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Revista Brasileira de Psicanálise
Print version ISSN 0486-641X
Rev. bras. psicanál vol.50 no.3 São Paulo July/Sept. 2016
OUTRAS PALAVRAS
O materno da clínica: aspectos sobre o enquadre e o corpo do analista1
The maternal side of the psychoanalytic practice. Aspects on the frame and the analyst's body
Lo maternal de la clínica. Aspectos sobre el encuadre y el cuerpo del analista
Maria Elisa Pessoa LabakiI; Luciana CartocciII
IMembro de Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, onde participa do grupo de trabalho e pesquisa "O feminino e o imaginário cultural contemporâneo"; professora do curso de Psicossomática Psicanalítica do mesmo instituto
IIMembro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, onde participa do grupo de trabalho e pesquisa "O feminino e o imaginário cultural contemporâneo" e do conselho editorial da revista Percurso
RESUMO
Este trabalho apresenta e desenvolve uma discussão sobre o método clínico psicanalítico e suas afinidades com o campo do materno. Ressalta aspectos do enquadre e do manejo bem como qualidades de presença do analista e seu corpo que corresponderiam a modalidades do materno instituintes e organizadoras da clínica. Sem esquecer a dimensão paterna do enquadre - aquela referida a sua função terciária -, o presente trabalho destaca na função materna a propriedade mais conhecida por moldura. Operando duplamente, a moldura cria um topos a ser preenchido, ao mesmo tempo que protege os processos e vivências ali produzidos. Denominado clínica da presença, ou do sensível, e baseado na afetação mútua do par analítico, o campo do materno aqui descrito segue de perto o das trocas oferecidas pela mãe, sem no entanto confundir-se com maternagem - o que deixaria de ser psicanálise. Ferenczi e Winnicott são autores de referência, cujas propostas inspiram as reflexões deste trabalho.
Palavras-chave: materno; enquadre; transferência; presença; reflexividade.
ABSTRACT
This paper presents and develops a discussion about the method in the psychoanalytic practice, and its likenesses with the maternal field. The authors highlight some aspects of the frame and its handling. They also emphasize features of the psychoanalyst's presence and body that would correspond to maternal ways, which establish and organize the practice. Without disregarding the paternal dimension of the frame (which is related to its tertiary function), this paper highlights the property, better known as frame, in the maternal function. By operating in two fronts, the frame creates a topos to be fulfilled while protecting the processes and experiences that are produced there. The practice of presence (also called presence practice or sensitive practice) is based in the mutual affection of the psychoanalytic pair. The herein described maternal field follows closely the field of the exchanges that are offered by the mother, despite not being confused with mothering - otherwise, it would be considered no longer psychoanalysis. Ferenczi and Winnicott, whose proposals have inspired this paper, are the referential authors.
Keywords: maternal; frame; transference; presence; reflexivity.
RESUMEN
Este trabajo presenta y desarrolla una discusión sobre el método psicoanalítico y sus afinidades con el campo de lo materno. En él se resaltan aspectos del encuadre y su manejo así como las cualidades de la presencia del analista y su cuerpo que corresponderían a las modalidades del materno instituyentes y organizadoras de la clínica. Sin olvidarse de la dimensión paterna del encuadre - aquella referida a su función terciaria -, el presente trabajo destaca en la función materna la propiedad más conocida por moldura. Operando doblemente, la moldura crea un topos a ser relleno, al mismo tiempo que protege los procesos y vivencias producidos allí. Llamado clínica de la presencia, o de lo sensible, y basado en la afectación mutua del par analítico, el campo de lo materno descrito acá sigue de cerca el de los intercambios ofrecidos por la madre sin, no obstante, confundirse con la maternidad - lo que dejaría de ser psicoanálisis. Ferenczi y Winnicott son autores de referencia, cuyas propuestas inspiran las reflexiones de este trabajo.
Palabras clave: materno; encuadre, transferencia, presencia, reflexividad.
