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Revista Brasileira de Psicanálise
Print version ISSN 0486-641X
Rev. bras. psicanál vol.55 no.1 São Paulo Jan./Mar. 2021
REFLEXÕES TEÓRICO-CLÍNICAS
Pensar é uma forma de resistir ao obscurantismo1
Thinking is a way of resisting obscurantism
Pensar es una manera de resistirse al oscurantismo
Penser, c'est une manière de résister à l'obscurantisme
Elias M. da Rocha Barros
Membro efetivo e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Recipiente do prêmio Sigourney. Fellow da Sociedade Britânica de Psicanálise e de seu Instituto. Chair latino-americano da força-tarefa para a produção do Dicionário enciclopédico de psicanálise, a ser publicado pela Associação Psicanalítica Internacional (IPA). São Paulo / erbarro@terra.com.br
RESUMO
Neste texto, traço a relação do tipo de interpretação da obra de arte proposto por J. A. Frayze-Pereira com o que se passa numa sessão de análise. Na sessão, a "obra" do paciente é a narração de seus conteúdos mentais em busca de uma forma simbólica. Nesse processo, sugiro que o que é evocado no analista, que se transforma numa interpretação ou comentário, é central na constituição de seu significado e parte dele. Daí considerarmos a transferência uma poiesis.
Palavras-chave: interpretação, forma, poiesis, biografia, obra de arte
ABSTRACT
In this text I outline the relationship between the type of interpretation of the work of art proposed by the author, and what happens in an psychoanalytic session. In analytic sessions the patient's "work" (oeuvre) is his narrative of his emotional experience in search of a symbolic form. In this process I suggest that what is evoked in the analyst, which becomes an interpretation or comment, is the core to the formation of its meaning and part of it. Hence, we consider the transference as a process of poiesis.
Keywords: Interpretation, form, poiesis, biography, work of art
RESUMEN
En este texto trazo la relación entre el tipo de interpretación de la obra de arte, propuesta por el autor, con lo que sucede en una sesión de análisis. En la sesión, el "trabajo" del paciente es la narración de sus contenidos mentales en busca de una forma simbólica. En este proceso sugiero que lo evocado en el analista, que se convierte en interpretación o comentario, es central para la constitución de su significado y parte de él. Por tanto, consideramos la transferencia como una poiesis.
Palabras clave: interpretación, forma, poiesis, biografía, obra de arte
RÉSUMÉ
Dans ce texte, je trace la relation entre le type d'interprétation de l'Œuvre d'art, proposé par l'auteur, avec ce qui se passe lors d'une séance d'analyse. Dans la séance, le « travail » du patient est la narration de son contenu mental à la recherche d>une forme symbolique. Dans ce processus, je suggère que ce qui est évoqué chez l>analyste, qui devient une interprétation ou un commentaire, est au cŒur de la constitution de son sens et d>une partie de celuici. Nous considérons donc le transfert comme une poïétique - poiesis en grec.
Mots-clés: interprétation, forme, poïétique, biographie, Œuvre d'art
Decidi fazer estes comentários divididos por itens. A maior parte destes parágrafos são apenas pensamentos esparsos, ora para enfatizar um ponto de vista, ora para servir como deflagrador de uma reflexão.
1. Não sou um especialista em estética nem em psicanálise aplicada, muito menos um profundo conhecedor de filosofia da arte. Sou antes de tudo um curioso, rato de biblioteca, mais informado do que culto.
Então, em princípio, não deveria estar nesta reunião como comentarista de um trabalho tão sério e profundo como esse de João, um texto que nos convida a reaprender a pensar com profundidade.
Decidi, entretanto, aceitar o honroso convite, em primeiro lugar por ser uma oportunidade de expressar minha admiração pela originalidade e qualidade da obra de João A. Frayze-Pereira, especialmente num momento do Brasil em que a inteligência e a cultura estão sob ataque. O país está vivendo "uma convulsão de paralisia racional", nos diz uma personagem de Cristovão Tezza (2020, p. 200) para caracterizar esta fase. Pensar, então, é uma forma de resistir ao obscurantismo.
