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Aletheia

Print version ISSN 1413-0394

Aletheia  no.20 Canoas Dec. 2004

 

ARTIGOS DE PESQUISA

 

HIV/AIDS e práticas preventivas em uniões heterossexuais estáveis

 

HIV/AIDS and preventive practices for heterosexual couples

 

 

Lirene Finkler1,I ; Manoela Ziebell de Oliveira2,II; William B. Gomes3,II

I Prefeitura Municipal de Porto Alegre
II UFRGS – Instituto de Psicologia

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O estudo descreve e analisa práticas preventivas adotadas por 15 casais heterossexuais estáveis nos períodos anterior e posterior à testagem para HIV, realizadas voluntariamente em um serviço de saúde pública. Utilizou-se uma entrevista semi-estruturada para avaliar se a possibilidade real de infecção. Concretizada através do teste, trouxe mudanças nas práticas e nos padrões de negociação quanto à prevenção. A análise qualitativa baseou-se em transcrições liderais de episódios cotidianos envolvendo valores e negociações sobre práticas preventivas, descritos pelo casal. Em conclusão, interpretou-se que os riscos de infecção são negados ou desvalorizados, mesmo em casais sorodiscordantes, por dificuldades com o tema da sexualidade e por padrões de comportamento de gênero: homens expõem-se a risco para afirmar sua masculinidade; mulheres para manter relacionamentos afetivos. Propõe-se o uso intervenções com ambos os cônjuges, que levem em consideração a dinâmica do relacionamento e forma de comunicação necessária para manutenção de comportamentos preventivos.

Palavras-chave: HIV/AIDS, Casais, Prevenção, Comportamento sexual.


ABSTRACT

The study describes and analyses preventive practices adopted by 15 heterosexual stable couples before and after voluntary HIV testing, at a public health service. The effects of simultaneous testing on practices and patterns on safer sex were evaluated by a semi-structured interview. The qualitative analysis was based in the literal transcriptions of daily episodes about values and negotiations on preventive practices, as indicated by the interviewed couples. Findings suggest that even sorodiscordant couples denied or minimized the infection risks because of difficulties with sexuality or genre behavior patterns communication: men expose themselves to the risk by trying to reaffirm their masculinity; women abdicate prevention in order to keep the relationship. The study proposes the use of intervention with both men and women, taking into account relationship dynamics and communication patterns needed to maintain preventive behavior.

Key words: HIV/AIDS, Couples, Prevention, Sexual behavior.


 

 

Introdução

O contexto epidemiológico da AIDS neste início de milênio caracteriza-se pela crescente feminização da epidemia. Conforme dados do Ministério da Saúde (Brasil, 2002), 60% dos novos casos de infecção feminina, no Brasil, ocorrem entre mulheres que têm parceiros fixos. Tal realidade exige estudos voltados para a sexualidade de casais em situação de risco, tendo como foco a negociação para o uso de práticas preventivas. A relação de um casal é um sistema complexo com mecanismos de regulação emocional e comportamental próprios. A regulação emocional é estabelecida pela comunicação verbal e não verbal, envolvendo acordos conscientes e inconscientes, regras de interação dos indivíduos entre si, e do casal com os sistemas familiares e sociais circundantes (Parker & Galvão, 1996).

A noção de grupos de risco, enfatizada quando se começa a atentar para a epidemia, além de contribuir para a disseminação do preconceito, estigmatizou a AIDS como “doença do outro” (Daniel & Parker, 1991). Por conseguinte, a ameaça de risco pessoal foi afastada, principalmente para aqueles que mantinham relacionamentos heterossexuais estáveis. Com a crescente feminilização da epidemia, buscou-se adaptar as táticas globais de prevenção à realidade dos relacionamentos heterossexuais estáveis, enfatizando o uso de preservativos como modelo de sexo mais seguro (Paiva, Venturi, França-Jr, & Lopes, 2003).

Pesquisas têm mostrado que o desequilíbrio de poder torna a negociação de sexo mais seguro um dos mais críticos problemas para as mulheres brasileiras (Paiva e cols., 2002). Elas continuam não se percebendo vulneráveis à AIDS, ao cumprir seu papel social como esposas e mães. Além disso, apresentam dificuldades em apontar uma alternativa de prevenção, mesmo sabendo das práticas sexuais extraconjugais de seus parceiros. Para muitas, o medo de se infectar com o HIV é menor do que o receio de sugerir, ao parceiro, o uso de preservativos. A noção de risco é, dessa forma, profundamente vinculada aos atributos femininos de passividade e fidelidade, como indicou estudo realizado com mulheres gaúchas (Both, 1997). Tais atributos estabelecem uma relação de gênero e uma relação de poder que dificulta a prevenção da AIDS. As mulheres podem ser mal vistas quando ousam ser ativas, questionando as práticas sexuais.

Casais que não dispõem dos resultados da sorologia vivem um paradoxo quanto à negociação de práticas sexuais seguras. A sugestão para uso de preservativo por um dos parceiros pode ser interpretada de vários modos e produz conseqüências adversas. Primeiro, pode ser tida como desconfiança da fidelidade do outro. Segundo, se o uso do preservativo é aceito pelo parceiro a desconfiança é confirmada. Nos casais soropositivos ou sorodiscordantes, a questão da fidelidade assume outro caráter, uma vez que a não utilização do preservativo oferece um risco iminente, e não uma possibilidade futura. Apesar disso, estudos realizados em São Paulo (Paiva, Latorre, Gravato & Lacerda, 2002) indicaram que as mulheres portadoras enfrentavam os mesmos obstáculos que as demais. Elas priorizavam o cuidado da família e deixavam em segundo plano a negociação de sexo seguro com o parceiro, pelas dificuldades encontradas.

As questões de gênero permeiam e sustentam os fatores citados na literatura como barreiras para a negociação de sexo seguro em relacionamentos estáveis. Elas estão presentes na oposição ao uso de preservativos por um ou ambos os parceiros, na não avaliação de risco, no constrangimento em propor o uso de preservativos, e na possível diminuição do prazer (Brasil, 2000; Paiva & cols., 2002). O casamento e as relações de longo prazo são vistos como incompatíveis com o uso de preservativos, já que a utilização sugere a infidelidade (Paiva & cols, 2003).

