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Revista Brasileira de Psicanálise
Print version ISSN 0486-641X
Rev. bras. psicanál vol.53 no.4 São Paulo Oct./Dec. 2019
SUICÍDIO
Suicídio: uma dificuldade na psicanálise
Suicide: a difficulty in psychoanalysis
Suicidio: una dificultad en el psicoanálisis
Suicide: une difficulté en psychanalyse
Bernard Miodownik
Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro (SBPRJ)
RESUMO
Na ideação e no ato suicida estão presentes características psíquicas, como as angústias primitivas, as fantasias simbióticas e a destrutividade, elementos cujas compreensões teóricas e manejos clínicos encontram-se entre os principais interesses dos psicanalistas. Logo, chama a atenção o fato de o suicídio ser um tema pouco abordado nos debates psicanalíticos. A partir de três histórias de suicídio ditas como exemplares, são desenvolvidas algumas reflexões que buscam compreender a origem da dificuldade entre os psicanalistas sobre essa questão. Partindo do suicídio impactante de Primo Levi, são apresentadas duas situações clínicas que levam à discussão dos temores contratransferenciais que envolvem os psicanalistas. Em relação ao suicídio de Viktor Tausk, aborda-se uma possível rejeição dos psicanalistas pioneiros para lidar com os graves problemas psíquicos de um dos seus membros. A morte de Freud é discutida sobre o vértice de uma controvérsia, a de ter havido ou não um suicídio assistido e suas repercussões emocionais e éticas até a atualidade.
Palavras-chave: suicídio, angústias primitivas, destrutividade, contratransferência, história da psicanálise
ABSTRACT
Both the ideation and suicidal act show psychic characteristics such as primitive anguish, symbiotic fantasies and destructiveness, elements whose theoretical understandings and clinical management are among the main interests of psychoanalysts. Therefore, it is noteworthy that suicide is a topic little addressed in psychoanalytic debates. From three stories of suicide told as exemplary, some reflections are developed that seek to understand the origin of the difficulty among psychoanalysts on this issue. From Primo Levi's impacting suicide, two clinical situations are presented that lead to the discussion of countertransference fears involving psychoanalysts. Viktor Tausk's suicide addresses a possible rejection by pioneer psychoanalysts to deal with the serious psychic problems of one of its members. Freud's death is discussed about the apex of a controversy as to whether or not there has been an assisted suicide and its emotional and ethical repercussions to date.
Keywords: suicide, primitive anguish, destructiveness, countertransference, history of psychoanalysis
RESUMEN
En la ideación y el acto suicida hay características psíquicas como angustia primitiva, fantasías simbióticas y destructividad, elementos cuya comprensión teórica y manejo clínico se encuentran entre los principales intereses de los psicoanalistas. Por lo tanto, es notable que el suicidio sea un tema poco abordado en los debates psicoanalíticos. A partir de tres historias de suicidio contadas como ejemplares, se desarrollan algunas reflexiones que buscan comprender el origen de la dificultad entre los psicoanalistas sobre este tema. Desde el suicidio impactante de Primo Levi, se presentan dos situaciones clínicas que conducen a la discusión de los temores de contratransferencia que involucran a los psicoanalistas. El suicidio de Viktor Tausk aborda un posible rechazo de los psicoanalistas pioneros para hacer frente a los graves problemas psíquicos de uno de sus miembros. La muerte de Freud se discute sobre la cúspide de una controversia sobre si ha habido o no un suicidio asistido y sus repercusiones emocionales y éticas hasta la fecha.
Palabras clave: suicidio, angustia primitiva, destructividad, contratransferencia, historia del psicoanálisis
RÉSUMÉ
L'idéation et l'acte suicidaire sont des caractéristiques psychiques telles que l'angoisse primitive, les fantasmes symbiotiques et la destructivité, des éléments dont la compréhension théorique et la gestion clinique comptent parmi les principaux intérêts des psychanalystes. Par conséquent, il est à noter que le suicide est un sujet peu abordé dans les débats psychanalytiques. Sur trois histoires de suicide dites exemplaires, quelques réflexions ont été développées pour tenter de comprendre l'origine de la difficulté des psychanalystes sur ce sujet. L'impact du suicide chez Primo Levi présente deux situations cliniques qui conduisent à la discussion sur les craintes de contre-transfert impliquant des psychanalystes. Le suicide de Viktor Tausk répond à un éventuel rejet des psychanalystes pionniers face aux graves problèmes psychiques d'un de ses membres. La mort de Freud fait l'objet d'une discussion sur le point culminant d'une controverse sur la question de savoir s'il y a eu ou non un suicide assisté et ses répercussions émotionnelles et éthiques à ce jour.