Em segundo lugar para enfatizar a importância de termos entre nós pensadores como João Augusto Frayze-Pereira. Esse trabalho é de uma profundidade rara, recheado de temas que merecem extensas reflexões e que são centrais para a prática da psicanálise, tanto aquela "aplicada à arte" quanto aquela que se dedica à clínica. A beleza de sua escrita nos dá a impressão de que se trata de um texto fácil, por ser muito prazeroso. Entretanto, numa segunda ou terceira leitura (o texto merece várias) percebemos que ele contém implicações muito profundas no que se refere à definição e ao método da chamada psicanálise aplicada à arte e, como já sugeri, ressoa na clínica. Esse trabalho é sobre a natureza da interpretação psicanalítica.
2. Penso que alguns comentários de João são importantes na definição da natureza da abordagem psicanalítica da cultura. Por exemplo, quando diz que "a psicanálise problematiza as formas instituídas da sensibilidade e do pensamento, abrindo-as à liberdade criativa do leitor, exigida pelos objetos culturais, para que destes ele possa ter experiência". Ou quando acentua que
a experiência é o que nos abre para o que não é nós, isto é, para a alteridade, uma realidade poliédrica, simultaneamente visível e invisível, objetiva e subjetiva, marcada por ambiguidade e transcendência, como acontece com o símbolo, ou seja, como aquilo que exige de nós interpretação para dele podermos ter experiência.
Esses dois trechos apontam para a importância de compreender como a arte afeta as formas da sensibilidade, o que equivale a dizer que o exame da relação entre os símbolos e os afetos é indispensável.
Susanne Langer, ao falar sobre como sentimentos são captados e transmitidos através de símbolos, menciona o papel central exercido pelo simbolismo apresentativo e sugere que este tem a propriedade de transmitir o que ela chama de semelhança (likeness), isto é, "exemplifica objetivamente aquilo que o sentimento parece ser subjetivamente" (Innis, 2009, p. 47). Outros autores referem-se a essa mesma propriedade dos símbolos como a qualidade de ser como tal, ou seja, a capacidade de sugerir tipos de experiência (Innis, 2009).
Essa perspectiva vale tanto para as produções culturais quanto para outras produções simbólicas, presentes nos sonhos e nas narrativas que os pacientes nos trazem nas sessões.
É através das formas simbólicas que podemos captar e dar corpo ao que nos é transmitido pelo que estas evocam em nós. O símbolo não deve ser visto apenas como um envelope condutor de significado, mas como um órgão do próprio pensamento, o que está implícito na obra de Cassirer, Langer, Pierce e outros.
3. Identifico pelo menos duas vertentes nesse texto que posso propor como deflagradores de uma reflexão.
a) Se lermos o trabalho de Freud em questão como um caso clínico, poderemos destacar que o texto sugere um movimento importante em seu pensamento. A psicanálise, até então preocupada com sintomas e suas origens, move-se no texto sobre Leonardo em direção a buscar numa vida (numa totalidade de ser) as razões de uma maneira de estar no mundo e de construir uma identidade.
Além de esse deslocamento do sintoma para a totalidade da vida ter importância dentro da própria teoria e prática clínica, ele sugere uma das razões para Freud abordar um autor do Quattrocento como se fosse um homem do Ottocento. Freud o faz marcado pela sua época, pelas tradições historiográficas do século xix, como um intelectual culto imerso no universo literário germânico e ainda distante de uma abordagem dos aspectos expressivos da produção artística.
As pessoas deixaram de ser, na concepção historiográfica da época, na perspectiva adotada por Freud, como "Deus as fez" para se tornarem personagens que se constroem a partir da maneira como vivem a vida. O "divino Leonardo" torna-se o cidadão Leonardo, de profissão "artista genial". Isso não retira de sua obra o caráter divino, mas esse adjetivo agora conota a ideia de encantamento, de epifania. É claro que esse comentário não justifica o equívoco cronológico presente na abordagem de Freud; apenas ressalta a importância desse deslizamento para o exame da vida como um todo quando consideramos a produção de um artista. O mesmo vale para a análise de um paciente enquanto indivíduo que construiu uma subjetividade ao longo de uma vida.