Entre os fatores reconhecidos como facilitadores de comportamentos preventivos inclui-se um conjunto de informações, envolvendo a infecção por a HIV/AIDS, o sexo seguro, situações de risco e habilidade para a negociação com os parceiros sexuais. Contudo, tais fatores podem ser extremamente dificultados pelos padrões comportamentais de gênero (Ford & Norris, 1995). Por conseguinte a vulnerabilidade para a infecção existe para o homem e para a mulher. Os homens são pressionados a ser sexualmente impulsivos para evidenciar a masculinidade. Em contraste, as mulheres são pressionadas a serem não assertivas sexualmente e a acatar os comportamentos sexuais masculinos.

Com uma abordagem voltada tanto para a prevenção quanto para o tratamento, o Brasil tem se destacado na política de combate e prevenção à AIDS (Paiva & cols, 2003). No âmbito da prevenção, as principais medidas são as seguintes: incentivo e orientação ao uso de preservativo masculino, a adoção de seringas descartáveis fornecidas por programas de redução de danos e estímulo à testagem e a sorologia no pré-natal. No âmbito do tratamento, assegura-se acesso gratuito aos antiretrovirais. Em ambos os casos, o acompanhamento inicia-se através de procedimentos de testagem e aconselhamento voluntário, realizados em Centros de Testagem e Aconselhamento - CTA. O alcance preventivo de tais procedimentos tem sido reconhecido através de estudos em diversos países. Esses procedimentos estão associados à redução de comportamentos de risco e à adoção de comportamentos sexuais responsáveis. Os resultados aparecem na diminuição do número de soroconversão entre casais sorodiscordantes (Roth & cols., 2001). Entretanto, tais resultados são, por vezes, contraditórios.

Weinhardt, Carey, Johnson e Bickham (2000) analisaram os efeitos do aconselhamento e testagem para HIV nos comportamentos sexuais de risco, tendo como base a meta-análise de 27 pesquisas publicadas entre 1985 e 1997. Os resultados indicaram que a testagem e aconselhamento para HIV parece ser um meio efetivo de prevenção secundária para indivíduos HIV+, mas não oferece o mesmo resultado da estratégia de prevenção primária para indivíduos ainda não infectados.

O presente estudo tem como objetivo descrever e analisar as práticas preventivas adotadas por casais nos períodos anteriores e posteriores à testagem voluntária realizada em Centro de Testagem e Aconselhamento. Procura também avaliar se a possibilidade real de infecção, concretizada através do teste, trouxe mudanças nas práticas e nos padrões de negociação quanto à prevenção.

 

Método

Casais Participantes

Participaram da pesquisa, 15 casais heterosexuais que estavam realizando testagem para HIV em um Centro de Testagem e Aconselhamento (CTA) do Estado do Rio Grande do Sul. Destes casais, nove já haviam sido informados do resultado da testagem, sendo que sete deles eram soropositivos e estavam convivendo com a situação por um período que variava de um mês a dois anos (Tabela 1). A idade variou de 17 a 66 anos e o tempo de união estável dos casais foi de nove meses a 14 anos. Em alguns casos havia história de casamentos anteriores e de filhos desse(s) relacionamento(s). Alguns casais possuíam filhos em comum. No período da pesquisa, cinco mulheres estavam grávidas. O nível de escolaridade predominante foi o ensino fundamental incompleto, havendo casais que concluíram o ensino médio, e apenas um informante com curso superior. Os casais residiam em nidades domésticas nucleares independentes (casal e filhos) ou com familiares. Dois casais viviam em casas separadas, um casal vivia junto apenas 4 dias por semana, e um marido estava preso. Eles eram procedentes de bairros da periferia de Porto Alegre ou da região metropolitana, fazendo parte dos chamados grupos populares (camadas de renda baixa e média baixa) (Tabela 2). A pesquisa iniciou em 1998, encerrando-se em 2003.4

 

 

 

Instrumento

Os casais foram entrevistados, tendo como base um roteiro flexível, baseado no modelo fenomenológico proposto por Kvale (1983), como indicado no Anexo A. O roteiro de entrevista iniciava com perguntas sobre o relacionamento do casal, explorando a seguir os motivos que levaram à procura do teste para HIV naquele momento (vivência da infecção e práticas relacionadas), concluindo com algumas perguntas sobre os valores e os pontos positivos que caracterizavam a relação.

Procedimentos

Os casais informantes foram convidados a participar deste estudo a partir de seu contato com o Centro de Testagem e Aconselhamento (CTA-COAS) Estadual, localizado junto ao Ambulatório de Dermatologia Sanitária do Estado do RGS (ADS). O convite para participação ocorreu em duas situações: durante o aconselhamento pós-teste pelos próprios aconselhadores, através de Folheto Informativo aos Aconselhadores; ou após palestra que antecedia a testagem, pela própria entrevistadora. No primeiro caso, os aconselhadores haviam sido previamente informados sobre a pesquisa e sobre o perfil dos casais candidatos. No segundo, os casais eram solicitados a permanecer na sala, quando se apresentavam os objetivos da pesquisa, com distribuição de Folheto Informativo aos Casais. Nesse momento, lhes era informado que, após a coleta de sangue, os casais que desejassem participar poderiam retornar à sala de palestra, para a entrevista. As entrevistas foram registradas em gravação de áudio e transcritas literalmente. Os casais que participaram da pesquisa assinataram o Termo de Consentimento Livre e Informado, de acordo com as exigências legais.