Mots-clés: suicide, angoisse primitive, destructivité, contre-transfert, histoire de la psychanalyse
A cena final da ópera La Gioconda, de Ponchielli, abre com a voz exuberante da soprano em um chamado aflitivo: "Suicídio. Nestes momentos terríveis só me resta você, última voz do meu destino, última cruz do meu caminho" (Fischer, 2007). Na sequência, Gioconda inventaria as perdas e os dissabores enfrentados à medida que prepara o desfecho final: "Agora exausta mergulho nas trevas". E revela o que aspira com o seu ato: "Peço aos céus que eu possa descansar dentro do túmulo".
Nesse desolador trecho da ópera se vislumbram três elementos psíquicos presentes no ato suicida. Primeiramente, uma gama de desesperos: a angústia inominável, o desamparo, a desesperança, a dor sem fim para a qual não há alívio interno ou externo. A seguir, surge a fantasia do retorno a uma pretensa paz intrauterina, representada pela tradicional visão de um descanso na paz no túmulo, ou, como disse Freud: "E, por fim, a união com a Terra-mãe que mais uma vez o(a) recebe" (Freud, 1913/1969b). O terceiro elemento que não se mostra nessa cena surgiu no decorrer do enredo: a agressividade oculta contra um outro contida no gesto autodestrutivo do suicida. No segundo ato, uma Gioconda enciumada tenta matar Rita, a amada de Enzo, pelo qual ela, Gioconda, nutria um amor platônico. Em vias de executar o homicídio, ela reconhece em Rita a mulher que salvara sua mãe, chamada La Cieca (a cega), de ser linchada como bruxa pela multidão numa trama urdida por Barnabá para atrair Gioconda para si. Ao cometer suicídio, Gioconda, que antes demonstrara a impulsividade homicida, vinga-se e culpa os outros personagens pelo seu infortúnio.1
Na cena final desse melodrama operístico, destaquei os pontos relacionados ao suicídio que envolvem temas muito caros à psicanálise, como as angústias primitivas, as fantasias simbióticas e a destrutividade. Diante de uma situação clínica radical, como é o suicídio (e as tentativas de), chama a atenção o fato de pouco se falar a respeito dele na literatura psicanalítica. Em nosso meio, Cassorla (2017) tem se dedicado a trabalhar esse assunto de forma mais constante. No geral, artigos de outros autores são esparsos, o que também ocorre em nível internacional, sendo as abordagens mais conhecidas as de Gabbard (1998), Kernberg (1995) e outros mais voltados para o tratamento de pacientes com diagnósticos de transtornos de personalidade borderline ou narcísica e nas depressões graves.2 Importante ressaltar que o suicídio, se ocorre majoritariamente em pacientes que apresentam quadros psiquiátricos graves, também se dá em neuróticos, seja por um agravamento da situação clínica, pelo contato com aspectos psicóticos que permaneciam silentes ou por uma ocorrência fortuita e traumática a qual o psiquismo do paciente não consegue conter, revelando um elo egoico frágil que não havia surgido no decorrer do processo analítico.
Existe atualmente uma maior conscientização sobre o seriíssimo problema de saúde pública que é o suicídio, e a psicanálise deveria estar mais presente.3 A partir de três suicídios emblemáticos, serão discutidos neste texto aspectos clínicos e históricos que podem estar contribuindo para uma resistência à abordagem mais ampla do assunto por parte da psicanálise.
Primo Levi
Em 11 de abril de 1987, Primo Levi foi encontrado morto após uma queda no vão da escada de três andares do prédio onde residia. O inquérito policial concluiu por suicídio, apesar das dúvidas que permaneceram sobre ser um acidente. Como psicanalistas, sabemos que não é incomum que acidentes encubram tendências suicidas. Controvérsias à parte, o autoextermínio de Primo Levi surpreendeu a todos. A partir do impacto que causou, procuro aqui desenvolver a hipótese anteriormente apresentada, a de que há, na psicanálise, uma reserva quanto ao tema do suicídio.
Inicio com dois momentos difíceis da minha história profissional.