Descoberta ou invenção? - perguntava-se Marcelo Vinar, recentemente em São Paulo, a respeito do surgimento da psicanálise. Fato é que o pensamento psicanalítico vem evoluindo significativamente desde sua fundação há cerca de 120 anos. Reformulações, idas e vindas, novos problemas. Nessa evolução, nem um pouco linear, o arcabouço teórico da psicanálise se expandiu consideravelmente. As hipóteses freudianas, e a seguir as de seus sucessores, foram ganhando maior complexidade e precisão, com a criação de novos conceitos ou discriminações naqueles já existentes (eu ideal/ideal do eu, por exemplo), ganhando apuro, como da noção de traço ao conceito de significante, desdobrando-se em filigranas e pictogramas. Cada vez mais, as questões das origens do psiquismo, não apenas de seu funcionamento e adoecimento, foram sendo exploradas. Em Freud, mais ao fim da obra, as formulações sobre a pulsão de morte e a feminilidade deixam em aberto os enigmas da constituição psíquica. Seus seguidores, incansáveis, trazem novos aportes. Com Ferenczi e depois Winnicott, entre outros, as teorizações sobre as fundações do psiquismo seguem e ampliam os caminhos já abertos por Freud. A participação daquele que cuida da criança, do outro, na emergência do psiquismo deste ganha acentuado relevo e consideração.
Nas últimas décadas, Fédida, Green e Aulagnier (apenas para citar alguns sobre cujas obras nos apoiamos) detalharam os avatares desses começos. Certamente, essa evolução teórica caminha pari passu às demandas da clínica - diríamos mesmo que são mutuamente determinadas. Hoje, nossas investigações se voltam cada vez mais para o primário e originário, em busca de compreensão das chamadas patologias atuais.
Técnica, teoria e demanda formam uma tríade indissociável. Não à toa, na metapsicologia atual, procura-se cada vez mais depurar como se dá a participação do outro na constituição do psiquismo, enquanto que, concomitantemente, na condução do tratamento, o lugar do analista e o trabalho psíquico exigido por ele têm sido foco de mais atenção. Já no início do século passado, Ferenczi, em seus atendimentos a pacientes avaliados como difíceis ou inanalisáveis, privilegiou adaptar a técnica às possibilidades daqueles que chegavam muito desorganizados e submetidos a grandes cotas de sofrimento, incluindo no setting elementos até então não considerados ou não admitidos. Esboçou em suas teorizações uma articulação da noção de elasticidade da técnica com uma metapsicologia dos processos psíquicos do analista, na qual combinou a atitude da benevolência a uma aguda observação clínica.2
Winnicott, por sua vez, trouxe aportes sobre o materno que o assimilam a um espaço e a um tempo, que podemos traduzir por meio ambiente e por ritmo e duração, respectivamente. Esses elementos presentes no materno repercutem nas questões da técnica associadas ao setting clínico e à figura do analista atravessada pelo campo transferencial. Com Winnicott (1954/1973), o diagnóstico - ou aquilo que é entendido sobre a psicopatologia do paciente - se relaciona com o que é exigido "do analista pessoal e tecnicamente na condução" de uma análise (Cartocci & Franco, 1996, p. 8). Ferenczi e Winnicott alertam, cada um a seu modo, que resistir ao enquadre que o paciente necessita traduz um limite do analista em sustentar as transferências primitivas. A partir da clínica contemporânea, a noção de amadurecimento do self passa a ser também um referente diagnóstico, e seguimos nos perguntando sobre a instalação das primeiras estruturas organizadoras do psiquismo.
Não deixa de ser arriscado o que fazem algumas correntes da psicanálise atual em ver como adversárias as teorias que privilegiam o campo do pulsional e aquelas que se orientam pelas relações de objeto. De fato, depois de mais de um século de pesquisa clínica e esforço de teorização, não se trata de rivalizar com uma ou outra posição teórica, numa espécie de Fla-Flu religioso, o que levaria necessariamente ao desmantelamento da visão, tão cara e útil à clínica, que concebe imbricados objeto e pulsão sob o regime da complementação e inerência - aliás, muito bem assinalado por Green (1990) na conhecida afirmação de que a pulsão só pode ser revelada em presença do objeto, que a recorta. Presença que faz falta e se faz sentir pela urgência, necessidade, anseio ou desejo, é ela o motor pulsional, seu engate e tensão, que chama ou grita por socorro.