Análise dos dados

O material obtido nas entrevistas foi submetido a uma análise qualitativa temática, dividida em três etapas: 1) descrição compreensiva das respostas dos casais à entrevista, elaborada de acordo com a demarcação das falas em unidades temáticas para que nada do que foi dito fosse deixado de fora e nem engrandecido ou diminuído por escolhas do pesquisador (Gomes, 1998); 2) identificação de temas que se apresentam com potencialidade para esclarecer os elos que interligam as experiências vividas pelo casal, de acordo com os elementos fornecidos pelo contexto da descrição, designada por Patton (1990) de análise indutiva; e 3) análise crítica ou interpretativa dos temas identificados no confronto entre descrição, literatura e experiência do pesquisador com a situação em foco. As três etapas mencionadas são passos reflexivos imbricados, cada passo contendo os três. Deste modo, a análise apresentada a seguir iniciará com uma síntese compreensiva das respostas obtidas (primeira etapa), demarcada em temas (segunda etapa) que, enquanto escolhas do pesquisador, já se constituem em interpretação (terceira etapa). No entanto, nesta síntese compreensiva preserva-se a perspectiva dos entrevistados. Procura-se manter, ao longo da análise, o enfoque qualitativo, isto é, excluindo-se quaisquer apoios quantitativos de falas ou falantes, mantendo-se coerentes com as especificações de possibilidades. Para este artigo, a análise concentrou-se na demarcação de trechos das entrevistas que traziam aspectos e condições das negociações do casal sobre sexo seguro, sendo que as sínteses das histórias dos casais aparecem como pano de fundo.

 

Resultados

Práticas Preventivas Anteriores à Testagem

Obviamente, eram esperadas duas possibilidades com relação às práticas preventivas na vida sexual dos casais: a adoção ou a não adoção de preservativos. A descrição orienta-se para a compreensão das circunstâncias que nortearam as escolhas preventivas e as negociações do casal. Primeiro será descrita a situação dos casais que optaram pela prevenção e, em seguida, a situação dos casais que não usavam preservativos. Os casais que optaram pela prevenção utilizavam o preservativo masculino, principalmente no início do relacionamento.

Descrição das histórias dos casais que optaram pelo uso de práticas preventivas

O uso do preservativo estava relacionado à percepção de risco de infecção por HIV e de gravidez indesejada. Quando usado somente para contracepção, era rapidamente substituído pela pílula. Casais que se percebiam em situação de risco, iniciavam o relacionamento usando preservativo, para abandonarem em seguida por dificuldades no uso, por descrédito na efetividade da prevenção após algum evento sexual desprotegido, e pela consolidação do vínculo afetivo. Além do uso de preservativo com o cônjuge, outra prática referida como preventiva foi a incitação tácita para o parceiro para ser fiel ou usar preservativo em relação com uma terceira pessoa. As posições descritas são ilustradas através da transcrição literal das falas dos casais.

Na história do Casal 1 havia a percepção do risco de infecção, levando a tentativas de prevenção no início do relacionamento, que não se efetivaram por dificuldades no uso do preservativo.

H: Aí na primeira vez que eu fui usar a camisinha com ela eu fiquei meio inibido. Não deu. [...]

M: A gente tentou uma vez, não deu. Tentamos duas, não deu. Aí tá, ai tentamos a terceira. A terceira também não deu. Aí na quarta eu perdi a paciência com ele (risos). Ai eu peguei toquei a camisinha pro lado, eu digo: bom, não dá com camisinha vai ter que ser sem, que daí agora eu já perdi a paciência, na quarta vez. [...] Eu perdi a paciência porque: para prá pensar um pouquinho, eu já tava há um ano sem relação nenhuma com ninguém, então tava invicta de novo, então eu já tava subindo pra cabeça aquele desejo.[...]

H: Eu acho assim, é, porque no início eu não conhecia bem ela, aí na primeira relação, ficou meio chato usar camisinha. Eu fiquei com aquela impressão assim ó: bá, “vai ver que eu não sei colocar”, entendeu, acho que isso me deixou nervoso. Aí depois que eu, claro, nós já tinha várias relações, eu me desinibi completamente.

As histórias dos casais 8 e 9 mostram outro argumento, apresentado para abandonar a prevenção: a crença de que, após eventual experiência desprotegida, o casal já estaria infectado, não adiantando mais o uso de preservativo.

Casal 8 - P: E quando teve essa situação (ele contar que podia estar com AIDS) tu pensaste em usar camisinha a partir disso, ou não...?

M: Não... a primeira coisa que eu pensei, se ele tem, eu tenho, então eu já tenho também, então não tem porque usar camisinha.

Casal 9 - P: E ai quando é que começou a parar? Quanto tempo atrás?

H: Ah, acho que... uns três meses com o preservativo, depois... mais ou menos isso.

P: E ai parou de vez ou foi devagarinho, assim?

H: Parou de vez.

P: Vocês combinaram, não vamos mais usar?

H: É, é que depois que a gente erra, assim, sei lá, já errei, se tiver que pegar uma coisa do outro já aconteceu... Mais ou menos, acho que o nosso pensamento foi mais ou menos esse mesmo

A história do Casal 9 ilustra o abandono da prevenção a partir do estabelecimento da confiança. Eles iniciaram o relacionamento usando preservativo, mas interromperam após três meses, ao irem morar juntos.

H: Acho que todo casal começa assim, com aquele grilo na cabeça. Primeiro se cuida bastante, depois acaba pegando uma confiança na pessoa, conhecendo a história dela, mais ou menos assim, né, e acaba relaxando, acaba indo pro brejo, todos aqueles planos de cuidar, de se preservar, acabam indo pro brejo. Ai só que depois que a gente erra, né, que a gente começa a pensar, ‘pô, que eu errei no passado, tu também errou’... tipo assim, né, já teve outras experiência de transar sem camisinha, sem preservativo antes... e é por isso que a gente veio aqui hoje, prá tirá as dúvidas.

Descrição das histórias dos casais que não utilizavam práticas preventivas

Dentre os casais que não utilizavam quaisquer práticas preventivas, do início do relacionamento à realização do teste, predominava a não admissão de suscetibilidade. No entanto, havia aqueles que suspeitavam de soropositividade em um dos parceiros, devido a relações extraconjugais ou a uso de drogas injetáveis. Esses fatores, entretanto, não determinaram ação preventiva. A não prevenção decorreu de pedido de prova de amor e confiança, e explicitou a incompatibilidade do uso do preservativo com o casamento ou relacionamento estável, principalmente de modo a diferenciá-lo de relações sexuais eventuais. O argumento baseava-se na ausência de motivos para desconfiar do cônjuge que estava em casa, diferente do que deveria acontecer com as pessoas da rua ou dos encontros eventuais. A negociação e o argumento aparecem na história do Casal 4.