O primeiro deles foi no primeiro ano após formar-me médico psiquiatra. Fui chamado para um atendimento domiciliar a Rubens, um rapaz jovem que apresentava delírios místicos com alucinações auditivas que falavam de um poder que ele teria para salvar o mundo (expressão do mundo interno que ruíra, tal como Freud apontou no caso Schreber). Conversamos por um longo tempo, e, apesar do quadro delirante, a impressão que me ficou foi de diminuição da sua angústia ao longo desse contato. Mediquei-o de urgência, fiz uma prescrição, e como a família queria que ele permanecesse em casa, fiz as orientações necessárias. O rapaz pareceu aceitar bem o tratamento, assim, combinamos de fazer um acompanhamento sistemático. Atendi-o na semana seguinte. Os delírios e alucinações mostravam-se menos intensos, e ele passou a vir semanalmente para uma psicoterapia (a que eu podia fazer à época). Após alguns meses do nosso trabalho, ele disse, sem angústia aparente e com um discreto sorriso nos lábios, que no primeiro dia em que eu o atendi em casa, num momento em que os pais saíram do quarto, ele resolveu que se jogaria pela janela. Subiu no parapeito e fez o movimento de se atirar. Como a janela estava fechada, bateu no vidro e desistiu.
À medida que Rubens me descrevia aquela cena, fui entrando em grande angústia com pensamentos negativos retroativos sobre o que aquilo representaria para o meu início de carreira, caso o suicídio tivesse ocorrido (era o meu primeiro ano de formado e, apesar de ter experiência anterior com urgências, este foi um dos meus primeiros atendimentos fora de uma instituição). Tentei me tranquilizar com construções racionais, pensando que não havia sido o vidro que o impedira, mas sim a relação que estabelecemos com a nossa longa conversa naquele dia, o que não deixava de ser verdade. Uma angústia aterrorizante ficou de lado naquele primeiro encontro e foi preciso mais um tempo para que ele confiasse em me revelá-la, com um sorriso nos lábios (o aspecto sádico do ato suicida), através de uma identificação projetiva. Não lembro como trabalhei a situação, provavelmente de forma incipiente no aspecto psicanalítico. Algo fiz, pois Rubens permaneceu em psicoterapia por mais um tempo considerável, conseguindo até mesmo retomar uma atividade laborativa.
Alguns anos depois, não muitos adiante, mas há tempos atrás, Morgana, uma mulher na proximidade dos 60 anos, gradativamente ficou mais reclusa e afastou-se das suas atividades habituais. Ao verbalizar ideias suicidas, o marido e a filha foram impositivos para que ela procurasse a ajuda terapêutica que vinha recusando. Iniciou medicação antidepressiva com um psiquiatra que a encaminhou para psicoterapia comigo, e comecei a atendê-la duas vezes por semana. Reticente no início, foi mostrando um interesse gradativo em vir às sessões. Apesar da diminuição significativa do humor deprimido com o uso do psicofármaco, permaneceu com um resquício de pensamentos negativistas em relação a si própria e ao seu futuro, o que vinha estruturando um traço melancólico. O psiquiatra alterou a medicação sem mudança nesse aspecto. Após mais de um ano do nosso trabalho, voltou a frequentar reuniões familiares e a comparecer aos eventos artísticos que a filha participava. Geralmente negava a importância dessas atividades, mas era visível que as contava com uma discreta satisfação. Ela costumava enfatizar o que havia perdido com sua doença, privilegiando uma vergonha narcísica relacionada ao seu alto grau de exigência, desmerecendo o que vinha reconquistando e o quanto a terapia a ajudava, apesar de manter a regularidade no comparecimento e no envolvimento.
Durante uma sessão, já com aproximadamente um ano e meio de trabalho, Morgana fala, com surpresa, que tivera um sonho erótico. No sonho havia uma mulher que tinha relações sexuais com dois homens simultaneamente. Ela não fez nenhuma associação e não quis mais falar sobre o sonho. Da minha parte, fiquei entusiasmado com o que entendi como uma libidinização progressiva que vinha ocorrendo no seu mundo interno, mas não insisti, e também não fiz nenhuma associação naquele momento. Na semana seguinte, no dia anterior à sessão, recebo um telefonema da filha, informando sobre uma tentativa de suicídio grave de Morgana. Ficamos, a família, o psiquiatra e eu, perplexos com o acontecimento, já que não havia aparente indicador recente sobre essa possibilidade. Teria ela disfarçado ao longo do tempo, chegando a criar um clima de defesa maníaca com suas possíveis melhoras e até com o sonho erótico? Pensando a posteriori sobre esse sonho, ocorreu-me de relacioná-lo com um dado da história de Morgana. O pai dela faleceu durante a gravidez da mãe. A solução encontrada na época para não as deixar sem amparo, no interior empobrecido onde viviam, foi a de que a mãe se casasse com o pai do falecido, também viúvo. É possível imaginar a influência dos primeiros tempos, com uma mãe provavelmente deprimida, e, depois, a confusão de identidades para com o marido da mãe, que era pai e avô ao mesmo tempo. Seria o sonho erótico a comunicação de algo intolerável encoberto por uma erotização vivenciada como perversa? Houvesse algo de verdade psíquica nessas conjecturas, teriam uma força disruptiva tão intensa a ponto de levá-la a tamanha destrutividade? Essas são hipóteses que não pude verificar, porque durante a internação na unidade intensiva, após a tentativa de suicídio, ela teve um acidente vascular cerebral com sequelas cognitivas que impediram a continuidade da terapia.