A "obra do artista" torna-se produto de uma vida ao mesmo tempo que adquire uma dinâmica interna que lhe confere autonomia. No processo de adquirir essa dinâmica interna e ganhar vida própria, fica implícita a ideia de que ela é construída também por um olhar externo, fruto do universo plástico recém-criado pela própria obra.
O mesmo pode ser dito da narrativa de um paciente numa sessão. Ela é fruto de uma vida que constitui um mundo interno, onde os objetos em interação ganham novos significados, os quais, por sua vez, geram outras expansões na medida em que são captados por um interlocutor. É nesse sentido
Elias Mallet da Rocha Barros que vejo a transferência como poiesis, ou seja, como processo que realiza, dá forma, novos significados virtuais entre os potenciais.
Freud, ao abordar a questão da conversão da sexualidade em pulsão de saber, implícita no conceito de sublimação, traz para dentro da psicanálise a questão da busca pela qualidade da vida, o problema da natureza do prazer e da fruição, tema retomado por André Green no livro Les chaînes d'Éros (1997).
b) Duas questões se destacam a partir dessa transformação na maneira de ver uma obra de arte e consequentemente de abordar esse trabalho de Freud:
Por que esse trabalho de Freud continua a ser de interesse de especialistas do campo das artes depois de uma recepção crítica? Quais as implicações e os desenvolvimentos dessas ideias para a educação dos olhos que se voltarão para a observação das obras criadas por artistas?
Quais as implicações para a psicanálise teórica e clínica desse deslocamento do exame do sintoma para o exame da vida, do homem como um todo?
Não pretendo responder a essas perguntas, mas quero deixá-las para nossa conversa. Por isso, eu me limitarei a indicar direções possíveis para nossa reflexão. No que se refere à primeira questão, diria que a postura de Freud, se transportada para hoje, necessita de um ajuste. Ao buscar interpretar o sentido de uma obra de arte, que se constitui num sistema de imagens, o analista ou o espectador é convidado a conceber uma maneira de ver que associe a dinâmica interna das formas com a experiência evocada pela expressividade daquilo que se mostra ao observador. Nessa linha, o trabalho de João me conduz a um parágrafo do professor José Arthur Giannotti:
Do mesmo modo, quando Manet explora as formas de Paris e de seus arredores, ele não pinta o Sena, Notre-Dame, a Pont-Neuf e assim por diante, mas diversas imagens de uma superfície aquosa ou de uma massa de pedra, percebidas dos pontos de vista mais diversos, de forma a se constituírem no "Sena de Manet", na "Igreja de Manet" e assim por diante, objetos que se configuram como elementos de um mundo pictórico próprio, que se cruzam num quadro invocando outros, mas cujo cruzamento se faz único na medida em que se promete um além dele mesmo. (2005, p. 73)
É sobretudo (mas não só) através de suas formas expressivas que Manet adquire a identidade de Manet como artista e cria a virtualidade de um universo além dele mesmo, a ser constituído pelo espectador em cada um dos momentos de sua contemplação.
João sugere que se parta da dinâmica interna das obras de Da Vinci para compreender os sentidos atuantes na subjetividade do artista que estão impressos nessas suas manifestações expressivas. São as obras produzidas pelo artista que vão constituindo um Da Vinci e um mundo expressivo próprio. O psicanalista examina a obra para propor hipóteses sobre seu sentido expandido, revelando eventualmente dessa forma uma subjetividade em processo de constituição.
Gostaria de chamar a atenção para a expressão usada por Giannotti quando diz "explora as formas de Paris". É nessa procura pelas formas que se constitui a identidade de um autor ou de um indivíduo, na medida em que elas se tornam formas expressivas de um processo de busca de identidade, durante o qual aspectos dessa identidade se revelam em algumas de suas facetas.
4. É, portanto, sugere João, a própria obra do artista que é o fundamento para pensá-lo, e não o contrário.
Essa virada é central tanto no que se refere à análise da relação do artista com sua obra quanto no que diz respeito às narrações por parte do paciente na sessão analítica, que poderiamos tomar como a sua obra. Temos aqui uma questão metodológica central na psicanálise contemporânea, tanto teórica quanto clínica.
Não é a biografia que explica a obra, da mesma forma que não é a partir daquilo que conhecemos da história de vida de um paciente que obteremos a chave para compreender o sentido de sua narrativa no presente da sessão.