Pois bem, se se arrisca torcer por um dos lados dessa disputa, o do objeto, pode-se incorrer no erro de personalizar por demais o trabalho analítico, reduzindo-o a um drama que se passa entre as duas pessoas da cena clínica. Mas, se o outro lado for o escolhido, será talvez a sombria e solipsista violência pulsional que, em sua clausura, deixará analista e analisando em solidão, desarticulados um do outro. Quem sabe esta última hipótese possa traduzir um pouco do destino da clínica nos primórdios pós-sugestão, já que ver a transferência como obstáculo ao tratamento significava não só desconsiderar a função clínica dos investimentos pulsionais do paciente sobre o analista como também assumir a necessidade de se erguer uma barreira de contato entre os dois. Mas, promovida a transferência de obstáculo para a cura à categoria de método clínico - simultaneamente campo e mecanismo -, o par analítico pôde, com essa nova versão da clínica, reencontrar-se no espaço transferencial das trocas simbólicas.
A transferência tomada como campo nem interno nem externo ao par analítico, mas na intersecção dos dois, designa o lugar onde jogam, brincam e tramitam as pulsões enlaçadas a seus objetos - ambos copartícipes nessa arena. A análise da transferência é uma experiência na qual está em questão não apenas o inconsciente do paciente, mas também o do analista, o que faz, por exemplo, da análise pessoal a principal via para se tornar um psicanalista capaz de construir teoria. Ora, é próprio do método psicanalítico aproximar-se de seu objeto através das características dele, isto é, o método é baseado na lógica do inconsciente, na lógica de seu objeto, o que faz com que sua apreensão tenha que passar obrigatoriamente pela experiência concreta entre paciente e analista. De modo que a figura do analista não é apenas a de observador nem apenas a de hermeneuta, ainda que essas posições se façam presentes e necessárias em muitos momentos, dada a oscilação constante entre os processos primários e secundários que são exigidos de um analista. Assim, essa experiência, a da transferência - e já podemos acrescentar, a da contratransferência -, é construída, moldada e disparada pelo enquadre que abre o espaço analítico. Indissociada do método, ela é sua matéria, o constitui (Delouya, 2002). Trata-se, portanto, no campo transferencial, de uma tópica - ambiente - em que se dão os intercâmbios do par analítico.
Feita essa introdução, interessa-nos neste artigo levantar as condições materiais e subjetivas para que movimentos psíquicos, muitas vezes inaugurais, possam acontecer no processo analítico. E, a partir daí, apresentar uma articulação com a dimensão do materno.
Do enquadre ao materno
Propomos uma associação íntima da dimensão do materno com o conceito técnico de enquadramento. Sugerimos com essa hipótese que a dimensão materna estaria referida nas coordenadas do enquadre analítico enquanto estrutura - vazio receptivo e potencializador - e na vertente qualitativa - cuidado.
Matriz, matéria: ambas as palavras provindas do latim mater. Matriz: origem, fonte, útero. Matéria: aquilo de que são feitas as coisas. Ao mesmo tempo que remete a um espaço côncavo, continente, mater é também substância. Materno, por seu lado, é qualidade materializada na presença que pode emergir das palavras, dos gestos, no olhar, na atenção. Há algo de silencioso no materno. Comunicação não verbal que impõe um sentido e uma qualidade ao encontro. Por sua vez, a palavra dita será também modulada pelo tom, altura e timbre da voz. Destacamos o polo passivo do materno, que pode traduzir-se como potência de sustentação, de receptividade e de atração.
Enfim, a matéria de que é feito o espaço analítico relaciona-se com aquilo de que é feito o espaço psíquico. Na clínica, encontramos no enquadre aspectos dessa silenciosa presença. Como o próprio nome diz, enquadre é aquilo que emoldura a cena e a protege, e que, uma vez acordado entre paciente e analista, segue como pano de fundo, sendo cuidado por ambos. A moldura cria um topos, um espaço vazio em seu interior, matriz, para que o analisando o preencha.
Muitos analistas se preocuparam em pensar a função do enquadre e suas possibilidades para que o espaço clínico pudesse realmente abrigar com cuidado e firmeza os processos inconscientes que ali emergiriam. O sugestivo e polissêmico termo setting, criado por Winnicott, reúne a soma de todos os aspectos da técnica e pode ser traduzido por cenário, afinação (no sentido musical), ajuste, montagem ou consolidação.