H: Depois que eu ouvi falar em AIDS sim [passei a usar camisinha]. A não ser em casa, né. Depois que eu ouvi “AIDS mata”, mas! Podia ser ... aí que eu desconfiava mais quando era uma guria num carrão, isso, aquilo, alguma coisa, e que me cantava, eu desconfiava mais ainda, do que às vezes qualquer uma. Mas sempre com camisinha.

Não usar preservativo com o parceiro oficial pode ser uma forma implícita de demonstrar comprometimento com a relação. Contudo, essa prática pode ser um pedido explícito de prova de amor e confiança, como mostra a história do Casal 2.

M: Inclusive quando eu disse prá ele: “eu vou dormir contigo só se tu botá camisinha” ele disse assim: “então tu não me ama, tu tem que prová que me ama se tu não usá camisinha”. Eu tive que prová, né?

O pedido de prova de amor, exemplificado pelo Casal 2, partiu do homem, soropositivo para a mulher soronegativa, e estava relacionado ao desconforto e impotência causados pelo preservativo, levando-os ao não uso.

Na história do Casal 10, o companheiro (segunda relação estável da mulher) propôs o não uso de preservativo como uma forma de provarem o amor de um ao outro. Entretanto, ela era sabidamente soropositiva e ele tinha sorologia desconhecida, nunca havia se testado.

M: Eu achei maravilhoso quando ele disse: “se morre por tantas coisas, porque não se morrer de amor?” Ele não queria usar preservativo e eu assumi o risco junto. Eu podia ter insistido no uso de preservativo, mas não insisti. Achei romântico, que era uma prova de amor. Só que eu vi que era totalmente diferente. Quem ama alguém, primeiro tem que se amar.

O relacionamento terminou, mas o casal gerou um filho, que também é soropositivo.

Análise indutiva

As dificuldades e restrições ao uso de preservativo foram eminentemente masculinas, reiterando muitos problemas documentados na literatura, como a redução da sensação, a interrupção da espontaneidade, a interferência na atividade sexual (causando até impotência) e dificuldades em colocar os preservativos (Paiva e cols., 2002). Por parte das mulheres, foi mencionado que o preservativo masculino interfere na proximidade entre o casal, sob o argumento de que não se pode “realmente sentir um ao outro”. Entre os homens apareceu com clareza a falta de interesse no uso do preservativo. Mais do que a infecção por HIV, os homens temiam parecer inexperientes ou nervosos ao não saber colocar o preservativo nas primeiras relações sexuais, e, por conta disso, não alcançar a ereção. Um valor presente nas falas foi a responsabilidade masculina quanto ao uso de preservativo e, mais do que isso, na autoridade ao decidir pelo uso (Ford & Norris, 1995). As mulheres não se envolviam, de modo geral, com os processos de comprar, portar e colocar o preservativo, o que lhes causava vergonha. Há, entretanto, mulheres jovens que sempre portaram preservativos e aquelas que foram se familiarizando aos poucos, e hoje se sentem à vontade em propor o uso e em portar preservativos. Porém, a decisão final pelo não uso foi sempre determinada pela vontade do homem, independentemente da aceitação direta ou da contrariedade implícita da mulher.

De acordo com a literatura (Maxwell & Boyle, 1995; Strebel, 1995), o uso de preservativos costuma estar presente no início de um relacionamento, sendo dispensado tão logo a relação seja percebida como “estável”. No entanto, a relação pode, em seguida, ser substituída por outra, também monogâmica e tão “estável” quanto a primeira. Parece existir uma crença enganosa na segurança de relacionamentos monogâmicos de curta duração. As pessoas parecem não perceber as inconsistências inerentes à decisão de parar de praticar sexo mais seguro quando a condição de HIV de um parceiro relativamente novo é desconhecida.

A confiança foi um valor considerado fundamental à condição de “ser casal”. Contudo, a confiança pressupõe uma segurança e um risco em relação ao outro, pois não há como garantir quais os reais comportamentos do parceiro anteriores e fora do relacionamento. Não usar preservativo é uma forma de mostrar confiança e dar valor à relação, diferenciando-a das relações eventuais. A confiança simbolicamente expressa intimidade mas, concretamente, entre os casais desta pesquisa, resultou em práticas de sexo não seguro. Assim como no estudo de Maxwell e Boyle (1995), os casais deste estudo usaram o termo confiança como um eufemismo para monogamia. As relações de longa duração, conforme estimativas de sexo seguro (Brasil, 2000; Paiva & cols, 2003). nem sempre são monogâmicas, existindo nelas grandes riscos de infecção por HIV.

O mecanismo da confiança, para as mulheres, relaciona-se ao cuidar e mostrar que gosta do outro: elas se sujeitam aos riscos para dar a seus relacionamentos maior credibilidade (Knauth, Victora & Leal, 1998; Maxwell & Boyle, 1995). A noção presente é a de que uma relação longa, por pressupor confiança, é automaticamente protetora, e que tomar a decisão de ter uma relação longa com alguém garante a sensação de segurança. Nesse sentido, o uso de preservativos em relacionamentos estáveis tem um efeito desvalorizador, prejudicando a idéia de intimidade, embora pudesse ser uma forma de evitar inúmeras contaminações (Maxwell & Boyle, 1995; Roso & Bueno, 1998).

Análise crítica

Os motivos apresentados pelos casais para a não prevenção ou seu abandono parecem estar pautados na lógica da prevalência da vontade do homem. As dificuldades e restrições ao uso de preservativo são eminentemente masculinas, permeadas pelo distanciamento feminino. Já o estabelecimento da confiança é aparentemente recíproco: optar pelo não uso de preservativo pode significar que homem e mulher confiam na fidelidade um do outro. Mas essa reciprocidade fica enviesada quando se considera que culturalmente é aceito e até esperado que os homens façam sexo fora da relação principal. Apesar de homens e mulheres trazerem a importância da fidelidade, vem das mulheres o reconhecimento de que seus parceiros possam, em algum momento, envolver-se em relacionamentos extraconjugais. Em contraste, os homens parecem não pensar o mesmo com relação às parceiras. Dessa perspectiva, o estabelecimento da confiança tende a se desenvolver do pólo feminino para o masculino: são as mulheres que, pela necessidade de demonstrar confiança em seu companheiro e valorizar o relacionamento, abrem mão da proteção do preservativo (Knauth & cols, 1998; Paiva & cols., 2002).