Similarmente, no caso da sessão de análise, é por meio da ampliação do significado da narrativa do paciente (a obra do paciente naquele momento) que podemos lançar luz sobre seus aspectos biográficos.
Eu diria que a vivência transferencial para que mudanças psíquicas ocorram está diretamente correlacionada à possibilidade propiciada pela transferência de nos referirmos ao que o paciente está sendo, e não ao que ele é. A identidade é um estado flutuante, sempre nascente, ao mesmo tempo que mantém certa constância nos padrões. O que falta ao paciente não são informações sobre como ele é - não é simplesmente uma busca de autoconhecimento -, mas sim experiências emocionais de como sua arquitetura afetiva se manifesta na maneira como ele está sendo, como está se relacionando com os outros e seu contexto. O foco da intervenção do analista se direciona para a continuidade que a experiência emocional presente vivida na sessão, no contexto vivo da relação, tem com as experiências relatadas, sejam elas de um passado histórico ou mais imediato. É essa integração que promove uma expansão das associações entre a experiência emocional e a consequente abertura de novas redes afetivas de sentido e significado, criando a possibilidade de que essas vivências sejam objeto de reflexão. É assim que ocorrem mudanças.
É a partir do significado do que se passa no aqui e agora que podemos fazer uma hipótese sobre o lá e então na história do paciente. Esse é o movimento básico da transferência, e não o inverso. A narrativa na sessão lança luzes sobre como o paciente está sendo. A captação deste ser em movimento (do sendo de um indivíduo) nos permite (a nós e ao paciente) fazer conjecturas sobre quem ele é. Dessa forma, o paciente pode se apropriar de sua vida emocional ou, para usar um termo de Ogden, construir sua eu-dade (I-ness)
Mas fica uma questão: qual o papel da intenção do artista na produção da obra de arte?
A partir de uma sugestão, derivo outra questão: compreender uma obra de arte e explicá-la são atividades de natureza diferente, me parece. João concordaria com essa distinção?
O conhecimento da intenção do artista (fato de sua biografia) nos permitiria ampliar a compreensão de uma obra particular ou até de um período de sua produção artística, mas não explicaria a obra, penso eu.
5. Ocorre-me como ilustração do problema com o qual estamos lidando uma passagem de uma obra literária. Lendo o livro Um romance russo (2008), de Emmanuel Carrère, encontro um personagem intrigado com um estado de espírito que lhe parece singular. De início parece uma vontade de chorar sempre que tentava lembrar-se de uma canção que alguém, em sua infância, cantava para ele. Seria sua mãe? Sua niania? Agora, na vida adulta, não havia mais ninguém para cantá-la, ou melhor, agora era ele que algumas vezes a murmurava para si mesmo. Ele não queria ouvir a canção, nem mesmo lembrar-se da situação em que lhe era cantada. O que ele desejava, em suas palavras, "era dar forma à emoção que o submergia" quando murmurava a cantiga. Não conseguia! Havia algo interior que ainda não fazia sentido. Alguma coisa dentro dele lhe recusava essa dádiva, concluía.
Essa dádiva, se lhe fosse concedida, dentro da perspectiva que estou lhes apresentando e que coincide com o método de abordagem de João, poderia levá-lo a conhecer-se melhor e aperfeiçoar sua capacidade de refletir sobre si mesmo através do estabelecimento de padrões de relação entre sentimentos antes insuspeitados por sua mente consciente. Para tanto, ele precisaria criar formas (simbólicas) que lhe permitissem estabelecer e ampliar conexões emocionais com diversos núcleos afetivos de significado que são inconscientes.
É importante acentuar que o personagem não buscava reviver a experiência ou lembrar-se das circunstâncias em que a canção era cantada, mas conceber a emoção envolvida - de certa maneira, se poderia dizer, estabelecer a morfologia de seu sentimento.
Quero enfatizar a importância da busca da concepção de uma emoção, da morfologia de um sentimento, como a fonte dos sentidos impregnados numa identidade. A tomada de consciência através do exame de suas formas expressivas (no caso, das obras de Da Vinci, ou até de uma obra específica) nos permite conhecer a identidade de Leonardo em algumas de suas manifestações por meio dos sentidos impregnados nas formas.