A intensa angústia causada pela comunicação de Rubens e o desfecho dramático de Morgana remetem à complexidade do tema suicídio e a uma possível compreensão sobre a pouca discussão a respeito desse assunto entre nós, psicanalistas. Cada vez mais estamos nos familiarizando na prática clínica com pacientes graves que apresentam falhas na formação de representações psíquicas, em que predominam os atos em vez de comunicação simbólica, pacientes com os quais trabalhamos em alta intensidade emocional, partilhando angústias primitivas, vivenciando-as dentro de nós, e enquanto sujeitos não neuróticos (Minerbo, 2019) fazem com que os psicanalistas estejam em contato contínuo com aspectos psicóticos no processo analítico. Apesar de não ser exclusividade desses indivíduos, eles apresentam um maior risco de condutas autodestrutivas e de tentativas de suicídio. A literatura recente tem proporcionado uma compreensão psicanalítica mais refinada sobre pacientes com essas características, possibilitando aperfeiçoar os instrumentos psicanalíticos não somente na escuta e no acolhimento, como também no método. O que permanece obscuro é saber em que momento a angústia se torna intolerável a ponto de não ser contida no processo analítico ou psicoterápico,4 levando ao ato suicida.
Aprendi com Rubens e Morgana sobre a rigidez que pode envolver a ideação suicida. Uma das avaliações tradicionais sobre o risco de suicídio nos pacientes é a presença de um histórico de tentativas anteriores, sendo que um quadro psiquiátrico atual ou passado potencializa o risco. Independentemente do histórico, a presença de ideias de suicídio pode adquirir uma fixidez no psiquismo e permanecer silente até ser desencadeada muitas vezes de forma inesperada e imprevisível, ainda que diante de um analista atento (Rubens e Morgana não tinham ou não revelaram tais ideias). A relação analítica ou psicoterapêutica é importante como continente, mas não fornece uma garantia total de proteção contra tentativas de suicídio, assim como também a ambivalência dos suicidas (quem quer se matar também não quer se matar) pode não ser suficiente como salvaguarda às tentativas de suicídio.
Na maioria dos casos, sempre há alguma forma de comunicação da ideação suicida como pedido de ajuda (sendo que muitas vezes o ambiente não empatiza ou não dá o devido valor). Grupos de ajuda como o Centro de Valorização da Vida (cvv) baseiam o seu atendimento na capacidade de ouvir, acolher o sofrimento e, dessa forma, diminuir a angústia e abrir caminho para que o sujeito procure ajuda especializada. Seja por desconhecimento ou por desesperança, muitos não persistem na busca por ouvidos atentos e levam a cabo o suicídio. Grande parte dos atos suicidas se dá de forma impulsiva em conflitos transitórios e quadros neuróticos e, principalmente, nos transtornos de personalidade (borderline, narcísica) e nas psicoses. Entenda-se o impulso como expressão de algo que estava presente no psiquismo. Nas situações mais graves, ocorre a estruturação de uma ideia fixa que leva ao histórico de tentativas e a uma possibilidade cada vez mais acentuada de chegar ao autoexter-mínio, independentemente dos recursos disponibilizados para evitar o ato.
O risco da concretização das ideias suicidas nesses pacientes ressoa na contratransferência do analista. A ameaça sombria que paira no ar pode inibir interpretações por medo que desencadeiem a destrutividade interna. A desesperança presente no paciente pode levar o analista a uma identificação com um cenário mental desértico que o faça se conformar com o inevitável e negligenciar comunicações. Também pode vivenciar a pouca evolução dos pacientes como um fracasso pessoal e - sem entender a agressividade presente no ato do paciente ao frustrar o analista - retaliar ou abandonar o acompanhamento inconscientemente. O analista pode se deixar levar pela fantasia de se tornar o objeto compensador das agruras primitivas e, com isso, se sentir como o salvador, autorizado a ultrapassar os limites mínimos da neutralidade e da abstinência, muitas vezes transgredindo fronteiras éticas. O suicídio realizado ou mesmo a tentativa de suicídio abrem uma ferida narcísica no analista, que tende a se culpar, ainda que tenha feito o melhor possível, além do pânico de expor essa ferida aos seus pares e ser por eles criticado. Resulta daí que, por sua radicalidade, o suicídio talvez seja um dos temas mais assustadores para o analista.
