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Aletheia

Print version ISSN 1413-0394

Aletheia  no.19 Canoas June 2004

 

ARTIGOS DE PESQUISA

 

Padrasto, o novo pai – nova postura paternal*

 

Stepfather, the new father: a new fatherhood

 

 

Graciella Leus Tomé1; Lígia Schermann2

Universidade Luterana do Brasil, Canoas, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este estudo objetivou conhecer como ocorreram a paternagem e a construção do vínculo afetivo do padrasto em relação à filha não biológica, em uma família reconstituída. Buscou-se compreender as motivações internas e os sentimentos que o levaram a estabelecer estas relações familiares. Foram realizadas entrevistas semi-estruturadas com três participantes, visando a coletar dados de suas histórias de vida e entender como se deu a vinculação com a nova família. Aplicou-se também cinco lâminas do Teste de Apercepção Temática (T.A.T.), possibilitando o entendimento de aspectos mais subjetivos dos padrastos e a Escala de Percepção do Suporte Social (EPSS). Os dados da entrevista foram submetidos à análise de conteúdo. Através dos relatos, foi possível constatar que os três padrastos, primeiramente, construíram um vínculo de amor com suas esposas para, depois, ligarem-se afetivamente às enteadas e dividirem com as companheiras preocupações financeiras e morais com relação às filhas não biológicas. O conteúdo latente, manifestado no T.A.T., revelou, de forma geral, que os participantes tinham relações dificultosas com seus próprios pais, mostrando-se inseguros, passivos e depressivos. Os dados obtidos na aplicação da EPSS confirmaram, parcialmente, os resultados das entrevistas e do T.A.T.

Palavras-chave: Padrasto, Filha não biológica, Paternagem, Vínculo afetivo.


ABSTRACT

This study had the purpose of learning how the fatherhood sentiment and development of an affective tie between a stepfather and his non-biologic daughter occurred in a reconstituted family. It was attempted to understand the inner motivations and feelings that led the stepfather to establish these familial relations. Semi-structured interviews were carried out with three participants with the purpose of collecting life history data from the subjects and understand how the bond with the new family took place. Also, five pictures of the Thematic Apperception Test (TAT) and the Perceived Social Support Scale (PSSS) were applied, allowing to understand the subjetive elements of stepfathers and his perception of the social support received. The interview data were subjected to analysis of content. It was possible, through the reports, to find that the three stepfathers initially established an affective tie with their wives and only later connect ed emotionally with their stepdaughters and shared financial and moral concerns with respect to their non-biologic daughter. The latent content, expressed through the TAT, showed, in general, that the participants had troubled relations with their own fathers, turning out to be insecure, passive and depressive. The PSSS partially confirmed the results of the interview and the TAT.

Keywords: Stepfather, Non-biologic daughter, Fatherhood, Affective tie.


 

 

A vida e o comportamento humano são temas que acompanham os estudiosos ao longo da história. É dinâmico o movimento vivencial do homem dentro do grupo social nuclear – a família –, onde ele é desejado, nasce, desenvolve-se e morre.

É importante reconhecer que todo e qualquer grupo familiar foi, e continua sendo, a organização social primordial e universal de todas as relações humanas, com função vincular e afetiva de formar sujeitos conscientes de si para que depois possam vir a formar suas próprias famílias num continuum histórico.

Hoje, as famílias sofrem uma composição diferenciada, cada uma com características, valores e crenças próprias, surgindo, nessa estruturação variada, a figura do padrasto.

Quando nasce o primeiro filho, tem-se uma família, inaugurando novos papéis e novas formas de relacionamento entre os membros, palco onde atribuem-se aos personagens da trama familiar o poder de lidar com o mais importante dos aprendizados, as genuínas experiências de afeto, prazer, perda, medo, completude e tantas outras emoções capazes somente ao ser humano (Wagner, Ribeiro, Arteche & Bornholdt, 1999; Zavaschi, Costa & Brunstein, 2001).

O homem necessita para se desenvolver de um núcleo familiar continente, com limites claros entre os subsistemas, regras definidas para poder se refugiar, livre de constrangimentos defensivos e estabelecendo relacionamentos. Esse conjunto familiar passa a ser uma obra de arte a ser construída na vinculação entre seus membros (Wagner, Falcke & Meza, 1997; Araújo, 1998; Guerriero, 1999; Carmona, 2000).