Duas realidades em relação à prevenção emergem das entrevistas. De um lado, estão os casais que nunca se preocuparam com a AIDS, não fizeram prevenção e não têm tais habilidades desenvolvidas; de outro, estão incluídos os casais que tiveram tentativas de prevenção, mas as abandonaram. São casais já sensibilizados pela temática, necessitando reforçar e resgatar as habilidades de prevenção já existentes. Nesse sentido, associar o uso do preservativo à proteção do relacionamento principal/estável, à expressão de afeto, como forma de cuidado, poderia corrigir a distorção que retira os relacionamentos estáveis da noção de vulnerabilidade. Ainda entre os casais que abdicaram da prevenção, a desistência após um evento sexual desprotegido deve ser devidamente esclarecida e trabalhada, uma vez que em muitos casos é necessária uma exposição repetida para que a infecção se efetive. Não há dúvida de que vale a pena retornar ao uso do camisinha, mesmo após um ou mais contatos sexuais desprotegidos. Independentemente de uma exposição ao vírus no passado e independentemente da sorologia, a prática atual do casal poderá favorecer a saúde ou colocá-la em risco, tanto no sentido da infecção quanto da re-infecção.

 

Práticas preventivas anteriores à testagem

Descrição

Os casais que apresentaram resultados negativos continuaram a não usar preservativos durante o período de espera do resultado. Para esses casais o uso de preservativo era destinado à relação sexual com estranhos, um compromisso que passara a fazer parte da vida do casal. Os casais que apresentaram resultados positivos descreveram suas práticas efetivas durante o período de espera pelo resultado e depois da má notícia. Tais práticas podem ser classificadas em quatro modalidades: 1) suspensão das atividades sexuais, 2) uso sistemático de preservativos, 3) prevenção não sistemática, e 4) não prevenção. As quatro modalidades serão descritas a seguir, utilizando como exemplo os diálogos dos casais.

A suspensão das atividades sexuais mostrou-se associada a três possibilidades: a espera por maiores esclarecimentos sobre a doença, a debilidade física do cônjuge soropositivo, ou a alguma crise no relacionamento. O Casal 4, por exemplo, já apresentava baixa freqüência sexual durante os últimos anos. A esposa parou de tomar pílula, com o objetivo de emagrecer e marido passou a usar a camisinha. No entanto, o preservativo prejudicava o desempenho do marido na relação conjugal, embora não interferisse nas relações extraconjugais. O casal estava informado sobre a possibilidade de re-infecção. A seguir um excerto da entrevista do Casal 4.

H: Eu prá mim eu te diria assim, ó, quem comeu bala sem o papel, agora não vai ser fácil chupar uma bala com papel. Eu também, nunca gostei, eu odiava, odiava ao ponto de, com essa aqui mesmo, vamo usar prá não engravidar, uma coisa assim, e... não dava no couro. Sabe, não é... é a cabeça da pessoa.

M: Tu vai ter que te acostumar, né.

H: Outras estranhas, no caso assim com camisinha eu até ia, por que era aquilo, aquela primeira vez, não posso mancar, tem que ser homem, mas até em casa que já era mais costume assim, eu muitas vezes, não é? Por causa da camisinha. E sem camisinha dava jeito. Então quem chupou a bala sem papel... Tira aquela sensibilidade, tira muito[...]

M: Não, mas eu não transo sem camisinha com ele. Ainda mais quando existe esse risco.

P: Agora não mais?

M: Não. Capaz! Eu gosto mais de mim do que de qualquer outra coisa. Correr o risco por uma... (Ri com ironia.)

O uso sistemático de preservativo estava associado a outras iniciativas de cuidado com o parceiro, como avisar sobre o aparecimento de feridas na boca ou genitais ou restringir a proximidade corporal. Havia uma certa ansiedade permeando a relação sexual, como mostra a história do Casal 3.

H: Prá mim manter uma relação, eu não deixo nem ela ficar mais nua na minha frente, eu tenho que botar uma roupa, eu tenho medo de repente no dormir eu... sabe? [...] Sabe, depois que tu tem uma relação, por mais que saiu, de repente pode sair um pouco de esperma. Eu tenho medo de eu encostar nela, alguma coisa, e ela pegar AIDS. [...] [A esposa se emociona, chora e mostra tristeza ao falar do “preconceito que ele tem consigo mesmo”.. Ela diz não ter medo, pois usam camisinha.]

Em contraste, o Casal 7 aceitou com naturalidade o uso de preservativos. Entretanto, apesar de afirmarem veementemente que sempre usavam preservativos, a esposa engravidou, ao que parece pelo não uso do preservativo.

Para o Casal 8, por sua vez, um aspecto fundamental na manutenção do uso do preservativo é o recebimento de uma cota mensal de 20 camisinhas no próprio Centro de Testagem e Aconselhamento, onde também fazem acompanhamento médico. Ela não vê dificuldade alguma em usar camisinha; já para ele, não é a mesma coisa:

H: “mas, vai fazer o quê?”.

M: Agora se prevenir sempre, né. Mesmo não tendo (ri), não tendo camisinha, não tem...

H: Não tem sexo (M. ri).

A história do Casal 10 também ilustra a modalidade de prevenção sistemática. O relacionamento teve início com a presença clara do vírus. Com duas semanas de convivência, ela contou que era portadora do vírus havia cerca de oito anos. Se ele continuasse interessado, as coisas teriam de ser com os cuidados que ela exigisse. Ele refere que uma tensão erótica a mais marcou as primeiras relações sexuais do casal, uma vez que ela estava no controle.

H: Qual o homem que não fantasiou uma vez na vida ter a mulher no controle, ser quase como um objeto sexual. Era tudo embrulhadinho e com o maior cuidado (Ela ri). (...) Apesar que nos cuidamos muito. Preservativo sempre. No caso, se ela está com uma afta ou alguma coisa, ou eu, com alguma afta, um ferimento, todo o cuidado.