Uma das muitas características que tornaram Primo Levi admirável era o seu pioneirismo na literatura de testemunho sobre o Holocausto e a sua capacidade de transformar o trauma pelo qual passou em obra documental e ficcional. Essa capacidade e resiliência fazem pensar o que o teria levado ao suicídio, como se o que fez depois da sua passagem pelo campo de concentração não tivesse sido suficiente para evitá-lo. Numa de suas passagens mais conhecidas ele revelou:
Quase todos os sobreviventes, oralmente ou em suas memórias escritas, recordam um sonho muitas vezes recorrente nas noites de confinamento, variado nos particulares, mas único na substância: o de terem voltado para casa e contado com paixão e alívio seus sofrimentos passados, dirigindo-se a uma pessoa querida, e de não terem crédito ou mesmo nem serem escutados. Na forma mais típica (e mais cruel), o interlocutor se virava e ia embora silenciosamente. (Levi, 1990, p. 1)
Primo Levi resume nesse material onírico um aspecto dramático do suicida. A impossibilidade de encontrar um objeto - seja por um alto nível de exigência pessoal ou por falha ambiental - capaz de proporcionar um "apaziguamento simbolizante" (Roussillon, citado por Minerbo, 2019, p. 292), deixando o sujeito num vazio representacional, numa vivência de angústia que não pode ser comunicada pelos meios comuns, senão por atos autolesivos.5 Por outro lado, o suicida vira as costas para essa lacuna de si mesmo e silencia (de forma cruel para si e para os outros) a angústia atormentadora, talvez na fantasia de um mundo idealizado, sem dor e sofrimento.
Com frequência ele mencionava em seus escritos testemunhais a perplexidade da sua passagem por Auschwitz: "Sou químico. Aportei na categoria de escritor porque fui capturado como partigiano e terminei em um campo de concentração como judeu" (Levi, citado por Lessa, 2019). Enfatizava o inexplicável não traduzível em palavras, assim como o porquê de não ter sido ele, e sim o prisioneiro ao seu lado, o escolhido para a cota de eliminação diária. Mais do que a culpa do sobrevivente, ele parecia falar de uma vivência bizarra impossível de criar sentido. No seu livro A trégua, relato dos últimos dias em Auschwitz e do retorno à liberdade escoltado pelos soldados russos, ele mostra esse aspecto na comparação com o sobrevivente grego que ele tanto admirou:
A sua vida fora uma guerra, e considerava vil e cego quem refutasse esse seu universo de ferro. O Lager chegara para ambos: eu o percebera como um monstruoso transtorno, uma horrenda anomalia da minha história e da história das coisas conhecidas; ele considerara uma triste confirmação de coisas notórias. (Levi, 1997, p. 77)
Caberia pensar também que, apesar de toda a simbolização que indivíduos como Primo Levi são capazes de criar, pode haver um ponto do trauma que nunca é escutado nem transformado.
Viktor Tausk
A participação de Viktor Tausk no movimento psicanalítico foi um precedente histórico representativo do que trago aqui como a reserva ou resistência que há dentro da psicanálise sobre a questão do suicídio, e que envolveu ninguém menos do que Freud. Tausk era um advogado croata que se mudou para Viena em 1910 com a finalidade de estudar Medicina. Aproximou-se da Psicanálise e foi recebido no círculo freudiano apresentado por Lou Andreas-Salomé, com quem manteve uma relação amorosa. Durante a Primeira Guerra Mundial, trabalhou como médico militar e se interessou pelos quadros psicóticos resultantes de traumas de guerra, o que gerou o seu trabalho mais conhecido, "Da gênese do 'aparelho de influenciar' no curso da esquizofrenia" (Tausk, 1919/1990). Freud tinha com Tausk uma relação ambivalente. Ajudou-o financeiramente, admirava sua verve e capacidade psicanalítica. Por outro lado, achava-o exagerado e individualista.