Fatores individuais e evoluções pessoais divergentes podem levar à incompatibilidade de um casal, geralmente, fazendo-os optar pela separação (Waldemar, 1980; Maldonado, 2000). Atualmente, 50% dos casais norte-americanos optam pelo divórcio como forma de solucionar a insatisfação conjugal (Waldemar, 1996; Carter & McGoldrick, 2001). No Brasil, com a aprovação da lei ordinária a favor do divórcio [Lei do Divórcio – N. 6515 de 26/12/1977], houve início a um grande número de separações, chegando nos dias atuais a 200.000 por ano, o que representa um divórcio em cada quatro casamentos.

Na atualidade, a família reconstituída passa a constituir um novo tipo de família extensa, propiciando a seus componentes a vivência de novos laços de parentesco e o partilhar de novas experiências vinculares, entre eles, o de padrasto e a enteada (Maldonado, 2000). Tema de estudo que foi desenvolvido neste trabalho, dando continuidade a pesquisas que buscam o entendimento do papel desempenhado pelo homem nas atuais famílias reconstituídas (Bossardi, 2002; Bossardi & Schermann, 2003).

O padrasto é o novo pai, papel que passa a desempenhar o novo companheiro da mãe na formação da família reconstituída, composta de dois adultos que se unem, em que um ou ambos trazem um filho da relação anterior (Carter & McGoldrick, 2001). Para a criança, é melhor conviver com somente um dos pais quando não houver amor suficiente para uma convivência estável entre ambos, porém, se um novo casamento for assumido pelo pai ou mãe, e este se basear em uma relação amorosa gratificante, o filho passa a acreditar novamente na possibilidade de se vincular de maneira inteira e boa (Wagner, Falcke & Meza, 1997; Wagner et al., 1999; Maldonado, 2000), o que lhe possibilitará melhores condições subjetivas de uma vida de relação.

A função paterna é determinante na estruturação psíquica de um(a) filho(a), por isso o objetivo do presente estudo é conhecer como ocorreu a paternagem e a construção do vínculo afetivo do padrasto em relação à filha não biológica, em uma família reconstituída.

 

Método

O delineamento do estudo segue modelo qualitativo e quantitativo descritivo.

Participantes - a pesquisa envolveu a participação de três padrastos de classe média, com idade entre trinta e cinqüenta anos, que não possuem filhos biológicos. Os mesmos assumiram a função de padrasto da enteada, em um relacionamento familiar estável com a atual companheira ou esposa há mais de quatro anos. As três enteadas são filhas únicas. Os dados de identificação dos participantes encontram-se no Quadro 1.

 

 

Instrumentos

Foram aplicadas cinco lâminas do Teste de Apercepção Temática – T.A.T, buscando a expressão de conteúdos latentes dos sujeitos, importantes para o tema em questão. As lâminas foram selecionadas visando à temática do estudo:

Lâmina 7RH pai e filho – evoca atitude frente à figura paterna, o pai pode ser visto como autoritário ou como fonte de apoio e orientação.

Lâmina 13R menino sentado na soleira – investiga carências, solidão, abandono e expectativas.

Lâmina 14 homem na janela – refere ao autoquestionamento, contemplação e aspirações.

Lâmina 18RH atacada por trás – trata-se da única prancha em que a figura masculina sofre agressão, refere sentimentos hostis frente ao meio em que vive.

Lâmina 20 sozinho sob um poste de luz – objetiva abordar a atitude do sujeito frente aos erros e fracassos, pobreza e riqueza interiores, habilidades pessoais, sentimentos de culpa e necessidades afetivas.

Seguiu-se a aplicação de uma entrevista semi-estruturada, objetivando coletar informações referentes à vida de relação dos padrastos com suas famílias, companheira e enteada e o que motivou o padrasto a construir a relação de vínculo afetivo e exercer a paternagem de uma filha não biológica na família reconstituída.