Bleger distinguiu dentro do setting, ou da situação psicanalítica como preferia chamar, dois elementos referentes às coordenadas que inauguram o espaço analítico: o enquadramento propriamente dito, com suas constantes fixas,3 chamado por ele de não processo, que será o suporte silencioso de aspectos muito primitivos do paciente, que remetem à sua instituição primeira e familiar; é dentro do enquadre, daquilo "que sempre está" (Bleger, 1977, p. 313), que se desenvolverá o ruidoso processo analítico, com a emergência dos afetos, das associações e das interpretações. O modo como o enquadramento - que permanece implícito, porém alvo de constantes interferências - se estabelece poderá definir como seguirá o processo analítico. Bleger aponta o paradoxo: aquilo que se busca que permaneça fixo permite o processo, mas sem sua análise não se chega ao território silencioso e profundo da parte psicótica ou simbiótica do paciente, lugar que marca o entre, o dentro e o fora. Zona de transição, nunca perfeitamente definida.
Os aspectos chamados de materiais do enquadre, que regulam as relações entre analisando e analista, foram também considerados por Green e distinguidos da colocação da regra fundamental - que inaugura a fala transferencial e o trabalho psíquico do analista (matriz ativa). Na matriz ativa está incluída a benevolência do analista, aquela que pode ajudar tanto o paciente como o próprio analista a seguir em frente na análise dos conflitos, contradições e temores infantis. Não importam as condições concretas do enquadre (estojo) - a benevolência é uma das posições que compõem o enquadre interno do analista. A propósito das distinções entre psicanálise e psicoterapia, Green (2008) escreve: "Devemos aqui sair de uma interpretação muito realista, pois nós sabemos que o enquadre não tem valor senão enquanto metáfora de um outro conceito (o modelo do sonho, a proibição do incesto, os cuidados maternos, etc.)" (p. 59). E o que deve estar sempre presente é o enquadre interno, aquele que se internalizou para o analista como um espaço que pode salvaguardar a condução do processo analítico.
Em tempos e espaços bem delimitados pelo enquadre, os movimentos de aproximação e separação, presença e ausência farão parte do material a ser trabalhado na transferência e se tornarão campos privilegiados de construção de palavras e sentidos. O enquadre assim constituído permanece como pano de fundo e comporta simultaneamente tanto o holding quanto o limite que, ancorado na lei, no lugar do pai, remete ao corte necessário para a manutenção do desejo. Dessa forma, exerce também a função de terceiro, para que o encontro analítico não se precipite em intrusão e faça sumir o espaço aberto para o paciente.
Além disso, é pelo enquadre, e por sua aparente exterioridade, que se produz a dissimetria necessária entre paciente e analista que leva a instaurar o Outro, o estranho que permitirá ao analista colocar-se num modo particular de presença receptiva (Menezes, 1995), mais silencioso e reservado.
Se materno encontra no termo mater sua origem etimológica, podemos depreender que tais aspectos materiais e externos ao paciente, que participam de todo processo analítico, estão em íntima conexão com a dimensão do materno. Os gestos têm sentido metafórico. As palavras sustentam corpo. Assim, o enquadre é tanto gesto que funda, ação inaugural, quanto sentido. Afinal, o pagamento acertado poderá ser presente ou fezes ou bebês, aquilo que se desprende e produz espaço livre e angústia. Matriz, material, oco, ressonância. O tempo das sessões e sua frequência dão ritmo e embalo à sustentação do espaço interno daquele que nos procura... O divã pode representar o colo do analista ou, dependendo do caso, ser em algum momento o colo da mãe, porém, quando da eminente queda, pela eclosão da angústia ou desestruturação psíquica, é a poltrona que permitirá que o olhar também esteja presente como suporte. O ritmo, aquilo que permanece constante num certo número de vezes por semana, estabelece a confiança necessária da continuidade, confiança que permitirá justamente que o imprevisível faça sua emergência. Afinal, o traumático a ser revivido na análise é sempre imprevisível, paradoxo com que trabalhamos o tempo todo, pois "não há imprevisível sem confiança previamente restabelecida" (André, 2008, p. 68).