M: É a primeira coisa que a gente cuida bastante. A gente se cuida bastante. Qualquer até, exagerado, digamos assim, coceira, qualquer coisa na vagina, no pênis, a gente tá comunicando um ao outro. É assim, assim, assim. A gente cuida mais ainda. (...) Ele aceitou [transar], mas desde que a gente cumprisse todas as regras. Não foi uma imposição, foi uma colocação de nós dois. Eu até cheguei e disse: só assim. Às vezes a gente até comenta em sentir um o outro, sem aquela barreira de proteção...

A prevenção não sistemática estava associada à necessidade do casal sentir um ao outro durante as relações. A questão de sentir um ao outro permanece entre os casais como um limite imposto pela soropositividade. Assim, casais que não apresentam restrições ao uso do preservativo, por desconforto ou dificuldade, acabaram optando pela prevenção não sistemática como forma de sentir-se fazendo prevenção, mas, eventualmente, também desfrutando de uma intimidade sexual que seria impedida pelo preservativo. O exemplo é o Casal 6. Para eles, as primeiras experiências com camisinha foram muito difíceis. Ambos tiveram reações como “não sentir nada”, “sentir-se como uma pedra” ou “não sentir emoção nenhuma”. Inicialmente, o casal achou que era psicológico e sem nenhuma relação com a camisinha. Ela nunca havia usado e não gostava, pois acha que a relação sexual “ficava sem calor, se tornava fria”. Ele também não gostava de camisinha, mas estava usando porque era obrigado, por saber do risco da re-infecção. O uso, contudo, não era sistemático. O relato do casal 6 também mostra como a necessidade de usar preservativo às vezes parece imposta de fora, quando os médicos, televisão, jornal, livros, revistas, levantam a necessidade de usar camisinha. No entanto, a necessidade também pode também vir de dentro do relacionamento, refletindo um desejo de cuidar do outro e de si mesmo.

M: Nós descobrimos realmente que ele tinha, que eu tinha. Ai nós tomamos consciência realmente de que nós teríamos que usar.(...) Por mim mesma não usava, nós somos obrigados a usar.

H: Usamos porque somos obrigados, porque senão não usava.

P: Mas quem obriga?

M: Os médicos. Não, a doença. O medo de ficar se contaminando, e eu, de repente fazer com que ele fique doente mais rápido, ou ele me fazer ficar doente mais rápido. A doença.

P: Então na verdade, quem obriga é a consciência de vocês.

M: É.

H: É, isso aí é a consciência.

M: Isso é comum, né? De vez em quando a consciência fala mais alto. De vez em quando. Não é sempre.

Para a experiência do Casal 6 a idéia que prevalece é usar camisinha, mas não sempre. A morte é vista como inevitável, embora não necessariamente associada à AIDS, uma vez que a mulher também tem câncer há seis anos. Assim, até que o inevitável aconteça, a alternativa seria “morrer fazendo amor”.

A não prevenção estava associada à certeza de que a infecção haveria de vir, mais cedo ou mais tarde. Na história do Casal 2, o parceiro era usuário de drogas e sabia que era portador da infecção desde que iniciaram o relacionamento, havia dois anos. Ela estava grávida e continuava soronegativa. No início do relacionamento houve conversas, apresentadas pelo casal como “brincadeiras”, em que um propunha ao outro a realização do teste. A preocupação partiu da mulher, mas a testagem acabou não se concretizando. Estavam juntos havia dois meses, sem uso de preservativo, quando souberam que ele era portador do HIV.

P: Então tu não gosta de usar camisinha, A.?

H: Não, não é que não goste, eu não consigo.

M: Ele se sente mal. E... eu deixei por ele, eu já to dentro mesmo. (Voz de pouco caso)

P: Que que tu quer dizer com já tô dentro? Tu já usou esse termo algumas vezes. O que significa?

M: Eu já tô dentro. Eu já tô dentro, eu não me importo se eu tiver AIDS. [...]

H: Usei, no começo usei [camisinha], só que não deu certo.

M: Não, a gente teve, a gente tentou usar.

H: Não, eu acho que não funciona, eu acho que se tivesse... que se tivesse que, tinha que ser um tipo de uma vacina, assim, né. Porque é uma coisa de... é que nem um remédio que tu não vai tomá, né. Se o teu organismo não...

M: É ele que não consegue.

H: É que prá mim se ela usar é indiferente, o problema é prá mim. É tipo uma medicação que não dá certo. Não deu certo[...].

M: Não, eu sei que eu vou fica [soropositiva]! [Com muita naturalidade].

P: Tu sabe que vai ficar? Ou tu acha que não vai?

M: Não, eu nunca tirei a hipótese de não, sempre “Vou ficar!” Se eu tô dentro! Eu tô convivendo com o vírus, como é que eu não vou ficar? A não ser que ele não teja, tenha vírus então. (...) É, a doutora já me explicou (...) que é um caso raro o meu, mas ela tá feliz, existe, mas é um caso raro, já fazem dois anos e três meses.

Ela disse saber do risco e estar preparada para se infectar. Vai conviver com ele da mesma forma, tomando os remédios da mesma forma. Dizem que não gostariam que as práticas preventivas fossem diferentes das atuais. A gravidez não mudou nada com relação à prevenção; apesar disso, ela mencionou o desejo de usar a camisinha feminina. Ela justificou seu desejo de prevenir-se como uma forma de ajudar a si, ao bebê e ao companheiro: se pegar AIDS ela pode adquirir uma infecção diferente das que ele já teve, provocando alguma coisa pior nele. Faria a prevenção por ele, porque se soubesse que todos os vírus são iguais, não se preocuparia.

Análise indutiva

Analisando-se as histórias apresentadas, pode-se considerar que a segurança negociada envolve riscos importantes, principalmente para as mulheres. Foram elas que sugeriram essa alternativa e pontuaram seus limites, uma vez que não confiaram na disponibilidade de seus parceiros em usar preservativos nas relações extraconjugais. Pergunta-se então, por que esses homens se disporiam a usar preservativos com uma nova parceria sexual se eles foram contrários ao uso do preservativo no início do atual relacionamento? Por que eles mantêm uma recusa enfática quanto ao uso do preservativo na relação conjugal, alegando problemas como perda de ereção ou impotência?