Para finalizar foi aplicada a Escala de Percepção de Suporte Social (EPSS), objetivando avaliar a satisfação do sujeito frente ao suporte social recebido. Esta escala consta de quinze questões que foram respondidas de acordo com a Escala Lickert de cinco pontos e sua validação foi publicada por Ribeiro (1999). A escala possui quatro fatores: Satisfação com amigos. – Intimidade. – Satisfação com a família. – Atividades sociais.

Procedimentos de coleta e análise de dados

A análise dos dados coletados através da aplicação do Teste de Apercepção Temática – T.A.T. – foram interpretados com base nos procedimentos apresentados por Morgan e Murray (Silva, 1989).

A Análise de Conteúdo (Bardin, 1991) foi realizada a partir dos registros transcritos das verbalizações dos entrevistados quando foram identificadas as categorias e unidades de registro pertinentes ao estudo. As verbalizações foram recortadas das entrevistas e organizadas em categorias, a fim de responder as questões norteadoras, objetivando o entendimento do conteúdo manifesto e latente do sujeito

A Escala de Percepção de Suporte Social (EPSS) foi analisada de forma descritiva a partir das pontuações dos sujeitos.

 

Resultados

Serão apresentados, a seguir, os conteúdos significativos da história dos sujeitos a partir das verbalizações nas entrevistas, bem como o material resultante das aplicações do Teste Projetivo – T.A.T. – e da Escala de Percepção de Suporte Social (EPSS) dos padrastos investigados.

Resultados obtidos através das entrevistas

História de vida do casal

Nos três casais, houve uma construção do relacionamento amoroso a partir de amizade já existente, cujas histórias de vida particulares dos integrantes já eram conhecidas por seus parceiros ao assumir o compromisso do vínculo.

O entrevistado Antônio relata: “fomos amigos por dois anos e depois começamos a namorar”. Para Bruno e Beatriz, a amizade começou no ambiente de trabalho “nos conhecemos trabalhando na mesma empresa”. Para o casal Cícero e Carine, o conhecimento entre ambos se deu na infância, pois existe um parentesco distante entre eles “na verdade, nos conhecemos com 12 anos, mas voltamos a nos encontrar depois, já com 18anos (...) foi na casa do avô da Carine, que vem a ser meu tio”.

Construção da relação padrasto e enteada

Os participantes da pesquisa mantiveram uma postura bastante positiva sobre a construção do vínculo afetivo com relação à enteada, o que os levou a uma maior aproximação e dedicação, muitas vezes, tratando-as como verdadeiras filhas.

Antônio expressa repetidas vezes, durante a entrevista, que o relacionamento entre ele e a enteada “teve de ser construída”, a partir de uma boa relação. Bruno diz que a enteada “é uma criança boa e de fácil entendimento”. Para o padrasto Cícero, a criação da enteada se deu desde muito cedo “até porque ela tinha só um ano de vida, então “o relacionamento foi sendo construído como minha filha”.

Relacionamento atual entre padrasto e enteada

Antônio sente a relação atual como uma construção entre ele, a enteada e a esposa, “a convivência que eu tenho hoje com minha enteada, muito pai mesmo não tem (...) tem uma harmonia”. Bruno relata que hoje a enteada o quer como pai “hoje ela diz para a mãe dela que não quer ter outro pai que não seja eu, então, eu penso que está sendo bom”. Para o padrasto Cícero, o relacionamento é bom, de carinho “continua a mesma coisa, não mudou nada”. Relata durante a entrevista, que por ser a enteada de cor mulata, surgiram dúvidas na menina durante seu crescimento quanto à figura de seu verdadeiro pai. A enteada manifestava-se questionando-o sobre a paternidade e ele negava que não fosse seu pai verdadeiro “acabava omitindo, porque ela chorava, chorava muito”. Porém, a criança veio a saber pela avó materna e Cícero conta que nunca se deu conta que a enteada já sabia “tanto que nós continuávamos a ter o mesmo relacionamento, e foi assim até o momento que eu soube”.

Papel da esposa na aproximação do padrasto junto à enteada

Os padrastos entrevistados concordam ao afirmar que as companheiras possibilitaram a construção de vínculo entre eles e suas enteadas. Afirmam que as mesmas valorizam a importância de um contato masculino na criação de suas filhas para que as mesmas possam desenvolver-se com as representações masculinas e femininas em suas vidas.