6. Esse trabalho também nos permite especular sobre a natureza da experiência estética e associá-la a pontos de vista analíticos.
Para Bollas (2009), por exemplo, a experiência estética é uma redesco-berta de um objeto transformacional na idade adulta.
Trata-se de uma reflexão sobre a natureza do choque estético, dos primordios do saber ver, sentir, ouvir. Se profundo, o contato com a obra de arte proporciona uma experiência de intimidade, eventualmente uma "recordação" da experiência com a mãe como objeto original transformacional. É preciso enfatizar que, quando falamos em "recordação", não estamos falando em lembranças concretas de um momento específico. O que está em jogo aqui é a forma de memorizar infantil, através do sentido e do significado de uma experiência.
Meltzer associa a experiência estética humana ao impacto misterioso que a visão inicial da face da mãe produz no bebê: "Recordação de um momento íntimo (que pode ser considerado estético) porque é (ou são) o(s) primeiro(s) momento(s) em que a criança recebe uma forma por parte da mãe" (Meltzer & Williams, 1988/1995).
Vamos nos lembrar aqui do artigo de Freud sobre o estranho, aquilo que encanta por ser misterioso. Esse mistério presente no impacto expressivo evoca a busca de uma forma.
Acho interessante aqui voltar a citar Christopher Bollas. Ele diz que o estranho é sempre inquietante e se caracteriza como tendo um sentido separado por ser "capaz de atravessar os limites impostos pela consciência" (1996, p. 33).
Aqui temos material para refletir sobre a natureza dos processos de sublimação e nos perguntar se a sublimação seria fruto de uma repressão, de um retorno do reprimido sob nova forma ou de uma superação da repressão por meio de um enriquecimento de processos simbólicos, como me parece que está presente na perspectiva kleiniana e bioniana.
É bom acentuar, com João, que a experiência estética é eminentemente emocional e, portanto, resiste a qualquer tentativa de explicação segundo princípios puramente racionais.
7. Reencontramos nesse trabalho um tema caro para mim e para Elizabeth [Lima da Rocha Barros],2 no que se refere à constituição dos
Elias Mallet da Rocha Barros processos simbólicos através da capacidade de produzir uma evocação de formas expressivas. João cita uma definição de Christopher Bollas (2009) sobre o objeto artístico, denominado por ele objeto evocativo. A evocação é desencadeada pelo aspecto expressivo do objeto evocativo, seja este uma obra de arte, uma narrativa ou uma presença.
Qual é, então, o papel da expressividade3 no nível não discursivo, sua relação com a discursividade no mundo mental e com a vida consciente e inconsciente? Deveríamos dizer algo mais a respeito da expressividade. O termo vem de R. G. Collingwood (1938) e Benedetto Croce (1925/2002) e se refere a um aspecto da arte que pretende não só descrever ou representar emoções, mas principalmente transmiti-las, produzindo-as no outro ou em si próprio, com base na evocação de uma representação mental colorida pela emoção. Esse atributo da expressividade de produzir emoção no outro nos parece essencial para entender não apenas a arte como também a memória afetiva e a função das formas simbólicas na vida psíquica. Uma das funções da expressividade é ativar a imaginação. Possivelmente, tanto na psicanálise quanto no processo criativo dos artistas, é o caráter expressivo do simbolismo que desperta nas formas e situações imaginadas uma intensidade de epifania4 ainda maior do que as situações da vida real, e consequentemente produz tais mudanças significativas.
No trabalho de João encontramos o seguinte: "Conhecer a natureza é também desejar recriá-la". Não seria essa a força motriz de toda representação? Conhecer é recriar. Narrar a própria vida para inseri-la num contexto é recriá-la, é alterar sua base simbólica.
João escreve ainda:
"Da Vinci negou e transcendeu, pela arte, a infelicidade de sua vida erótica nas figuras que ele criou". ... Ou seja, a lembrança da infância de Leonardo da Vinci é justamente aquilo a que remete o sorriso da Gioconda. Ao descrever esse sorriso em termos de uma psicologia expressiva, Freud deixa de lado o enigma colocado pelos sorrisos leonardescos para se interessar pelo sorriso vivo da(o) modelo que o teria fascinado.