Se o tempo da sessão pode variar é porque há um ritmo de imersão a ser respeitado até que surjam experiências psíquicas, criem-se sentidos e uma elaboração necessária seja alcançada, garantindo que uma duração coextensiva à vida psíquica se estenda por um espaço, no ritmo do recolhimento necessário, recolhimento que pode ser do piscar os olhos ao dormir.
O tempo da interpretação é outro elemento a ser cuidado para que surja a confiança. Antes do tempo, a interpretação pode soar estrangeira, seja por ação do recalque, seja pela falta de timing em apresentar-nos como objeto, quebrando assim a ilusão criadora. Às vezes, isso acontece e saímos prematuramente do pano de fundo. Alguns podem suportar sem maiores gravidades; com outros, corremos o risco de deixá-los cair. Faltas, atrasos, mudanças na disponibilidade interna do analista fazem emergir o que estava silencioso, dado como constituído e, talvez, seguro. Quem, como analista, não sofreu as consequências de algum atraso? São situações em que inadvertidamente saímos do tempo do paciente antes que ele possa tolerar nossa alteridade.
Lembra-nos Jacques André (2008) que o enquadre, ou setting, da mesma forma que o eu, é um "ser de fronteiras" (p. 66) que se projeta na superfície da análise - projeção, aqui, no sentido geométrico. Por isso supomos que sofrimentos primários ligados à constituição precária do eu poderiam estar na base de ataques ao enquadre, desde o mais material (pagamento, horário) até a capacidade de pensar do analista.
A palavra proferida pelo analista é inaugural. A enunciação da regra fundamental obedece a uma formatação de transferência apoiada no modelo do sonho. Para isso, a figura do analista funciona mais como tela ou suporte, e sua presença em negativo tem efeito na medida em que oferece ao analisando as condições para se entregar ao sonho acordado: silêncio, retirada do olhar ou dos estímulos ao olhar, divã. Esse recorte, o do sonho, conserva seu vigor e aplicabilidade, já que "todo analista trabalha pela constituição progressiva de sua ausência" (Menezes, 2001, p. 38). Assim, enquanto a regra ("Diga tudo o que lhe passa...") espera se fazer ouvir pelo recalcado, as indicações do analista que delimitam tempo e espaço se destinam ao eu, às suas fronteiras (André, 2008). Pacientes de quem suspeitamos muita fragilidade precisam receber na hora certa o convite para associar no divã, cuidando o analista de resguardar não apenas o sonho como também a ilusão.
Uma experiência fundamental em relação à atividade de pensamento foi vivida em sua sessão de estreia no divã, após três anos face a face. O relato de uma situação de conquista subjetiva, em que se viu desenroscar-se da repetição de certa posição alienada infantil, foi sucedido por uma impressão de que falar sem me ver repercutia nela como se mentira fosse aquilo sobre o que falava. Por isso nota, desconcertada, que meu olhar4 valida suas experiências. De onde percebe que também as ancora, mantendo sua mente presa a mim - assim como presa à mãe e a outros significativos. Sentindo-se surpresa depois, por flagrar-se enfim querendo "soltar a língua" (Ferenczi, 1930/1992b), sem me ver e sem que eu a visse, chama isso - ou seja, o trabalho associativo no divã - de brincar. Daí um passo até a ideia de liberdade. Mentir e brincar surgem, portanto, como pontos de arremate em sua trajetória rumo à descoberta de que o pensar encontra sua plenitude quando pode encadear-se com autonomia.
Função materna, corpo e reflexividade do analista
A postura receptiva do analista sustenta a criação do espaço analítico, pois, ao acolher empaticamente o paciente, cria confiança na escuta sensível que é oferecida e no dispositivo que é proposto - isto é, sustenta o espaço onde a fala que emerge encontra de fato um lugar que pode dar ao paciente a dimensão de sua verdade, a convicção de sua importância.
