relação sexual na vida. Desde criança, sentiu-se perseguido por fantasias homossexuais e vivia atormentado por um superego cruel que o ridicularizava e o inferiorizava em relação às outras crianças. Acreditava que se desenvolvera intelectualmente, alcançando o mais alto status em sua área de atuação, como compensação para suas limitações afetivas. Chegara a tentar experiências sexuais com homens, mas isso resultou em crises de pânico e mais menos-valia; afora os familiares, nunca conseguira ter experiências afetivas duradouras.
Pela primeira vez na vida, começara a perceber-se interessado afetivamente por uma colega de trabalho e iniciaram um relacionamento no qual intimidade física e emocional estava sendo desenvolvida. Após uma primeira tentativa de relação sexual que resultou frustrada, chegou para a sessão muito perturbado: mal conseguia falar, suava frio, referia dores disseminadas pelo corpo, permanecia imóvel no divã, com muito medo. "Na verdade, é pavor, acho que não vou sobreviver. Não consigo ser um humano, um cara normal. Acho que isso vai me matar."
No decorrer da sessão comecei a "ouvir" urros, cada vez em volume maior, que ora pareciam vir de dentro da minha cabeça, ora das paredes da sala. Meu coração acelerou-se, também senti medo. Arriscando sonhar esses urros, que imaginei virem do seu "isso" (id), evocou-se em mim a imagem de um monstro disforme, enjaulado, tentando violentamente arrebentar as grades. Disse-lhe então: "Parece que você está tentando lidar com alguma coisa violenta que não tem forma nem nome, uma espécie de horror, mas que chega até nós em busca de algo. Quem sabe algum tipo de intimidade?"
2. O Sr. M, professor universitário, procurou-me queixando-se que se sentia aquém de suas potencialidades; não conseguira concluir o doutorado no prazo e perdera sua vaga. Apesar de ser bastante solicitado para coordenar cursos, não conseguia recursos suficientes para seu sustento, dependendo da ajuda dos pais. A análise revelou-nos um mito familiar, o Cemitério Real de Ur: com a morte de um importante antepassado, seus descendentes, inclusive os pais, "morreram junto", a família se paralisou, não houve mais progresso financeiro, intelectual e nem mesmo geracional (ele era o último dos descendentes). Numa sessão em que ele estava fazendo um retrospecto de sua história familiar, que inicialmente me pareceu repetitivo e monótono, de repente eu "visualizei" uma senhora em pé no pequeno espaço existente entre a minha poltrona e o divã. Ela estava nos fitando. A imagem imediatamente desapareceu e, como não consegui encontrar no material manifesto nenhuma relação com a aparição, continuei no trilho das associações. Num clima funesto, estava me falando do ramo paterno da família: "Meu pai teve apenas um irmão que, como ele, teve apenas um filho, mas este se revelou estéril... [suspira] Eles seriam três, mas aconteceu um aborto antes de o meu pai nascer." Imediatamente ocorreu-me que o feto abortado, atualmente, teria a idade da senhora da aparição e disse-lhe: "Era uma mulher, essa sua falecida irmã abortada, não era?" Levando um grande susto com minha colocação, confirmou que sim, era uma mulher, mas era irmã do pai, e não dele. Ao corrigir-me, lembrou-se que essa tia falecera aos 6 anos, de asma e não de aborto, e que seu pai morrera em decorrência do mesmo problema, que nele se arrastou por décadas, gerando perdas para toda a família.
3. Um jovem rapaz, J, procurou-me após ter sido "resgatado" de seu apartamento: sua mãe fora chamada pelo síndico para buscá-lo, pois o apartamento exalava odores pútridos - há meses não retirava o lixo. Ele mesmo se encontrava em condições miseráveis: não se alimentava, não atendia telefonemas, só bebia e usava drogas; ouvia música em alto volume, dançando no parapeito do edifício com intenções suicidas. O quadro se iniciara anos antes, após ter perdido o pai por um longo e doloroso câncer.
J não conseguia articular em palavras o que estava pensando ou sentindo e recorria às músicas do seu celular para nos comunicarmos: sentávamos no chão e trabalhávamos numa lousa em que ele tomava notas e fazia esquemas dos assuntos que conversávamos; tentava, assim, organizar o trilho de seus pensamentos.