Atividades que padrastos e enteadas desenvolvem juntos

As atividades que envolvem Antônio e sua enteada estão ligadas a interesses mútuos, que passa a ser um bom filme, uma boa conversa, dúvidas sobre a faculdade que a mesma cursa e o futuro. O padrasto Bruno relata que as atividades são “as mesmas que seria se fosse filha verdadeira ou biológica”.

Ao contrário, a ligação entre Cícero e a enteada ocorreu quando esta era ainda muito pequena, o que levou a estar sempre muito próximo “a gente esteve sempre, toda a vida, como uma família, nós três pai, mãe e filha”.

Responsabilidades com relação à enteada

Os padrastos entrevistados são unânimes em sentir-se compromissados com os valores morais e econômicos da família. Em seus relatos, predomina a divisão dos compromissos financeiros com as companheiras e a importância dos valores morais que devem ser passados de pai para filho dentro do lar.

Papel do padrasto na vida da enteada

O principal fator apontado pelos padrastos, como sentimento fundamental na relação entre eles e suas enteadas, é a importância do papel masculino dentro de casa, do pai que limita, contribuindo no desenvolvimento emocional de uma filha. “minha parcela é da figura masculina em relação ao aspecto da família, não só aos aspectos concretos, mas aos emocionais” (Antônio).

“pessoa fundamental é a mãe, são responsabilidades do homem dentro de casa “ (Bruno).

“me sinto fundamental na vida de minha enteada, e ela com certeza também sente assim (...) ela cresceu me vendo dentro de casa” (Cícero).

Percepção do padrasto sobre a enteada

A percepção de Antônio sobre sua enteada é de uma pessoa contida quando se trata de demonstrar afeto, porém segura frente às novas possibilidades de realização Para Bruno, a enteada é uma criança que quer muito bem ao padrasto, o deseja como pai verdadeiro. Cícero diz que a enteada é uma criança que nunca deu muito problema, mas reconhece ser uma menina que cresceu com a dúvida constante quanto ao verdadeiro pai e que isso a deixará com marcas por toda a vida.

Relacionamento do padrasto com o pai biológico da enteada

Nenhum dos padrastos entrevistados mantém qualquer contato com o pai biológico das enteadas e, tampouco, demonstraram vontade de vir a conhecê-los. Conforme os relatos, nem mesmo as enteadas e suas mães mantêm qualquer contato com os mesmos.

Desejo de ter seus próprios filhos

Os padrastos demonstraram estarem abertos ao desejo de terem seus próprios filhos, podendo acrescentar à família atual um filho que seja do casal.

Para Antônio, é como se o tempo determinasse sua desistência em ter filhos, pensa já estar velho para poder dar continuidade aos cuidados necessários e disponibilidade que exige uma criança

Bruno e Cícero estão dependentes das companheiras na realização de seus desejos, de vir a constituir família, pois para ambas problemas individuais estão adiando esta idéia.

Resultados obtidos através da aplicação do T.A.T.

Os dados obtidos através da aplicação do Teste de Apercepção Temática – T.A.T – foram submetidos à interpretação segundo Morgan e Murray (Silva, 1989). No quadro que segue, há a síntese da análise realizada.

 

 

Resultados obtidos através da aplicação da Escala de Percepção de Suporte Social (EPSS)

Antônio se sente muito realizado com sua família e com os momentos de intimidade, está bastante satisfeito em relação às atividades sociais e possui um grau de satisfação médio em se tratando do relacionamento com amigos.

Bruno possui baixa satisfação com relação à família, sente-se bastante realizado na intimidade e nas atividades sociais, porém sua percepção de maior suporte social está na relação com os amigos.

Cícero encontra-se bastante satisfeito nos momentos de intimidade, possui um grau de satisfação médio em relação a sua família e uma baixa satisfação com os amigos e atividades sociais.

 

 

Discussão

O presente estudo procurou compreender o que leva um homem a assumir a paternagem de uma filha que não é sua biologicamente, mas que pertence a uma mulher a quem ele se une por amor. A função paterna tem um importante significado estruturante e legalizador em uma família, portanto, as questões aqui abordadas são de relevância psicossocial e seu resultado possibilita um melhor entendimento das diferentes posturas pessoais nas novas configurações familiares.

