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Revista Brasileira de Psicanálise
Print version ISSN 0486-641X
Rev. bras. psicanál vol.53 no.2 São Paulo Apr./June 2019
RESENHAS
Posto de observação: reverberações psicanalíticas sobre cotidiano, arte e literatura
Ricardo T. Trinca
Psicanalista. Doutor em psicologia clínica pela Universidade de São Paulo (USP). Membro filiado do Instituto Durval Marcondes, da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP)
Autor: Sérgio Telles
Editora: Blucher, São Paulo, 2017, 380 p.
Resenhado por: Ricardo T. Trinca
Após ficar intrigado com o título do livro de Sérgio Telles, encontrei na terminologia militar que um posto de observação pode ser compreendido como qualquer posição previamente determinada a partir da qual é possível fazer certas observações. Um posto de observação pode inclusive ser móvel, ou seja, ser uma posição que facilite a apreensão de um conjunto de situações ou de paisagens que a observação imóvel não seria capaz de revelar. Um avião que realiza um sobrevoo, por exemplo, pode ser considerado um posto de observação móvel; sua função, nesse caso, é observar e transmitir informações relevantes para um objetivo estratégico, seja defensivo, seja exploratório, na forma de um sobrevoo panorâmico. Fiquei também sabendo que um posto de observação, além de precisar apreender informações, deve também saber passá-las adiante - observações de alguém que necessariamente está em uma posição avançada, e por isso mesmo arriscada -, para outras pessoas distantes (nesse caso, os leitores). Não é casual, portanto, a escolha desse título, pois é exatamente disso que se trata o livro de Sérgio Telles Posto de observação: reverberações psicanalíticas sobre cotidiano, arte e literatura.
O leitor, que às vezes se sente como um companheiro de posição, de sobrevoo, às vezes permanece como o soldado distante que receberá as informações daquele que está na linha de frente, é convidado a usar emprestado esse mesmo e ótimo binóculo do autor, que revela uma visão arguta e precisa para a descrição de inúmeros horizontes culturais, realizada sempre a partir de uma posição específica: a da observação psicanalítica. Essa é, na verdade, a explicação possível para que o título esteja no singular, e não no plural. O posto de observação é baseado nessa posição psicanalítica, da qual o autor não arreda o pé.
O livro reúne 77 artigos escritos desde 1999, a grande maioria deles de sua época de colunista no "Caderno 2" do jornal O Estado de S. Paulo, em que Telles mantinha um espaço quinzenal. Uma quantidade maior de seus escritos foi realizada nessa época, entre 2011 e 2013. Trata-se, acredito, de um livro simultaneamente heterogêneo e homogêneo. Sua heterogeneidade decorre do fato de ser uma compilação de artigos sobre temas diversos, que vão desde textos puramente psicanalíticos até crônicas cotidianas e resenhas de filmes e livros. Sua homogeneidade diz respeito ao fato de Telles manter-se sempre em sua linha mestra: realizar registros de interpretações da sociedade, da cultura e da arte. Trata-se, assim, de um gênero psicanalítico peculiar (certamente originado dos textos de Freud sobre cultura), que expande a psicanálise para um olhar avançado sobre horizontes que vão muito além da clínica psicanalítica. São textos realizados de forma exemplar, pela prevalência do assunto em questão e pela desimportância da pessoa do observador, que pode sumir para deixar aparecer o que realmente importa: o fato de que a natureza humana se revela onde não imaginaríamos que se revelasse.
Nesse sentido, ressalto a relação entre o escritor Sérgio Telles e o psicanalista, pois ambos parecem estar articulados e aliados. Digo isso porque o que realmente se destaca neste livro é como os assuntos observados transformam-se por meio de uma psicanálise "implicada" (utilizando um jargão de Renato Mezan, que consta em um dos artigos do livro), pelo "envolvimento ativo do analista com aquilo que aborda" (p. 269), sem que o psicanalista seja destituído pelo escritor, ou vice-versa. Ou seja, nestes artigos vemos um psicanalista/escritor tanto inteiramente implicado com suas observações quanto felizmente desaparecido enquanto pessoa, em prol da apreensão dos dinamismos inconscientes que vão sendo observados nos assuntos abordados. É interessante constatar isso mesmo nas poucas crônicas em que Telles escreve em primeira pessoa.
São muitos os artigos que merecem ser citados nesta resenha. Alguns me tocaram por sua delicadeza, como "O nome do pai" e "Trotando no Ibirapuera", em que Telles escreve de maneira muito livre, com uma prosa elegante e simples, fazendo com que o leitor simplesmente seja levado por meio de crônicas cotidianas, através de sua naturalidade, a pensar sobre aspectos não observados da natureza humana. No primeiro discorre sobre a angústia infantil acerca do nome do próprio pai, e no segundo sobre o hábito de balançar os braços durante o caminhar, assuntos que, se não trazem interesse especial para o leitor à primeira vista, são belamente abordados por Telles como curiosidades que falam da natureza humana mediante detalhes que não costumam ser destacados.