As sessões pareciam muito curtas para o tanto que tínhamos a compartilhar e frequentemente ele apresentava episódios de gagueira, que dizia serem resquícios da época em que seu pai adoeceu, ocasião em que ficou completamente gago. O interessante é que notei que, nesse período, eu, que nunca havia experimentado distúrbios da fala, também comecei a gaguejar em suas sessões.
4. O Sr. G, que se intitulava um toc (transtorno obsessivo-compulsivo) ambulante, certo dia chegou para uma sessão em pânico:
Eu "tô" louco, é como se não houvesse mais chão para mim... Eu "tô" pior que aquele personagem do filme Melhor é impossível. Quero morrer. As encanações pioraram demais, acho que nunca foram tão fortes... Ontem eu levei três horas de carro para chegar ao trabalho. "Tô" com medo de não conseguir mais trabalhar e ter que ser internado... Eu fiquei dando voltas naquela rotatória da prefeitura por todo o tempo... Três horas! Eu "tava" encanado que, quando eu passei lá ontem, eu atropelei uma moça que "tava" atravessando a rua... Às vezes, eu parava e ia perguntar naquela borrachada que tem lá perto se não tinha tido nenhum acidente no dia anterior, mais ou menos às nove horas, que foi quando eu passei por lá... Depois fui perguntar na lanchonete, no posto, mas, por mais que eles me falassem que não tinham visto nada, eu não acreditava! A encanação não saía da minha cabeça... Não sai!
Situações emocionais dessa ordem eram frequentes, e interpretações que visavam iluminar fantasias edípicas inconscientes versando sobre parricídio, matricídio, suicídio, analisticídio, etc. foram feitas incansavelmente, todas em vão. E o desespero era crescente. Comecei então, nessa sessão, a sentir uma tontura, que evoluiu rapidamente para vertigem; sentado na minha poltrona, tudo rodava como num grande carrossel. O estranho era que, afora a rotação, eu me sentia bem. Somente quando pude associar o movimento giratório do carrossel com o da rotatória imaginei uma mãe embalando um bebê no colo, rodando numa poltrona giratória. Compreendi que o carro circulando infinitamente na rotatória correspondia à poltrona giratória e ele (eu, num segundo momento) à mãe tentando acalmar-se da maneira que podia.
Esses desconCertos não são raros na clínica psicanalítica e não requerem nenhuma sensibilidade especial do analista. Todavia, creio que muitas vezes passem despercebidos ao analista. Talvez por receio de seu poder desconSertante, o analista rapidamente reorganize suas percepções e pensamentos no intuito de não perder objetividade. Entretanto, confiança na nossa análise pessoal, fé e amor à psicanálise (Caper, 1999/2002) podem colaborar para mantermos uma atenção flutuante que abarque manifestações disruptivas da realidade e inclua dimensões inusitadas - por exemplo, memórias de um passado enterrado ou de um futuro que ainda não aconteceu (Bion, 1975/1989).
No fragmento vivido com o Sr. R, minha alucinação auditiva colaborou para atentarmos ao seu medo de ser morto: na semana anterior, ele tinha tido um episódio de angina que o levou a uma internação hospitalar; dias depois, se envolvera num acidente de carro por "descuido" seu. Diferentemente de tempos remotos em que arquitetara planos suicidas, dessa vez ele estava - passivamente - com medo de morrer. O compartilhamento dos "urros" permitiu conversarmos sobre uma parte primitiva de sua mente que batizamos, em alusão ao personagem fictício da série de filmes de terror A hora do pesadelo (Wes Craven), de Freddy Krueger, um homicida intolerante, assassino do ego, em ação dentro dele.
Com o professor M, a aparição súbita de sua tia-irmã abriu acesso às ruínas catastróficas de uma nova "ala" de seu Cemitério de Ur. Sua rigidez mental, fruto da persistência de reversão de perspectiva, não nos permitia acesso a áreas de fusão identificatória entre o analisando, seu pai e a Sra. Morte, velha conhecida dessa família. A intimidade com essa tia-irmã também favoreceu o descongelamento de identificações com funções "femininas" atrofiadas em sua personalidade, ampliando a fluidez de seu pensar; fatores como capacidade de continência e rêverie se expandiram, e a lida com a realidade objetiva evoluiu.
Minha tartamudez junto a J era quase mais em meu pensamento do que propriamente na fala, mas foi suficiente para o fenômeno se evidenciar. Minha impressão era de que tínhamos tanto a compartilhar que os nossos aparelhos fonadores não conseguiam acompanhar o ritmo do conteúdo emocional (♂ > ♀). Ferro (2005) talvez descrevesse minhas disfemias como evidências de momentos de microestar em uníssono com o analisando; ao longo do tempo, estes foram favorecendo a gradativa revitalização de sua capacidade de pensamento inconsciente (trabalho de sonho-a) e a retomada do prazer de estar vivo.