Esta pesquisa não tem como objetivo a generalização dos dados, mas abordar os aspectos mais salientes de três participantes, que têm em comum o papel de serem padrastos, assumido a partir da formação de uma família reconstituída.

Os resultados obtidos através das entrevistas e do T.A.T. mostraram aspectos comuns e divergentes na vida dos participantes. Os três padrastos da amostra conheceram a companheira a partir de um relacionamento de amizade, assim, favorecendo o prévio reconhecimento da estrutura familiar à qual se estavam inserindo, facilitando desta forma a construção vincular com a enteada. A este respeito, Wagner et al.(1997) coloca que a construção de uma nova família pode ser considerada uma tentativa saudável de refazer a vida conjugal e amorosa, deixando os envolvidos mais sensíveis e flexíveis em seus relacionamentos.

O amor pela esposa foi determinante na construção da nova família; as esposas, por estarem sós e com o encargo dos cuidados da filha, necessitando talvez de outras formas de transformar suas realidades em algo mais prazeroso, possibilitaram uma maior aproximação do companheiro. As esposas facilitaram e valorizaram o vínculo dos padrastos com as enteadas, entendendo a importância do contato das filhas com uma figura do sexo masculino.

Estudos realizados por Hetherington e Henderson (1997) mostram que as múltiplas transições e reorganizações familiares por que passam uma família reconstituída, geram mudanças no comportamento dos envolvidos, alterando padrões no relacionamento das crianças com as figuras adultas significativas. Os autores colocam também que um relacionamento marital positivo, construtivo e de suporte da mãe com o padrasto beneficia a criança e a livra de alguns dos problemas que poderiam surgir se seu desenvolvimento se desse com um só cuidador.

Na amostra do presente estudo, os participantes relatam que as companheiras possibilitaram a aproximação das enteadas, solicitando ações disciplinadoras e orientadoras por parte do padrasto, abrindo espaço no núcleo familiar para que pudessem vivenciar a construção de um vínculo afetivo e participante de pai para filha com as crianças.

Os três companheiros dividem com suas esposas as despesas financeiras da casa e responsabilidades sociais e morais, participando dos encontros em família, das atividades escolares, esportivas e tarefas educacionais.

Estas características, formação de vínculo familiar a partir do amor pela esposa, o incentivo da companheira na aproximação com o(a) enteado(a), a participação nos cuidados com as crianças, também foram encontradas em estudo que verificou a paternagem de filhos não biológicos, utilizando metodologia semelhante ao da presente pesquisa (Bossardi, 2002).

O nível socioeconômico e educacional dos padrastos entrevistados é semelhante, o que difere são as idades dos participantes – Antônio, mais velho com 49 anos e Cícero, mais novo, com 33 anos – porém o tempo de convivência com a esposa é maior para o Cícero (15 anos).

Os participantes conheceram as enteadas em idades diferenciadas, Antônio conheceu e passou a se relacionar com a enteada quando esta passava pela fase da adolescência, Bruno no momento da latência da menina e Cícero durante o primeiro ano de vida de sua enteada. Pode-se considerar, portanto, que cada relacionamento foi construído tendo como base as necessidades psicológicas de cada uma das enteadas. A adolescente exigiu que a aproximação fosse sendo construída de forma gradativa, a menina de 8 anos exigiu atenção, carinho, passeios, atividades próprias de sua faixa etária e para o padrasto Cícero, que convive com a enteada desde o início de sua vida, foi como criar uma filha de verdade.

As três enteadas estavam vivendo um momento importante de suas vidas, a de Antônio vivenciando a saída do mundo infantil e reeditando o Édipo; a de Bruno também na vivência do Édipo, necessitando da figura masculina dentro do lar para quebrar a dualidade com mãe; e a de Cícero um bebê precisando de todos os cuidados e identificações do mundo infantil. Carter e McGoldrick (2001) salientam que toda família reconstituída assume características próprias de vinculação afetiva, e que a idade e sexo, dos filhos e dos pais, são determinantes dessas características. Ressaltam, também, ter importante papel nesta construção conjunta a capacidade dos membros em resolver seus conflitos anteriores.