Gradativamente, ao que Freud atribuiu ao fato de estar "esmagado pelo seu passado (um ódio intenso ao pai) e suas últimas experiências de guerra" (Gay, 1989, p. 359), Tausk passou a apresentar um quadro melancólico. Pediu para Freud tratá-lo, e ele se recusou. Encaminhou-o para Helene Deutsch, que, por sua vez, era paciente de Freud. Os biógrafos Peter Gay e Élisabeth Roudinesco acreditam que ele talvez procurasse indicar caminhos através de Deutsch para a análise de Tausk (a máquina de influenciar?), um triângulo de transferências e contratransferências cruzadas que se mostrou frustrado. Em julho de 1919, às vésperas de um novo casamento, Tausk se suicida "com uma engenhosidade perversa" (Gay, 1989, p. 359), ao se enforcar e se dar um tiro nas têmporas simultaneamente. Freud o elogiou em um obituário, porém em correspondência a Lou Salomé revelou o que se passava em seu íntimo:
Suas cartas de despedida à noiva, à primeira mulher e a mim são todas elas carinhosas, atestam sua perfeita lucidez, não acusam ninguém senão sua própria insuficiência e sua vida malograda, e assim não dão nenhum esclarecimento sobre seu ato supremo. ... Confesso que ele não me faz muita falta. Há muito tempo considero-o um inútil e até mesmo uma ameaça ao futuro. (Roudinesco, 2016, p. 240)
Roudinesco mostra-se mais rigorosa e menos diplomática do que Peter Gay ao avaliar a participação de Freud no episódio. Um debate historiográfico importante ocorreu sobre esse fato, e, exageros à parte, comuns nesse tipo de discussão, a psicanálise terminou numa posição um tanto constrangedora na forma de lidar com a psicose e com o suicídio de um dos seus membros.
Freud mencionou poucas vezes o tema suicídio em sua obra. Segundo Roudinesco, tinha uma concepção heroica da morte e via, também, o ato suicida como um direito. Escreveu um pequeno texto (Freud, 1910/1969a) como complemento a uma discussão ocorrida em Viena, no qual menciona a possível relação com a melancolia. Nesse sentido, a carta a Lou Salomé parece conter uma significativa negação. Em "Luto e melancolia", Freud mostra aspectos importantes presentes no ato suicida, como a identificação narcísica com o objeto para evitar o sofrimento da vivência de separação e que o ódio gerado por esta vivência é "capaz de dirigir contra si mesmo a hostilidade relacionada a um objeto" (1917[1915]/1974a, p. 285). No ato suicida, ele complementa, o indivíduo toma o próprio corpo como objeto. Considerando que Freud já tinha essa concepção bem estabelecida em 1919, o que ele pretendia ao discorrer sobre o violento suicídio de Tausk? Tencionava dizer que as cartas de despedida eram carinhosas, sem acusar ninguém, e que atestariam a sua "perfeita lucidez"? Em recente trabalho (Miodownik, 2019), sugeri que um dos problemas de Freud e, talvez, dos seus contemporâneos, foi entrar em contato com o Unheimliche que Tausk poderia representar. Diferentemente do que Freud elabora em "O estranho" (Freud, 1919/1976), em que o Unheimliche seria o familiar que ficou reprimido no inconsciente, no caso de Tausk - assim como no personagem Natanael, em O homem da areia -, seria o não familiar o que permaneceu dissociado ou foracluído, como a loucura e a pulsão que não alcançou representação psíquica. Entendo que a rejeição ao enlouquecimento e ao suicídio de um psicanalista pode ter permanecido como uma sombra na psicanálise até os dias de hoje, repercutindo no que já mencionei sobre a dificuldade a respeito do tema.
Sigmund Freud
Para Peter Gay, o suicídio de Viktor Tausk não deixou Freud tão indiferente como pode parecer à primeira vista. Foi a partir daí que ele passou a se dedicar mais ao tema da morte, que se tornou mais presente na sua vida pessoal e na sua obra, antes abordado em dois textos clássicos: "Reflexões para os tempos de guerra e morte" (1915/1974b) e "Sobre a transitoriedade" (1915/1974c). No primeiro, apontara que "nosso inconsciente, portanto, não crê em sua própria morte: comporta-se como se fosse imortal" (p. 335); e mais adiante: "por outro lado, admitimos a morte para estranhos e inimigos, destinando-os a ela e tão sem hesitação como o homem primitivo" (p. 336); além de considerar a ambivalência: "esses seres amados constituem, por um lado, uma posse interna componente do nosso próprio ego; por outro, contudo, são parcialmente estranhos, até mesmo inimigos" (p. 337). A descrição de Freud aponta para características presentes também no psiquismo suicida, apesar de não se referir a isso. O sujeito não crê na própria morte, mas vivencia angústias aniquiladoras. Não há a representação da morte, e sim o alívio pela saída para um mundo fantasiado como melhor, assim como o aspecto ambivalente de ser uma resposta a um inimigo, que pode ser até um ser amado.
Mortes na guerra, na família e as mortes psíquicas cotidianas experimentadas pelos pacientes - que levaram à concepção de um novo dualismo pulsional - trouxeram urgência às reflexões de Freud, e, obviamente, houve a contribuição do envelhecimento e os reflexos no seu próprio corpo, como sinais de que não era imortal.