Eu já havia interpretado ao Sr. G coisas como: que o casal que ele frequentemente acreditava ter atropelado no caminho para a análise representava, num plano, o casal parental e, em outro, o casal analítico, que ele tentava invejosamente assassinar, ou ainda que a minha filhinha, que ele vira em frente ao consultório e cuja morte ele fantasiara, estaria associada a sentimentos de ciúme, inveja e rivalidade, e que "atropelar" essas emoções era o método que ele criara para tentar se evadir da turbulência interna. Mas interpretar conteúdos para pacientes que estão vivendo angústias de dissolução do continente não ajuda e pode até ser iatrogênico. Geralmente, essas interpretações eram sentidas pelo Sr. G como adestramento ou atividade moralista. Minha vertigem permitiu-me pensar que o Sr. G estava tentando usar elementos sensoriais (a cinestesia do movimento circular) para acalentar-se num momento de ruptura da posição autística-contígua (Ogden, 1989/1996b Ribeiro, 2006). A partir desse vértice empático, a compreensão sobre suas "encanações" fez o Sr. G, pela primeira vez, referir-se compreendido no tocante aos seus sintomas obsessivos.
Intimidade em conCerto
Apenas se os indivíduos aproximarem-se o suficiente uns dos outros
é que será possível dar uma interpretação sem gritar.
(W. R. Bion)
Profundo respeito pelo analisando, compaixão madura e generosidade bem dosada são fatores que permitem a circulação dos afetos, dos poderes e da criatividade na dupla. Metaforicamente, a relação analítica pode assumir um lugar mítico, privilegiado, de "cena primária", em que, para o encontro produtivo, analista e analisando devem ser capazes de criar um vínculo de intimidade e excluir terceiros ética e empaticamente.
Reeditam assim uma cesura de casamento na qual um participante nutre o outro e ambos se desenvolvem em direção à fertilidade de novos insights e expansão mental. Essa intimidade tende a promover encontros analíticos nos quais a espontaneidade prevalece, favorecendo um sentimento de prazer de estar junto ao outro, mesmo quando se trata de momentos dolorosos de trânsito por cesuras ligadas a ruínas de mudanças catastróficas e catástrofes.
Esse sentimento realístico de prazer (Rezze, 2016) e espontaneidade traduz-se em segurança e confiança básica, seja em si mesmo, seja no par analítico. No decorrer do processo, o analisando sente-se coautor da própria análise, e assim recria uma "cena primária mítica" na qual pode ser, além de participante criativo, fonte estimuladora e inspiradora da qualidade fértil do encontro (Sapienza & Junqueira Filho, 2004; Ribeiro, 2010, 2011).
Humildade, amor pela verdade e compaixão maduros são fatores necessários para o encontro analítico aproveitar a alteridade de ambos, inclusive seus descons(c)ertos, na busca da singularidade do analisando.
Notas
1 Em Aprendendo com a experiência, Bion propõe: "vou supor que uma criança tem uma preconcepção inata sobre a existência de um seio que satisfaz sua natureza incompleta. A 'realização' do seio provê uma experiência emocional" (1962, p. 69). A preconcepção é filo-geneticamente herdada, mas o seio real é um fato; a experiência adquire qualidade emocional se e quando ela se pareia/casa/conjuga com a preconcepção inata que o bebê possui a respeito de seio. No momento em que o seio preconcebido se realiza, surge o protótipo das experiências emocionais futuras.