É necessário salientar que, apesar de cada caso apresentar peculiaridades que os distingue, para os três padrastos a aproximação com a enteada foi vivenciada como uma relação de pai para filha. A respeito desta vivência, Aberastury (1985) afirma que para a criança sentir-se filho do pai é tão fundamental para seu desenvolvimento como indivíduo como o próprio fato de sê-lo.

A paternagem, para estes padrastos, é vivenciar o papel da figura masculina na composição de um lar e assumir o papel do pai dentro de casa. Para eles, são processos complementares, que se desenvolvem na estrutura familiar, para resguardar o desenvolvimento físico e afetivo da criança. Este aspecto vai ao encontro da afirmação de Maldonado (2000), quando afirma não ser a biologia humana o principal determinante de força de um vínculo, pois, muitas vezes, acontece de o atual marido da mãe, o padrasto, desempenhar melhor a paternagem do que o próprio pai biológico.

Com os pais biológicos, nenhuma das três famílias mantém qualquer tipo de contato. Pensa-se que esta ausência do pai biológico possa ter sido um facilitador na aproximação das enteadas para com seus padrastos, pois a distância das filhas de um referencial masculino as fizeram buscar, na figura do padrasto, a identificação com o pai, um referencial de vida, a construção da própria identidade.

O T.A.T. revelou que os padrastos do estudo têm uma imagem da figura de seu próprio pai como autoritária, distante, opressora e até inexistente. Os três desenvolveram características de passividade, afeto deprimido e poucas condições psíquicas de enfrentar a conflitiva emocional com a figura do pai. Antônio, durante a testagem, não aborda assuntos relacionados ao pai, sente necessidade de resolver o conflito, porém fracassa. Bruno vê no pai uma figura que pode auxiliar, porém não enfrenta o conflito e acaba se submetendo passivamente a ele. Cícero sente-se frustrado frente à inexistência do relacionamento com o pai e deprime-se.

Deve-se ressaltar que a função paterna é significativa na vida de um filho, a criança liga-se ao pai sentindo a necessidade de ser confortada por ele. É o pai quem passa a mensagem de cuidador, educador e dos limites que a criança introjeta durante seu desenvolvimento (Bee, 1997; Coppolillo, 1990; Montgomery, 1998).

Os entrevistados manifestaram o desejo de ter uma relação próxima, de amizade com a enteada e entendem que conquistando sua confiança poderão auxiliá-las em seu processo de crescimento e amadurecimento, educando e orientando mais efetivamente.

Nos relatos, vê-se uma necessidade e esforço de não reeditar a imagem de pai ausente no convívio com as enteadas, observa-se uma tentativa de reverter o quadro de pai distante, mais temido do que respeitado, para um pai afetivo e participante, justamente contrapondo as deficiências de cada um deles no relacionamento com o próprio pai.

Pode-se dizer que existe uma busca de gratificação nestas relações, por parte do casal e por parte do padrasto para com a enteada, como tentativa de reverter o modelo de paternidade e relações familiares apreendido com seus pais. Bee (1997) refere que crescer com um pai envolvido é condição determinante para o desenvolvimento da auto-estima dos filhos. Do ponto de vista dinâmico, pode-se pensar em uma identificação pela ausência do pai, vivenciada pelo padrasto e pela filha não biológica.

Os entrevistados não referiram o propósito de reformular o relacionamento com o próprio pai a partir da relação com a enteada (ou futuros filhos), mas apresentam necessidades de superá-los. Eles apresentam personalidades com fortes necessidades de afago, amparo, aprovação e cuidados e, quem sabe suprindo essas necessidades no âmbito familiar, promovam a realidade da vinculação à família reconstituída.

A escala possibilitou confirmar alguns dos dados obtidos através dos relatos dos participantes. Antônio sente-se totalmente satisfeito no convívio em família, levando a supor que, frente a um mundo interno empobrecido, refugia-se defensivamente no âmago familiar. Bruno, que na entrevista relata estar satisfeito com a família que construiu, apresenta na escala, um baixo índice da satisfação com a família. Pode-se pensar que, por se mostrar passivo frente os conflitos, não os confronta, não enfrenta a situação de insatisfação e refugia-se na convivência com os amigos. Para Cícero, a escala vem a comprovar suas características depressivas, o que o mantém distante da vida social e refugia-se na intimidade por sentir o ambiente opressor.