Em 1923, Freud manifestou a Felix Deutsch, quando este visualizou a gravidade do tumor na maxila e no palato, para que o ajudasse a "desaparecer do mundo com decência, caso estivesse condenado a um sofrimento prolongado" (Gay, 1989, p. 385). Na época, Deutsch expôs aos mais próximos o temor de que Freud se suicidasse. Questão que veio a se colocar em 1939 com Freud instalado em Londres, e a Segunda Guerra Mundial iniciando com a invasão da Polônia pela Alemanha. O estado físico de Freud piorara, afetando também o seu ânimo e interesse pelas coisas que mais prezava. Havia o incômodo na região bucomaxilar, que dificultava a alimentação, o odor que emanava do tumor e as dores imensas, sensações que persistiam apesar de todo zelo e cuidado de sua filha Anna.
Ao visitá-lo, Ernest Jones "leu corretamente o gesto que Freud lhe dirigiu... Havia renunciado à vida". Ao seu médico, Max Schur, tomou-lhe a mão e disse: "O senhor lembra-se do nosso 'contrato' de não me deixar quando tiver chegado a hora. Agora, é apenas uma tortura e não faz sentido. Fale com Anna sobre isso, e se ela achar certo, dê um fim a isso" (Gay, 1989, pp. 586-587).
Em 21 de setembro de 1939, Max Schur aplicou três centigramas de morfina em Freud, em vez da dose sedativa de dois centigramas. Repetiu o processo por mais duas vezes com diferença de poucas horas. Freud entrou em coma profundo e faleceu em 23 de setembro.
Para Peter Gay, "ele providenciara que o seu pedido secreto fosse atendido. O velho estoico conservou o controle da sua vida até o fim" (1989, p. 587). Élisabeth Roudinesco também pontuou essa característica de Freud através do discurso de Ernest Jones no velório: "Se há um homem a cujo respeito podemos dizer que domou a própria morte e lhe sobreviveu, a despeito do rei das trevas que a ele não inspirava medo algum" (Roudinesco, 2016, p. 471). Entretanto, logo a seguir, cita um trecho do discurso de Stefan Zweig na ocasião, destacando que ele veio a se suicidar em 1942, em Petrópolis, no Brasil.6
O tema da morte percorre épocas, continentes e culturas, envolvendo religião, arte e ciência nas suas inúmeras representações e ritos. Poucos temas atravessam de forma tão extensa e dominante a história da humanidade e a existência de cada indivíduo. No entanto, cada período histórico, cada cultura, tem a sua particularidade na forma subjetiva de lidar com a morte (Penna, 2016).
No século passado, a partir de uma crescente evolução técnico-científica na Medicina, com a designação do hospital como palco central no qual a morte deve ser enfrentada e lá se presenciarem as vitórias e os fracassos, levou à busca de um adiamento infinito do morrer com a artificialização dos estágios terminais através de aparelhos, com aumento de sofrimento, a chamada distanásia. Recentemente, ao contrário, valoriza-se o morrer sem buscar medidas heroicas de ressuscitação, aplicar cuidados paliativos, estar próximo das pessoas importantes no final - que seria a morte digna - sem interferir no morrer e não encurtar o tempo natural da doença - ao que se dá o nome de ortotanásia (D'Acampora, 2017). Questiona-se se seria este o caso de Freud ou estaria incluído em eutanásia
antecipar a morte de paciente incurável e/ou terminal em grande sofrimento, movido unicamente pelo alívio do sofrimento e/ou da dor. Misericórdia (interromper a evolução natural da doença não a deixando chegar ao final). Morte antes de seu tempo natural. (D'Acampora, 2017)
Considera-se como suicídio assistido quando o ato é solicitado pelo paciente.
Certamente, para a maioria dos psicanalistas, o ato de Freud é visto como um direito de decidir sobre um final irreversível menos doloroso e evitar uma agonia prolongada. Um término que fez justiça a quem trouxe alívio a uma imensidão de gente através da psicanálise. Com maior gosto nos reconhecemos com este Freud também identificado com o heroísmo greco-latino de lidar com a morte (Roudinesco, 2016). A admiração por Freud não deve ser um impedimento para refletir sobre desdobramentos emocionais e éticos do ato.
Tende-se a se separar o sofrimento físico do psíquico, e com mais parcimônia admite-se que o primeiro pode ser aliviado de uma forma radical. Também existem sofrimentos psíquicos crônicos e persistentes que dão origem a ideias suicidas fixas que, obviamente, ninguém irá propor abreviar o termo. O risco, como já abordado anteriormente, é a identificação com a desesperança e a agressividade desses pacientes, que levam o analista a "suicidá-los" figuradamente através de abandonos e retaliações inconscientes.