Entre os casais deste estudo, a revelação da soropositividade estava relacionada, com freqüência, à constatação de relações extra-conjugais; assim, a decisão por fazer ou não sexo com o parceiro soropositivo não envolveu apenas as ansiedades naturais da nova situação, mas explicitou sentimentos de mágoa e raiva pela forma da infecção, pela exposição da família ao risco e pela desvalorização inerente do relacionamento principal.

No caso da suspensão das relações sexuais, as histórias dos casais indicam que quando há o desejo da manutenção afetiva do relacionamento, e não apenas da manutenção da sociedade conjugal em seu aspecto financeiro (“para manter os filhos”), a tendência é a retomada das relações sexuais. A partir daí, a opção pode ser a prevenção ou a não prevenção. A constatação da soropositividade faz com que os casais recorram às práticas preventivas, mas sua implementação é difícil.

O uso sistemático de preservativo tende a ser visto como uma forma de cuidado com o parceiro, mas envolve certas resistências e restrições. Em alguns casos, a proximidade corporal gerou ansiedade no cônjuge soropositivo, explicitando a culpa de submeter o parceiro não infectado a algum nível de risco. Além disso, o preservativo parece concretizar limites subjetivos impostos pela soropositividade: redução da longevidade, alteração de planos, e a própria derrocada da idealização quanto à vida amorosa. Esses limites concretizam-se na diminuição do contato físico e do prazer sexual.

A alegação de que com o preservativo “não dá para sentir um ao outro” pode levar à adoção de práticas de prevenção não sistemáticas, como um meio intermediário de atender às pressões de ambos os lados: consciência da necessidade de prevenção e necessidade de burlar essa consciência, negando temporariamente os limites da própria doença. Como também indica o estudo de Paiva e cols. (2002) o preservativo, nesse contexto, mais do que um símbolo de auto-cuidado e afeto para com o outro, pode justamente servir para lembrar o que o casal gostaria de esquecer.

Que implicações psicológicas estão presentes em casais que conscientemente se expõe ao vírus? A expressão “já estou dentro mesmo”, repetida por diferentes mulheres deste estudo, expressa tanto a certeza da própria infecção, ainda que o resultado do exame não esteja disponível, quanto o desejo de aproveitar, de “curtir” o tempo com companheiro. Em alguns casos, a soropositividade é apenas uma segunda “condenação”, concorrendo com outras doenças, como o câncer. A fruição erótica entra em jogo: porque restringir, se pode não haver muito tempo mais para o casal? Nesse ponto entra em questão o “morrer fazendo amor”, “prevenindo-se algumas vezes e outras não”.

Estudos realizados em São Paulo (Paiva & cols., 2002) constataram aspecto semelhante: as mulheres soropositivas estudadas apresentavam dificuldade em convencer seus parceiros a se protegerem. Mesmo sabendo da soropositividade da parceira, os homens recusavam-se a usar preservativos, pelos mesmos motivos aqui apontados: não gostam, preferem compartilhar o destino da parceira por amor ou pela qualidade do prazer sexual. No caso dos homens, o significado e o valor atribuído ao desempenho sexual como sustentáculo da identidade masculina os expõe ao risco; para os homens deste estudo, tal padrão não gerou ambivalência específica: ou o foco é o próprio prazer, ou o foco é a própria saúde. Para as mulheres, porém, a exposição não ocorre sem ambivalência: elas consideram o relacionamento, preocupam-se com os filhos já nascidos ou aquele que estão gerando e com o companheiro, mas poucas vezes colocam-se como centro de preocupação; o cuidado está sempre voltado para o outro. O próprio senso de identidade das mulheres está baseado em aspectos interpessoais, onde o objetivo principal é o outro mais do que ela própria (Parker & Galvão, 1996). Mas quem é esse outro? Apesar de um forte discurso no sentido dos filhos, mesmo entre os casais gestantes, a prevenção não foi sistemática. No lugar dela, o companheiro, e desta forma, o relacionamento, parecem estar sendo priorizados. O desafio para as metodologias preventivas é justamente atuar na discrepância entre as atitudes desejáveis e as atitudes possíveis por parte de mulheres e homens com relação ao sexo e à prevenção em seus relacionamentos amorosos.

Análise crítica

O pressuposto que permeia a escolha do tema “práticas posteriores à testagem” é de que a realização do teste e o conhecimento da sorologia seriam capazes de provocar algum efeito preventivo para os casais, que modificariam aspectos do comportamento e, talvez, seus padrões de negociação. Idealmente, espera-se que a testagem e aconselhamento produzam uma alteração significativa na maneira de os casais se relacionarem com a AIDS, no sentido da adoção de práticas de sexo mais seguro, além de adesão aos tratamentos indicados. Em especial casais que realizam o teste, como os casos aqui considerados, teriam um ambiente propício e experiências comuns que facilitariam a comunicação e a redução dos riscos de infecção ou re-infecção (Roth e cols., 2001).

O aconselhamento e testagem para HIV podem ser uma intervenção preventiva efetiva, pois dão a oportunidade de acessar o risco pessoal e promover comportamentos preventivos. Entretanto, o impacto da testagem e aconselhamento parece ser maior para aqueles que têm resultado positivo do que para aqueles com resultado negativo, atuando como prevenção secundária para indivíduos soropositivos para HIV (Paiva & cols., 2002; Weinhardt & cols., 2000). O impacto, possivelmente, não estaria no processo de testagem e aconselhamento em si, mas no resultado positivo do teste, que re-significa as possibilidades relacionais e sexuais futuras, e a própria vida. A intencionalidade existencial contida nos comportamentos dos casais, na forma ambivalente como expressam ora o desejo de proteção quanto à AIDS, ora o desejo de preservação do relacionamento afetivo com o parceiro, parece priorizar o substrato emocional conhecido – o parceiro –, mesmo que o tipo de relação estabelecida com ele possa significar risco futuro à saúde física. Isso envolve um conjunto de informações prévias sobre os riscos envolvidos numa relação sexual, tanto quanto a avaliação dos riscos envolvidos na relação com aquele parceiro em particular.

As decisões dos casais quanto às práticas adotadas após a explicitação do risco e após a certeza da soropositividade também podem ser interpretadas com base nas modalidades de aliança estabelecidas. Uma nova modalidade de aliança parece estar em jogo. O adoecer juntos, o passar pelas mesmas experiências, e até morrer juntos como forma de afirmar a relação amorosa e a força desse amor, que luta contra tudo, ou tudo faz pelo prazer.