2 O modelo clássico da rêverie é a relação mãe-bebê: mediante a capacidade de rêverie, a mãe ativamente acolhe as identificações projetivas do bebê (♂) e as processa, destituindo-as dos componentes violentos que poderiam romper a incipiente "barreira de contato" em formação. A mãe faz isso sonhando (dream work-a): usa seu manancial de elementos a, presentes na forma de experiências emocionais vividas, imagens mnêmicas, músicas, cantigas da infância, poemas, odores, etc., para sonhar e decodificar a projeção de seu bebê, transformando-a em elementos a assimiláveis pela mente incipiente. Por exemplo: quando o bebê acorda chorando de madrugada, a mãe se levanta e, no caminho para o berço, diz: "Nossa! Quanto medo!", ela está compreendendo que o bebê está tomado por terror de aniquilamento. Sem chegar a ter consciência disso, surge em sua mente a foto (pictograma) de uma carnificina vista na manchete do jornal. Isso lhe permite automaticamente conjecturar que o bebê esteja sonhando com momentos dramáticos do seu parto, quando estava a rasgar a mãe de dentro para fora, ambos correndo risco de vida. Ao chegar ao quarto 6 do bebê, a mãe o coloca no colo com seu ouvido voltado para o peito esquerdo dela, onde ele ouve o velho conhecido ritmo das batidas do seu coração. Ao mesmo tempo, faz movimentos suaves, embalando o bebê e dizendo: "Não é para tanto. Mamãe está aqui, papai está aqui. Nós estamos com você...", e cantarola uma velha cantiga de ninar: "Boi, boi, boi, boi da cara preta, pega esse menino que tem medo de careta.", num tom de voz tranquilo, acolhendo o "boi da cara 7 preta" (angústia de aniquilamento) e dando-lhe ritmo, melodia e contenção. Dessa forma, o bebê se acalma e volta a dormir, pois sua angústia (♂) encontrou um continente (♀) capaz de sonhá-la, identificando-a e desintoxicando-a de seus aspectos violentos através de sua rêverie, "expressão do amor materno" (Bion, 1962). Repetidas experiências dessa qualidade, ao longo do tempo, vão tecendo o continente do indivíduo, alimentam a mente em nascimento com fatores e funções da personalidade (Ribeiro, 2006).
3 Podemos conceber intuição como atividade de livre exercício do pensamento inconsciente do analista, o qual, com disciplinada capacidade de observação, permite-se estabelecer e desenvolver conjecturas imaginativas sem ficar sequestrado por temores de produção autorreferencial e fabricações megalómanas (Sapienza, 1999a, 1999b). O conceito proposto por Bion (1970/2006) tornar-se O mudou o vértice de observação analítica, antes focado no conhecer x des-conhecer, que são dimensões de K. O ser ou tornar-se a realidade e sua consequência, a possibilidade do uso técnico da intuição, expandiram o conceito de experiência emocional, incluindo no arsenal técnico da psicanálise a observação de experiências emocionais que podem transitar de forma inconsciente de uma mente para outra, criando uma espécie de "atalho" nos processos do conhecer.
4 O ato de fé não contém qualquer implicação místico-religiosa; pelo contrário, pode ser visto como um dos elementos da psicanálise, como propuseram Marinho & Marinho (2015).
5 Yatros significa médico e, acrescido do étimo gênese, revela-nos doenças que têm origem em inadequada conduta médica. Ribeiro et al. (2007) propõem que, inconscientemente, o analista pode provocar "microtraumas" no analisando, não perceptíveis pela dupla no momento de sua ocorrência e fruto de manobras das partes psicóticas da personalidade.
6 Ogden refere: "Na etapa atual de desenvolvimento do pensamento psicanalítico está estabelecido que a ação (diferentemente da simbolização verbal) constitui um meio importante pelo qual o analisando comunica significados inconscientes ao analista." No entanto, "o que não é muito reconhecido é que muitas das interpretações transferenciais mais críticas do analista são transmitidas ao analisando por meio de ações do analista" (1984/19963, p. 103).
7 Para tal, a sensorialidade do analista, num científico ato de fé (Bion, 1970/2006), deve ser abstraída para planos do crer sem ver (Ribeiro, 2013): suas intuições, mesmo que desprovidas de comprovações objetivas, tornam-se realidade psíquica. Comprovações sobre a qualidade realística ou alucinatória das intuições virão a posteriori, pela observação da evolução da experiência emocional.
8 Os comentários de Pollock foram retirados de: http://www.nga.gov/feature/pollock/pollockhome.shtm.
9 A partir de Transformações, Bion nos apresentou o modelo da mente multidimensional, que o acompanhou até o final de sua obra; o conceito de dimensões mentais conhecidas e não conhecidas foi sobreposto aos vínculos do conhecimento (K e -K). Mesmo as transformações autísticas (Korbivcher, 2010), quando observadas numa relação, podem gerar experiências emocionais no analista, a quem caberá fazer as transformações em pensamento.
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Correspondência:
Paulo de Moraes Mendonça Ribeiro
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Tel: 16 3623-2157
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Recebido em 28.7.2016
Aceito em 11.8.2016