Hoje não podemos deixar de levar em conta os acontecimentos da ordem do sensível, uma vez que sabemos que a origem de todo processo psíquico está profundamente imbricada na sensorialidade. O psiquismo surge primordialmente na criança por meio de uma organização subjetiva do tempo, do espaço e da corporeidade no contato afetivo e sensorial com outros seres humanos. Esse contato afetivo e sensorial, que faz emergir a vida psíquica, comporta a linguagem, o que inclui sua base material, o som, e sua força pulsional e inconsciente. Como participam esses elementos sensoriais no encontro analítico? Formariam eles também as matrizes de novos registros psíquicos? Escreve Fédida (1988b) que não podemos esquecer que a episteme da psicanálise "não é de forma nenhuma dissociável da experiência da análise e, neste sentido, de sua techné, neste caso, da condição de linguagem do trabalho analítico" (p. 107). Linguagem discursiva, sem dúvida, mas também a linguagem não verbal, por onde muitas vezes caminha a transferência e por onde muitas vezes acontece, silenciosamente, o suporte à vulnerabilidade do eu para que o paciente encontre com seus fantasmas.
Para Ferenczi (1931/1992a), o analista deveria proceder como uma mãe carinhosa que não irá deitar-se à noite sem repassar com o filho as preocupações e angústias vividas por ele no dia. Naturalmente, sem confundir-se com o papel da mãe ou de quem faz a maternagem, o que deixaria de ser psicanálise, mas trabalhando, sobretudo, para manter um contato emocional com o paciente. Nesse sentido, a análise teria por método reinstaurar a situação infantil e oferecer a ela um novo desfecho - pois o trauma, que leva a criança a amadurecer cedo demais, tal qual uma fruta bicada, marca e interrompe um período fundamental da constituição psíquica.
Sabemos que a função materna se traduz pelo exercício das capacidades afetivas e simbólicas da mãe, que possibilita através das práticas dos cuidados corporais o desenvolvimento no bebê do sentido de continuidade e existência: ser alguém no tempo e adquirir o sentimento de si (self). Por isso, realizar sessões mais longas ou deixar que o paciente cochile, por exemplo, não significa desistir da atividade associativa, tampouco negar as imposições da realidade, mas apostar no direito do paciente de ter o que precisa para reencontrar-se com sua infância. Como então a criança traumatizada no adulto seria, pela análise, conduzida a um novo destino? Para Ferenczi, esse resgate só é possível na experiência clínica por meio do tato, empatia e sensibilidade do analista, cujo manejo resultará em testemunho à altura da expressão de sofrimento do paciente.
Havendo lugar no setting para a afetação mútua (Kupermann, 2008a, 2008b) ou ressonância afetiva, o analista investe na ligação dos afetos mais do que interpreta. Sua fala anuncia mais do que enuncia, descobre mais do que aponta, testemunha mais do que observa. Nas palavras de Green (1990):
A fala analítica dentro do setting, a fala que torna o único modo de comunicação permitido entre o analista e o analisando encontra-se, por ser palavra, pulsionalizada, é uma fala corporalizada [...]. Dito de outra forma, falar, em análise, não é perfazer o luto que todo discurso comporta, é, ao contrário, exacerbar o desejo de reencontrar o contato primitivo. (pp. 22-23)
Nesse sentido, a fala do analista, seu comportamento, mímica, gestos e olhar, encarnados por uma presença viva, em positivo, podem produzir a convicção no analisando de que alguma intimidade, ou interioridade, está ali se constituindo, talvez pela primeira vez diante de outra pessoa - isto é, a inclusão do corpo na fala assim como a palavra incorporada ao gesto reencenam, no espaço analítico, a potência que nos primeiros encontros, logo ao nascer, faz instaurar o espaço para o psíquico se configurar.
Às vezes, é suficiente que o analista assegure o paciente de sua presença com pequenas palavras, interjeições, cuja função fática garanta a continuidade da brincadeira associativa. Uma espécie de "manhês", ou língua das mães, carregado de afeto, que ecoa e sustenta o aparentemente sem sentido. Certa musicalidade que precede ou acompanha a linguagem, assim como o sorriso da mãe que se rasga com a oferta do seio. Nota-se, nessa feição da clínica, como a presença sensível do analista que se coloca disponível ao paciente suscita uma potência capaz de, nos moldes do fenômeno da ilusão (Winnicott, 1971/1975a), propiciar ao paciente a criação de um mundo subjetivo. Importa essa conquista na medida em que ele poderá com ela finalmente iniciar um modo próprio de estar no mundo. A palavra do analista é aqui um ato de Eros e promove, ou reedita, o sentido de uma existência que poderá manter-se em continuidade ao longo do tempo, a despeito da presença ou ausência do outro. Se a experiência do existir para o bebê acontece, e só acontece, no colo da mãe, na sessão analítica o colo é a segurança na continuidade do encontro, respaldada pelo enquadre mais continente àquele que nos procura.