 

Considerações finais

A proposta deste estudo qualitativo foi descrever e analisar as práticas preventivas adotadas por casais nos períodos anteriores e posteriores a testagem voluntária, realizada em Centro de Testagem e Aconselhamento. O interesse era avaliar o impacto da testagem e do aconselhamento nas práticas preventivas de casais como possibilidades reais de infecção. A análise apresentada aponta para as dificuldades na adoção de medidas preventivas. A dificuldade não decorre da falta de informação quanto à prevenção, mas de valores relacionados à sexualidade e à expressão de amor e confiança.

A construção de formas de prevenção efetivas depende do equilíbrio nas negociações relacionadas às práticas sexuais. Assim, sugere-se a necessidade de fortalecer o conhecimento das mulheres adultas e adolescentes sobre seus corpos, sexualidade, DST’s e AIDS, desenvolvendo métodos que possam estar sob o seu controle, como preservativos femininos e microbicidas. Além disso, o favorecimento de interações com grupos de outras mulheres que lhes permita trocar experiências e desenvolver uma consciência crítica a respeito de seus papéis sexuais podem levar a uma mudança individual de comportamento, assim como possibilitar uma ação coletiva que modifique as normas sócio-culturais numa determinada comunidade. Avalia-se, da mesma forma, a necessidade e a efetividade de programas que desenvolvam nos homens jovens e adultos a responsabilidade em relação à família e às atividades sexuais, como descrito no estudo desenvolvido por Roth e cols. (2001). Educar os homens e os adolescentes quanto aos riscos da parceira múltipla é essencial para reduzir o risco pessoal e da mulher (Ford & Norris, 1995). Contraditoriamente, alguns grupos defendem a necessidade de desenvolver tecnologias preventivas que possam ser usadas pela mulher, sem o conhecimento do parceiro (Levine e cols. 1993), reduzindo, ou mesmo dispensando a necessidade de negociação, do desenvolvimento de habilidades comunicacionais ou de aprofundamento da intimidade. Nesse sentido, cabe pontuar que aumentar o poder feminino na relação com os parceiros não deve implicar subterfúgio (fazer prevenção sem o conhecimento do parceiro), mas sim questionar e trabalhar sobre a desigualdade de poder que tal situação evidencia. Intervenções que levem em conta dinâmicas do relacionamento e padrões de comunicação necessários para a manutenção de comportamentos preventivos podem ser desenvolvidas nos espaços voltados à saúde pública já existentes (clínicas de testagem, postos de saúde), nos programas de assistência a famílias, assim como nos crescentes espaços de atendimento clínico-psicológico a casais e famílias. Uma iniciativa interessante neste sentido foi relatada por El-Bassel e cols, (2003) na avaliação de programas de aconselhamento para casais ou só para mulheres. Curiosamente, os dois programas apresentaram a mesma eficácia.

O fato de o sistema de saúde estar estimulando a testagem para HIV durante a gestação, como parte do pré-natal, levou muitos dos casais deste estudo a conhecerem sua sorologia. O período pré-natal é próprio para a implementação de estratégias preventivas, e o filho é um motivador importante para o uso da prevenção. Há mulheres que aproveitam esta fase para exigirem o uso de preservativos, já que não estariam agindo em benefício próprio, mas do bebê. Por outro lado, entre os grupos sócio-econômicos mais empobrecidos, a perspectiva de ser incisiva, mas ser abandonada pelo companheiro justamente no período em que se tem um filho pode fazer com que a balança do custo benefício continue pendendo para o lado da não proteção. Novamente, visualiza-se melhores resultados no desenvolvimento de formas de prevenção que envolvam os dois parceiros, a partir da própria testagem, especialmente no período da gestação, com possibilidade de potencializar a própria relação conjugal ou parental.

Um tema que mereceria estudos posteriores é o impacto da soropositividade na relação sexual em si, o que envolve o não fazer sexo e os diferentes momentos até a construção de uma nova rotina sexual que seja segura e satisfatória para o casal. Essa adaptação pode assemelhar-se ao ajustamento necessário após diagnóstico de outras doenças crônicas, como período inicial de depressão e diminuição do desejo ou da condição física para o sexo. Entretanto, dado o caráter majoritariamente sexual da disseminação do vírus, outras nuances e outros sofrimentos podem estar presentes, merecendo estudos específicos.

 

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Endereço para correspondência
Prof. Dr. William B. Gomes -Instituto de Psicologia
UFRGS, Rua Ramiro Barcelos, 2600/113
90035-003 - Porto Alegre – RS
e-mail: gomesw@ufrgs.br

Recebido em 09/2004
Aceito em 10/2004

 

 

1 Lirene Finkler – Psicóloga e Mestre em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul; Terapeuta de Casais e Famílias Desenvolve atividades junto à Prefeitura Municipal de Porto Alegre
2 Manoela Ziebell de Oliveira – Estudante de Psicologia e Bolsista de Iniciação Científica CNPq - UFRGS
3 William B. Gomes – Professor de Epistemologia e História da Psicologia no Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Mestrado e Doutorado pela Southern Illinois University Carbondale (1983). Fundador e Primeiro Editor da Revista Psicologia: Reflexão e Crítica. Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq. Tem publicado nas áreas de psicoterapia, história da psicologia, e desenvolvimento humano
4 Foram convidados a participar da pesquisa cerca de 40 casais. Destes, alguns foram excluídos por serem casais de namorados (procurava-se casais estáveis), alguns não demonstraram interesse na participação, outros marcaram entrevista e não compareceram. Três casais não realizaram a entrevista por ao menos um de seus membros estar sob efeito de álcool ou drogas. Três casais realizaram atendimento de apoio, pois estavam mobilizados pelo recente conhecimento de seu estado soropositivo e não tinham condições emocionais de responder às questões da pesquisa. Efetivamente, foram entrevistados 15 casais heterossexuais que estavam realizando testagem para HIV em Centro de Testagem e Aconselhamento (CTA) do Estado

 

ANEXO A - PROTOCOLO DE ENTREVISTA

 

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