Por fim, pode-se pensar que, pelos conflitos com os próprios pais, esses homens procuraram estruturações familiares já prontas, com um ambiente acolhedor, onde foram aceitos e amados, não precisando enfrentar o processo de construir uma família e ter seus próprios filhos. Eles pularam, talvez, uma etapa do processo da paternidade, por impossibilidade de assumir o papel de pai biológico. Resultado semelhante foi encontrado por Bossardi (2002), em que os padrastos daquela amostra também adiam a realização do desejo de ter seus próprios filhos.

 

Considerações finais

Através desta pesquisa, procurou-se investigar uma pequena parcela dos relacionamentos humanos, os que unem um homem a uma mulher, que possui uma filha não biológica de outro relacionamento. Os resultados obtidos não têm a pretensão de esgotar o assunto e nem de generalizar comportamentos com relação aos padrastos.

Pensa-se que este estudo poderia ser estendido a uma população maior, possibilitando um melhor entendimento do homem e seu posicionamento frente à paternagem de um(a) filho(a). As novas configurações familiares exigem revisões no estudo deste novo papel – o padrasto – e dos sentimentos que o levam a comprometer-se afetivamente com uma enteada.

Esta pesquisa possibilitou verificar que os padrastos participantes construíram, ao longo do relacionamento, laços afetivos com as enteadas e exercem a paternagem, quando solicitados, através de cuidados, exemplos, exigências e cumprimento de suas responsabilidades. Por meio dos dados subjetivos coletados pelo T.A.T., pode-se observar que os mesmos vivenciaram relações paternais empobrecidas durante o seu próprio desenvolvimento, o que, por sua vez, pode ter influenciado a opção de constituírem uma família com filhos não biológicos. Desta forma, os participantes exercem a paternagem, sem necessariamente, ter que experienciar a paternidade.

Esses homens mostraram-se capazes de reelaborar sentimentos ambivalentes de amor paternal no cuidado da enteada e vivenciar na família reconstituída um ambiente acolhedor em troca de um ambiente hostil introjetado na infância. A família possibilitou a esses homens vivenciar relações afetivas de valorização e respeito, sentir-se importante para alguém, sentimentos provavelmente desconhecidos por eles.

A vivência subjetiva de cada participante determinou como esses relacionamentos efetivaram-se e também foram determinantes nas suas escolhas de vínculos.

Mesmo dentro desta configuração familiar, com conflitos infantis vivenciados na relação com os próprios pais, quando bem-sucedida, é extremamente positiva e desafiadora no sentido de ser um fator protetor para a criança em termos de risco para o desenvolvimento de problemas comportamentais, que podem vir a acontecer quando as famílias são constituídas com somente um cuidador.

Nesse sentido, é também importante construir um entendimento mais abrangente sobre a forma do homem se relacionar, dando ênfase à real importância da função paterna e seu papel no desenvolvimento de seus filhos, pois compreendê-lo melhor nos seus relacionamentos conjugais e paternais, possibilitaria aproximá-lo da paternagem na composição familiar.

Seria importante que a Psicologia ampliasse seu saber sobre o “pai suficientemente bom”, revendo ensinamentos de Winnicot sobre a “mãe suficientemente boa’” – para poder dar maior importância a este importante papel na composição familiar.

 

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Endereço para correspondência
E-mail: gtome@terra.com.br

 

Recebido em 12/2003
Aceito em 05/2004

 

 

1 Graciella Leus Tomé – Aluna do Curso de Psicologia da Universidade Luterana do Brasil
2 Lígia Schermann – Professora do Curso de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Universidade Luterana do Brasil, Canoas, Brasil
* Trabalho de conclusão do Curso de Psicologia da aluna Graciella Leus Tomé, apresentado em julho de 2003 na ULBRA Canoas, sob a orientação da Profa. Dra. Lígia Schermann

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