Mas todo esse processo não seria possível se o analista não se colocasse em posição de abertura e prontidão para essa entrega "de corpo e alma", com sua escuta conectada, o olhar interior e a atitude receptiva que perfazem o holding ou sustentação do espaço analítico. Como uma "antena parabólica" (Delouya, 2002, p. 84) que está preparada a captar os sinais de transmissão, sua receptividade própria à atenção flutuante permitirá que se dê um encontro de seu inconsciente com o do paciente. Fédida (1988a) vai adiante e situa a angústia contratransferencial do analista idealmente "como a de uma mãe capaz de ressonância com o estado da criança, de continência das energias desta angústia, de metabolização e metaforização dos afetos confundidos que tendem a transbordar na criança" (p. 75).
No entanto, junto à receptividade e continência, é preciso ainda que outra voz, a reflexiva, seja acrescida às disposições do analista: só assim o trabalho contratransferencial poderá resultar em material metabolizado a ser oferecido no momento oportuno ao paciente. Voz reflexiva são trilhas autoeróticas se recrudescendo no corpo do analista e permitindo a ele guiar-se pelo solo de sua sensorialidade. Nas palavras de Leite (2006):
uma imaginação corporal, uma figurabilidade que nasce no corpo - em múltiplas sensações viscerais, cinestésicas, táteis, acústicas, visuais - e que, no silêncio da sessão, movimenta o funcionamento psíquico do analista em sua atividade de construção de uma linguagem singular em cada análise. (p. 88)
O fenômeno da empatia, definido como um sentir dentro ou sentir com, é um exemplo da voz reflexiva operando no interior do analista: uma dor ou sofrimento que repercute internamente, ziguezagueando em eco e vibrando em uníssono com o paciente. E a propriedade do tato, conhecida também por prudência ou cuidado, supõe um contrainvestimento, ou reserva da atividade pulsional, sobre um fundo de reflexividade que mantém ligada a excitação em processo secundario, impedida de desencadear-se livremente. Se descrevemos o lado passivo da voz reflexiva, que contém a propriedade de reverberar os afetos do lado de dentro, temos sua face ativa, que complementa a ação expondo em reflexo aquilo que empaticamente repercute. Winnicott (1971/19750) chamou esse processo de papel de espelho da mãe. Tais movimentos e vibrações, sob a forma de comunicação verbal ou não verbal, compõem o acervo das interações originarias revisitadas na clínica do sensível.
Para terminar
No título, "O materno da clínica...", a preposição de marca uma relação de apropriação entre clínica e materno. Aqui situamos nossa contribuição: indicar que a clínica psicanalítica hospeda em sua intimidade algo do materno que também lhe é instituinte.
Nosso ofício parece incluir a tarefa de criar involucros que ancorem os afetos e as transformações subjetivas individuais atravessadas por uma época também de grandes transformações. Recuperar o vazio da imagem, ocupar o lugar de presença, sustentar o olhar que produz a imagem viva, matriz para novas construções simbólicas.
Notas
1 Trabalho apresentado na III Jornada Temática do Feminino, Corpos, sexualidade, diversidade, organizada pelo grupo de trabalho e pesquisa "O feminino e o imaginário cultural contemporâneo" (coordenação de Silvia Leonor Alonso), nos dias 19 e 20 de junho de 2015, São Paulo.
2 Para quem se interessar por esse debate, indicamos os artigos de Kupermann (2008a, 2008b) e Labaki (2014).
3 Composto pelo contrato (pagamento, frequência), duração das sessões e disposição espacial (poltrona ou divã).
4 Outras interpretações sobre a função do olhar do analista no processo analítico estão discutidas em Labaki (2015).
Referências
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Recebido em 10.8.2015
Aceito em 5.11.2015