Em outro artigo, somos levados a mirar os conflitos íntimos entre a mãe e a irmã de Édouard Vuillard (1868-1940), pintor e ilustrador francês, retratados delicadamente por ele e captados pela lente precisa de Sérgio Telles. Em "Marcel Proust e sua mãe", o assunto da intimidade familiar retorna. Em poucas linhas, o autor faz uma interessante descrição da relação entre Proust e a mãe, que culminou, após a morte dela, na doação, por parte de Marcel, da mobília da mãe para o prostíbulo masculino que ele frequentava. Telles destaca os conflitos homossexuais do escritor e a agressividade familiar em torno da questão sexual como fontes de uma série de comportamentos violentos do escritor. Já em outro artigo encontramos os manginas, homens que escondem o pênis e os testículos entre as coxas e são fotografados assim, a fim de simular um púbis feminino. Nesse artigo, nos deparamos com a ideia de que, ao se fotografar assim, esses homens "brincam com as diferenças anatômicas entre os sexos e com vários níveis de angústia de castração" (p. 35).
Em outros textos, Sérgio Telles vai em busca de mais detalhes - detalhes que poderiam passar desapercebidos pelo observador comum, mas que, se investidos pelo olhar interpretativo (que se utiliza do conhecimento psicanalítico), revelam facetas de situações até então marginais como partes centrais de uma história. Isso acontece, por exemplo, no artigo sobre o caso Durst. Trata-se de uma história de assassinato em que a necessidade de punição, como forma de aliviar a culpa inconsciente anterior do assassino, aparece como decisiva para a compreensão do caso.
Além disso, alguns artigos versam também sobre política. Em "Mandar ou obedecer", "Mensalão, assunto incontornável: pedido de socorro", "Garota na chuva: Steve Jobs", bem como em "Política e mentiras" e "Sobre a tortura", o autor faz registros que já podemos dizer serem de época, procurando discutir assuntos que estavam na capa dos jornais de então. No entanto, com o olhar psicanalítico mostram-se extremamente atuais, revelando ser a repetição de conteúdos não elaborados, que de modo recorrente voltam para uma (possível) reelaboração em nossa cultura: propinas, torturas, relações escusas entre política e judiciário etc.
Em "W G. Sebald e as lembranças de guerra", a dificuldade de elaboração é novamente abordada por Telles, que procura descrever como a literatura produzida na Alemanha entre 1930 e 1950 não representou os acontecimentos daquele período, o que ocorreu "pela própria condição traumática dos eventos em jogo, a violência vivida e a dificuldade em representá-la, levando à ausência de simbolização característica que envolve as grandes tragédias e catástrofes", e também pelo fato de que "a vergonha e a culpa compartilhada por todos levou à negação, impedindo a expressão literária dessa realidade insuportável" (p. 264). Sem dúvida, trata-se de um tema sempre atual, que serve para pensar não só tragédias historicamente caracterizadas como tais, mas também histórias não relatadas, como inúmeras vividas pela sociedade brasileira, desde o tráfico negreiro e a escravidão até o genocídio de inúmeros povos indígenas no coração de nosso país.
Justamente em tempos em que a escuta psicanalítica precisa ser renovada para a apreensão dos acontecimentos políticos e sociais, a leitura deste livro faz ver, de maneira clara e lúcida, como a psicanálise é feliz enquanto instrumento de apreensão dos fenômenos sociais inconscientes, desvelando seu funcionamento aparentemente incompreensível. Não seria assim pelo fato de que os conflitos dinâmicos inconscientes estariam presentes na nossa sociedade e cultura como precipitados de experiências humanas primitivas? Como diz o autor em um artigo sobre um livro de Renato Mezan ("Renato Mezan e os desvãos da psicopatologia social"):
O pensamento psicanalítico poderia enriquecer o debate das grandes causas que movem a sociedade. ... Uma das formas de exercer essa participação no debate público é a análise aplicada. ... Essa análise permite que o público veja em ação o pensamento analítico, ao elaborar hipóteses e produzir sentido onde antes prevalecia a perplexidade ante o aparentemente inexplicável. (p. 268)
É exatamente dessa matéria que este livro é constituído, repleto de concisas formulações interpretativas.
Trata-se de uma obra oportuna e necessária para nosso meio psicanalítico, que traz a mensagem da possibilidade de gerar e utilizar nosso conhecimento para além da sessão, a fim de oferecê-lo ao grande público (e também ao público psicanalítico) como uma ampliação do olhar sobre o mundo e a cultura. Precisamos certamente de mais psicanalistas que, como Sérgio Telles, estejam implicados nessa oportuna tarefa. Este livro de Telles, que é membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, onde coordena o grupo Psicanálise e Cultura e faz parte do corpo editorial da revista Percurso, não é o primeiro. Publicou também Fragmentos clínicos de psicanálise (2003), O avesso do cotidiano (2014) e Mistura fina (2004), uma coletânea de contos, crônicas e poemas.
Correspondência:
Ricardo T. Trinca
Rua João Moura, 627/61, Pinheiros
05412-911 São Paulo, SP
Tel.: 11 3085-9176
ricardotrinca@hotmail.com