Doenças incuráveis também causam estados depressivos, e uma antecipação do processo terminal - como parece ter sido o caso de Freud - pode estar a serviço de um dos aspectos presentes na ideação suicida, que é a busca por outro mundo sem dor. Talvez não faça diferença para o sujeito, mas tem repercussões nas subjetividades que transparecem nas reações emocionais e atuações de, por exemplo, uma equipe médica que lida com pacientes em terminalidade. Como lidar com as ambivalências e culpas que atingem todos os envolvidos nesse processo?
Seriam todos os atos suicidas psiquiatrizáveis, psicologizáveis e psica-nalizáveis? Durkheim (1897/2011) foi o primeiro a procurar embasar cientificamente (nas ciências sociais) a questão do suicídio. Ele elaborou categorias sociológicas diferenciando tipos de suicidas. Uma delas é a que ele denominou como fatalista, em que o sujeito se vê em uma situação sem saída. Um exemplo, o suicido de Getúlio Vargas, com suas causas e repercussões políticas. Outro tipo foi denominado por ele como suicídio altruísta, que ocorre em nome de uma causa, exemplo do monge budista que se imolou no fogo durante a Guerra do Vietnã. É possível entender a "razão" de Vargas ou a do monge budista. Psicanaliticamente, é comum ver outras "irrazões", as inconscientes que se revelam através desses atos. Sabemos, por exemplo, o quanto de destrutividade pode existir em pretensos gestos altruístas. A pergunta que se faz é: em gestos como os de Vargas, do monge budista e de Freud, o encontro de motivações inconscientes anularia o aspecto simbólico, ou seja, a representação que passaram a ter como fatos culturais sociopolíticos? Estaríamos falando de categorias diferentes, de subjetividades que se configuram de acordo com as leituras e interesses de determinados grupos de quem está contando a história? Aliás, essa é uma das nuances presentes no ato suicida, a fantasia de dar algum sentido a um mundo interno para o qual o sujeito não vê mais sentido. Na maioria das vezes - estão aí homens-bomba e lobos solitários para provar - não o fazem sem causar sofrimento a muitos outros.
A morte de Freud, além de tudo que representou para o movimento psicanalítico, trouxe à tona controvérsias complexas e, talvez, irrespondíveis. Pode também ter criado obstáculos a um debate mais amplo sobre o suicídio na psicanálise, debate este que agora procuramos, paradoxalmente, revitalizar.
Referências
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Correspondência:
Bernard Miodownik
Rua Figueiredo de Magalhães, 219/408
22031-011 Rio de Janeiro, RJ
Tel.: 21 2549-8734
betchkov@uol.com.br
Recebido em 11/11/2019
Aceito em 10/12/2019
1 Um aspecto aparentemente secundário está no nome da personagem La Gioconda (A Sorridente, em italiano, como a de Leonardo da Vinci). Seria um falso self o sorriso que encobre a agressividade?
2 Os citados são importantes referências para a compreensão teórica e para a prática clínica psicanalítica com o paciente suicida.
3 Suicídio é um fenômeno complexo que requer abordagens psíquicas, biológicas e sociais. A psicanálise é o foco deste texto sem implicar em prioridade ou exclusividade na ajuda aos pacientes com tendências suicidas.
4 Daqui em diante, neste artigo, sempre que se falar no analista ou no processo analítico estará implícito que o psicoterapeuta estará incluído. Cada caso ou cada dupla fará a escolha do formato, se analítico ou psicoterápico. Quadros muitos graves nos quais intervenções diretas precisam ser feitas quando há risco de suicídio podem levar a intervenções dentro de um ou outro modelo.
5 Entre esses atos se incluem as automutilações mais comuns em personalidades borderline, especialmente adolescentes. Uma compreensão pertinente é que o ferir-se corporalmente "alivia" a dor maior da angústia, assim como fornece através de uma marca corporal um senso de existência em contraposição a um vazio interior. Autores como Gabbard (1998) apontam o paradoxo da automutilação protetora ao diminuir a impulsividade suicida. Apesar disso, o risco de suicídio é significativo nessas situações clínicas.
6 O contágio, que Roudinesco parece insinuar na construção do texto, é um aspecto importante no debate sobre suicídio. Desde a lendária onda de suicídios após a publicação de Os sofrimentos do jovem Werther, de Goethe, até o recente 13 reasons why, sempre houve uma preocupação de que notícias ou qualquer discussão que levante o tema suicídio teriam um especial poder de atingir vulnerabilidades pessoais. Dapieve (2007) mostra que há regras nos meios de comunicação a respeito do noticiário sobre suicídio visando evitar o contágio.