É pelo processo de recriação permanente do sentido da experiência emocional através da ampliação de sua base simbólica (para a qual temos usado o termo transmutação de base simbólica) que a mente humana se expande.
A ampliação da base simbólica é, a meu ver, o pilar da possibilidade de transcendência, que permite superar uma vida de infelicidade ou um momento doloroso. Para existir uma sublimação, é necessário que as resistências a essa transmutação de base simbólica sejam vencidas.
Dito de modo sumário, na falta de um sorriso de satisfação metafórico pela satisfação sexual (caso de Da Vinci), sublima-se através de um gesto expressivo, fruto da criação artística que se materializa sob a forma de muitos sorrisos leonardescos.
Para finalizar, quero sugerir que esse trabalho de João nos conduz a pensar numa questão metapsicológica. Thomas Ogden (no prelo) sugere que a psicanálise evoluiu de um conceito de mente como substantivo para um conceito de mente como verbo. Nesse caso, o que é central é a atividade mental, a mentalização (minding), o processo de constituição mais do que a coisa constituída.
Referências
Bollas, C. (1996). The shadow of the object. Routledge [ Links ]
Bollas, C. (2009). The evocative object world. Routledge. [ Links ]
Carrère, E. (2008). Um romance russo (A. Telles, Trad.). Alfaguara. [ Links ]
Collingwood, R. G. (1938). The principle of art. Oxford University Press. [ Links ]
Croce, B. (2002). The aesthetic as science of expression and of linguistics in general (D. Ainslie, Trad.). Cambridge University Press. (Trabalho original publicado em 1925) [ Links ]
Da Vinci, L. (c. 1500). Salvator Mundi [Pintura]. Coleção particular. https://bit.ly/2LT8r2i [ Links ]
Da Vinci, L. (c. 1506). Mona Lisa [Pintura]. Museu do Louvre, Paris, França. https://bit. ly/2Y7ieE7 [ Links ]
Da Vinci, L. (1513a). SantAna, a Virgem e o Menino [Pintura]. Museu do Louvre, Paris, França. https://bit.ly/39brw8p [ Links ]
Da Vinci, L. (1513b). São João Batista [Pintura]. Museu do Louvre, Paris, França. https://bit. ly/3iCnERc [ Links ]
Giannotti, J. A. (2005). O jogo do belo e do feio. Companhia das Letras. [ Links ]
Green, A. (1997). Les chaînes d'Éros. Odile Jacob. [ Links ]
Innis, R. E. (2009). Susanne Langer in focus: the symbolic mind. Indiana University Press. [ Links ]
Meltzer, D. & Williams, M. H. (1995). A apreensão do belo (P. C. Sandler, Trad.). Imago. (Trabalho original publicado em 1988) [ Links ]
Ogden, T. (No prelo). Being, becoming, and the feeling of real in the analytic setting. [ Links ]
Tezza, C. (2020). A tensão superficial do tempo. Companhia das Letras. [ Links ]
Recebido em 16/11/2020
Aceito em 30/11/2020
1 Comentário ao trabalho "Estudo controverso permitiu a Freud pensar a psicanálise com Da Vinci", de João A. Frayze-Pereira, apresentado em reunião científica da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), em 24 de setembro de 2020.
2 Elizabeth Lima da Rocha Barros, membro efetivo e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), fellow da Sociedade Britânica de Psicanálise, dea em psicopatologia pela Sorbonne.
3 A conexão entre conhecimento intuitivo, ou expressão, e conhecimento intelectual, ou conceituação, entre arte e ciência, entre poesia e prosa, só pode ser expressa falando-se de uma conexão entre os dois níveis. O primeiro nível é a expressão, e o segundo é o conceitual; o primeiro pode existir sem o segundo, mas o segundo não pode existir sem o primeiro. Há poesia sem prosa, mas não há prosa sem poesia. A expressão é, de fato, a primeira afirmação da atividade humana. A poesia é "a língua materna da espécie humana" (Croce, 1925/2002, p. 29).
4 O termo epifania é usado para significar uma percepção ou manifestação essencial da natureza ou de um significado por meio de intuição repentina, que é ao mesmo tempo simples e chocante.